Favelas de Niterói: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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*Morro da Caixa d'Água
*Morro da Caixa d'Água
*Morro do Caramujo
*Morro do Caramujo
*Morro do MIC
*Ponta d'Areia


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Edição das 20h47min de 28 de setembro de 2023

Autoria: Elizabete Albernaz.  

Introdução

“Favela” é uma categoria de difícil definição, primeiro em razão de sua diversidade. Várias configurações espaciais e humanas caracterizam locais de habitação popular classificados como favelas. Seus limites territoriais também costumam ser altamente debatíveis e imprecisos, bem como os critérios socioeconômicos e demográficos que caracterizam as áreas chamadas de favela[Notas 1]. Confrontada por essa dificuldade, escolhemos tratar a favela como uma relação social (ou um feixe delas)[Notas 2], uma posição relativa em um campo de forças que conformam a experiência citadina da desigualdade social.

Nesse sentido, para a caracterização das ‘favelas de Niterói’, trataremos a cidade não apenas como contexto, um lugar inerte que serve de palco para a ação social. A cidade é uma agência crucial para a compreensão da vida política e do cotidiano dos “pobres urbanos”[Notas 3], suas táticas de viabilização moral e material de um modo de existência, bem como das formas perversas pelas quais estruturas persistentes de desigualdade podem encontrar “morada” na criatividade, tenacidade e ousadia com que os sujeitos favelados desafiam a escassez material de suas vidas e conquistam seu “direito a cidade”[Notas 4]. Afirmamos que não se pode compreender o surgimento das favelas de Niterói e a vida de seus moradores fora do processo de urbanização da cidade de Niterói, das disputas de poder, das relações estruturais das favelas com a economia e a política local, das dinâmicas de conflito e cooperação, conservação e mudança que imprimiram (e ainda imprimem) as hierarquias sociais no espaço daquela cidade.

A estrutura de segregação da pobreza no espaço de Niterói, como gostaríamos de apresentar aos leitores e leitoras, é produto direto de um longo processo histórico de “mudanças conservadoras” na distribuição da propriedade privada, à serviço da reprodução material e moral dos grupos dirigentes da cidade[Notas 5]. Sua condição de polo regional de atração de populações de todo o país, principalmente da região leste-fluminense, certamente deve muito ao fato de Niterói, no século XIX, ter sido capital da então província do Rio de Janeiro. Esse contexto macro histórico desempenha um papel crítico também nas narrativas sobre as origens das favelas de Niterói. Na virada dos séculos XIX-XX, a então capital da província, inspirada pelos luzes do urbanismo francês, investiu pesadamente na regulação da cidade, seus circuitos de circulação e padrões de ocupação humana, desempenhando um papel crucial na constituição da pobreza urbana niteroiense e seus locais de morada.

Riqueza e pobreza na "Cidade Sorriso"

Niterói é uma cidade litorânea brasileira considerada de média escala, fundada, segundo a historiografia oficial, no ano de 1573 pelo cacique temiminó Araribóia, que (em tupi-guarani) significa "cobra da tempestade"[Notas 6]. O município ocupa uma área de 129,3 km², 100% urbana, situada na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro (RMRJ), com quase 500.000 habitantes, belas paisagens naturais e o segundo melhor IDHM do país (0.837 de uma escala de 1)[Notas 7]. É também o município brasileiro com maior percentual de famílias incluídas na chamada “classe A” (alta)[Notas 8], com 30,7% de seus habitantes com renda familiar acima de 20 (vinte) salários-mínimos. A cidade possui 52 bairros registrados e encontra-se dividida em 5 (cinco) macro-regiões administrativas (imagem 1): Praias de Baía, Norte, Pendotiba, Oceânica e Leste.

 

Imagem 1 - Mapa macro-regiões de Niterói[Notas 9]

 Apesar do seu extraordinário desempenho no ranking do IDHM nacional, a “qualidade de vida” na Cidade Sorriso- como Niterói também é conhecida - não tende a beneficiar a sua população de forma equilibrada. Ela apresenta discrepâncias regionais claras e é puxada fortemente pelas condições de vida dos habitantes das chamadas Praias de Baía, região que compreende os bairros de Boa Viagem, Icaraí, São Francisco e Charitas, áreas com maior concentração de renda da cidade.

Os portos de Niterói, desde sua fundação, foram cruciais para o escoamento da produção da região leste-fluminense[Notas 10] do estado e para o abastecimento da antiga província do Rio de Janeiro de gêneros alimentícios para consumo local. Por conta disso, um dos principais eixos estruturantes da cidade se sustenta sobre a oposição litoral-interior. A medida que nos afastamos do mar, a tendência é que a ocupação humana do território seja mais espaçada, com focos pontuais de adensamento populacional nas favelas interioranas[Notas 11]. O perfil socioeconômico e as condições de vida da população que habita o interior do município se deterioram sensivelmente em relação as encontradas no litoral (mapa 1)[Notas 12].

