Literatura de Favela: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Sem resumo de edição
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Linha 194: Linha 194:


Esse aspecto apontado por Schwarz é interpretado como alienação por algumas leituras. Essa “objetividade absurda” é utilizada como argumento para reforçar uma suposta postura “neutra” ou despolitizada, que simplesmente atirasse os personagens nas situações e não provocasse no leitor uma reflexão sobre os fatos, apenas a constatação da inexorabilidade da violência que cerca. Mas o próprio crítico rebate essa suspeita, quando afirma que “o horizonte reduzido é claramente uma desgraça geral, cuja extensão cabe ao leitor avaliar”. No juízo do leitor reside a crítica; o autor apresenta os fatos sem julgá-los, embora o faça com consciência, sabendo o risco que corre de ser visto como sensacionalista ou apelativo.
Esse aspecto apontado por Schwarz é interpretado como alienação por algumas leituras. Essa “objetividade absurda” é utilizada como argumento para reforçar uma suposta postura “neutra” ou despolitizada, que simplesmente atirasse os personagens nas situações e não provocasse no leitor uma reflexão sobre os fatos, apenas a constatação da inexorabilidade da violência que cerca. Mas o próprio crítico rebate essa suspeita, quando afirma que “o horizonte reduzido é claramente uma desgraça geral, cuja extensão cabe ao leitor avaliar”. No juízo do leitor reside a crítica; o autor apresenta os fatos sem julgá-los, embora o faça com consciência, sabendo o risco que corre de ser visto como sensacionalista ou apelativo.
Ao mesmo tempo, o texto de Schwarz poderia estar se referindo a Quarto de Despejo. A realidade irrecorrível, a objetividade absurda, são traços comuns nas duas obras. Seriam características da literatura de favela? Há, nos dois livros, outros pontos em comum além dos citados acima e de seus autores terem olhar de poetas, como vimos anteriormente. Um deles, bem evidente, também é destacado por Schwarz em seu ensaio. Trata-se do espaço no qual se desenvolve Cidade de Deus, que como sugere o título abrange quase que exclusivamente a área do conjunto habitacional. Poucas vezes a ação se desenrola fora dessa circunscrição. Quando acontece, é algum personagem que foi preso, e a ação passa rapidamente pela prisão, ou personagens que fogem e se escondem em outras favelas, mas também são momentos breves.
A cidade do Rio de Janeiro é quase uma abstração, da qual aparecem as bordas, ou então espaços que farão parte da ação como locais da violência, aí o caso do motel, o primeiro grande assalto narrado no romance, e depois de postos de gasolina, lojas de armas e tais. A praia eventualmente aparece, às vezes na imaginação dos personagens – em especial de Barbantinho, que vem de uma família de salva-vidas e sonha em seguir a profissão – e outras vezes em momentos de lazer, com vários personagens, como um alívio para a quase insuportável pressão da violência. Diz Schwarz:
A ação move-se no mundo fechado de Cidade de Deus, com uns poucos momentos fora, sobretudo em presídios, para acompanhar o destino das personagens. (…) Literariamente, a órbita limitada funciona como força, pois ela dramatiza a cegueira e a segmentação de seu processo(…).
Muito semelhante o que ocorre em Quarto de Despejo. A metáfora do título se refere à favela, como já vimos aqui, e quase toda a ação é centrada na favela do Canindé, onde vive a autora. Diariamente Carolina vai a cidade para exercer seu ofício de trapeira. Mas a cidade aparece como um outro mundo, algo fora, num movimento que alterna o ponto de vista, já que geralmente é a favela que é o fora, o quarto de despejo. Pois bem, quando a cidade aparece assim, ela surge fechada, de acesso difícil, impenetrável em seu cerne. Suas ruas e margens estão franqueadas, como os cantos sujos, os ermos. Mas os belos prédios, os jardins vistosos e outras maravilhas da cidade são para serem admirados de longe para quem é da favela.
A burocracia muitas vezes é a grade de proteção que impede a entrada dos que têm dificuldade em conseguir cópias autenticadas, certidões, firmas reconhecidas. Como no episódio em que Carolina, doente, procurou o Serviço Social:
Fui no Palacio, o Palacio mandou-me para a sede na Av. Brigadeiro Luís Antonio. Avenida Brigadeiro me enviou para o Serviço Social da Santa Casa. Falei com a Dona Maria Aparecida. Resolvi ir no Palacio e entrei na fila. Falei com o senhor Alcides. Um homem que não é niponico, mas é amarelo como manteiga deteriorada. (p. 42-43)
As teias labirínticas do mundo letrado se estendem por toda parte na cidade. E quem não souber decifrá-las quedará perdido. Na favela do Canindé, o mapa é mais simples: rua A, rua B, rua C e rua do Porto, esta junto ao rio Tietê. Os limites da favela são o próprio rio, de um lado, e as casas de alvenaria de outro. Apesar de Carolina sair para a cidade quase todos os dias, o espaço marcante em seu livro é mesmo a favela. A cidade geralmente surge como contraste. Ou então como provedora da necessidade: pedir tomates na fábrica, lingüiça ou ossos no frigorífico, frutas e legumes na quitanda, além de todo o tipo de traste que Carolina puder catar para vender depois: papel, alumínio, metais diversos, madeira, carvão, “tudo serve para o favelado”. (p. 45)
As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (p. 37)
A opção de centrar o espaço de seu diário na favela revela-se um acerto, a força do livro, de maneira análoga ao romance de Paulo Lins. A favela torna-se sufocante, opressiva, as discussões e brigas constantes dos vizinhos, as ameaças e agressões aos seus filhos, a extorsão do encarregado da luz, os ruídos noturnos, a balbúrdia do dia-a-dia, tudo isso compõe um quadro impressionante e vivo do espaço em que vive a autora.
O recurso que Carolina utiliza para criar esse ambiente e a rotina dura de sua vida é simples e eficiente: a repetição. Os dias se repetem iguais, iniciando bem cedo com o árduo ritual de buscar água na torneira coletiva. Depois a volta para o barraco, se possível alimentar os três filhos, sair para catar entulho na rua, vender o que conseguiu carregar, com o dinheiro obtido comprar um ou outro alimento para o dia, voltar para casa. As variações, poucas, mantém a estrutura narrativa. Há também o ritual de ler e escrever, que ocupa um lugar especial em sua vida. Carolina gosta de parar tudo para escrever ou ler. E tem prazer em narrar isso em seu diário, pois a leitura e a escrita são seus diferenciais, fazem dela uma pessoa especial, singular.
A estrutura do diário é respeitada, segue uma ordem cronológica, com alguns saltos e buracos. É verdade que o texto que conhecemos teve a edição de Audálio Dantas, que o formatou. Há frases extirpadas indicadas por reticências entre parêntesis “(…)” e outros trechos, maiores, cuja ausência é apontada por reticências simples. O fio condutor da narrativa é o sofrimento a que é submetida a autora e sua família, e a  fome que os persegue implacavelmente do início ao fim do livro – que começa no ano de 1955 e logo salta para 1958, e depois segue com interrupções até o fim do ano de 1959.
Carlos Vogt observa esse “recurso de estilo” e também o avalia como eficiente. Schwarz, em relação a Cidade de Deus, faz um comentário parecido, que mais uma vez poderia servir para ambos os livros: Em plano menos palpável há a quase-padronização das seqüências, sinistramente monótonas em sua variação. 28 Assim também Paulo Lins utiliza a repetição para enfatizar a escalada da violência, e a permeia com um crescendo na ação, no movimento.
Para encerrar esse trecho e passar ao próximo ponto a ser discutido, falta comentar apenas um aspecto no qual as duas obras guardam ainda alguma semelhança: a liberdade de escrita que tiveram. Ou talvez, os limites que os autores se impuseram. De maneira que Schwarz comenta que em “Cidade de Deus há um tom próprio, que no conjunto funciona vigorosamente, embora destoando da ‘prosa bem feita’”. Ora, se há uma coisa da qual não se pode qualificar Quarto de Despejo é de ser uma “prosa bem feita”, de ter preocupações formais com o resultado da obra. Muito pelo contrário. Carolina Maria de Jesus escreveu um livro visceral, sincero e cru, que conta com a “contribuição milionária de todos os erros”, da qual a autora jamais deve ter ouvido falar.
Paulo Lins também não abriu mão de sua liberdade, de sua experiência como poeta, para utilizar os dados da extensa pesquisa na qual trabalhou da maneira que esteticamente o atraísse mais. Só a quantidade de gírias e expressões populares que empregou forneceria material suficiente para a elaboração de um compêndio da “fala malandra carioca”.
Não esqueçamos que os dois autores estudados nesse capítulo, apesar de tantos pontos em comum entre as duas obras levantados aqui, são de constituição inteiramente diferente, têm muito pouco a ver um com outro. Carolina Maria de Jesus foi uma vítima da violenta exclusão já presente na primeira metade do século; era precariamente alfabetizada e passava grandes dificuldades para alimentar a si e aos seus três filhos. Paulo Lins vem de uma situação bem mais confortável, jamais passou fome, conseguiu formar-se em Letras pela UFRJ, apesar de também ter a experiência de quase 30 anos de vida na favela, no caso o conjunto habitacional de Cidade de Deus. Carolina escrevia nas horas vagas, seja nas madrugadas antes de dormir ou ao acordar, por vezes nas tardes que não ia trabalhar e os filhos não estavam em casa. Em algumas ocasiões escrevia sem sequer ter se alimentado. Paulo Lins ganhou uma bolsa da Fundação Vitae – à qual ele agradece no fim do livro – para escrever seu romance.
