Inteligência bandida (artigo)

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O artigo que segue é resultado do amálgama de 50 anos de “Leitura de Mundo” com pelo menos 30 anos de experiência com a Educação Popular em favelas e escolas. Trata-se de uma formulação teórica banhada na potência criativa que emerge de vivências e experiência de classe nesses espaços. Os autores, além de professores de distintas Instituições de Ensino, são “Crias” de três favelas do Rio de Janeiro: Rocinha, Nova Holanda e Baixa do Sapateiro. As suas trajetórias os levaram a se constituírem como Professores-Pesquisadores dos três Níveis de Ensino Brasileiro (Fundamental, Médio e Superior), atravessados pela Educação Popular em Favelas. No entanto, ao problematizarem e teorizarem sobre as próprias práticas de pesquisas, constataram, em estudos anteriores já publicados, que estavam diante de um conceito novo, ao qual se denominou “Pesquisas Viscerais”.

Autoria: Rodrigo Torquato, Fábio Rodrigues e Willian Alencar[1]

Inteligência bandida: esboço de uma epistemologia das favelas em diálogo com Paulo Freire[editar | editar código-fonte]

Introdução[editar | editar código-fonte]

O artigo que segue é resultado do amálgama de algo em torno de 50 anos de “Leitura de Mundo” – considerando, aqui, a perspectiva mais radical trazida por Paulo Freire – com pelo menos 30 anos de experiência com a Educação Popular em favelas e escolas. Trata-se de uma formulação teórica banhada na potência criativa que emerge de vivências e experiências de classe nesses espaços. Os autores, além de professores de distintas Instituições de Ensino, são “crias” de três favelas do Rio de Janeiro: Rocinha, Nova Holanda e Baixa do Sapateiro. As suas trajetórias os levaram a se constituírem como Professores-Pesquisadores dos três Níveis de Ensino Brasileiro (Fundamental, Médio e Superior), atravessados pela Educação Popular em Favelas. No entanto, ao problematizarem e teorizarem sobre as próprias práticas de pesquisas, constataram, em estudos anteriores já publicados, que estavam diante de um conceito novo, ao qual se denominou “Pesquisas Viscerais”. O presente capítulo é o resultado de um desdobramento, com aprofundamento, dos supracitados estudos e Pesquisas. É deste aprofundamento teórico que emerge a problemática que será apresentada a seguir, ora denominada de INTELIGÊNCIA BANDIDA.  

É importante ressaltar que não se trata de uma ode à bandidagem das favelas, mas sim do resultado de experiências de classes que se forjaram à revelia das conformações mais cruéis impostas às Classes Trabalhadoras das Favelas, pelo capitalismo brasileiro; um capitalismo dinamizado pela “Dialética da Dependência” (MARINI, 2000) e por uma educação bancária (FREIRE, 1987).

Cabe explicitar que a reivindicação da radicalidade da “Leitura de mundo” em Paulo Freire tem o objetivo de preparar o terreno contra críticas meramente moralistas daqueles que desconhecem os contextos e circunstâncias de existência do Brasil-Favela, visto que a categoria Inteligência Bandida não é um recurso discursivo, mas sim uma realidade que está presente nas favelas e se constrói na experiência histórico-social das classes trabalhadoras que ali sobrevivem.  

Os três autores que assinam este capítulo são ávidos por compreender e problematizar as suas circunstâncias e a dramaticidade de se conceber na favela. Isso nos permite dialogar com Paulo Freire, no sentido de compreender a essência da Pedagogia do Oprimido, exatamente porque ao nos encontrarmos:


(...) desafiados pela dramaticidade da hora atual, [homens e mulheres] se propõe a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si, uma das razões desta procura. Ao se instalarem na quase senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas. [grifo nosso] (FREIRE, 1987: p. 29)  


Embora “crias” de favelas distintas, os autores vivenciaram experiências que confirmam a existência de um tipo de inteligência que se forja a contrapelo da epistemologia científico-hegemônica. Tal inteligência, supostamente oriunda dos mais fracos, desafia a epistemologia da ordem burguesa.

Para melhor compreensão do que está sendo defendido aqui, será apresentado um capítulo de empirias, no qual será possível constatar as fontes de origem da Inteligência Bandida, por meio de situações viscerais, que expõem as entranhas do capitalismo de dependência brasileiro e, paradoxalmente, a potência de uma epistemologia engendrada na favela.

Inteligência bandida: bases e fundamentos[editar | editar código-fonte]

A tese central aqui defendida funda-se na ideia de que a Inteligência é o resultado de complexas interações entre um ser cognoscente – o bicho humano, capaz de internalizar a representação daquilo que não conhecia, a partir da atribuição de sentido – e a externalidade cognoscível – aquela que, ao ser estudada, ganha um sentido de existência a partir do que ela passa a representar. Dito de outra forma, a Inteligência é o que permite conhecer o que já existe e, também, criar o que ainda não existe. Assim, temos uma espécie de paradoxo, pois a Inteligência é, ao mesmo tempo, produto dos contextos e criadora de contextos.  