Mapa 1 - Porcentagem de pessoas que possui renda superior a 5 (cinco) salários mínimos por região de Niterói, com destaque para a localização do Morro do Palácio (Fonte: IBGE/2010)[Notas 13]

É na região litorânea que estão situadas também as maiores favelas do município, em termos de população residente: o Morro do Estado (4.073 hab.), próximo ao Centro da cidade, situado em uma área bastante comercial; o Morro do Palácio (1.851 hab.), entre os bairros do Ingá/São Domingos (classe média) e Boa Viagem (classe média e média alta); o Morro do Cavalão (2.302 hab.), localizado entre Icaraí e São Francisco, ambos bairros de classe média alta e alta; e o Preventório (5.744 hab.), em Charitas, bairro que congrega moradias de classe média (mais próximo à São Francisco) e comunidades ligadas a atividade pesqueira (próximo a Jurujuba) (IBGE/2010)[Notas 14].  

Imagem 2- Região litorânea de Niterói (Praias da Baía), com destaque para a localização dos morros do Palácio, Estado, Cavalão e Preventório (Fonte: Google Maps)

A região das Praias de Baía possui os melhores índices socioeconômicos do município em termos de renda domiciliar per capita, escolaridade, acesso a equipamentos urbanos, serviços públicos etc[Notas 15]. Além disso, sua intensa e diversificada vida comercial faz da região um importante pólo de atração da economia do município de Niterói, cujo dinamismo baseia-se no setor de serviços[Notas 16]. A região absorve bastante mão de obra das favelas de Niterói, bem como de municípios vizinhos, como São Gonçalo, cidade com cerca de um milhão de habitantes, um IDHM de 0,739 e que, até 1890, foi também distrito de Niterói.

Um outro dado que chama atenção no que se refere a distribuição da qualidade de vida na cidade de Niterói é a vulnerabilidade diferencial de sua população negra. Em termos de rendimentos, uma pessoa branca, em 2010, apresentava renda média de R$ 2.552,83, enquanto as negras recebiam bem menos, R$ 1.028,40. Para o mesmo ano, 43,29% dos brancos tinham completado o ensino superior, enquanto apenas 15,13% dos negros residentes na cidade tinham alcançado esse mesmo nível de escolaridade. Os negros também são predominantes em relação aos brancos dentre aqueles considerados “pobres” e “muito pobres” do município[Notas 17]; são também o segmento mais representativo, segundo o IBGE (2010), dentre as quase 80 mil pessoas vivendo nas 77 favelas de Niterói.

Origens históricas da pobreza urbana e seus "lugares"

Para que possamos compreender a estrutura das desigualdades na organização atual do espaço e das relações sociais no município, é fundamental termos em mente os desenvolvimentos históricos que fizeram das  favelas de Niterói um “lugar”; um lugar reconhecido como a morada de sua pobreza urbana, produto do jogo de forças assimétricas entre outras posições em um arranjo distributivo determinado de pessoas e propriedades na história da cidade[Notas 18].

A narrativa histórica sobre as origens de Niterói coloca seu marco fundacional numa situação um tanto atípica. O cacique temiminó Araribóia, representante da população indígena nativa da região da atual Ilha do Governador (à época, Ilha de Paranapuã), no Rio de Janeiro, recebeu da Coroa Portuguesa, em 1573, uma porção de terra nas “Bandas D’Além”, hoje, Niterói. A sesmaria de Araribóia, São Lourenço dos Índios, como tantas outras, entretanto, não prosperou. Seu território foi sendo tomado, pouco a pouco, por aventureiros e fazendeiros locais que não reconheciam o direito dos povos indígenas nativos de possuir terras. Nos dias atuais, a região compreendida pela sesmaria de Araribóia é também considerada uma área de favela em Niterói, ocupada pelo Morro da Boa Vista e pelo Morro do Sabão[Notas 19].

Como mencionamos na seção anterior, Araribóia teria recebido sua propriedade em retribuição ao papel desempenhado, enquanto líder temiminó, na luta para debelar as investidas francesas sobre os domínios coloniais portugueses no Brasil. Foi um proprietário entre os despossuídos. Um eminente representante das populações indígenas brasileiras, expropriadas de suas terras e dizimadas pela Coroa Portuguesa, reconhecido como proprietário pelas leis de seus próprios algozes. Araribóia notabilizou-se também por seus feitos extraordinários. Em certa ocasião, diz-se, ele teria atravessado a Baía de Guanabara à nado (cerca de 7.000m), partindo do Rio de Janeiro, para dar combate aos franceses que, auxiliados por seus aliados, os índios tamoios, tinham atracado nas terras das Bandas d’Além. Para ser aceito entre os “humanos”, Araribóia precisou ser super-humano, herói, extraordinário.

Niterói, por sua vez, apesar de não ter sido Araribóia seu primeiro desbravador, escolheu-o como imagem de “pai fundador” e rendeu-lhe diversas homenagens, imortalizando sua figura idealizada em monumentos, prédios públicos, nomes de ruas, entre outros[Notas 20]. O mito político deste bravo temiminó pode ser considerado um dos exemplos mais bem-acabados de projeção de uma imagem invertida, romântica, das relações de poder na sociedade brasileira. Para a constituição de nosso ideal de “nação”, tendemos a escolher a cultura do oprimido como traço de identidade nacional[Notas 21] e fundamos o mito de uma “democracia racial”[Notas 22]. Projeto político historicamente datado[Notas 23], o ideal de “nação miscigenada” tendeu a esvaziar as tensões entre grupos dominantes e dominados no Brasil, mascarando o funcionamento de estruturas de poder profundas, implicadas na reprodução social do status quo.