Carolina, depois de muito tentar uma publicação, conheceu por acaso o repórter Audálio Dantas e este se interessou por seus escritos. Em 1958 e 59 teve textos seus publicados pela imprensa, e em 1960 saía seu primeiro livro pela Livraria Francisco Alves, também através da mediação do repórter. Paulo Lins, depois de participar por oito anos das pesquisas para o trabalho de Alba Zaluar, cujas informações serviram de base para seu texto, ainda trabalhou exaustivamente em seu livro; durante um ano teve um salário mensal proporcionado pela bolsa Vitae. Foi Alba Zaluar que insistiu para que Lins mostrasse Schwarz o poema que havia escrito a partir de sua experiência de pesquisador na Cidade de Deus. Foi o crítico que insistiu para que o poeta transformasse aquilo tudo em romance. Depois, quando mostrou os primeiros originais para Roberto Schwarz, este se entusiasmou e recomendou veementemente o texto à Companhia das Letras, que o publicou em 1997.
Enfim, se os pontos em comum são muitos, as diferenças são quase que absolutas. O que nos traz de volta a mesma questão: há entre os dois livros tanta coisa em comum de modo que possamos identificá-los como produtos de uma literatura de favela? Vejamos alguns pontos específicos no romance de Paulo Lins que talvez nos ajudem a formular o conceito de Literatura de favela, identificando os objetivos a que o autor se propõe e os recursos que utiliza para obtê-los
== A fala e a crença da favela em Cidade de Deus ==
Há várias abordagens possíveis para explorar o romance Cidade de Deus. Uma delas, uma das mais ricas pelo material que oferece, é a de examinar o mergulho do autor na cultura popular brasileira, seja através da fala do povo ou através de seus hábitos e costumes, em especial de sua relação com as religiões afro-brasileiras, como candomblé, umbanda ou macumba.
Em relação à fala dos personagens, se estendermos rápido olhar em perspectiva pela literatura brasileira, encontraremos inúmeras tentativas de aproximação da fala popular, do legítimo falar do povo brasileiro. Claro que esse falar varia muito num país de dimensões continentais, e justamente por isso quanto mais específico o recorte do autor mais perto ele ficará de reelaborar no texto literário um dialeto popular.
Um possível romance inaugural dessa atitude – se contarmos apenas do modernismo em diante – seria Macunaíma, de Mário de Andrade. Lançado em 1928, introduz toda a sorte de falares no texto, desde as línguas indígenas até expressões populares e neologismos derivados da oralidade. Porém a novela – ou rapsódia, como a apresenta o autor – não cerca um dialeto particular, um falar específico de um ou outro grupo ou comunidade. Antes o texto privilegia a invenção na linguagem, e provavelmente é o trabalho mais denso do autor. Consoante com a ideologia do movimento que ajudara a fundar, Mario de Andrade buscava a aproximação do Brasil real, procurando, através de um redescobrimento, revelar o verdadeiro Brasil à elite ilustrada que até então passava ao largo da “verdade” de seu país.
Assim também Oswald, em sua poesia de maneira mais enfática que na prosa ou no teatro, procurou apreender o dialeto brasileiro, como explicita o poema Vício na fala. 29 Outros autores modernistas poderíamos citar, mas saltemos no tempo para encontrarmos uma outra obra, cuja tematização principal é a marginália urbana carioca e sua fala, ou seja, um universo específico e reduzido que permitiu uma experiência de linguagem radical.
Nos referimos a Antônio Fraga, escritor originalíssimo e um tanto esquecido pelo pensamento acadêmico contemporâneo, talvez apenas pela dificuldade em lidar com a sua obra, em categorizá-la e encaixá-la em movimentos literários de sua época. Fraga publicou sua novela Desabrigo em 1945, através da Editora Macunaíma, fundada por ele mesmo (com Antônio Olinto e Ernande Soares), que durou pouco e lançou apenas esse título. O próprio nome escolhido para a editora nos dá uma pista dessa linhagem imaginária de autores preocupados com o idioma falado no país em que vivem, nas dinâmicas da língua portuguesa no Brasil.
Em Desabrigo, Antônio Fraga cria um enredo coloquial com personagens do submundo carioca, malandros da Lapa, prostitutas do Mangue, sambistas, jogadores de sinuca, indigentes e tais. Os três capítulos da novela são compostos por pequenos trechos, quase mini-capítulos, cada um com uma pequena narrativa completa, que vão dando seqüência ao enredo.
Entre esses mini-capítulos, há alguns chamados de Ponto de vista, que são como que parêntesis na narrativa. Trazem trechos de crítica ou de prosa de outros autores, sempre na língua original, que atribuem sentido estético, não apenas à novela, mas ao procedimento adotado pelo autor, como se avalizassem sua narrativa, sua abolição de pontuação, sua adoção da gíria, etc.
O primeiro Ponto de vista introduz trecho de um artigo de Campos de Carvalho oriundo, segundo Fraga, da publicação Planalto, datada de 15/09/1941:
“Entendem eles que para nos emanciparmos do jugo português devemos, o quanto antes, emanciparmos da língua lusitana a nossa língua, e o melhor meio de o fazer será abrigarmos no idioma novo toda forma de linguagem chula, de calão, de barbarismos e de sujeira em que, desgraçadamente, sempre foi fértil o linguajar do povo. Em vez dos clássicos, dos puristas, dos Camões e caterva dos séculos passados, falem e pontifiquem os malandros, os analfabetos, os idiotas, as prostitutas e a ralé mais baixa”.
Ora, esse é exatamente o elenco de personagens de Desabrigo; por um momento nos dá a impressão que a novela é quase que um exercício de colocar em prática as idéias expostas por Campos de Carvalho, que certamente coincidem com a do autor, ele mesmo responsável pelo segundo Ponto de vista, assinado pelo seu alter ego Evêmero, personagem condutor da narrativa. Ao final da novela, outra mostra dessa vontade de criar uma língua própria, de se emancipar do jugo português: a inclusão de um glossário “das palavras ainda não lexicalizadas ou das que já caíram em desuso”, 31 como explica o autor.
A originalidade, o grau de invenção, a radicalidade da proposta e a excelência de seu resultado na novela Desabrigo parecem estar ainda a ser revelados para o leitor de literatura brasileira, assim como seus contos, publicados na recente edição da Relume Dumará, Desabrigo e outros trecos (1999). Poderíamos ainda nos estender por outros tantos escritores e escolas, mas passemos direto por João Antônio, Plínio Marcos, mesmo Nélson Rodrigues, escritores dos anos 70 e 80, poesia marginal, voemos sobre todos os outros autores que em algum momento partilharam dessa busca para enfim alcançarmos Paulo Lins e sua obra.
A primeira leitura de Cidade de Deus revela-se, quase invariavelmente, chocante para o leitor. Porque é tão freqüente a utilização de gírias, jargões e expressões populares que a estranheza torna-se inevitável. Não há talvez, na literatura brasileira, uma investida tão radical na direção de uma fala popular brasileira, de um dialeto marginal, excluído da “superfície aparente da língua”, isto é, da comunicação oficial, das gramáticas e dos dicionários, dos meios de comunicação de massa, e em geral da literatura. O paralelo que traçamos, a obra de Antônio Fraga, talvez seja a única comparável. Com a diferença que, se Fraga emprega essa linguagem do início ao fim de sua novela, esta é breve e cheia de experimentações, como os “pontos de vista” já citados. Já Lins conforma a linguagem popular numa “embalagem” de texto bem redigido, a condução do narrador – onisciente, bem de acordo com uma tradição da literatura – que só muito raramente lança mão de recursos de linguagem semelhantes aos de seus personagens, como gíria e expressões populares, em seu discurso.
Mas quando entram os diálogos dos personagens, irrompem com força o falar desdentado, “a linguagem chula, de calão, de barbarismos e sujeira” a que se referia Antônio Fraga citando Campos de Carvalho. Difícil não estranhar algo como:
– Quando a gente volta pra de Deus, hein?– indagou Carlinho Pretinho ao léu. – Cumpádi, a Cidade de Deus tá inframada! Os homi tá de butuca na área, morou, meu irmão? Final de ano tá aí… Eles tão tudo atrás de cacau também, meu cumpádi! Vamo esperar o Ano-Novo passar, sabe qualé?
A grafia alterada de algumas palavras, escritas como são faladas, as gírias, a sonoridade inusitada, todos esses elementos contribuem para esse efeito de estranheza que se tem a princípio, especialmente para o leitor não familiarizado com a fala da favela, a língua da malandragem. Desse impacto resultam duas coisas. Primeiro, uma fidelidade lingüística aos personagens e seu universo, que reforçam a verossimilhança e enfatizam o suposto caráter documental do romance; e segundo, intensificam a sensação da violência. É como se também a gramática, a língua culta fosse violentada. Daí a afirmação de Roberto Schwarz que “essa recombinação de valores tem um tom próprio, que no conjunto funciona vigorosamente, embora destoando da ‘prosa bem feita’”.
Depois de algum tempo o leitor vai se familiarizando com a linguagem e prevalece o primeiro efeito, o de reforço daquela realidade, a inserção do leitor no micro universo da Cidade de Deus, no dia-a-dia dos bandidos, malandros e “cocotas”, dos policiais e dos “otários” trabalhadores. E só então se percebe o quanto hábil é o autor na transposição dessas formas de expressão orais para o texto literário, e o quanto esse manejo é um dos alicerces de seu romance. Como mostra esse diálogo de Cabeleira com o ex-policial Faquir, um atravessador de armas:
– Cumpádi, é o seguinte: há muito tempo que tu arruma um pichulé maneiro em cima da rapaziada, morou? Tem um samango lá do Quinto Setor que mandou um catatau pra gente dizendo que mandava uma caixa de bala pra gente na metade do preço da tua, tá sabendo? Isso quer dizer que tu arruma o dobro que tinha que arrumar. Então dessa vez eu vou segurar os ferros na mão grande. Me dá o teu também e devolve o dinheiro! (p.103-104)


 
 

Edição das 16h45min de 10 de fevereiro de 2020

Autor: Dado Amaral.