Nesse sentido, os ‘crias’ de favelas são, ao mesmo tempo, produzidos por ela e criadores da mesma.  Ou seja, são forjados inicialmente a partir de conformações sociais, culturais e normativas das favelas, ao mesmo tempo em que são criadores de lógicas de sobrevivência nas circunstâncias que lhes são postas, nas quais o uso da força e a sociabilidade violenta impõem, dentre o conjunto de possibilidades, a construção e as operações cognitivas das pessoas nascidas e criadas em favelas.

O aporte teórico que sustenta e impulsiona as reflexões e as bases da tese exposta a seguir origina-se do diálogo com outras categorias teóricas, oriundas de árduas pesquisas, em especial as categorias de Pesquisa-Pesquisador/a Visceral e Sociabilidade Violenta. Elegemos como foco empírico-analítico as vivências de pessoas nascidas e criadas em contextos de favelas distintas, porém dentro de uma mesma contemporaneidade. A partir dessas vivências, consideraremos aqui, para a análise, três fases de usos distintos da Inteligência bandida: a 1ª fase, a qual denominamos Gênese, que se limita a uma prática internalizada, mas ainda não refletida; a 2ª fase, aqui chamada de Conscientização, que é o agir deliberado e dotado de uma consciência estratégica; e a 3ª fase, que seria a Teorização, que se materializa no uso de categorias para a teorização desse agir.

Cabe ressaltar, porém, que essa categoria que aqui propomos é datada a partir das vivências dos autores em seus contextos históricos. Isso, de algum modo, nos leva a uma ponderação em relação à aplicação generalizada dessa categoria em contextos distintos vividos pelos autores. No entanto, há uma potência analítica, visto que ela se consubstancia na problematização que aqui está sendo proposta.

Aspectos da genealogia da inteligência[editar | editar código-fonte]

Não é possível desconsiderar Piaget como pioneiro nas pesquisas sobre o desenvolvimento da inteligência e a construção das estruturas cognitivas, que vão desde o nascimento do bebê até a juventude. No entanto, é Vygotsky quem vai melhor contribuir para o que estamos problematizando aqui. Este autor propõe a noção de “Internalização das funções psíquicas superiores”, na qual inclui a importância das palavras/conceitos (ou seja, da língua/cultura) na construção do pensamento e da inteligência.

Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa (...). A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana. Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo. (VIGOTSKI, 2007: p. 56 e 58)   

Veja bem, “Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo.” Isso justifica a nossa hipótese. Coadunados com Vigotski e instigados pela práxis oriunda das nossas vivências e estudos, defendemos que a sociabilidade que se constitui na favela é uma externalidade que implica o desenvolvimento de um tipo de inteligência distinta do que se convencionou como padrão. Por isso, entendemos de extrema relevância a “escavação” que estamos realizando, no intuito de descobrir as raízes das inteligências que se forjam nas favelas. As relações sociais e culturais que se dão nesses contextos são fontes genealógicas dessas inteligências.

Noutra perspectiva, mas na mesma direção, Paulo Freire aduz que:

(...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a "reler" momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo. (FREIRE, 2000: p. 11)

Assim, ao apresentar as bases teóricas e etimológicas que sustentam a categoria Inteligência Bandida, o objetivo é problematizar a tese central, aqui defendida, de que as relações e os contextos das favelas constituem a condição de possibilidade predominante, para a formação do pensamento. Através da necessidade de resolver/desenrolar problemas extremamente complexos para se manter vivo (o que, na favela, denominamos DESENROLO), emergem, como resultado da dialética entre pensamento e linguagens que estão ali disponíveis, conceitos originais (sejam eles espontâneos ou reflexos de alguma base científica). É nesse caldo de culturas efervescentes que se forjam as Inteligências não mapeáveis, radicais (de raiz), distintas do padrão formal mediano, tal como a Inteligência Bandida. Corroborando com o exposto, Vigotski, em outra obra, propõe que “a formação dos conceitos surge sempre no processo de solução de algum problema que se coloca para o pensamento do adolescente. Só como resultado da solução desse problema surge o conceito.” (VIGOTSKI, 2009: p. 237).

Isso permite sugerir que a idiossincrasia da inteligência que se forja na favela se dá a partir de outras bases de mediação, possibilitando, a nosso ver, o desenvolvimento da Inteligência Bandida. Para Vigotski, a interação social mediatizada pela culturapalavras-circunstâncias em que os sujeitos estão inseridos e interagem é condição sine qua non para o desenvolvimento da inteligência. Isso nos permite dar outro sentido, e até mesmo outra valoração, para os contextos socioculturais que servem de base para as internalizações dos sujeitos cognoscentes ‘crias’ de favelas.  