A principal delas - imortalizada na epopeia de Araribóia - é a estrutura fundiária do país, construída sobre os escombros das comunidades indígenas brasileiras, da absoluta desconsideração de seus direitos sobre a terra, bem como do holocausto da população escrava negra na lavoura monocultora de exportação. Seguindo esse raciocínio, nas linhas que seguem, mostraremos que uma dimensão crucial da reprodução do status quodas relações de poder na cidade de Niterói reside igualmente sobre a distribuição da posse e da propriedade da terra[Notas 24]. Como a historiografia local nos mostra, os desenvolvimentos relacionados a organização da urbe niteroiense, com as suas respectivas transformações na distribuição e regulação da propriedade, encontram-se intimamente relacionados às origens de sua pobreza urbana e de seus locais de moradia na cidade.

A estrutura fundiária atual de Niterói se originou a partir de um processo simultâneo de segmentação da propriedade e avanço do “espaço público” sobre os domínios da vida privada e dos sujeitos, ocorridas majoritariamente no século XIX[Notas 25]. As referências históricas sobre a cidade identificam uma relação direta entre a complexificação da estrutura da sociedade e a crise progressiva do modelo da plantation, fundada sobre a tríade monocultura intensiva, mão de obra escrava e produção voltada para o mercado externo[Notas 26]. À medida que esse modelo perde espaço, dissolvem-se também os núcleos de povoamento em torno da “casa grande”[Notas 27], liberando mão-de-obra e favorecendo o surgimento de estruturas de propriedades menores. Ainda segundo a historiografia local, esse dado estaria na raiz, tanto da complexificação da estrutura de classes da sociedade niteroiense, quanto de um “acelerado processo de desorganização social” que teria se seguido a esse movimento.

O período seguinte na história da cidade (1820-1850) é marcado pela ascensão da medicina urbana (ou social) francesa como discurso organizador do espaço das cidades no Brasil. No ponto de articulação dessas forças, expande-se a categoria da pobreza urbana, co-partícipe indesejado do desenvolvimento daquilo que viria a se tornar a urbe niteroiense.

Os relatos históricos do período, imagens, recortes de jornal, mostram que as reformas inspiradas pelo urbanismo francês tinham uma clara preocupação com o risco de proliferação de doenças. Era preciso “arejar a cidade”, favorecer a circulação de ar para dissipar os gases nocivos emanados de locais como cemitérios, curtumes, abatedouros, terrenos alagadiços, focos de proliferação de mosquitos e miasmas. Não era incomum, à época, que nas cercanias desses mesmos locais, se desenvolvessem moradias populares, seja para abrigar a mão de obra empregada nos estabelecimentos, seja porquê, em razão de suas condições de salubridade, eram estes também os locais de moradia disponíveis e acessíveis aos pobres. Ao lançar sobre estas regiões o seu ímpeto reformador, as forças públicas voltavam-se, mesmo que incidentalmente, contra os segmentos menos privilegiados da população, forçando a sua movimentação em busca de novas oportunidades de vida e moradia na cidade.

Frente a esse novo conjunto de preocupações, o estilo de vida dos pobres urbanos viu-se profundamente impactado também pelo processo de incorporação precária dos negros ao mercado de trabalho livre. Era comum que estes últimos, mesmo no pós-1888, quando não se mantinham atrelados a seus antigos senhores, submetiam-se às condições mais aviltantes de trabalho e moradia disponíveis nas cidades. Sua integração à sociedade de classes jamais foi objeto de políticas públicas sérias, com a escala e direcionamento necessários a sua emancipação de fato[Notas 28]. Durante muito tempo, o status social do negro no país beirou a quase absoluta inexistência cívica. A pele negra, de modo indelével e inconfundível, carregava (e ainda carrega) o fardo do estigma da escravidão. Ao somarem-se às fileiras da pobreza urbana, os negros trouxeram consigo as heranças de sua condição servil, fazendo com que a cor da pele passasse a compor, de forma indissociável, o imaginário das “classes perigosas” no Brasil[Notas 29]. Os “facínoras” e “degenerados” que habitavam os cortiços e favelas, na visão das oligarquias niteroienses, e que infestavam a cidade com suas “doenças e crime”, agora tinham também cor.

Na Niterói daquela época, sob os bons auspícios do “progresso” e do “desenvolvimento”, reforçaram-se padrões de exclusão e segregação, onde o que estava em jogo era o acesso a propriedade enquanto acesso ao espaço da própria cidade, enquanto fator de cidadania. E quem podia ter acesso a essa “nova cidade”, moderna, iluminada pelas luzes de Paris? Quem eram seus “cidadãos”? Os que tinham condições de se enquadrar na “nova ordem urbana” - suas métricas, parâmetros e taxações - serviam-se das melhores oportunidades criadas por esse movimento sob o mercado de bens imobiliários (e de cidadania).

No outro extremo do espectro histórico, na Niterói dos dias de hoje, encontramos as favelas da cidade servindo de morada para a sua pobreza urbana, formada no âmbito da relação com as forças do interesse público e seus ideais “colonizados” e “colonizadores” de distinção e civilidade: de Paris, a “metrópole universal”, para Niterói, ex-capital da província do Rio de Janeiro; do campo de forças estatais, suas cruzadas morais e empreendimentos regulatórios, sobre uma massa humana de “trabalhadores livres”, construindo-lhe seu lugar na paisagem urbana niteroiense do final do século XIX.

