Jurema Werneck

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Jurema Werneck.


Jurema Pinto Werneck (Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1961) é uma ativista feminista, médica, comunicóloga e autora, co-fundadora da organização não governamental Crioula. Ela é também Diretora-Executiva da Anistia Internacional no Brasil, desde fevereiro de 2017, e faz parte do quadro da direção do Fundo Global para Mulheres[1].

Trajetória

Jurema nasceu no Rio de Janeiro, filha de um alfaiate e uma costureira. Cresceu no Morro dos Cabritos, em Copacabana, e na Ilha do Governador. Após o ensino secundário, cursou Medicina na Universidade Federal Fluminense (UFF), sendo a única aluna negra do curso. Mais tarde se tornou e doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Após se graduar, trabalhou na Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro e no Centro de Articulação de Populações Marginalizadas. Em 1992 foi uma das fundadoras da ONG Criola, de promoção dos direitos das mulheres negras.

Como médica e ativista, em sua ONG Jurema pesquisa sobre as condições de vida das mulheres negras e também faz o monitoramento de políticas públicas. Em 2021, ela prestou depoimento à CPI da COVID onde apresentou um estudo aos senadores que aponta que 120 mil vidas poderiam ter sido poupadas em 2020, primeiro ano de pandemia, se o governo brasileiro tivesse adotado as medidas preventivas, como distanciamento social, restrição a aglomerações e fechamento de escolas e comércio.

Entrevista

Autoria: SEMAYAT S. OLIVEIRA[2]

‘Como é que a gente conseguiu, ainda assim, sobreviver?’

Década de 60, Rio de Janeiro. Seu nome foi uma homenagem à sabedoria ancestral de uma mulher que, mesmo não estando na sala de parto, facilitou sua chegada ao mundo. Hoje a maternidade pública Fernandes Figueira, na zona sul do Rio, é reconhecida por um serviço de excelência. Mas, na época, como contou Jurema Werneck, “as coisas eram diferentes”.

“Houve um acidente de parto”, lembrou. Segundo sua mãe, Dulcineia Werneck, embora todo mundo tenha ficado assustado com o que aconteceu, ninguém falou ou explicou nada a ela.

De volta ao bairro onde moravam, no Morro do Cabrito, em Copacabana, uma cabocla chamada Jurema chamou por seu pai, Nilton. Na conversa, disse que algo tinha acontecido, mas que ela esteve lá e salvou a vida de sua filha.

“Daí meu pai me deu esse nome. Percebe? Ele acreditou profundamente nessa solução. Ou seja, tem coisas que se movimentavam. Eu não sou uma pessoa religiosa, não conheço o que significa a completa implicação dessa informação, mas o resultado prático é que eu estou aqui. De alguma forma, funcionou”.

Essa é apenas uma das histórias de Jurema que, mais tarde, cruzaram com sua luta pelo acesso à saúde.

Antes da Constituição Federal de 1988 afirmar no artigo 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, ela presenciou perversas consequências na vida da população preta e pobre. A começar por sua própria família.

Naquele período, o que ditava as regras era o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social), órgão criado em 1977 sob o guarda-chuva do Ministério da Previdência e Assistência Social. Com isso, apenas pessoas em empregos formais, com carteira assinada, e, portanto, contribuintes da Previdência Social, tinham direito ao serviço de saúde.

Quando perguntamos como era antes do SUS, sua resposta foi: “O que era possível, o que as pessoas conseguiam alcançar. Minha mãe morreu por ruptura de um aneurisma quando eu tinha 14 anos. A história dela foi o quadro clínico típico que está no livro de neurologia e neurocirurgia, literalmente. Quando eu fiz essas cadeiras [na faculdade] tive que estudar”, lembra.

Evitável. A mãe chegou a ser atendida antes de ter uma complicação mais grave do caso. Angustiante. Seu pai insistiu muito para que um médico a socorresse, pedindo “por favor”. Mesmo com a concessão, Dulcineia Werneck foi atendida e medicada para dor de cabeça. Foi tarde demais.

“Ela morreu no espaço de 15 dias. Foi exatamente o que está escrito [no livro]. Surgiram os sintomas intensos, que são os primeiros sangramentos, depois pararam. Teve alguns dias bem, depois o sangramento definitivo e morreu. O médico que atendeu, de favor, medicou para dor de cabeça. Então quando você pergunta o que era antes do SUS, era exatamente assim”.