Assim, considerando que as palavras-conceitos-culturas são ferramentas mediadoras que possibilitam internalizar e reproduzir mentalmente o que ocorre na externalidade, podemos afirmar que as estratégias de sobrevivências formadas no cotidiano da favela são instrumentos de mediação fora do padrão. É isso que permite a construção de pensamentos contíguos, coexistentes, operando dentro da cabeça das crianças das favelas, por exemplo. Se por um lado, elas sabem quando devem utilizar a inteligência padrão para resolver os problemas de Língua Portuguesa ou Matemática propostos pela escola, por outro lado, sabem, também, operar com a Inteligência bandida, quando, por exemplo, escutam um boato ou assistem a uma cena que pode implicá-las como testemunha de um fato que as coloque em risco. Isso fica evidente quando, por exemplo, um comerciante nos traz a seguinte narrativa:  

As crianças vêm aqui comprar bala e evitam falar o número três e dizem que querem 2+1 de balas… e quando eu perguntava o porquê disso, ainda brincavam: Qual é tio? aqui é dois mais um...

Trata-se de um exemplo de uma determinada favela onde se convencionou a associar o número três à facção dominante da favela vizinha (terceiro comando). Nesse caso, as crianças evitavam pronunciar o número três ao comprarem balas e doces no referido estabelecimento. Essas crianças sabiam operar com o raciocínio lógico matemático (2+1), mas ao mesmo tempo operavam com uma estratégia que as colocavam afastadas de riscos, evitando a pronúncia do número três. Esse fato corriqueiro aponta a capacidade de acionar a inteligência padrão e/ou a inteligência bandida.

Em outra perspectiva, buscamos o sentido etimológico da segunda categoria que forma o outro pilar de sustentação da tese aqui defendida, a categoria “Bandida”. Apesar da escolha por essa adjetivação possuir um verniz provocativo, como forma de ressignificar os estereótipos criminalizantes colados pelo senso comum a tudo que remete à favela, optamos por afastar o sentido tradicional que relaciona bandido à delinquência ou a alguém fora da lei. Nesse sentido, nos remetemos ao dicionário Houaiss (2009), que nos lembra que a sua raiz advém do termo italiano bandito, originário do verbo bandire, que significa banir, exilar. Ou ainda, na raiz etimológica na forma latina bannire. Assim, optamos por acionar tal categoria visando retomar seu sentido original para designar uma Inteligência que está à margem, banida, não legitimada e não reconhecida.

Por isso, as narrativas que iremos apresentar são fundamentais para se estabelecer os nexos lógicos da tese aqui defendida. Essas narrativas serão apresentadas mais adiante, bem como os exemplos dos usos e operações da Inteligência Bandida no cotidiano, os quais não somente estão presentes o tempo todo no processo de produzir este artigo a seis mãos, mas, sobretudo, formam os pilares empíricos de sustentação da tese. Por isso, são cruciais para a compreensão do que estamos defendendo.

1ª Dimensão – Gênese da Inteligência Bandida. Das Infâncias à Adultização Precoce: interações, internalização e operações com a Inteligência bandida[editar | editar código-fonte]

Diante do exposto, temos aqui o que podemos classificar como a 1ª fase da Inteligência Bandida, pois os sujeitos cognoscentes e a realidade cognoscível da favela se forjam num processo dialógico, no qual inquietudes e cautelas formam um amálgama. Ou seja, a necessidade de se construir estratégias de sobrevivência e ao mesmo tempo refletir sobre a sua condição circunstancial de classe, impulsiona a elaboração de processos criativos que pavimentam o desenvolvimento de uma inteligência para além do padrão. Por isso, muitas crianças das favelas munidas dessa Inteligência Bandida “zombam” da inteligência padrão exigida pela educação bancária formal. Embora numa tenra idade, essas crianças estão tentando se compreender nesses mundos distintos em que elas estão inseridas: na escola tentam enquadrá-las num modelo padrão de infância, na favela, elas precisam estar “ligadas” o tempo todo, porque senão...   

Assim, é possível admitir que a Inteligência Bandida se desenvolve tal como a inteligência padrão, em sucessivas fases, no entanto, a fase inicial, a da infância, se dá submetida a um conjunto de possibilidades sociais e culturais nas quais a opressão, a escassez e a violência passam a nutrir a criatividade sagaz, a expertise da escuta e do que se pode falar, a opressão do trabalho infantil, o ter que fazer dinheiro para ajudar em casa e a violência da adultização precoce.

É importante ressaltar que essa adultização precoce impacta por toda a vida do indivíduo, inclusive pode comprometer o desenvolvimento cognitivo do adulto em sua forma plena no sentido de que possam operar com reflexões que lhe permitam superar a consciência ingênua. Assim, é possível identificar alguns comportamentos de indivíduos em sua fase adulta operando apenas na primeira fase.  

No entanto, a questão não é tão simples, ela é constituída de uma complexidade descomunal. Vejamos.