Favelas de Niterói

Antes de seguirmos com a história da relação entre a cidade de Niterói e suas favelas, falando do cotidiano de sua população de forma mais detida, é importante deixar claro o lugar de onde partimos para fazer essa caracterização e, assim fazendo, deixar que o leitor ou a leitora avalie os seus limites e pertinência. Quando falamos das favelas de Niterói, falamos de uma favela em especial, o Morro do Palácio; uma “favela praiana”, como os moradores gostam de se gabar, situada no Ingá/Boa Viagem, área nobre da região das Praias de Baia. A primeira versão do presente verbete foi elaborada com base em um trabalho de campo etnográfico intensivo, realizado entre os anos de 2015 e 2017, em parceria com os palaciano s e palacianas, e sob os auspícios institucionais do Programa de Pós-graduação em Antropologia da UFF, Universidade Federal Fluminense.

Falando agora do cotidiano das favelas de Niterói, a presença da própria UFF, patrimônio da cidade desde 1960, exerce grande influência sobre o dia-a-dia dos moradores dessas áreas. Primeiro, porque o dinamismo do setor de serviços da cidade, polo econômico regional, deve muito aos ciclos acadêmicos da Universidade e aos influxos de seu alunado. Muitos moradores das favelas de Niterói vieram originalmente da região Leste do estado, de cidades vizinhas, em busca de uma maior proximidade em relação às oportunidades de emprego, serviços e lazer, majoritariamente concentradas na região das Praias de Baía, como vimos, onde também encontramos os principais campi da Universidade. Essa proximidade como veremos pode ser beneficial para ambas as partes, mas tem também os seus reveses e pontos de tensão.

Observa-se nessas áreas de favelas próximas à Universidade um fenômeno que tem sido chamado por alguns de “invasão uffiana”. Além de diversos projetos conjuntos de extensão e de pesquisa acontecendo nas favelas de Niterói, ocorre ainda que algumas delas tornaram-se opção de moradia para os/as estudantes universitários. Muitas vezes vindos de outras regiões (até de outros países!), esses/as estudantes, em busca de condições acessíveis de moradia próximas à Universidade, têm impactado sensivelmente o mercado imobiliário de favelas como o Morro do Palácio e do seu vizinho Lara Vilela (ou Morro do 94), situados entre os campi da Praia Vermelha, Gragoatá e a Faculdade de Direito da UFF. Moradores e moradoras com alguma reserva de capital aproveitam o movimento para construir e/ou reformar propriedades e oferecê-las ao público universitário[Notas 30] Para aqueles/as que não dispõe dessa reserva financeira, entretanto, o encarecimento do custo de vida puxado pelos preços dos aluguéis na favela tem sido objeto de insatisfação.

Mas nem só de projetos de pesquisa e extensão e questões de moradia se nutre a relação da UFF com as favelas da cidade. As “chopadas” e a Cantareira, área de bares situada ao lado do campus do Gragoatá, também são pontos de encontro, não só para o público universitário, mas também para os moradores e moradoras das favelas de Niterói em busca de agito, boa companhia, música alta e cerveja gelada e barata. Além disso, muitos dos “barraqueiros/as” da Cantareira, bem como funcionários e funcionárias de barracas, bares e restaurantes nos arredores da praça, são também moradores de favelas próximas[Notas 31].

A partir do final da década de 70, a composição das favelas de Niterói foi profundamente impactada por um afluxo significativo de população migrante oriunda do Norte e Nordeste do Brasil. Os representantes originários dessa população migrante e seus descendentes são genericamente referidos como os “paraíbas”. Nas favelas da região, a presença dos paraíbas é bastante característica, com o estabelecimento de sólidas comunidades de ajuda mútua e acolhimento em que os parentes instalados recebem e auxiliam seus familiares na transição a sua nova situação de moradia. Nos circuitos dos paraíbas circulam oportunidades de emprego, as pessoas disponibilizam crédito entre si, fazem empréstimos. No geral, os paraíbas são pessoas altamente empreendedoras, abrem negócios familiares, estão sempre expandindo e reformando as suas casas e pensando alternativas para o estabelecimento de seu modo de vida na favela.

O futebol e a existência do time do Ceará é um caso interessante para refletir sobre a relevância dessas ondas migratórias de paraíbas para a formação das favelas de Niterói. Sobre isso, guardo algumas boas memórias da época do meu trabalho de campo no Morro do Palácio. Numa tarde de domingo de 2016, cheguei a favela e fui chamada por um amigo para assistir um jogo de futebol no campo do Chapadão, que fica no ponto mais alto do Palácio. Para minha surpresa, quando cheguei ao local da partida, pude acompanhar a disputa de pênaltis entre o Ceará do Morro do Estado e o Ceará palaciano. “Ué, tem o mesmo nome os times?”, perguntei tolamente; ao que o amigo respondeu, “acho que em toda a favela tem um time do Ceará, têm ‘paraíba’ em todo canto”. Lembro-me com carinho das festas, da música e da comida típica nordestina; do forró tomando as vielas da favela nos finais de semana, da costela com macaxeira servida na antiga Barraca do Pará onde jogávamos sinuca. Por sinal, no Palácio os paraíbas eram também conhecidos como os reis das mesas de sinuca. Eles não só eram exímios jogadores, mas também jogavam valendo dinheiro, somas muitas vezes bastante significativas; “com paraíba o jogo é sério”, diziam-me meus amigos e amigas palacianos.