O verbete procura mapear a cultura de favela que se expandiu na década de 90, sondando as manifestações artísticas produzidas nas favelas. Através de obras de três autores, Carolina de Jesus, Paulo Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro, desenvolve o conceito de literatura de favela, identificando as tipologias recorrentes de favela-inferno e favela-idílio na produção literária que dialoga com a temática da favela.

Bibliografia:

Amaral, Luiz Eduardo Franco do; Schøllhammer, Karl Erik. Vozes da favela – representações da favela em Carolina de Jesus, Paulo Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro. Rio de Janeiro, 2003. 110p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

 

Carolina de Jesus e Paulo Lins

Vestígios da favela na literatura

Os excluídos já foram objeto da literatura, de maneira especial no Naturalismo; porém as favelas constituem um tipo particular de exclusão. O mais próximo que se chegou da representação de algo similar às favelas foi O Cortiço, de Aluísio Azevedo, talvez o expoente máximo daquela corrente literária, mas que ainda sustentava a teoria da supremacia da raça branca e outras crenças pseudocientíficas da época. Sabemos que a demolição dos cortiços foi um dos motivos do surgimento das favelas. Em 1893, quando derrubaram o grande cortiço Cabeça de Porco, consta que seus moradores reaproveitaram seus detritos para construírem seus novos abrigos no Morro da Providência, próximo à Central do Brasil. O nome desse cortiço acabou virando sinônimo daquele tipo de habitação, assim como o nome Favela passou a denominar os conjuntos de habitações nos morros.

Claro que encontramos vestígios da favela em momentos muito distintos da literatura nacional. A começar por um marco simbólico, o imbricamento de um dos maiores cânones literários brasileiros, Os Sertões, com o “batismo”, ou melhor, com a criação do conceito favela. Pois sabemos que a foi a partir do fim da guerra de Canudos, com o retorno do grande contingente de soldados — milhares, segundo Euclides da Cunha — sem ter onde morar na Capital, que se ocupou, com a anuência do governo da República, o Morro da Providência. Essa ocupação, a primeira favela de fato existente, acabou virando marca: os soldados encontraram no morro o mesmo arbusto que viam em abundância no sertão, o faveleiro, ou favela. Daí a transformar-se em topônimo, por metonímia, foi questão de tempo.

Outra versão atesta que o nome teria vindo não da planta, mas de um monte, o Morro da Favela, que ficava próximo à frente de batalha em Canudos. Seria nesse 44 monte que os soldados teriam se abrigado, e assim, quando se instalaram no Morro da Providência, rebatizaram o lugar aludindo ao promontório que ocuparam no sertão baiano.

O recenseamento de 1920 registrou uma aglomeração de 839 casas no Morro da Providência. Em 1924, Benjamin Costallat publica o livro Mistérios do Rio, no qual encontramos o texto A Favela que eu vi.... No texto, misto de conto e crônica, o narrador descreve uma visita ao morro, o qual em nenhum momento ele chama de Providência, apenas de Favela. E apresenta visões que perdurariam muito em relação às favelas, em trechos como este:

Falavam-me sempre no perigo de subir à Favela. Nos seus terríveis valentes. Nos seus malandros que assaltam com a mesma naturalidade com que se dá bom-dia. O maior perigo que eu encontrei na Favela foi o risco, a cada passo, de despencar-me de lá de cima pela pedreira ou pelo morro abaixo. E dizer que há uma população inteira que todos os dias desce e sobe a Favela, mulheres que fazem o terrível trajeto com latas cheias de água na cabeça, e bêbados, alegres de cachaça, por cima dos precipícios, sem sofrer um arranhão... Os pequeninos casebres feitos de latas de querosene também suspendem-se no ar, por cima de verdadeiros abismos, num milagre de equilíbrio, mas também não caem. Deus protege a Favela!... E a Favela merece a proteção divina porque ela é alegre na sua miséria. Aquela gente, que não tem nada, dá uma profunda lição de alegria àqueles que têm tudo.[1]

Curioso notar que já na década de 20 a periculosidade da favela era apregoada. E que o mito da “miséria que ri” talvez seja bem mais antigo do que pudéssemos imaginar. Noutro trecho, Costallat faz perspicaz observação sobre a estética (ou “o estilo”) da Favela:

A Favela tem seu comércio. Comércio exclusivamente feito de vendas, onde o parati é o artigo de primeira necessidade. As vendas são construídas pelo mesmo processo de lata de querosene, pregadas umas nas outras, tendo as fachadas mais fantasiosas, conforme os rótulos das latas e a felicidade com que foram pregadas. É um estilo que não se vê na Avenida Atlântica. É o estilo próprio e inconfundível da Favela![2]

Oswald de Andrade, em seu Manifesto Pau-Brasil, do mesmo ano de 24, também percebe a favela como fato estético: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”.

Ou seja, está claro que, há muito tempo, existe uma apreciação da favela pela literatura e pela arte em geral. Também em 1924 Tarsila do Amaral, mulher de Oswald, pinta sua famosa tela Morro da Favela. João do Rio ainda na década de 10 descreve uma visita a uma favela e a obra toda de Lima Barreto, se não se reporta diretamente às favelas, se aproxima de seu contexto através da miséria e da marginalidade. Mas a pergunta que nos fazemos é se estaríamos presenciando agora, na década de noventa, uma busca dos autores pelo tema da favela.

Para essa pergunta temos uma resposta parcial. A favela é um espaço híbrido, urbano e sub-urbano ao mesmo tempo. Está dentro da cidade, mas à margem da cidade. Indefinida, muito diferente do ambiente rural, mais estável, demarcado, menos cambiante. A velocidade da transformação na favela é impressionante. Até porque amanhã ela pode não estar mais em seu lugar, como sucedeu a tantas favelas nos anos 50, 60 e 70, e que veio a gerar conjuntos habitacionais como Cruzada São Sebastião, Vila Kennedy e a própria Cidade de Deus. Esses seriam motivos aparentes que fizeram a favela ser preterida como temática por tanto tempo.

Mas há outra possível resposta, que se aproxima mais do cerne da nossa tese, pois trata do contexto literário. É que ao abordar a favela, os autores se utilizavam basicamente de dois caminhos, duas imagens paradigmáticas, as quais chamei de favela-inferno e favela-idílio. Esses dois paradigmas seriam aprisionadores, e o motivo pelo qual os escritores evitariam tomar a favela como objeto.

João do Rio, em seu texto Livres acampamentos de miséria, escolhe abertamente o caminho da favela-inferno. Já Stefan Zweig, em seu Brasil, país do futuro, não tematiza propriamente a favela, mas a menciona de maneira singular, lamentando a possível extinção dessas comunidades e recomendando sua preservação, como depositária de uma pureza perdida.

O primeiro livro mais contundente, a partir do qual a favela tem que ser repensada, um verdadeiro marco nessa questão é o Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus. A autora mineira, que muitos anos sobreviveu como catadora de papel, morava na favela do Canindé, em São Paulo. Curioso notar que essa obra não venha do Rio de Janeiro, a cidade mais identificada com a favela e local de surgimento deste nome e deste “conceito”, mas de São Paulo, megalópole industrial com muito mais área para ser ocupada pela migração massiva e desordenada.

Carolina de Jesus publica seu livro em 1960 pela Francisco Alves, por intermédio de Audálio Dantas, jornalista a descobriu e editou seus cadernos. Quarto de despejo, que tem como subtítulo “diário de uma favelada”, torna-se um fenômeno editorial, esgotando a primeira edição de dez mil exemplares em uma semana, e convertendo-se num best-seller mundial. A autora descreve seu cotidiano na favela plana do Canindé, às margens do rio Tietê, de maneira drástica e crua. Seu paradigma é a favela-inferno, e mais de uma vez ela emprega esse termo para se referir ao local onde vive.

A partir do início dos anos 90 a favela voltou à cena com força. O fenômeno do rap e do hip-hop, num contexto mais geral, e a própria intensificação da violência e do tráfico de drogas trouxeram o tema definitivamente à tona. No cinema, filmes como O primeiro dia, de Walter Salles, Como nascem os Anjos, de Murilo Salles, e os recentes O Invasor, Cidade de Deus e Seja o que Deus quiser definiram o retorno da cinematografia brasileira ao tema, ausente das telas desde o Cinema Novo. Na literatura, autores como Rubem Fonseca, Patrícia Melo, Fernando Molica, Ronaldo Alves, Fernando Bonassi, Marçal Aquino e outros abordam a favela procurando novos paradigmas, novos caminhos para sua representação.