“Vigie os ricos, mas ama os que vêm do gueto”  [editar | editar código-fonte]

A mãe de um dos autores desse texto, tal como a mãe do Mano Brow (Grupo de Rap Racionais MC’s), ensinou-lhe que deveria sempre olhar para os ricos e prestar muita atenção nas suas escolhas, naquilo que eles faziam para enganar os pobres. Em seguida, completava ela: “temos de ter o compromisso é com a nossa gente, os pobres!” Essa foi a base ideológica sobre a qual ele foi formado. À guisa de exemplo, segue o relato de um fragmento que aponta as rotas da Inteligência bandida dessa fase. Para melhor fluir o texto, a narrativa abaixo segue na primeira pessoa:  

“Minha mãe trabalhou como babá, durante 15 anos, para uma família muito rica, no Rio de Janeiro. Criou as três filhas dessa família, desde a mais tenra idade. Em função da falta de tempo dos patrões (pais) para cuidar das suas crianças, e seguindo a lógica do “vigiar os ricos”, ela desenvolveu uma metodologia de sobrevivência para a luta de classes, dentro dos limites que o capitalismo lhe impôs, como não saber ler e escrever.  Ao levar as filhas dos patrões às consultas médicas de rotina, ela percebeu que havia um elemento ali que impactava na luta de classes entre pobres e ricos: as vitaminas que os médicos receitavam para as filhas dos ricos, com o objetivo de melhorar o desenvolvimento físico e intelectual das crianças. Ela me contava que enchia os médicos de perguntas acerca dos medicamentos. Com isso, ela selecionava e categorizava os medicamentos entre aqueles que eram para a inteligência e os que eram para o desenvolvimento físico. Como não sabia ler e escrever, tampouco tinha dinheiro suficiente para comprar todos, ela optava pelos medicamentos vitamínicos, pois ajudavam a desenvolver a inteligência. Ela recortava as frentes das caixas desses medicamentos, e guardava. Quando voltava para casa, na favela, comprava os mesmos medicamentos e me dava para tomar, seguindo a mesma orientação médica para as filhas dos patrões. Para me convencer de encarar o amargo das vitaminas, dizia: “Bebe, meu filho, porque senão os ricos estarão sempre na nossa frente. Isso é para você ficar tão inteligente quanto os filhos deles.”

Ou seja, a experiência narrada demonstra que a atitude dessa mãe está muito além da mera sagacidade. Há o desenvolvimento de um método de enfrentamento para a luta de classes, ainda que ingênuo, pois prevalecia um certo moralismo religioso na busca por agir de forma correta. Isso é a configuração do primeiro nível de uso da Inteligência

Bandida. pois não se configura ainda a tomada de consciência, tal como sugere Paulo Freire, pois:

Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. (FREIRE, 1980: p. 26)

Nestes termos, coadunando com o Patrono da Educação Brasileira, ressaltamos aqui a demarcação que distingue essa primeira fase da segunda, sobre a qual falaremos a seguir.

2ª Dimensão – A Conscientização e a interação com o asfalto: nós cá e eles lá, a vida é assim.[editar | editar código-fonte]

A segunda dimensão da Inteligência Bandida configura-se em um momento/estágio em que os ‘crias’ de favela tomam consciência da existência de um tipo de sagacidade oriunda da sua socialidade na favela. Compreendem que há formas específicas de interpretar contextos, pois estão munidos de ferramentas cognitivas que possibilitam interpretações de contextos distintos. Ou seja, eles lidam com uma ambiguidade de se relacionarem com os diferentes grupos em que se inserem, sejam da favela ou fora dela, por exemplo, na escola, no emprego ou em qualquer espaço relacional da vida cotidiana, da vida social.

De forma geral, é nesse momento que “os/as ‘crias’” percebem que possuem uma espécie de sagacidade distinta dos conhecimentos formais oriundos de contextos que se constituem fora da favela. Ao tomarem consciência dessa sagacidade, passam, aos poucos, a fazer uso dela nos diversos contextos, tornando-se então, um elemento estruturante do seu pensamento-raciocínio nas tomadas de decisões.

A partir daí, com base na perspectiva histórico-social de Vigotski, o que era apenas um elemento rudimentar de interpretação de contextos – a sagacidade – torna-se um elemento estruturante do pensamento. É o que estamos denominando INTELIGÊNCIA BANDIDA.

Dito de outra forma, a sagacidade, um tipo de operação intelectual rudimentar, que se pauta na espontaneidade e no “calor dos acontecimentos”, por meio da malícia oriunda das sociabilidades apreendidas na favela, transforma-se em uma lógica estruturante para a tomada de decisões e construção de estratégias de sobrevivência. Tudo isso se desenvolve sob uma esfera do capitalismo de extrema exploração e opressão, que se constrói na favela.

Esse é o segundo momento da constituição/consolidação da Inteligência Bandida. É o momento em que se toma consciência de que a nossa operação intelectual conta com ferramentas cognitivas-conceituais que só estão presentes dentro da favela. Os indivíduos nascidos e criados em favelas estão umbilicalmente conectados com os contextos que os formam. É nesse sentido que o grupo de rap paulista Racionais MC’s afirma que “a gente sai da favela, mas a favela nunca sai da gente”. Em outras palavras, a favela não se limita a um espaço geográfico, mas se constitui também como um conjunto de relações que são internalizadas no indivíduo e passam a fazer parte da sua subjetividade. Essa conexão, em outro trabalho, chamamos de visceralidade, pois, ao externalizar a favela que nunca sai da gente, estamos também expondo as nossas próprias vísceras.  