A navegação no espaço é uma experiência muito peculiar nas Favelas de Niterói; uma experiência muito diferente da frieza formal dos endereços postais, dos quarteirões e divisões administrativas, dos homenageados históricos desconhecidos que estampam os nomes das ruas e praças do asfalto. Ela revela, mais que a origem de nomes de lugares, mas reflete uma forma de pensar o espaço. No Palácio, onde realizei minha pesquisa, os lugares têm histórias, reputações. São regiões afetivas, formadas pela aplicação de camadas de memórias coletivas, que falam da história da ocupação humana, das características das ondas migratórias que formaram a favela ao longo do tempo e das hierarquias sociais que organizam o espaço no presente. Adquirir a competência necessária para navegar por essas referências foi, para mim, uma verdadeira saga, dessas viagens épicas por acontecimentos passados e figuras memoráveis. A parca sinalização, identificando ruas e becos, não diz quase nada sobre como navegar a favela. Como nas sagas nórdicas, as referenciais espaciais trazem sentidos morais que instruem as sociedades de história oral e lhes dão direcionamento. Trata-se de um saber relacional, afetivo, imanente. As “direções” não estão escritas (e não se reduzem ao que está escrito) e o espaço e um espaço vivo, em permanente mudança. Mas não só os nomes mudam, como forças vivas, os próprios becos se movem. Veios alternativos (quase rizomáticos) às vias principais, atalhos pelo meio da favela surgem e desaparecem vitimados pela busca constante por espaços de construção ou pelo acúmulo de resíduos de um ambiente em constante transformação (afinal, a casa na favela está sempre “em obra”).

Para que o/a leitor/a adquira uma melhor visão da favela como espaço vivo e dessa topografia da memória local, passo a contar um caso vivenciado durante meu trabalho de campo no Morro do Palácio. Estava na casa da família de um amigo com a sua mãe, Dona Denise[Notas 32]; era hora do almoço e decidimos pedir uma quentinha. Estava no início do campo ainda, familiarizando-me com as formas de navegação no Palácio. Desavisadamente, ofereci-me para ligar e encomendar a comida, feita por uma senhora, moradora da própria favela. As casas no Palácio não têm uma numeração muito regular (quando possuem) e os becos tem vários nomes, dependendo do marco mnemônico-direcional da pessoa com quem se fala. Eu ainda não sabia como chamar aquela região da favela em que estava. Voltei com o telefone na mão e uma cara de perdida, “Dona Denise, como eu explico para o rapaz onde fica a sua casa?”; ela responde “Fala que é para a Tia Denise, mãe de Wellerson[Notas 33]; o entregador é o filho de Ana, ele sabe onde fica, a mãe dele foi minha vizinha aqui de frente”. Repeti as instruções ao telefone; quando o rapaz chegou, estava sem troco para a minha nota de 50 reais. “Fica com você que eu trago o troco depois”, disse o rapaz; pedi milhões de desculpas e perguntei se ele não queria levar o dinheiro, “nada, eu volto aqui mais tarde; tá com a Tia Denise, tá com Deus”. A confiança é moeda e a reputação veículo de crédito na favela.

Os barraqueiros são figuras também muito importantes para a vida nas Favelas de Niterói. Suplementarmente ao nome dos becos, as pessoas recorrem muito ao referencial das barracas(presentes e passadas) para oferecer direções. Barraqueiros memoráveis do Palácio, como Seu Antônio “Baiano”, viraram nome oficial de beco; sua reputação, sua condição de pessoa creditada na favela, acabou por imortalizar sua figura. Mesmo que as barracas deixem de existir ou troquem de dono, algumas permanecem vivas como referência no imaginário coletivo. Como o desemprego e o subemprego são realidades bastante tangíveis na vida das Favelas de Niterói de um modo geral, o empreendedorismo é uma saída possível para aqueles que detém algum capital e/ou crédito para investir em um negócio próprio. Pode-se dizer que é quase regra, nesse sentido, que as pessoas se dediquem a montar negócios familiares, em que a casa assume um duplo caráter de residência/local de trabalho. Esse é bem o caso da barraca. Você pode montar uma barraca num “puxadinho” da garagem, no andar térreo de uma casa, numa janela que dá para a rua e passar a oferecer víveres, artigos de limpeza, bebidas. No limite, qualquer produto ou serviço que se mostrar conveniente em termos da demanda local pode ser oferecido em uma barraca. Quanto mais diversa a oferta, maiores as chances de venda.

O futebol é uma genuína paixão nas favelas de Niterói. Os campeonatos de futebol de várzea, as torcidas, os torneios locais, as festas da vitória, as disputas pelos melhores atletas, tudo isso mobiliza muitíssimo a vida dos moradores e moradoras dessas áreas[Notas 34]. Mas o futebol, além de fonte de lazer e entretenimento, possui também uma forte dimensão de ‘empreendimento social’ nas favelas, envolvendo disputas por financiamentos advindos de secretarias e órgãos de governo da área de cultura, esporte e assistência social. Sem mencionar os sonhos e projetos de vida e carreira de técnicos, donos de time e jogadores. “Todo garoto do Palácio, de alguma forma, sonha em ser jogador de futebol…”, disse-me um jogador palaciano. Alguns desses meninos e meninas de fato conseguem fazer do futebol uma carreira de sucesso. Muitos mais, entretanto, constituem família cedo e precisam priorizar a viabilidade material e moral de suas vidas. Com a violência armada rondando o cotidiano, principalmente dos jovens do sexo masculino, é notória uma triste urgência em se virar adulto nessas áreas; parece não haver tempo hábil para as indecisões típicas da juventude. É preciso crescer rápido, “virar trabalhador”, uma estratégia de limpeza moral comum para escapar das armadilhas (por vezes mortais) do estigma social que ainda recai sobre essas áreas.