Mas o marco inaugural da literatura de favela se dá com o lançamento de Cidade de Deus, de Paulo Lins, em 1997. Sem dúvida, o universo no qual o autor insere o leitor é assombroso. Sua construção da favela – embora a Cidade de Deus não seja exatamente uma favela, mas um conjunto habitacional que abriga moradores removidos de várias favelas – baseada numa minuciosa pesquisa e em suas memórias de ex-morador do local, é talvez a mais importante já produzida pela literatura brasileira. O sucesso de vendas e o estrondoso impacto de sua adaptação cinematográfica vieram reforçar a característica de marco que o livro traz.

Favela: cidade de deus ou campo do diabo?

Há vinte anos atrás, na apresentação de Os pobres na literatura brasileira, Roberto Schwarz escrevia:

(...) valha lembrar que as crises da literatura contemporânea e da sociedade de classes são irmãs, e que a investida das artes modernas contra as condições de sua linguagem tem a ver com a impossibilidade progressiva, para a consciência atualizada, de aceitar a dominação de classe. Assim, num sentido que não está suficientemente examinado, a situação da literatura diante da pobreza é uma questão estética radical.

É justamente essa questão estética radical que nosso estudo pretende examinar, embora através de um recorte mais específico, a situação da literatura diante da favela. No livro organizado por Schwarz, trinta e cinco críticos e professores escrevem sobre outros tantos autores e obras que tratavam do tema do pobre e da pobreza na literatura brasileira, de Gregório de Matos a Chico Buarque, de Tomás Antônio Gonzaga a Ferreira Gullar. O ensaio de Carlos Vogt, Trabalho, pobreza e trabalho intelectual, trata de Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de despejo. O trabalho de Schwarz reflete sobre Machado de Assis, mas se o livro tivesse sido publicado no final dos anos 90 certamente incluiria um texto sobre Cidade de Deus, de Paulo Lins, romance sobre o qual o próprio organizador citado acima escreveu uma crítica enfática, Uma aventura artística incomum.

O presente tópico procura pensar essas duas obras, Quarto de despejo e Cidade de Deus, estabelecer uma comparação e um contraste entre elas, e examinar como desenvolvem essa questão estética radical que é a literatura confrontando a pobreza, a literatura diante da favela. Em ambos casos, não se trata apenas de estar "diante" da favela, mas imerso nela, inserido nesse contexto específico e particular que é a favela. Carolina de Jesus, nascida no interior de Minas Gerais supostamente em 1914, por volta de 1940 vai morar na favela do Canindé, em São Paulo. Vive lá mais de 20 anos, e só sai depois do sucesso comercial de seu primeiro livro, Quarto de despejo - diário de uma favelada. Paulo Lins muda-se com sua família, com oito anos de idade, para o conjunto habitacional da Cidade de Deus, zona Oeste do Rio de Janeiro, e só sai de lá adulto.

Ou seja, temos dois autores com uma experiência comum, a vida na favela. E isso é uma informação fundamental para a análise que procuramos desenvolver. O terceiro autor a ser estudado nessa dissertação, Luiz Paulo Corrêa e Castro, também compartilha dessa vivência da favela, pois nasceu e foi criado no Vidigal, onde reside até hoje. É preciso notar que, a despeito de os três autores terem vivido na favela, cada qual se desenvolveu em condições muito distintas. Paulo Lins pertencia a uma classe média da Cidade de Deus e jamais passou fome como Carolina de Jesus. Tampouco teve que enfrentar um subemprego como o de Carolina, de catar de papéis, para sustentar sua família. Tanto Lins quanto Corrêa e Castro conseguiram superar as barreiras aos jovens de classe média-baixa e ingressar em Universidades. Ambos, hoje em dia, vivem do que escrevem: roteiros e romances no caso de Paulo Lins, e jornalismo no caso de Luiz Paulo.

O dinheiro que Carolina ganhava também vinha de papéis, mas os que ela vendia depois de catar nas ruas e nos lixos da cidade. Conseguia escrever nas madrugadas e nas poucas horas vagas que dispunha, quando não estava trabalhando nas ruas, comprando mantimentos, ou cuidando dos três filhos. Ser escritora (no sentido de profissional da escrita) era uma utopia, um sonho distante e praticamente irrealizável. Até que o repórter Audálio Dantas vai fazer uma matéria na favela e descobre aquela mulher, que brigava com algumas pessoas ameaçando incluir seus nomes no livro que estava escrevendo. Audálio pediu para ver o livro e encontrou dezenas de cadernos repletos de poemas, contos, crônicas, peças de teatro e um diário.

Quando leu o diário, percebeu que havia encontrado algo além de simples matéria-prima para mais uma reportagem. Em vez de escrever o texto, publicou no jornal Folha da Noite trechos do diário de Carolina Maria de Jesus. No ano seguinte, em 1959, a revista O Cruzeiro traz fotos da autora e mais trechos do seu diário. Finalmente, em 1960, depois da grande repercussão do texto, Audálio Dantas convence a editora Francisco Alves a publicar o livro.

O sucesso é súbito e inesperado. A primeira edição de dez mil exemplares se 49 esgota em uma semana. Quarto de despejo se torna um best-seller, surpreendendo até mesmo seus editores. É traduzido nas principais línguas do mundo (algumas fontes citam treze idiomas, outras quatorze) e comercializado em mais de quarenta países. Nos Estados Unidos especialmente, o livro provoca imensa repercussão. Na Itália, ganha prefácio de Alberto Moravia. Qual o atrativo desse livro árido, "sem dramaturgia" e tão específico, para os leitores do mundo, distantes da realidade brasileira?

Nos perguntamos se seus atrativos não guardariam muitas semelhanças com os de Cidade de Deus, romance de 550 páginas lançado em 1997 pelo estreante Paulo Lins, que antes só havia publicado um livro de poesia. De maneira análoga, embora quase quarenta anos depois, o livro sobre a formação do conjunto habitacional homônimo e o surgimento e desenvolvimento do tráfico de drogas alcança êxito comercial e grande repercussão no exterior, embora nesse caso provavelmente muito bem planejados pela editora.

Vejamos alguns trechos de críticas sobre Cidade de Deus utilizados em sua divulgação:

a. Um arrastão literário que desce o morro para representar com perfeição narrativa o universo da favela e da criminalidade.

b. Na Cidade de Deus, a lei do mais forte se estabeleceu, logo suplantada por aquela do mais cruel, substituída por sua vez pela do mais selvagem. Paulo Lins conhece bem essa história.

c. Vinte anos de vida na favela narrados por dentro. Um verdadeiro fenômeno. 

Os três excertos destacam como virtude do livro uma característica de seu autor: o pertencimento ao meio que narra. Seja em "arrastão literário que desce o morro", em "Paulo Lins conhece bem essa história" ou em "vinte anos de vida na favela narrados por dentro", o que se valoriza aqui é a relação do autor com o ambiente que descreve, com a figura que representa. Todas as observações seriam perfeitamente aplicáveis a Carolina de Jesus e seu Quarto de despejo – muito embora a favela do Canindé, assim como a Cidade de Deus, não seja propriamente um morro.

Atribuindo valor à veracidade da presença do autor no meio narrado, a crítica confere também qualidades etnográficas à obra. Como aponta Paulo Jorge Ribeiro em ensaio sobre o livro,

Paulo Lins aproveitou e foi aproveitado magnificamente por dois dos mais fortes pontos de balizamento de seu projeto e de seu posterior sucesso. Primeiramente, ele, melhor do que ninguém, pode afirmar duplamente que esteve lá [e aqui o autor retoma o conceito do "estar aí" de Geertz (1984) conforme nota de pé de página]. Como morador, foi criado em Cidade de Deus desde os oito anos, o que lhe possibilitou conhecer in loco alguns dos personagens de seu romance (...).

Ou seja, essa qualidade etnográfica não só avaliza o projeto como também potencializa o sucesso, o interesse pela obra. O próprio Roberto Schwarz inicia sua crítica a Cidade de Deus ressaltando "o ponto de vista interno e diferente". E a apresentação da contracapa da primeira edição qualifica de “surpreendente romance de estréia, escrito num ritmo sem trégua que envolve e carrega o leitor, por alguém que cresceu junto com o inferno que descreve”.

Seria essa qualidade etnográfica também tão contundente na obra de Carolina de Jesus, cujo teor não é ficcional? Não seria necessário um embasamento teórico para a produção de um texto etnográfico? De Paulo Lins sabemos que participou, como pesquisador, de dois grandes projetos de pesquisa coordenados pela antropóloga Alba Zaluar, "Crime e criminalidade no Rio de Janeiro" e "Justiça e classes populares". Ele mesmo, nos agradecimentos que aparecem na última página do livro, faz questão de deixar claras as origens do romance. Essa é uma das características de sua força, segundo Roberto Schwarz. Pois “como o antigo naturalismo, o romance de Paulo Lins deve parte da envergadura e da disposição ousada à parceria com a enquete social”.

Olhando com atenção, veremos que Carolina de Jesus, cuja instrução formal não passou da segunda série primária (do atual ensino fundamental), fez também, a seu modo, sua etnografia. Carlos Vogt faz observações nesse sentido:

Quarto de despejo é uma obra de gosto realista, na qual o verismo é a nota dominante da 'ideologia estética' do autor. Contudo, seu realismo estaria melhor caracterizado se, ao invés de literário, o víssemos dentro daquela espécie de realismo etnográfico desenvolvido pelo antropólogo Oscar Lewis nos anos quarenta e cinqüenta nos seus trabalhos sobre a cultura da pobreza.