As ferramentas intelectuais construídas primeiramente na relação com a lógica da favela e, posteriormente, com as lógicas formais, independem do fato de o sujeito se conscientizar sobre isso. Elas operam à revelia da sua vontade ou da sua consciência. No entanto, defendemos que, num determinado momento, muitos dos ‘crias’ de favelas passam a ter consciência de que eles possuem uma forma de “Ler o mundo” diferente daqueles que não se socializaram em favelas. Esse é o momento que estamos considerando aqui a segunda dimensão do processo que evidencia a existência e o funcionamento da Inteligência Bandida.

Objetivamente, podemos definir essa dimensão da Inteligência Bandida como uma espécie de ethos que, gestado a partir de um conjunto de vivências e práticas inerentes de favelas, vai dando forma a uma expertise, uma habilidade para o enfrentamento das situações complexas do cotidiano. Esse conjunto de práticas pode ser constituído basicamente por três pilares: a escassez de recursos, imposta pela limitação financeira; a contiguidade geográfica da violência e/ou da sociabilidade violenta; e o ethos religioso que permeia direta ou indiretamente as relações sociais nos espaços de favela.

Permitindo-nos fazer uma analogia com o futebol, essa segunda dimensão da Inteligência Bandida, tal como um drible, não é um conhecimento que se aprende por meio de métodos, tampouco com uma educação bancária, mas é uma solução criativa possível (ginga) para se desvencilhar do impeditivo (marcador). A criança, ao brincar de futebol, vai adquirindo ginga, malemolência, sagacidade para ludibriar seu adversário, encontrar o espaço vazio e avançar com a bola em direção ao gol. Ou seja, são as circunstâncias que se impõem no jogo, no caso nas relações da favela e fora dela, que fazem com que o “jogador” encontre soluções imediatas e consiga inclusive pensar à frente do seu adversário. Vê-se aqui que não é apenas um acionamento automático da sagacidade, mas, ao contrário, é um uso consciente da inteligência bandida.  

Desse modo, a sociabilidade típica do cotidiano da favela forjaria então uma expertise que, uma vez tendo consciência dela, o indivíduo poderá acioná-la para enfrentar um conjunto de situações que tentará colocá-lo para fora do jogo. Para demonstrar de forma mais concreta o que argumentamos acima, segue uma outra situação empírica.

Preto no banco de trás? Quem dá esse mole? – O perrengue é meu workshop[editar | editar código-fonte]

No ano de 2011, um grupo de intelectuais da favela institui o CRIA. Esse grupo se propunha a promover reflexões, a partir das vivências de cada integrante em sua favela de origem e, assim, sistematizá-las. Os encontros ocorriam mensalmente nas casas dos próprios ‘‘crias’’, em diferentes favelas, dentre as quais, Rocinha, Maré, Acari, Timbau... Cabe destacar que foram desses encontros que surgiu a inspiração para gestarmos o conceito-chave deste artigo.

Era uma tarde de sábado, quando finalizávamos um desses encontros na Nova Holanda, uma das 16 comunidades da Maré, conjunto de favelas que fica às margens da Baía de Guanabara, entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha. Como de praxe, após as nossas discussões, algumas rodadas de cervejas eram quase que necessárias para fluirmos os desdobramentos dos debates com a leveza que uma trocação de ideias proporciona. Além dos componentes de favela do Cria, participava ativamente também um professor de Geografia da Universidade Federal Fluminense e sua companheira. Ainda que não pertencente ao espaço, o referido professor estava contido – tomando aqui emprestado os conceitos da matemática – e como tal não abria mão desses pós encontros etílicos. Na ocasião, seguimos para um bar numa das movimentadas ruas da Nova Holanda, cujo fluxo de gente se intensifica naturalmente aos sábados, como em qualquer outra favela.

Passava das 17h quando fomos surpreendidos pela entrada do veículo blindado da

Polícia Militar do Rio de Janeiro, popularmente conhecido como ‘caveirão’, embora isso não fosse surpresa para os moradores, já que incursões ostensivas (e ofensivas) desse tipo compõem o cotidiano desses espaços. Apesar de não surpreender quem é cria, estas incursões se dão sob uma tensão generalizada, dada as marcas traumáticas guardadas na memória dos moradores. Nesse cenário, observávamos do bar a movimentação de pessoas se abrigando à medida que o “caveirão” avançava. Alguns minutos depois, ouvimos alguns tiros. O professor da UFF se abismava diante da sua primeira experiência com esse tipo de medo. Comentava que aquele alvoroço observado era sintomático e muito dizia sobre a relação polícia x favela.

Passado o breve período de tensão, não nos restava outra opção que não fosse fechar a conta e cada um seguir o seu caminho de retorno. Um rapper e fotógrafo integrante do CRIA, de talento e inteligência singular, seguiria para a Avenida Brasil, de onde pegaria seu ônibus de volta para casa, na região do subúrbio. Por estarem de carro, já estacionado no interior da favela Nova Holanda, o casal então oferece carona ao rapper/fotógrafo, que, sem titubear, recusa a oferta. Em princípio, tal gesto soa incompreensível para o professor. Seria um acanhamento? Um gesto de humildade? Ou até mesmo o entendimento de que não era mesmo necessário a carona do amigo?