A violência armada, infelizmente, é uma triste realidade para muitos dos moradores e moradoras das Favelas de Niterói. Não só a violência de grupos armados de narcotraficantes[Notas 35], mas perpetrada pelo próprio Estado, por meio de suas polícias. A favela é o lugar em que um Estado descredibilizado pode dar provas de sua força e materialidade, expandindo seus níveis de violência e fazendo do espetáculo de seus poderes a contrapartida de sua dissolução em interesses particularistas situados nas franjas de sua própria existência político-jurídica. As imagens dos tiroteios, dos armamentos, dos veículos blindados, dos mortos da “guerra urbana” não fornecem qualquer alento seja para o medo, seja para a descrença nos poderes constituídos. Pelo contrário. O espetáculo da segurança pública tem por efeito colateral o aumento da sensação de insegurança e dos níveis de corrupção nas corporações policiais. Em termos de direitos, cria ambientes tóxicos de precarização de garantias individuais em nome do “combate ao crime”. Em termos humanos, o custo é simplesmente irreparável, impresso nas paredes das favelas em mensagens de saudade e pedidos de liberdade para uma geração perdida para a “guerra às drogas” brasileira.

Lista de favelas de Niterói

  • Morro do Bumba
  • Morro do Cavalão
  • Morro do Céu
  • Morro do Estado
  • Morro do Palácio
  • Vila Ipiranga (Niterói)
  • Castro Alves
  • Fazendinha Sapê
  • Morro da Chácara e do Arroz
  • Salinas e Peixe Galo
  • Morro da Cocada
  • Morro do Holofote
  • Morro Do Juca Branco
  • Lara Vilela
  • Morro da Penha
  • Morro do Caranguejo
  • Monan
  • Morro da Caixa d'Água
  • Morro do Caramujo
  • Morro do MIC
  • Ponta d'Areia