A obra de Carolina, além de poder ser pensada como etnográfica, é vista como um marco no que se convencionou chamar de literatura testemunho. À época de seu lançamento esse conceito ainda não existia, e a crítica se reportava ao livro como "documento literário", "literatura denúncia" ou simplesmente “denúncia”. As questões de gênero, os estudos culturais e outras correntes de pensamento mais recentes que ainda não vigoravam, em Quarto de despejo encontraram um ícone, uma obra fundadora.

Uma mulher negra, favelada, mãe solteira de três filhos, que vive de catar detritos nas ruas de uma megalópole latino-americana, consegue produzir e publicar um diário contando a história de sua vida e do local em que vive. É um fato extraordinário, um marco para aqueles que trabalham com a literatura testemunho. Segundo as tipologias do testemunho de Elzbieta Sklodowska, Quarto de Despejo pode ser considerado um testemunho etnográfico, voz que representa as classes subalternas.

A obra de Paulo Lins também poderia ser pensada como literatura testemunho, se a enquadrássemos nas categorias de Luisa Campuzano, que parte das tipologias de Sklodowska. Segundo ela, os testemunhos se dividiriam em mediados e imediatos; no primeiro caso, o autor (ou editor) parte de determinados pré-textos, que podem ser depoimentos, entrevistas, etc. No segundo caso, o emissor e autor são a mesma pessoa. Sob esse ponto de vista, Lins produziu uma obra de testemunho mediado, campo que por sua vez se divide em dois grupos: os testemunhos jornalísticos e os testemunhos etnográficos e sócio-históricos; e as novelas testemunhais, subdivididas em novelas testemunhais e pseudotestemunhais. Ou seja, obedecendo a esse sistema esquemático de classificação, Cidade de Deus pode ser descrita como obra de testemunho mediado, uma novela pseudotestemunhal.

Isso tudo talvez não auxilie muito no desenvolvimento de nossa reflexão, a não ser para atentarmos para o fato de uma recente expansão dessa linha testemunhal no mercado editorial brasileiro. Nos últimos anos, as publicações testemunhais de toda espécie têm proliferado, obtendo números expressivos de vendas. Podemos pensar que o próprio livro de Paulo Lins estimulou essa onda de testemunhos, e encontrou um público ávido de conhecer novas faces da realidade, ou talvez cansado de um certo esgotamento da ficção brasileira dos anos 90.

Daí vem a literatura de cárcere, com títulos como Diário de um detento, de Jocenir, Sobrevivente (do Massacre do Carandiru), de André du Rap, e Estação Carandiru, de Drauzio Varela, este com a diferença de ter sido escrito por um médico que atendia àquela prisão. Há uma editora em São Paulo, a Labortexto Editorial, especializada em depoimentos e testemunhos da realidade, quase todos os títulos de seu catálogo pertencem a este gênero. O bandido e outras histórias da Rocinha, de Ronaldo Alves, um livro de contos, poderia também caber no balaio da literatura testemunho, e há outros segmentos que mantém aquecido o comércio nessa área.

Mas a grande força daquelas duas obras, no nosso entender, não se resume a esse caráter testemunhal ou etnográfico. Não é a simples representação de uma realidade, ou mesmo a pretensa reprodução da realidade, que faz de um texto literatura, que o atribui qualidades literárias. A distinção desses empreendimentos, o que lhes faz dar o salto, é o compromisso de seus autores com a poesia. Esse é o diferencial, o algo mais que ambas as obras apresentam, cada qual à sua maneira.

Sabemos que os dois autores trabalham com poesia. Paulo Lins, como já foi mencionado, estreou em 1986 com um livro de poesia, Sobre o Sol.  Participou da Cooperativa de Poetas nos anos 80, freqüentou o CEP 20.000 (Centro de Experimentação Poética, sob a direção de Chacal e Guilherme Zarvos) nos anos 90 e foi incluído na coletânea Esses Poetas, de Heloísa Buarque de Hollanda. Um de seus poemas se tornou muito conhecido do público carioca, circulou em camisetas e cartões postais:

Sou

Seu

Cio

Sou

Seu

Ócio

Sou

Seu

Sócio

no

Prazer.

Esse poema demonstra um pouco da personalidade poética de Paulo Lins. Sua atenção ao concretismo, mas com uma leveza mais característica de Paulo Leminski (e de outros poetas influenciados pelo movimento) do que do trio fundador da poesia concreta, seu jogo de palavras e sons, sua economia.

Schwarz já apontava isso em seu ensaio:

A ousadia de linguagem mais notável, no entanto, vem por conta de uma inesperada insistência na poesia – à qual se pode objetar muita coisa, menos o grande acerto de sua presença. Nela se combinam os recursos da letra de samba e uma versão abandidada do trocadilhismo concretista – a epígrafe do livro é de Paulo Leminski –, cujas possibilidades populares aparecem aqui de maneira interessante. A importância deliberada e insolente da nota lírica, que faz frente ao peso esmagador dos condicionamentos pela miséria, dá ao romance um caráter distintivo, de recusa, difícil de imaginar num leitor menos inconformado.

Essa "insistência na poesia" é muito clara no início do romance; a primeira cena do livro apresenta os personagens Busca-Pé e Barbantinho fumando um baseado à beira do rio, próximos do bosque. Entre os pensamentos de cada um, lembranças da infância e planos futuros, uma ponta de revolta surge em Busca-Pé. Ele nem tem tempo de chorar, pois nota a vermelhidão que toma conta da água do rio. É um cadáver que vem boiando, seguido por outros quatro corpos, numa espécie de advertência macabra, num corte súbito, um choque de realidade naquela atmosfera quase bucólica de tarde chuvosa.

A segunda cena, também de poucas páginas, é ainda mais idílica, e traz de volta a infância dos dois personagens, desde a mudança para a Cidade de Deus. Passa pela formação do bairro desde os primórdios de Portugal Pequeno e vai até os anos 60, época da construção do conjunto habitacional, inaugurado às pressas em 66 para receber os desabrigados da grande enchente daquele ano. Por isso – e por outras tantas práticas que o Brasil tão bem conhece – o conjunto foi posto em funcionamento ainda inacabado.

Num recurso recorrente no romance, aqui o narrador enumera jogos infantis, utiliza-se do vocabulário característico, lista brincadeiras, expressões, personagens da infância. Ambienta através de diálogos o jogo de bolinha de gude, a brincadeira de empinar pipas, a de pular carniça. Esse artifício provoca um efeito poético, uma nostalgia, traz um lirismo da infância para a narrativa, e quase sempre é cortado subitamente por uma morte ou uma cena violenta. O contraste abrupto gera grande dramaticidade, faz mais intensa a ação subseqüente ao momento nostálgico, e o sofrimento do personagem fica mais humanizado. O corte nessa segunda cena ainda é relativamente suave: o irmão de Busca-Pé, que se exibia com sua bicicleta fazendo manobras arriscadas, "perdeu a direção e foi perna pro alto; nariz ensangüentado; corpo ralando no barro; poeira entrando nos olhos... Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso...".

Com a última frase do parágrafo e desse segundo trecho, o narrador dá a pista, aponta o fio condutor da história que virá: o crime. Mas antes de entrar na narrativa propriamente dita há um outro trecho, aparentemente isolado, composto de um parágrafo único, breve, seguido de outro parágrafo de apenas duas frases. Esse trecho nos remete às invocações da Musa na poesia homérica e em outras poéticas clássicas, o pedido que faz o poeta para que a Musa inspire o seu canto. Que aqui aparece de maneira prosaica, própria da informalidade popular:

Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com as balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. (...).

Aqui a relação com a poesia é explicitada, assumida. Não apenas pelo procedimento que remete à tradição clássica do gênero, mas também pela abordagem direta do narrador: Poesia, minha tia. A própria poesia transforma-se em musa, é para ela a invocação; ela será a guia iluminadora das obscuras fronteiras da prosa: É que arrisco a prosa. O poeta entra em outra área, em outro domínio. Esse trecho é quase um pedido de licença, uma autorização tácita do poeta que vai se aventurar no mundo da prosa. E de uma prosa épica, uma saga de quase três décadas que narra mais que a formação de um bairro, mas a formação do que o autor classificou de neofavela. Ou seja, a favela sob a égide da violência e do terror gerados pelo narcotráfico, a favela inserida na economia neoliberal do mundo globalizado, a favela na pós-modernidade. E ainda mostra, num microcosmo, o processo de transformação da pequena bandidagem no que se chama hoje de crime organizado, isto é, quadrilhas de narcotraficantes que manipulam quantias impensáveis de dinheiro e mini-exércitos de homens e crianças.

No segundo parágrafo, apenas as frases/verso: “Falha a fala. Fala a bala”.18 Que também vêm nesse sentido: o verbo pode falhar, mas a ação falará. A eloqüência na Cidade de Deus é da bala, antes de ser da fala. Esse é o caminho que o narrador privilegiará, o caminho da ação. Daí que, depois desse excerto, a poesia se torna menos explícita, e se deixa ficar na penumbra da ação. É a ação que conduz a narrativa; os personagens agem, dialogam através de falas enxutas, econômicas, populares, carregadas de gírias e expressões da malandragem. Vez por outra, em momentos imprevisíveis, volta a insolência "da nota lírica", seja num diálogo de bandidos, numa descrição breve, ou em momentos cruciais da narrativa, como o episódio da morte de Cabeleira, ao final do primeiro capítulo. Quando introduz um solilóquio interior do personagem que caminha, o narrador traz de novo o recurso poético de um clima ameno e lírico interrompido pela súbita ameaça da morte:

Não sabia o porquê, mas pequenos pedaços de sua vida vinham-lhe repentinamente de modo sucessivo. As mais vivas cores do dia tornaram-se significantes de significados muito mais intensos, confundindo sua visão. O vento mais nervoso, o sol mais quente, o passo mais forte, os pardais tão longe dos homens, o silêncio inoperante, os piões rodando, os girassóis vergando-se, os carros mais rápidos e a voz de Touro agitando tudo: – Deita no chão, vagabundo!