Como quem explicasse o óbvio, o rapper esclarece o motivo da recusa: certamente a polícia ainda estaria nas entradas da favela, como geralmente ocorre após as incursões e, com isso, ele previa uma abordagem policial. Afinal qual é a leitura do servidor público de farda ao avistar um homem preto no banco de trás do carro de um casal branco?

O professor compreende então que a atitude foi uma forma de poupar a vida do casal ou no mínimo evitar um constrangimento e tensões na possível abordagem e revista policial, ainda que não tivessem absolutamente nada que os colocasse sob suspeita. No entanto, tomamos esse fato como um exemplo de acionamento da Inteligência Bandida em seu segundo nível: possui a sagacidade apreendida nas vivências na favela, tem consciência que a possui e passa a acioná-la em situações complexas que exigem estratégias para alcançar algum objetivo ou desvencilhar-se de possíveis problemas.

O nosso fotógrafo e rapper, homem negro retinto da favela, traz consigo um semnúmero de situações em que foi vítima de constrangimentos e violências perpetradas pelo racismo. Ele não seria “otário” de dar “esse mole” e passar de carro saindo da favela, após a entrada do caveirão. Dito de outro modo, o nosso artista consegue pensar alguns passos à frente e se antecipa prevendo também a lógica que rege a norma do “asfalto” para se proteger.

É possível que se argumente que essas marcas que o nosso rapper traz no corpo, e suas consequentes estratégias apreendidas, originam-se das vivências em um país racista. O que não podemos negar, no entanto, é que a inteligência ali posta em prática, em que se prevê os movimentos de uma incursão policial e seu modus operandi, adveio do olhar sagaz obtido nos becos e vielas das periferias.

Cabe ainda uma outra reflexão, ainda que secundária, mas não menos importante, para delinearmos o conceito de Inteligência Bandida. A bagagem intelectual e acadêmica do estimado professor não lhe proporcionou uma leitura e análise daquele cenário, para aquele momento vivenciado na Nova Holanda, em julho de 2011. A Inteligência Bandida não se desenvolve como um conjunto de competências apreendidas na educação formal, mas absorvidas na necessidade de dar soluções imediatas e criativas diante do “perrengue”.

Isso quer dizer que, independentemente do fato de o sujeito ter consciência de que

a forma como ele se relaciona com a favela e com o “asfalto” são distintas e contíguas, a sua práxis está orientada por essa contiguidade. O modus operandi de pensar e responder aos desafios da externalidade (asfalto-favela) está umbilicalmente conectado com a Inteligência Bandida. Logo, essa segunda dimensão é uma ferramenta de operação cognitiva, resultante da capacidade do sujeito de acionar essas inteligências de acordo com os desafios que emergem nesses distintos contextos.  

Uma proposta inversa: da favela para a escola[editar | editar código-fonte]

No livro A Magia dos Invencíveis: Os meninos de rua na Escola da Tia Ciata, Ligia Costa Leite nos traz uma narrativa de um fato que pode elucidar um pouco a ideia de “inteligência bandida”. A autora, que também é professora na referida escola, apresenta uma proposta de passeio a um ponto turístico da cidade do Rio de Janeiro. Na ocasião, os alunos iriam ao Cristo Redentor, monumento localizado em uma área nobre da cidade, o bairro do Cosme Velho. É bom lembrar que a Escola Tia Ciata se localiza no centro do Rio de Janeiro, em uma área relativamente afastada da qual aconteceria o passeio.

A professora Lígia, no entanto, aponta um problema objetivo que é o fato de se ter apenas um ônibus disponível para o passeio e, desta forma, seria preciso dividir o grupo em dois.  Ela logo percebe o descontentamento geral.  “Tia vamos todos, sem essa de dividir a galera, a gente só anda junto”, diz um dos alunos.  A professora argumenta:

“Não há vagas para todos, aí está a lista do grupo 1 e a do grupo 2. Grupo 1 vai na segunda-feira e grupo 2 na terça-feira. Sendo assim o pessoal do grupo 2 não precisa vir para a escola segunda feira.” Os alunos descontentes falavam “qual é tia? A senhora não entende. A gente vai junto”.

Na segunda-feira, dia do passeio, para a surpresa da professora, mas não para nenhum dos grupos, todos os alunos estavam na escola. Os dois grupos unidos da sua forma. “Vamos, tia?”. A professora pega a lista do grupo 1 e diz: “Eu avisei: só vai o grupo 1”. Outra vez, todos descontentes. “Qual é, tia? Nada a ver.” “O ônibus sai com o grupo 1 e o grupo 2 fica na escola.”

Depois de algum tempo, o ônibus com o grupo 1 chega ao Cristo Redentor. Para espanto apenas da professora, os alunos do grupo 2 já estavam lá. “Porra, tia! Demoraram hein...”. A professora faz uma observação: “Não vai ter lanches para vocês!”. Tanto o grupo 1 quanto o grupo 2 respondem: “A gente se vira, tia...”.