Ver também

 Notas

  1. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza a denominação “aglomerados subnormais” para definir espaços com as seguintes características: mais de 51 unidades domiciliares, ausência de título de propriedade, irregularidade dos lotes e das vias de circulação e carência de serviços públicos essenciais. A utilidade dessa definição, para fins de consolidação de estatísticas sobre estas áreas em todo o território nacional, é significativa. Entretanto, devido a suas pretensões de abrangência, ela está longe de dar conta da “favela” enquanto fenômeno sociológico.
  2. Nesse sentido, inspiramo-nos nas análises de Georg Simmel sobre a constituição social da “pobreza” na relação com a formação do “Estado moderno” na Europa. Para o autor, o “pobre”, em sua constituição identitária, de pertencimento a uma camada específica da sociedade, é alguém que é publicamente reconhecido como uma pessoa que carece da “assistência” por parte de uma coletividade; a “pobreza”, nesse sentido, surge a partir de feixes de relações de cooperação e conflito, de interdependência simbólica e material entre indivíduos e grupos de indivíduos desiguais entre si. Nas palavras do autor, “(...) não é a pobreza em si nem a entidade dos pobres em si mesmos, mas as formas institucionais que eles assumem numa dada sociedade num momento específico de sua história. Essa sociologia da pobreza, em realidade, é uma sociologia dos laços sociais (Simmel [1907], 1998)”.
  3. NELSON, Joan M. Access to power: Politics and the urban poor in developing nations. Princeton University Press, 2017.
  4. LEFEBVRE, Henri. The right to the city. Writings on cities, v. 63181, 1996.
  5. ALBERNAZ, Elizabete Ribeiro. Palácios sem reis, democracias sem cidadãos: política,cotidiano e a formação de mercados da exclusão em dois contextos do “sul-global”. Niterói: tese de doutorado, PPGA UFF, 2018.
  6. A data oficial de fundação da cidade de Niterói, estabelecida através da Deliberação n.º 106, de 10 de março de 1909, é 22 de novembro de 1573. É a data que consta do Auto da Posse da Sesmaria. Araribóia teria recebido as terras em atendimento a uma Petição encaminhada a Mem de Sá, Governador-Geral do Brasil à época. Verhttps://culturaniteroi.com.br/blog/?id=430.[em 30/08/2019].
  7. A dimensão que mais contribui para o IDHM do município é “renda”, com índice de 0,887, seguida de “longevidade”, com índice de 0,854, e de “educação”, com índice de 0,773, segundo o site atlasbrasil.org que reúne informações do IPEA, da Fundação João Pinheiro e do PNUD sobre desenvolvimento[em 30/08/2019].
  8. Dados extraídos da pesquisa “Os Emergentes dos Emergentes: reflexões globais e ações locais para a nova classe média brasileira”, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e lançada em 2011.https://www.cps.fgv.br/cps/bd/nbrics/NBrics_Pesquisa_neri_fgv.pdf[em 30/08/2019]
  9. Imagem extraída dehttps://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_bairros_de_Niter%C3%B3i[em 30/08/2019]
  10. Composta hoje pelos municípios de Rio das Ostras, Casimiro de Abreu, Silva Jardim, Armação dos Búzios, São Pedro da Aldeia, Araruama, Rio Bonito, Saquarema, Cabo Frio, Arraial do Cabo, Tanguá, Itaboraí, Maricá, Niterói, São Gonçalo e Iguaba Grande.
  11. Segundo o IBGE (2010), existiriam quase 80 mil pessoas vivendo nas cerca de 77 favelas do município, a grande maioria concentrada nas regiões de Pendotiba, Leste e Norte de Niterói. As favelas maiores e mais adensadas populacionalmente, entretanto, estão concentradas na região das Praias de Baía (ver imagem 16).
  12. Exceção feita à Região Oceânica de Niterói (ver imagem 14) muito menos adensada, considerada uma zona de expansão imobiliária recente, ocupada por pessoas de classe média e média alta, com seus condomínios fechados, casas de veraneio e atmosfera praiana.
  13. Mapa extraído do documento Estudo de Impacto de Vizinhança, realizado em outubro de 2013, para a implantação de condomínio residencial multifamiliar na região de Santa Rosa, em Niterói, e disponível emhttp://urbanismo.niteroi.rj.gov.br/wp-content/uploads/download-manager-files/EIV_MarizEBarros204_R01.pdf[em 30/08/2019].
  14. Segundo levantamento realizado pelo Sindicato de Habitação do Rio (Secovi) em 2015, os bairros em que se localizam essas quatro favelas - as quatro maiores favelas de Niterói - eram também os mais valorizados da cidade, com o metro quadrado mais caro de todo o município.
  15. Icaraí, bairro mais populoso e de maior densidade demográfica de Niterói, localizado à direita no mapa, possui também um dos maiores IDHs do país e a maior concentração de renda da cidade. No curto espaço de tempo de uma caminhada é possível vivenciar a transição de um IDH de 0,962 e uma renda média mensal de R$ 5.146,21, característica das condições de vida na Praia de Icaraí, para um IDH de 0,661 e uma renda média de apenas 427, 35 reais por mês, uma realidade vivida pelos moradores do Palácio. Em sua formulação clássica, o IDH é composto por três indicadores, representando a oportunidade de uma sociedade ter vidas longas e saudáveis, ter acesso ao conhecimento e ter domínio sobre os recursos, a fim de garantir um padrão de vida decente. Através das duas primeiras dimensões, pretende-se avaliar a obtenção do bem-estar através da adoção de um estilo de vida resultante de escolhas livres e informadas, baseadas em habilidades e conhecimentos acumulados. O comando sobre recursos indica se esse processo estava livre de privação de necessidades básicas, como água, alimentos e moradia (UNDP / IPEA 2014).
  16. Em 2010, das pessoas ocupadas na faixa etária de 18 anos ou mais do município, 0,42% trabalhavam no setor agropecuário, 1,41% na indústria extrativa, 5,31% na indústria de transformação, 5,23% no setor de construção, 1,25% nos setores de utilidade pública, 13,03% no comércio e 69,25% no setor de serviços, segundo o site atlasbrasil.org, que reúne informações do IPEA, da Fundação João Pinheiro e do PNUD[em 30/07/2018].
  17. Esses dados, apresentados pela pesquisa “Mapa da População Preta e Parda no Brasil”, baseada nos indicadores do Censo IBGE de 2010, realizada pelo Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostram que apesar da população brasileira ser composta por 56,8% de negros e pardos, Niterói é um dos municípios do Rio de Janeiro com o menor proporção de residentes que se auto-declaram assim. A cidade ficou em 84ª posição, em um ranking que contém 92 municípios no estado. A população niteroiense - que possui um dos melhores IDHM do Brasil - é composta por 35,8% de negros e pardos, muito abaixo da média nacional. Dados extraídos do site atlasbrasil.org, que reúne informações do IPEA, da Fundação João Pinheiro e do PNUD, e do [em 30/08/2019].