“Se a gente diz que tem racismo no Brasil é porque tem racismo nas relações, nas pessoas, na história das pessoas. Então você tem que adotar uma série de mecanismos para impedir que os efeitos do racismo levem à morte, ao sofrimento. Quando a gestão de saúde não se interpõe, é o racional institucional. O racismo internalizado, o racismo interpessoal. É a forma como o racismo estrutural vence no final. É a forma como os brancos vivem seu privilégio."

Além do círculo de favores, as Santas Casas de Misericórdia ficaram conhecidas como os espaços possíveis de atendimento para essa população. “Mas não tinha condição de dar conta de todos os indigentes ou desvalidos, como se chamava. Certamente, você pode imaginar que não era aparelhado. Além de não ser um direito, era uma misericórdia”, ressalta.

Na família Werneck, a medicina tradicional vinha por interferência do pai. Alfaiate, ele também exercia outra função no hospital da Aeronáutica: porteiro.

“Eu era uma criança com asma. Meu irmão mais novo outra criança com asma. Quando a gente tinha crises, muitas vezes éramos atendidos de favor entre o final da tarde e o início da noite pelos médicos daquele hospital. A gente tinha uma vantagem”.

Ela conta que seu pai sabia usar a possibilidade para “um montão de gente”. Mas não era suficiente. “E aí você pode se perguntar, então como é que a gente conseguiu, né?”. A questão parte não só da situação da sua família na época, mas de toda uma população politicamente submetida à exclusão.

“Afinal, o racismo provoca forte repercussão na saúde das pessoas. Não é à toa que nas sociedades racistas inteiras, não só no Brasil, mas no mundo, os negros têm maiores taxas de mortalidade por qualquer coisa. Então como é que a gente conseguiu, ainda assim, sobreviver?”, indaga Jurema.

Ela mesma responde, explicando que existiu e ainda existe um sistema paralelo de saúde das populações negras e indígenas. “Tentam prevenir os vários tipos de adoecimento. Nas religiões de matrizes africanas, por exemplo, a comunidade religiosa é um repositório. Ali foi preservada uma série de técnicas, diagnósticos de alívio e de cura que puderam ser usadas em nós durante muito tempo”.

A vida de Jurema, na prática, é um exemplo da potência dos cuidados aplicados fora dos muros hospitalares. Uma vivência que cruza com os conhecimentos que transcendem a literatura reverenciada e assimilada nas universidades. E ela, resistente e viva, foi parar na cadeira da universidade pública como estudante de medicina.

“Foi assim que eu virei médica”

“Não é uma história nada heroica”. A medicina não foi uma escolha vocacional. Quando jovem, ela não sabia qual profissão escolher. “Quer dizer, sabia. Eu queria ser coisas que, de onde eu vim, da família que eu vim, da história de pobreza que a gente tinha, não era possível fazer”.

Com tantas vírgulas antes do seu desejo, como ainda acontece com famílias negras da atualidade, a história de Jurema passou pela fome de comida, mudança, avanço.

“Cresci em uma família que dizia que a gente tinha que estudar. A minha geração foi a que conseguiu consolidar isso de forma mais intensa. Então, eu tinha que ir para a universidade”

Seus pais diziam: “vocês não podem fazer mais nada além de estudar”. Ela e os irmãos obedeciam. Quando foi chegando a hora de escolher o curso, nada estava definido. Gostava de artes. Música, fotografia. Mas,  naquele período, “uma mulher negra que nasceu na favela não  tinha como viver de arte”, relembra. “Agora é um tempo melhor, mas minha geração não teve essas ferramentas”.

Quando chegou no último dia para a inscrição, às 7h da matina, Nilton estava prestes a sair para entregar a ficha. Antes, foi até filha e falou: ‘você preencheu o formulário todo, mas não colocou o que quer’. Ao lembrar durante a entrevista, Jurema mexe as mãos de um lado para outro rapidamente, demonstrando a ansiedade dele naquela manhã.

Ao responder que não sabia, ele insistiu: “sim, mas tem que botar. Estou saindo agora, tem que botar”. Ainda sem resposta, ela perguntou ao pai o que devia escolher. Ele disse: “bota  medicina”. “Foi assim que eu virei médica”.