No final do passeio, a professora ressalta: “Amanhã só vai o grupo 2, vocês do grupo 1 não precisam vir para a escola”. Ninguém prestou a atenção ao aviso da professora. Na terça-feira, a mesma cena, os dois grupos na escola, agora com menos espanto por parte da professora. “A gente vai outra vez, tia. Gostamos”.

O elemento central da narrativa sobre a escola Tia Ciata é a limitação da escola em lidar com as múltiplas inteligências e, fundamentalmente, e com as inteligências que não se apresentam com uma metodologia para ser ensinada. A escola fundada com teorias eurocêntricas é incapaz de entender a lógica criativa e sem método teórico. E, por não entender, despreza, bane e até tem medo, uma vez que não tem capacidade criativa de entender. Esse banimento se dá desde a infância, no ensino primário, até os bancos universitários.

No caso desses meninos, não houve por parte da escola o entendimento de que eles, além de demonstrarem conhecimento sobre o espaço da cidade, traçaram uma estratégia e “se viraram” ou foram astutos o suficiente para chegarem até o ponto turístico em que a professora levaria parte da turma e que era distante da escola. Isso sem ao menos terem o dinheiro para pagamento da passagem. A professora ignora essa inteligência que é tratada na maioria das vezes como desobediência, falta de educação ou falta de limites porque está mais interessada em apresentar o que é considerado culturalmente elevado, que é a visita a um ponto turístico.

Além da inteligência desses meninos sobre a espacialidade, também é interessante destacar o senso de união “a gente só anda juntos”. Esses jovens aprenderam a viver e a se defender em coletivo, e suas estratégias são organizadas e realizadas em grupo. O que a escola faz é justamente tentar separá-los por causa da “bagunça”, entretanto é nessa suposta bagunça que esses meninos vão se fazendo presentes e visíveis na cidade e na escola.

3ª Dimensão – A Teorização: A Favela e a Universidade  [editar | editar código-fonte]

“A vida é diferente da Ponte pra cá…” Racionais Mc’s[editar | editar código-fonte]

A terceira dimensão se consolida quando, para além da tomada de consciência, a Inteligência Bandida passa a ser problematizada e transformada em teoria. Ou seja, a consolidação da Inteligência Bandida, como categoria analítica e dimensão política, é a teorização acerca do seu valor e da sua operacionalidade para além da espontaneidade da vida cotidiana. Isso exige uma compreensão mais aprofundada e uma ressignificação de conceitos construídos historicamente e, sobretudo, a construção de novas categorias semânticas e ferramentas conceituais próprias, tal como o que se propõe neste capítulo. Nesta terceira dimensão da IB, emerge uma compreensão mais sofisticada que permite perceber que tais ferramentas conceituais e categoriais são distintas, visto que sua origem se dá em contextos cujas sociabilidades se forjam numa ambiguidade de mundos que coexistem: o mundo formal-constitucional-legal e o mundo no qual as regras e sociabilidades se fundam na sagacidade da favela.

Assim, o cerne da terceira dimensão é a capacidade de transformar a própria existência, e suas circunstâncias, em objeto de teorização, fazendo uso de categorias analíticas. A diferença nesta dimensão é a de que, agora, os/as “crias” das favelas ascendem a outro nível de conscientização. Passam a operar com a compreensão de que para fazer uso de uma categoria analítica mais complexa é necessário acionar um rol de conhecimentos históricos que ultrapassam as vivências nas favelas, embora as categorias necessárias, tais como a de Inteligência Bandida, emanem das favelas, já que são estes espaços que permitem o nascimento desses conceitos.  

Dito de outra forma, mas na mesma direção, uma categoria analítica é construída e enriquecida ao longo do tempo e em diversos contextos e, na medida em que os “crias” passam a ter inserção nas Universidades e acesso às teorias sociais, aprofundam seus estudos e desenvolvem pesquisas diferenciadas. Isso permite, a partir de um acúmulo e de um arcabouço teórico multifacetado, construir categorias “viscerais”, tais como a Inteligência Bandida.

Nesse sentido, é fundamental ressaltar a importância do que vimos chamando de Pesquisas e Pesquisadores/as Viscerais (SILVA, 2012 & 2020), em que podemos identificar um embrião da categoria Inteligência Bandida:


Desse modo, os/as Pesquisadores/as Viscerais, ao narrarem os contextos nos quais estão inseridos, são obrigados a expor as próprias vísceras, isto é, as suas NARRATIVAS VISCERAIS, criam uma vulnerabilidade para si, pois, após narrar, são obrigados a conviver com as consequências que a sua narrativa vai gerar.

As vísceras existenciais do/da Pesquisador/a se materializam numa relação social em que a reflexão crítica acerca da sua vivência com a história local cria os nexos necessários para a conexão dos contextos com a produção de conhecimento científico, o que configura a Pesquisa Visceral. Ou seja, o/a Pesquisador/a Visceral é um sujeito do conhecimento comprometido politicamente que, ao se valorizar na pesquisa, enquanto sujeito, cria nexos entre contextos históricos diferentes, que amalgamam a sua biografia às histórias locais.