Enfim, a diferença de um romance etnográfico para um romance maior, que não se deixa aprisionar pelos limites das categorizações, talvez resida principalmente em seu teor de poesia que, além da construção dos personagens, da estruturação do enredo, das tensões, do suspense e das surpresas da narrativa, permeia Cidade de Deus de ponta a ponta. Assim também ocorre na obra de Carolina de Jesus, guardadas as proporções e as diferenças. Aliás, o próprio Paulo Lins poderia se encaixar perfeitamente na imagem que a autora faz dos "poetas do lixo, idealistas das favelas".

Nos estudos sobre a obra da autora, poucos são os que aludem à sua condição de poeta, talvez por sua dicção tosca, talvez por sua ignorância da gramática culta. Como afirma Marisa Lajolo no ensaio Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina, “só se admite a infração, e a infração precisa ser voluntária. Ou seja: não se pode ignorar a gramática, embora se possa infringi-la. Tolera-se a infração, mas não o desconhecimento do que se infringe”. A exceção é a pesquisa definitiva realizada por Robert Levine e José Carlos Sebe Bom Meihy. Esse último foi responsável pela organização e publicação da Antologia Pessoal, uma coletânea de poemas de Carolina de Jesus. Mas é ela própria, no texto de Quarto de Despejo, quem assume essa postura, não de poeta de gabinete, mas de "poeta do lixo":

Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em relação ao povo.

Audálio Dantas, o jornalista que revelou Carolina, quando a visitou pela primeira vez, além dos aproximadamente vinte cadernos manuscritos que continham o diário, encontrou outros tantos, quase duas dezenas mais, com contos, crônicas, peças de teatro, sobretudo com inúmeros poemas. Os dois ensaios que prefaciam o volume Antologia Pessoal descrevem o quanto eram importantes para a autora os seus poemas. E mostram que ela se via como poeta, talvez como poeta do lixo, mas poeta.

Para Carolina, o poeta do lixo seria aquele sensível aos dramas humanos, com os olhos abertos para o mundo à sua volta. O sujeito cuja atenção iria para onde os homens comuns não olham, e quando olham não vêem. Rebotalho, restos, trastes, gente excluída, doenças, miséria: matéria de poesia para o poeta do lixo. Inevitável a lembrança de Manoel de Barros e de sua poética. A metáfora do quarto de despejo, criada por Carolina e sobre a qual nos estenderemos adiante, é o motor do diário da autora, e o estímulo mais poderoso para seus versos.

Mas além dos versos propriamente ditos, é o olhar de Carolina sobre a realidade que a cerca que se mostra poético, como vemos nessa passagem: "Dona Domingas é uma preta boa igual ao pão. Calma e util".(p. 46) Ou essa quadrinha:

Alguns homens em São Paulo

Andam todos carimbados

Traz um letreiro nas costas

Dizendo onde é empregado. (p. 108)

É sua maneira particular de encarar a realidade, os fatos cotidianos. E de descrevê-los não apenas como uma reportagem ou transcrição dos acontecimentos, mas filtrando-os através de sua subjetividade particular, de seu pensamento poético. A própria percepção da autora, descrita em seu diário, denota uma atenção especial às palavras:

Eu disse para a Fernanda que o Policarpo é crente e tinha varias mulheres. Então a Fernanda disse que o Policarpo não é crente. – É quente! Achei graça no trocadilho e sorri. Dei uma gargalhada. (p. 96).

E noutra passagem:

Quando eu fui deita-lo, ele disse: – Sabe, Carolina, eu sou um homem infeliz. Depois que morreu Marina nunca mais ninguém me quiz. Eu dei uma risada, porque percebi que ele havia falado e formado uma quadrinha. (p. 147).

E ainda:

O açúcar aumentou. A palavra da moda, agora, é aumentou. Aumentou! Isso me faz lembrar esta quadrinha que o Roque fez e deu-me para eu incluir no meu repertorio poetico e dizer que é minha:

Politico quando candidato

Promete que dá aumento

E o povo vê que de fato

Aumenta o seu sofrimento! (p. 118)

Fica nítida nestes trechos a atenção de Carolina com a palavra. E a utilização poética, a preocupação com a sonoridade e o sentido no emprego das palavras. Faz uma referência a um formato de composição, a quadrinha, também conhecido como trova, estrutura poética de quatro versos bastante popular. Ela afirma ainda ter um repertório poético, o que faz supor que apresente esses poemas. Definitivamente, a autora se vê como escritora e não apenas como diletante. Menciona ter escrito peças, que “apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: – É pena você ser preta”. (p. 58)

E narra um episódio de devolução dos seus originais:

Fui no Correio retirar os cadernos que retornaram dos Estados Unidos. (...) Cheguei na favela. Triste como se tivessem mutilado os meus membros. O The Reader Digest devolvia os originais. A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra. (p.135)

Não se trata de descobrir uma poeta maior em Carolina Maria de Jesus, o que seria absolutamente inverídico. Mas sim de atestar sua originalidade poética, até pelo fato de a importância estética de sua obra advir muito mais de sua simples realização do que de como ela foi realizada. Ou seja, não ignoramos que a obra de Carolina é construída sobre inúmeros clichês, que demonstra um maniqueísmo extremado, que por vezes sua ingenuidade soa naif. Mas observamos que mesmo a estética adotada pela autora vem no sentido de integrá-la a uma tradição, de estabelecer um diálogo que a princípio pareceria impossível com a história da literatura, com o mundo letrado.

Assim ela acaba se tornando um elo de comunicação entre mundos praticamente incomunicáveis, a favela e o asfalto. A pouca comunicação que há é esporádica e de mão única: da cidade para a favela. O retorno, a informação que sai, quem a leva é Carolina, conforme narra em seu diário, seja para telefonar para a polícia que virá restituir a ordem, ou para chamar uma ambulância, ou ainda para pedir algum auxílio ao “povo da alvenaria”. Numa esfera mais ampla a autora fará o mesmo com sua obra, relatando uma realidade distante e praticamente inédita para a maioria de seus leitores. Carolina de Jesus tem consciência de sua distinção, ela sabe que é – e faz questão de ser – diferente do povo da favela. Por vezes demonstra um esforço no sentido contrário, que parece um esforço para convencer-se de sua condição de igual: “devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”. (p. 38)

Ou seja, o que está no lixo, lixo é. Qualquer coisa que esteja no quarto de despejo é traste, foi excluída, deve ser jogada fora. Mas Carolina não tarda a chegar a uma outra conclusão, advinda da íntima certeza de que é diferente, que algo a distingue daquelas pessoas: “Os politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido”. (p. 40)

Essa postura é identificada por Carlos Vogt como um certo “titanismo romântico” ou uma “majestade tenebrosa” – aludindo a um texto de Antônio Cândido sobre Giovanni Verga – que não raras vezes seriam atribuídos ao destino do pobre nos romances naturalistas, quando este é jogado nos limites da sobrevivência. O autor cita a grandiosidade do suicídio de Bertoleza no final de O Cortiço como uma medida desse titanismo. Depois Vogt – que afirma não tentar identificar Carolina de Jesus com uma escola literária à qual ela não pertence – aponta um movimento surpreendente em Quarto de Despejo. Um certo efeito de duplo complementar e antagônico da realidade que retrata, pois se o livro a princípio é um documento sobre a pobreza da favela, ao mesmo tempo produz um distanciamento que transforma a experiência real da miséria na experiência lingüística do diário. Assim a autora, que pertence ao mundo que narra e compartilha com ele a fome e as privações, “acaba por se distinguir de si mesma e por apresentar a escritura como uma forma de experimentação social nova, capaz de acenar-lhe com a esperança de romper o cerco da economia de sobrevivência que tranca a sua vida ao dia-a-dia do dinheiro-coisa”.

Ou seja, num movimento talvez não consciente, a autora oferece uma outra dimensão à favela que retrata em seu diário: a de experiência de linguagem, da representação poética, a construção de subjetividade que a literatura persegue. E, enquanto utiliza o procedimento de se colar à realidade que mimetiza, Carolina de Jesus obtém “uma vingança em relação a ela. Reproduzida no livro, esta realidade incorpora, como traço constitutivo do trabalho intelectual que a produziu escrita, a possibilidade do projeto e do futuro sociais que em si mesma ela excluía”.25 Chega a isso talvez sem pretender; seu diário, ainda que se estruture como obra e que apresente opções nas quais reconhece-se uma autoria, tem a princípio apenas a ambição de retratar o inferno da favela e de sua vida. As construções simbólicas, Carolina as utiliza em seus poemas, peças e contos. E não constituem exatamente sua força maior, embora muitas vezes surpreendam o leitor e provoquem singelos encantamentos.