  18. Ver BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar in: Bourdieu (org.). A Miséria do Mundo, 1997.BOURDIEU, Pierre. Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. estudos avançados, v. 27, n. 79, p. 133-144, 2013.
  19. Ver https://guianiteroi.com.br/372/sao-lourenco/[em 30/08/2019]
  20. Para saber mais sobre a constituição da mitologia política de Araribóia na cidade de Niterói, ver KNAUSS, Paulo. Herói da Cidade: imagem indígena e mitologia política. In.: Sorriso da cidade: imagens urbanas e história política de Niterói. Niterói: Fundação de arte de Niterói, 2003.
  21. Sobre essa “tendência”, ver FRY, Peter. "Feijoada e soul food." Repositório IFCS, 2012.
  22. Para uma discussão mais detalhada da chamada “fábula das três raças” e seus efeitos sobre o debate do “racismo à brasileira”, ver MATTA, Roberto da. Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira. ______. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1981.
  23. Para um maior detalhamento histórico do projeto político de “nação miscigenada”, inaugurado a partir da Independência do Brasil, em 1822, por D. Pedro I, então Imperador, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  24. As oligarquias cafeeiras controlaram a política de terras até as vésperas da abolição da escravidão (1888), manobrando pela manutenção de seu monopólio em mãos dos grandes proprietários e para a sistemática exclusão dos negros do acesso a terra, de modo a facilitar o transicionamento da condição social do “escravo” para o mercado de mão-de-obra barata e dependente na lavoura. Sobre isso ver GADELHA, Regina Maria d'Aquino Fonseca. A lei de terras (1850) e a abolição da escravidão: capitalismo e força de trabalho no Brasil do século XIX. Revista de História, n. 120, p. 153-162, 1989. Com a abolição, em 1888, a população negra passou a compor as fileiras da “pobreza urbana” eaté a Constituição Brasileira de 1891, por exemplo, vigia o chamado “voto censitário”, regra que limitava o direito ao voto e a participação na vida política da nação aos chamados “homens bons”, indivíduos brancos, do sexo masculino, possuidores de títulos nobiliárquicos, de famílias notáveis e detentoras de propriedades. Sobre a relação entre a pobreza urbana e a propriedade da terra, ver FERREIRA, João Sette Whitaker. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Simpósio Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização, p. 1-20, 2005.
  25. CAMPOS, Maristela Chicharo de. Riscando o solo–o primeiro plano de edificação para a Vila Real de Praia Grande. Niterói: Niterói Livros. Prefeitura de Niterói, 1998
  26. Para um maior detalhamento da atuação política dos grupos dirigentes fluminense e suas posições sobre temas como o fim da escravidão ou a proclamação da república, por exemplo, ver FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. Alberto Torres e o conservadorismo fluminense. In.: Especiaria: Cadernos de Ciências Humanas, v. 10, n. 17, p. 277-301, 2016; LEMOS, E. NETO; DO COUTO, Renato Luís. Como o Açúcar no Café: escravidão, ideologia e política no republicanismo fluminense. In.: História Fluminense: novos estudos. Andréa Telo de Côrte (org.). Niterói: Centro de Estudos de História Fluminense, 2012.
  27. Sobre as passagens entre a sociedade da “casa grande” e dos “sobrados”, da construção daurbenesse período da história brasileira, sem dúvida Gilberto Freyre é o autor que descreve melhor as continuidades e rupturas desse processo sobre as hierarquias sociais e relações de poder entre “dominantes” e “dominados” no Brasil. Ver FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. rev. São Paulo: Global, 2004.
  28. Ver FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letra da Universidade de São Paulo, 1964.
  29. Chalhoub (1996, p. 22) aplicou a categoria - que falava, originalmente, à realidade dos trabalhadores industriais da Inglaterra do séc.XIX - ao contexto brasileiro, destacando uma superposição entre um imaginário coletivo sobre a pobreza e os novos pobres urbanos, ao imaginário importado das “classes perigosas” nos discursos dos cientistas/reformadores urbanos e na imprensa, na virada do séc.XIX no Brasil. Nas palavras do autor, “os pobres carregavam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por definição, perigosos”. Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  30. Sobre a chamada “burguesia favelada”, ver DA SILVA, Luiz Antônio Machado. A política na favela. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 4, p. 699-716, 2011.
  31. A vida comercial na região da praça (onde fica a Cantareira) sofre com um certo “estigma” nos círculos de participação social na segurança pública em razão do “consumo de drogas”, do “barulho” e da “desordem” supostamente causadas por seus frequentadores. Nas reuniões do Conselho Comunitário de Segurança de Niterói e em eventos na Câmara de Vereadores da cidade, dentre outros espaços, as pessoas sempre mencionam a Cantareira como um “problema de segurança pública”. Relatos de brigas, assaltos e outras ocorrências são recorrentes nas ocasiões em que estive presente nessas reuniões. Os meios de comunicação local dão notícia de ocorrências na região com uma certa regularidade também. Especialmente às quintas-feiras, dia em que a praça fica mais movimentada, você experimenta uma situação de vulnerabilidade palpável. Mesmo entre amigos, das várias vezes em que estive lá, atenção e cautela nunca são exageradas, tanto na praça quanto nas vias que dão acesso ao local, em especial à noite. Entretanto, como mencionei no início, percebo também um componente estigmatizante em relação ao “habitus social” (BOURDIEU, 1974, 1996) do “tipo de gente”, formas de vida e carreiras “desviantes” (BECKER, 2008) que frequentam o local, o que justifica certas medidas por meio das instituições de ordem pública contra esses públicos, tanto na esfera estadual quanto municipal.
  32. Nome fictício.
  33. Nome fictício.
  34. Para que os leitores e leitoras tenham apenas uma ideia da capacidade mobilizadora do futebol nas Favelas de Niterói eu deixo aqui um vídeo da final do Campeonato da favela Nova Brasília, em Niterói, ocorrido em 2017. Nessa ocasião, para nossa felicidade, o Morro do Palácio se sagrou campeão, jogando contra diversos times de outras favelas da região. O vídeo foi gravado por mim, durante a minha pesquisa de campo de Doutorado, e retrata a disputa de pênaltis da partida final do campeonato. Foi um dos momentos mais bonitos e emocionantes da minha experiência de campo. Confira o vídeo emhttps://www.youtube.com/watch?v=e-G_eo2ErEY[em 30/08/2019].
  35. Não se tem notícia, em Niterói - pelo menos até a escritura desse verbete -, sobre a atuação de grupos milicianos.