O/a Pesquisador/a Visceral estuda aquilo que expõe as próprias vísceras, tentando compreender as Favelas e as Quebradas das suas experiências, percebendo que está dentro e fora, ao mesmo tempo, daquilo que pesquisa. Não há como esse/a pesquisador/a se distanciar dos marcos históricos e identitários que o/a constroem. (SILVA, 2020: p. 169)


Nossos estudos-pesquisas-vivências, dentro e fora da favela, nos levaram a problematizar a própria existência e transformá-la em objeto de análise. Embora tenha, aqui, a ideia do “nós, por nós mesmos...”, a discussão não se esgota apenas nisso. Tratase de experiências específicas, que se coletivizam na troca de experiências com outras pessoas ‘crias’ de favelas.  Nas narrativas de outrem, se confirma a hipótese de que a favela é um contexto gerador de estratégias coletivas de sobrevivência, cujo resultado é o desenvolvimento de um tipo de inteligência distinta do padrão: a Inteligência bandida (muitas vezes banida).

Nesse sentido, a terceira dimensão é a capacidade de articular as categorias analíticas tradicionais da academia com a sagacidade oriunda da favela e operar de forma dialética essas categorias, pleiteando novas epistemologias periféricas. Dentro de uma disputa semântica e conceitual, o que se galga com isso é que a Inteligência Bandida seja entendida como uma ferramenta analítica nos espaços da educação formal e, fundamentalmente, entre outros ‘crias’.

Considerações finais[editar | editar código-fonte]

Historicamente, as classes que se apropriam e dominam os conhecimentos reconhecidos como científicos guardam para si, nos “cofres das mansões”, não somente as ferramentas conceituais que operam na construção de teorias, mas, sobretudo, as chaves que abrem as portas dessas mansões. Para isso, criam uma rede blindada de “solidariedade” de classe que permite perpetuar os privilégios oriundos desse poder, o de teorizar acerca da própria condição de existência no capitalismo. O uso dessas ferramentas como propriedade de classe é avalizado pela sociedade acadêmica.

Vale ressaltar que essa inteligência toma forma e é aguçada à medida que o indivíduo intensifica a problematização acerca da sua existência, dialogando com seus pares nos contextos da sua vivência na favela.

Precisamos ressaltar que o esboço dessa categoria analítica pretendida encontra um limite de recorte de tempo e espaço. Estamos nos debruçando sobre vivências das décadas de 80, 90 e início dos anos 2000. Geograficamente, nossas percepções foram construídas a partir do ângulo que as favelas da Maré e da Rocinha nos proporcionaram. O apontamento das características de uma certa inteligência se justifica prioritariamente em conseguirmos entender as capacidades de ações, as formas de sentir e de interpretar o mundo de um grupo social cujas leituras possuem limites, embora seja um dos objetos mais estudados da sociologia urbana moderna: a favela.  

Tais limites desencadeiam ideologias e estigmas que geram prejuízos tanto para os de dentro como para os de fora e provocam consequências que vão nortear de forma equivocada, tanto as políticas no campo da segurança pública (reconhecimento por fotos de suspeitos, caveirão, etc) como também a capacidade de compreensão por parte da classe média que, ao desconhecer todos os códigos da cidade (incluídos aí também os da favela), tem a sua liberdade de circulação limitada, ferindo frontalmente o tão almejado Estado Democrático de Direito.

Além disso, acreditamos que uma análise mais sofisticada e precisa sobre as práticas sociais que caracterizam as sociabilidades dos moradores de favelas pode nos indicar formas metodológicas de atuação, seja na educação, na saúde, assim como no mundo do trabalho.

Por fim, e com a intenção de instigar o debate, o que estamos denominando “Inteligência Bandida” são as acepções, os desenvolvimentos e as aplicabilidades de uma inteligência que se desenvolve e se aplica tanto nos espaços das favelas quanto fora dela. Por tal motivo, se fez necessário um aprofundamento da genealogia da categoria Inteligência bandida, bem como as operações cognitivas ressaltadas, a partir das três fontes de sua materialidade: a escassez de recursos, a violência recorrente e o que podemos chamar de uma espécie de mística que transcende a imanência e que permeia as relações de solidariedade na favela. Esses três elementos são os genes de uma inteligência própria e que sempre se dá a posteriori na sua aplicabilidade.

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

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VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas IV. Psicología Infantil. Madrid, Visor 1984.  _______ . A construção do pensamento e da linguagem. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

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Sobre os autores[editar | editar código-fonte]

  1. Prof. Rodrigo Torquato (ALFAVELA – UFF & Cria da Rocinha), Prof. Fábio Rodrigues (SESI – RJ & Cria da Nova Holanda) e Prof. Willian Alencar (Seeduc – RJ & Cria da Baixa do Sapateiro)

Ver também[editar | editar código-fonte]