Encontro Nacional pelo Direito à Cidade

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Estamos vivendo um período de acentuada transição. Em grande parte do mundo e também no Brasil, a desigualdade social se aprofunda com a concentração da riqueza sob hegemonia do capital financeiro. São muitos os fatores que concorrem para a formação desse cenário: as novas tecnologias que promovem desemprego estrutural e impactam relações de trabalho; o fortalecimento do neoliberalismo após a crise de 2008; o enfraquecimento dos sindicatos; os ataques à democracia, à ciência e à razão são alguns deles. Perdas históricas de direitos sociais, desmonte do Estado de Bem-estar Social e das políticas públicas também fazem parte desse processo. Some-se a isso o crescimento do racismo, do machismo e da heteronormatividade, fatores estruturais da desigualdade social, e o avanço do projeto genocida da população negra, pobre e periférica e teremos o quadro catastrófico, sob o qual incide a grave crise ambiental e a pandemia decorrente do coronavírus.

No Brasil, urbanização e industrialização ocorreram concomitantemente durante o século XX. Nesse movimento, a mentalidade escravagista manteve a dinâmica da senzala e impôs à massa da população, que se instalava nas cidades como podia, um mercado residencial discriminado e ilegal. Com parcos recursos e sem acesso às políticas públicas urbanas, essa população constituiu-se para o mercado como uma fonte farta de mão-de-obra barata. Resulta daí a construção de gigantescas periferias dispersas, em sua maioria criminalizadas e desassistidas, causando imensos impactos à vida, à saúde e ao bem estar dos mais pobres. Em contraposição, outra cidade, destinada à população branca de média e alta renda, concentrou em si os investimentos públicos e privados em favor de um mercado imobiliário especulativo e restrito, promovendo uma abissal desigualdade social. 320 anos de dependência colonial,

350 anos de trabalho escravo, cujo final nunca foi totalmente equacionado, e mais de 400 anos de hegemonia de uma economia baseada em serviços braçais de baixa remuneração e exportação de matéria-prima e produtos agropecuários conformaram as condições do nosso processo de urbanização.

Esse relevante processo de industrialização/urbanização passa por mudanças na conjuntura global atual. O Brasil vive um processo de desindustrialização e retrocesso à condição de total submissão econômica a produtos primários e agrícolas para exportação – grãos, carnes, celulose, minérios e etanol, etc. – com forte impacto na economia e na sociedade, mas também no território, no meio ambiente e nas cidades.

A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA PÓS DITADURA DE 64

Nos anos 1980 e 1990, com o impulso das lutas de trabalhadores, mulheres, negros e periféricos pela redemocratização, muitas cidades viveram experiências inovadoras - em que pese a pouca disponibilidade de recursos públicos - conhecidas como “prefeituras democrático-populares”. Movimentos sociais, pesquisadores, professores, ONGs e profissionais se organizaram e defenderam esse modelo. Dentre os muitos projetos implementados na época estavam os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública); CEUs (Centros de Educação Unificados); o Orçamento Participativo, com repercussão e acolhida no mundo todo; urbanização de favelas e áreas precárias; e assistência técnica à moradia social e apoio à produção habitacional por autogestão. Tais projetos assinaram um marco de esperança para a superação de uma sociedade atrasada e extremamente desigual.

A partir de 2002, políticas federais ligadas ao combate à fome, ao acesso à educação, à saúde, à água e à energia, somadas ao reajuste do salário mínimo, conseguiram diminuir a histórica desigualdade social. Os fundamentos mais estruturantes e seculares da nossa formação social, entretanto, persistiram, convivendo com a herança autoritária de uma transição democrática truncada. Não por acaso, no campo urbano, constatamos que, apesar da criação do Ministério das Cidades e de seu Conselho Nacional, das Conferências Municipais, Estaduais e Federal participativas e apesar do arcabouço legal urbanístico inovador, formado por um conjunto impressionante de leis que se seguiram à Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto da Cidade - como as leis dos Consórcio Públicos, Fundo de Habitação de Interesse Social, Regularização Fundiária, Saneamento Básico, Mobilidade Urbana, Resíduos Sólidos, Estatuto da Metrópole, entre outras -, as cidades não romperam com a lógica da desigualdade e sucumbiram à ampliação das forças conservadoras no interior das políticas de coalizão.

Há uma visão patrimonialista e racista predominante que impede o reconhecimento e a efetivação do direito à moradia e do direito à cidade. Essa visão é reforçada por parte dos operadores do direito, que manteve distância e oposição às conquistas legais da luta popular - em especial à “função social da propriedade” - e desconhece a realidade urbana concreta. A segunda década do século XXI nos trouxe material suficiente para compreender em que medida as cidades podem combinar crescimento econômico, fruto de medidas desenvolvimentistas, e regressão nas condições de vida da classe trabalhadora.