Formou-se na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. “Importante destacar que era uma universidade pública, porque é diferente de hoje”. Sem ações afirmativas, essa era a única opção para alunos pobres e negros cursarem o ensino superior.

Durante a vida universitária, quis se envolver com grupos que discutiam questões raciais, como o Grupo André Rebouças, que recebia esse nome em homenagem ao engenheiro militar, inventor e abolicionista negro. Mas carga horária das aulas era intensa e Jurema tinha pouco tempo livre.

“Aí o que eu achei de fazer foi escrever uma carta”. Na carta, dizia que tinha interesse em acompanhar, mas não conseguia. Sebastião Soares, conhecido no Movimento Negro do Rio como Tiãozinho, retornou:

“Ele me escrevia falando da situação da população negra, falando da importância de eu estar estudando. Escrevia cartas periódicas. Então eu não participei do grupo, mas ele me apoiou o tempo que eu estive lá”.

Além de se manter atualizada das discussões raciais da época, passou a se interessar e participar do movimento estudantil. Foi assim que conheceu o movimento de saúde comunitária. Participou da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que discutiu perspectivas precursoras na saúde, culminando no Sistema Único de Saúde (SUS).

“Foi ali que eu soube que existia um movimento de saúde grande, importante e muito interessante”, lembra. Ao se formar, chegou a atender no serviço público do Rio de Janeiro, nas regiões periféricas. Desde então, esteve presente em processos decisórios fundamentais neste campo.

“As lutas contra o patriarcado vêm de muito longe para nós, mulheres negras”

Com uma trajetória imbricada à luta por saúde, falar de Jurema é fazer essa linha histórica do setor. Por isso, é tão importante abordar aqui as disputas para a implementação de políticas de saúde que considerassem as necessidades específicas da população negra.

Em relação à saúde das mulheres, por exemplo, em 1983 foi elaborado o PAISM (Programa de Atenção Integral de Saúde da Mulher). A discussão aconteceu no contexto da redemocratização do país e definia novas diretrizes relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos.

Nesse período até a implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, em 2004, a discussão entre mulheres negras e o movimento feminista, majoritariamente liderado por mulheres brancas naquele momento, partiam de necessidades diferentes.

Uma das obras tradicionais de Jurema Werneck é o livro “Saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe“, organizado por ela, Maisa Mendonça, Evelyn C. White. Publicado nos anos 2000,  a edição reúne artigos de mulheres negras dos EUA e do Brasil sobre saúde e outros assuntos.

Segundo Jurema, embora a presença das mulheres negras entre os anos 70 e 80 tenha acontecido no campo da saúde, é a partir na década de 90 que essa articulação se torna mais consolidada e passa a ser autodenominado como ‘Movimento de Mulheres Negras’.

“A partir da década de 90,  há uma crescente de mulheres negras dedicadas à saúde, enxergando a demanda vindas das mulheres negras da periferia, da favela, do movimento da associação de moradores. Foi assim que técnicas de enfermagem, auxiliar de enfermagem e enfermeiras, psicólogas e médicas, ainda que raras, começaram a atuar com essa interface dentro do sistema de saúde”, lembra.

“Se você não enxerga o efeito que o racismo tem sobre as mulheres, sobre os direitos sexuais e reprodutivos, o efeito das fobias LGBTQI+, das múltiplas iniquidades, ou da pobreza na história das mulheres, você fica só na visão liberal sobre o direito de decidir”, diz.

“Na década de 70, Paulo Maluf financiou uma pesquisa sobre a necessidade da esterilização de mulheres negras no Brasil, já que nos anos 2000 a população negra seria a maioria dos eleitores. Então, existiam fenômenos que não eram iguais. A experiência das mulheres negras, das mulheres indígenas, das mulheres de favela e periferia, eram radicalmente diferente e não podia ser engolida pela bandeira do ‘direito de decidir’. A gente quer ter o direito de decidir não ter filhos e quer ter o direito a ter também. E não ter um pré-natal de péssima qualidade, como tem, não morrer no parto e no puerpério e não ter o filho assassinado anos depois. Ou seja, a experiência é diferente”.