Roberto Schwarz vê em Cidade de Deus um movimento análogo a esse descrito por Carlos Vogt, especialmente no que diz respeito à força esmagadora de uma realidade:

Colado à ação, o ponto de vista narrativo lhe capta as alternativas próximas, a lógica e os impasses. O imediatismo do recorte reproduz a pressão do perigo e da necessidade a que as personagens estão submetidas. Daí uma espécie de realidade irrecorrível, uma objetividade absurda, decorrência do acossamento, que deixam o juízo moral sem chão. Dito isto, estamos longe do exotismo ou do sadismo da literatura comercial de assunto semelhante. O horizonte reduzido é claramente uma desgraça geral, cuja extensão cabe ao leitor avaliar.

Esse aspecto apontado por Schwarz é interpretado como alienação por algumas leituras. Essa “objetividade absurda” é utilizada como argumento para reforçar uma suposta postura “neutra” ou despolitizada, que simplesmente atirasse os personagens nas situações e não provocasse no leitor uma reflexão sobre os fatos, apenas a constatação da inexorabilidade da violência que cerca. Mas o próprio crítico rebate essa suspeita, quando afirma que “o horizonte reduzido é claramente uma desgraça geral, cuja extensão cabe ao leitor avaliar”. No juízo do leitor reside a crítica; o autor apresenta os fatos sem julgá-los, embora o faça com consciência, sabendo o risco que corre de ser visto como sensacionalista ou apelativo.

Ao mesmo tempo, o texto de Schwarz poderia estar se referindo a Quarto de Despejo. A realidade irrecorrível, a objetividade absurda, são traços comuns nas duas obras. Seriam características da literatura de favela? Há, nos dois livros, outros pontos em comum além dos citados acima e de seus autores terem olhar de poetas, como vimos anteriormente. Um deles, bem evidente, também é destacado por Schwarz em seu ensaio. Trata-se do espaço no qual se desenvolve Cidade de Deus, que como sugere o título abrange quase que exclusivamente a área do conjunto habitacional. Poucas vezes a ação se desenrola fora dessa circunscrição. Quando acontece, é algum personagem que foi preso, e a ação passa rapidamente pela prisão, ou personagens que fogem e se escondem em outras favelas, mas também são momentos breves.

A cidade do Rio de Janeiro é quase uma abstração, da qual aparecem as bordas, ou então espaços que farão parte da ação como locais da violência, aí o caso do motel, o primeiro grande assalto narrado no romance, e depois de postos de gasolina, lojas de armas e tais. A praia eventualmente aparece, às vezes na imaginação dos personagens – em especial de Barbantinho, que vem de uma família de salva-vidas e sonha em seguir a profissão – e outras vezes em momentos de lazer, com vários personagens, como um alívio para a quase insuportável pressão da violência. Diz Schwarz:

A ação move-se no mundo fechado de Cidade de Deus, com uns poucos momentos fora, sobretudo em presídios, para acompanhar o destino das personagens. (…) Literariamente, a órbita limitada funciona como força, pois ela dramatiza a cegueira e a segmentação de seu processo(…).

Muito semelhante o que ocorre em Quarto de Despejo. A metáfora do título se refere à favela, como já vimos aqui, e quase toda a ação é centrada na favela do Canindé, onde vive a autora. Diariamente Carolina vai a cidade para exercer seu ofício de trapeira. Mas a cidade aparece como um outro mundo, algo fora, num movimento que alterna o ponto de vista, já que geralmente é a favela que é o fora, o quarto de despejo. Pois bem, quando a cidade aparece assim, ela surge fechada, de acesso difícil, impenetrável em seu cerne. Suas ruas e margens estão franqueadas, como os cantos sujos, os ermos. Mas os belos prédios, os jardins vistosos e outras maravilhas da cidade são para serem admirados de longe para quem é da favela.

A burocracia muitas vezes é a grade de proteção que impede a entrada dos que têm dificuldade em conseguir cópias autenticadas, certidões, firmas reconhecidas. Como no episódio em que Carolina, doente, procurou o Serviço Social:

Fui no Palacio, o Palacio mandou-me para a sede na Av. Brigadeiro Luís Antonio. Avenida Brigadeiro me enviou para o Serviço Social da Santa Casa. Falei com a Dona Maria Aparecida. Resolvi ir no Palacio e entrei na fila. Falei com o senhor Alcides. Um homem que não é niponico, mas é amarelo como manteiga deteriorada. (p. 42-43)

As teias labirínticas do mundo letrado se estendem por toda parte na cidade. E quem não souber decifrá-las quedará perdido. Na favela do Canindé, o mapa é mais simples: rua A, rua B, rua C e rua do Porto, esta junto ao rio Tietê. Os limites da favela são o próprio rio, de um lado, e as casas de alvenaria de outro. Apesar de Carolina sair para a cidade quase todos os dias, o espaço marcante em seu livro é mesmo a favela. A cidade geralmente surge como contraste. Ou então como provedora da necessidade: pedir tomates na fábrica, lingüiça ou ossos no frigorífico, frutas e legumes na quitanda, além de todo o tipo de traste que Carolina puder catar para vender depois: papel, alumínio, metais diversos, madeira, carvão, “tudo serve para o favelado”. (p. 45)

As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (p. 37)

A opção de centrar o espaço de seu diário na favela revela-se um acerto, a força do livro, de maneira análoga ao romance de Paulo Lins. A favela torna-se sufocante, opressiva, as discussões e brigas constantes dos vizinhos, as ameaças e agressões aos seus filhos, a extorsão do encarregado da luz, os ruídos noturnos, a balbúrdia do dia-a-dia, tudo isso compõe um quadro impressionante e vivo do espaço em que vive a autora.

O recurso que Carolina utiliza para criar esse ambiente e a rotina dura de sua vida é simples e eficiente: a repetição. Os dias se repetem iguais, iniciando bem cedo com o árduo ritual de buscar água na torneira coletiva. Depois a volta para o barraco, se possível alimentar os três filhos, sair para catar entulho na rua, vender o que conseguiu carregar, com o dinheiro obtido comprar um ou outro alimento para o dia, voltar para casa. As variações, poucas, mantém a estrutura narrativa. Há também o ritual de ler e escrever, que ocupa um lugar especial em sua vida. Carolina gosta de parar tudo para escrever ou ler. E tem prazer em narrar isso em seu diário, pois a leitura e a escrita são seus diferenciais, fazem dela uma pessoa especial, singular.

A estrutura do diário é respeitada, segue uma ordem cronológica, com alguns saltos e buracos. É verdade que o texto que conhecemos teve a edição de Audálio Dantas, que o formatou. Há frases extirpadas indicadas por reticências entre parêntesis “(…)” e outros trechos, maiores, cuja ausência é apontada por reticências simples. O fio condutor da narrativa é o sofrimento a que é submetida a autora e sua família, e a  fome que os persegue implacavelmente do início ao fim do livro – que começa no ano de 1955 e logo salta para 1958, e depois segue com interrupções até o fim do ano de 1959.

Carlos Vogt observa esse “recurso de estilo” e também o avalia como eficiente. Schwarz, em relação a Cidade de Deus, faz um comentário parecido, que mais uma vez poderia servir para ambos os livros: Em plano menos palpável há a quase-padronização das seqüências, sinistramente monótonas em sua variação. 28 Assim também Paulo Lins utiliza a repetição para enfatizar a escalada da violência, e a permeia com um crescendo na ação, no movimento.

Para encerrar esse trecho e passar ao próximo ponto a ser discutido, falta comentar apenas um aspecto no qual as duas obras guardam ainda alguma semelhança: a liberdade de escrita que tiveram. Ou talvez, os limites que os autores se impuseram. De maneira que Schwarz comenta que em “Cidade de Deus há um tom próprio, que no conjunto funciona vigorosamente, embora destoando da ‘prosa bem feita’”. Ora, se há uma coisa da qual não se pode qualificar Quarto de Despejo é de ser uma “prosa bem feita”, de ter preocupações formais com o resultado da obra. Muito pelo contrário. Carolina Maria de Jesus escreveu um livro visceral, sincero e cru, que conta com a “contribuição milionária de todos os erros”, da qual a autora jamais deve ter ouvido falar.

Paulo Lins também não abriu mão de sua liberdade, de sua experiência como poeta, para utilizar os dados da extensa pesquisa na qual trabalhou da maneira que esteticamente o atraísse mais. Só a quantidade de gírias e expressões populares que empregou forneceria material suficiente para a elaboração de um compêndio da “fala malandra carioca”.

Não esqueçamos que os dois autores estudados nesse capítulo, apesar de tantos pontos em comum entre as duas obras levantados aqui, são de constituição inteiramente diferente, têm muito pouco a ver um com outro. Carolina Maria de Jesus foi uma vítima da violenta exclusão já presente na primeira metade do século; era precariamente alfabetizada e passava grandes dificuldades para alimentar a si e aos seus três filhos. Paulo Lins vem de uma situação bem mais confortável, jamais passou fome, conseguiu formar-se em Letras pela UFRJ, apesar de também ter a experiência de quase 30 anos de vida na favela, no caso o conjunto habitacional de Cidade de Deus. Carolina escrevia nas horas vagas, seja nas madrugadas antes de dormir ou ao acordar, por vezes nas tardes que não ia trabalhar e os filhos não estavam em casa. Em algumas ocasiões escrevia sem sequer ter se alimentado. Paulo Lins ganhou uma bolsa da Fundação Vitae – à qual ele agradece no fim do livro – para escrever seu romance.