Se as reformas pró-cidadania e justiça social foram definitivamente adiadas a partir do golpe de 2016 – reformas nas áreas fundiária, de mobilidade, saneamento ambiental, segurança pública e prisional –, um conjunto de outras reformas – corte de gastos em saúde, educação e assistência social, reforma trabalhista, reforma da previdência – aprofunda a tragédia urbana brasileira, principalmente agora, diante da ruptura com a democracia. A mal enfrentada pandemia, por sua vez, evidenciou e agravou as brutais desigualdades urbanas herdadas de séculos e ampliadas perversamente pelas reformas neoliberais e pela hegemonia financeiro-imobiliária. A política de morte promovida pelo governo Bolsonaro ampliou a miséria e o desemprego. A volta da fome, o avanço dos despejos coletivos, a intensificação da violência contra os pobres e, em particular, contra a população negra configuram um quadro de barbárie social promovido pelo projeto de poder bolsonarista. Esse projeto fortalece e consolida milícias e outras formas de crime organizado, máfias de todos os tipos que, além de ocupar os territórios que se reproduzem na ausência do Estado, passam também a ocupar as próprias instituições estatais.

Mas é preciso reconhecer também o início do retorno da mobilização cidadã capilarizada que ocupa o chão das cidades. A bem sucedida campanha DESPEJO ZERO, que em um ano construiu uma corrente vitoriosa unindo forças e articulando iniciativas em todo território nacional, é prova disso. Como ela, em todas as regiões do País, despontam iniciativas da sociedade civil: do movimento negro, de coletivos, de sindicatos, de universidades, de partidos, de movimentos de mulheres, de LGBTQIA+, de moradores de favelas, de jovens pela cultura, de luta pela moradia, de

profissionais – professoras(es), arquitetas(os), advogadas(os), engenheiros(as), médico(as), assistentes sociais - entre outros.

Há uma visão patrimonialista e racista predominante que impede o reconhecimento e a efetivação do direito à moradia e do direito à cidade. Essa visão é reforçada por parte dos operadores do direito, que manteve distância e oposição às conquistas legais da luta popular - em especial à “função social da propriedade” - e desconhece a realidade urbana concreta. A segunda década do século XXI nos trouxe material suficiente para compreender em que medida as cidades podem combinar crescimento econômico, fruto de medidas desenvolvimentistas, e regressão nas condições de vida da classe trabalhadora.

IGUALDADE E DEMOCRACIA PELO DIREITO À CIDADE

Nesse momento de sobreposição de crises e regressões, é nosso papel recolocar horizontes e desbloquear o futuro que hoje se encontra interditado. É preciso fortalecer a luta pela democracia desde as cidades: nos bairros, nas escolas, nas igrejas e também nas universidades - que, nas últimas décadas, se difundiram pelo território nacional e foram obrigadas a abrir espaço para camadas populares por meio de ações afirmativas. É preciso disseminar a informação e travar a batalha de ideias, resgatar a utopia das cidades como lugar do viver juntos, como o espaço da vida em comum, onde todas e todos podem ser socialmente iguais, humanamente diferentes e livres de opressões, explorações e discriminações. Este horizonte de cidades justas é utópico, mas também realista e necessário.

É preciso, também, redirecionar os investimentos públicos para a reparação histórica e para a redistribuição das riquezas para superar o racismo, os abismos e as barbáries instaladas. Ou seja: investir de acordo com as necessidades sociais e não de acordo com interesses de rentistas fundiários/imobiliários. Para tanto, é fundamental exercitar o controle social sobre os recursos públicos, como manda o Estatuto da Cidade; denunciar e condenar as práticas criminosas daqueles que fazem da cidade um grande negócio; expandir e manter a oferta estatal e gratuita de bens e serviços públicos essenciais à efetivação dos direitos sociais; e retirar poder dos “centrões” que fazem ponte entre interesses privados e os executivos, manipulando os fundos públicos.

É imperioso reconhecer e valorizar os esforços que promovem a organização e as lutas no tecido social. É imprescindível revalorizar o trabalho cotidiano de "formiguinha", que organiza e promove as lutas localizadas que dizem respeito à realidade concreta da maioria da população. As entidades abaixo assinadas estão organizando um grande encontro nacional da sociedade civil no primeiro semestre de 2022 com a perspectiva de recolocar a luta pelo direito à cidade no centro do debate político nacional. A hora é agora.