Drogas na Cidade de Deus

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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A história da Cidade de Deus começa com uma ação violenta do Estado: a remoção compulsória de favelas de outras regiões da cidade do Rio de Janeiro, promovida sob o uso criminoso de invasões de domicílio, despejo e até incêndios, para realocar populações inteiras em conjuntos habitacionais que não contavam com infraestrutura de água encanada e potável e rede de saneamento básico, numa região distante dos locais de emprego e ocupação dessas populações. A distribuição discricionária dos serviços prestados pelo Estado à sociedade permanece como uma estratégia de ação, denunciada, nesse espaço, por sua presença precária ao longo das décadas subsequentes, estabelecendo um padrão de asfixia lento e constante que exila gerações do desenvolvimento e uso pleno de suas potencialidades. Entre as diversas formas associativas criadas no processo de sociabilidade pelas diferentes populações das favelas removidas àquele conjunto, denominado Cidade de Deus, tais como escolas de samba, associações de moradores, times de futebol, grupos ligados às pastorais da Igreja, temos as ligadas às ações criminosas como assaltos, roubos, venda de drogas, etc. As primeiras bocas de fumo eram abastecidas apenas de maconha e atendiam, especialmente, aos usuários locais, não necessariamente pessoas envolvidas com ações criminosas, mas antigos usuários, cujos hábitos remetiam a tradições de uso herdado de outras experiências de sociabilidade, outras formas de convivência e transgressão, que demarcavam estratégias de conformação de identidade pessoal e social em meio às relações comunitárias, no microcosmo das alianças locais. A história das origens das bocas de fumo ainda precisa ser contada. Embora se estude muito o tráfico de drogas, há pouquíssimas pesquisas sobre a conformação das bocas de fumo. O que nos leva a entender que o tráfico de drogas tem percurso próprio e distinto e que somente em algum momento de seu desenvolvimento as favelas passam a compor um aspecto dessa trajetória. As vulnerabilidades e potencialidades que fazem da favela um espaço propício à venda dessas substâncias deita raízes inclusive no fato de estarem para além de onde o Estado concentrava suas atenções, através das instituições de controle social, sendo a “vista grossa” da polícia, o seu descaso proveitoso com relação ao tráfico de drogas um dos aspectos que fazem o tráfico tomar as proporções que tem hoje. No que diz respeito à Cidade de Deus, fica-lhe a pecha de ser a primeira favela do Rio de Janeiro onde se desencadeia a guerra pelo controle das bocas de fumo locais, retratada em livro e posteriormente em filme. Desde então, um reducionismo vem acompanhando a Cidade de Deus, a da favela mais perigosa do Rio de Janeiro, embora as outras favelas também tenham sido atingidas pelo mesmo emblema. As drogas têm sido usadas como um eficaz dispositivo de controle social que atinge soberanamente as populações pobres, negras e jovens. O tráfico das favelas é hoje um negócio, uma empresa que atende aos ditames da lógica capitalista aliada aos preceitos neoliberais mais radicais, o da competência para o empreendedorismo pessoal bem-sucedido. Essa simbologia é um signo social que borra as fronteiras entre o trabalhador, o traficante e o usuário/viciado. Há um estilo de vida demarcado pelas alegorias do sucesso pessoal, do poder, do dinheiro sustentado pela sociedade de consumo. O escopo dessa engrenagem massacra a população local, que vive sob o horror e o medo da guerra, e deflagra resistência radicais como o associativismo pela fé, representado pelas igrejas evangélicas, como formas de distanciamento e negação.

Autora: Liliane da Cunha Lo Bianco Lopes.