Carolina, depois de muito tentar uma publicação, conheceu por acaso o repórter Audálio Dantas e este se interessou por seus escritos. Em 1958 e 59 teve textos seus publicados pela imprensa, e em 1960 saía seu primeiro livro pela Livraria Francisco Alves, também através da mediação do repórter. Paulo Lins, depois de participar por oito anos das pesquisas para o trabalho de Alba Zaluar, cujas informações serviram de base para seu texto, ainda trabalhou exaustivamente em seu livro; durante um ano teve um salário mensal proporcionado pela bolsa Vitae. Foi Alba Zaluar que insistiu para que Lins mostrasse Schwarz o poema que havia escrito a partir de sua experiência de pesquisador na Cidade de Deus. Foi o crítico que insistiu para que o poeta transformasse aquilo tudo em romance. Depois, quando mostrou os primeiros originais para Roberto Schwarz, este se entusiasmou e recomendou veementemente o texto à Companhia das Letras, que o publicou em 1997.

Enfim, se os pontos em comum são muitos, as diferenças são quase que absolutas. O que nos traz de volta a mesma questão: há entre os dois livros tanta coisa em comum de modo que possamos identificá-los como produtos de uma literatura de favela? Vejamos alguns pontos específicos no romance de Paulo Lins que talvez nos ajudem a formular o conceito de Literatura de favela, identificando os objetivos a que o autor se propõe e os recursos que utiliza para obtê-los

A fala e a crença da favela em Cidade de Deus

Há várias abordagens possíveis para explorar o romance Cidade de Deus. Uma delas, uma das mais ricas pelo material que oferece, é a de examinar o mergulho do autor na cultura popular brasileira, seja através da fala do povo ou através de seus hábitos e costumes, em especial de sua relação com as religiões afro-brasileiras, como candomblé, umbanda ou macumba.

Em relação à fala dos personagens, se estendermos rápido olhar em perspectiva pela literatura brasileira, encontraremos inúmeras tentativas de aproximação da fala popular, do legítimo falar do povo brasileiro. Claro que esse falar varia muito num país de dimensões continentais, e justamente por isso quanto mais específico o recorte do autor mais perto ele ficará de reelaborar no texto literário um dialeto popular.

Um possível romance inaugural dessa atitude – se contarmos apenas do modernismo em diante – seria Macunaíma, de Mário de Andrade. Lançado em 1928, introduz toda a sorte de falares no texto, desde as línguas indígenas até expressões populares e neologismos derivados da oralidade. Porém a novela – ou rapsódia, como a apresenta o autor – não cerca um dialeto particular, um falar específico de um ou outro grupo ou comunidade. Antes o texto privilegia a invenção na linguagem, e provavelmente é o trabalho mais denso do autor. Consoante com a ideologia do movimento que ajudara a fundar, Mario de Andrade buscava a aproximação do Brasil real, procurando, através de um redescobrimento, revelar o verdadeiro Brasil à elite ilustrada que até então passava ao largo da “verdade” de seu país.

Assim também Oswald, em sua poesia de maneira mais enfática que na prosa ou no teatro, procurou apreender o dialeto brasileiro, como explicita o poema Vício na fala. 29 Outros autores modernistas poderíamos citar, mas saltemos no tempo para encontrarmos uma outra obra, cuja tematização principal é a marginália urbana carioca e sua fala, ou seja, um universo específico e reduzido que permitiu uma experiência de linguagem radical.

Nos referimos a Antônio Fraga, escritor originalíssimo e um tanto esquecido pelo pensamento acadêmico contemporâneo, talvez apenas pela dificuldade em lidar com a sua obra, em categorizá-la e encaixá-la em movimentos literários de sua época. Fraga publicou sua novela Desabrigo em 1945, através da Editora Macunaíma, fundada por ele mesmo (com Antônio Olinto e Ernande Soares), que durou pouco e lançou apenas esse título. O próprio nome escolhido para a editora nos dá uma pista dessa linhagem imaginária de autores preocupados com o idioma falado no país em que vivem, nas dinâmicas da língua portuguesa no Brasil.

Em Desabrigo, Antônio Fraga cria um enredo coloquial com personagens do submundo carioca, malandros da Lapa, prostitutas do Mangue, sambistas, jogadores de sinuca, indigentes e tais. Os três capítulos da novela são compostos por pequenos trechos, quase mini-capítulos, cada um com uma pequena narrativa completa, que vão dando seqüência ao enredo.

Entre esses mini-capítulos, há alguns chamados de Ponto de vista, que são como que parêntesis na narrativa. Trazem trechos de crítica ou de prosa de outros autores, sempre na língua original, que atribuem sentido estético, não apenas à novela, mas ao procedimento adotado pelo autor, como se avalizassem sua narrativa, sua abolição de pontuação, sua adoção da gíria, etc.

O primeiro Ponto de vista introduz trecho de um artigo de Campos de Carvalho oriundo, segundo Fraga, da publicação Planalto, datada de 15/09/1941:

“Entendem eles que para nos emanciparmos do jugo português devemos, o quanto antes, emanciparmos da língua lusitana a nossa língua, e o melhor meio de o fazer será abrigarmos no idioma novo toda forma de linguagem chula, de calão, de barbarismos e de sujeira em que, desgraçadamente, sempre foi fértil o linguajar do povo. Em vez dos clássicos, dos puristas, dos Camões e caterva dos séculos passados, falem e pontifiquem os malandros, os analfabetos, os idiotas, as prostitutas e a ralé mais baixa”.

Ora, esse é exatamente o elenco de personagens de Desabrigo; por um momento nos dá a impressão que a novela é quase que um exercício de colocar em prática as idéias expostas por Campos de Carvalho, que certamente coincidem com a do autor, ele mesmo responsável pelo segundo Ponto de vista, assinado pelo seu alter ego Evêmero, personagem condutor da narrativa. Ao final da novela, outra mostra dessa vontade de criar uma língua própria, de se emancipar do jugo português: a inclusão de um glossário “das palavras ainda não lexicalizadas ou das que já caíram em desuso”, 31 como explica o autor.

A originalidade, o grau de invenção, a radicalidade da proposta e a excelência de seu resultado na novela Desabrigo parecem estar ainda a ser revelados para o leitor de literatura brasileira, assim como seus contos, publicados na recente edição da Relume Dumará, Desabrigo e outros trecos (1999). Poderíamos ainda nos estender por outros tantos escritores e escolas, mas passemos direto por João Antônio, Plínio Marcos, mesmo Nélson Rodrigues, escritores dos anos 70 e 80, poesia marginal, voemos sobre todos os outros autores que em algum momento partilharam dessa busca para enfim alcançarmos Paulo Lins e sua obra.

A primeira leitura de Cidade de Deus revela-se, quase invariavelmente, chocante para o leitor. Porque é tão freqüente a utilização de gírias, jargões e expressões populares que a estranheza torna-se inevitável. Não há talvez, na literatura brasileira, uma investida tão radical na direção de uma fala popular brasileira, de um dialeto marginal, excluído da “superfície aparente da língua”, isto é, da comunicação oficial, das gramáticas e dos dicionários, dos meios de comunicação de massa, e em geral da literatura. O paralelo que traçamos, a obra de Antônio Fraga, talvez seja a única comparável. Com a diferença que, se Fraga emprega essa linguagem do início ao fim de sua novela, esta é breve e cheia de experimentações, como os “pontos de vista” já citados. Já Lins conforma a linguagem popular numa “embalagem” de texto bem redigido, a condução do narrador – onisciente, bem de acordo com uma tradição da literatura – que só muito raramente lança mão de recursos de linguagem semelhantes aos de seus personagens, como gíria e expressões populares, em seu discurso.

Mas quando entram os diálogos dos personagens, irrompem com força o falar desdentado, “a linguagem chula, de calão, de barbarismos e sujeira” a que se referia Antônio Fraga citando Campos de Carvalho. Difícil não estranhar algo como:

– Quando a gente volta pra de Deus, hein?– indagou Carlinho Pretinho ao léu. – Cumpádi, a Cidade de Deus tá inframada! Os homi tá de butuca na área, morou, meu irmão? Final de ano tá aí… Eles tão tudo atrás de cacau também, meu cumpádi! Vamo esperar o Ano-Novo passar, sabe qualé?

A grafia alterada de algumas palavras, escritas como são faladas, as gírias, a sonoridade inusitada, todos esses elementos contribuem para esse efeito de estranheza que se tem a princípio, especialmente para o leitor não familiarizado com a fala da favela, a língua da malandragem. Desse impacto resultam duas coisas. Primeiro, uma fidelidade lingüística aos personagens e seu universo, que reforçam a verossimilhança e enfatizam o suposto caráter documental do romance; e segundo, intensificam a sensação da violência. É como se também a gramática, a língua culta fosse violentada. Daí a afirmação de Roberto Schwarz que “essa recombinação de valores tem um tom próprio, que no conjunto funciona vigorosamente, embora destoando da ‘prosa bem feita’”.

Depois de algum tempo o leitor vai se familiarizando com a linguagem e prevalece o primeiro efeito, o de reforço daquela realidade, a inserção do leitor no micro universo da Cidade de Deus, no dia-a-dia dos bandidos, malandros e “cocotas”, dos policiais e dos “otários” trabalhadores. E só então se percebe o quanto hábil é o autor na transposição dessas formas de expressão orais para o texto literário, e o quanto esse manejo é um dos alicerces de seu romance. Como mostra esse diálogo de Cabeleira com o ex-policial Faquir, um atravessador de armas:

– Cumpádi, é o seguinte: há muito tempo que tu arruma um pichulé maneiro em cima da rapaziada, morou? Tem um samango lá do Quinto Setor que mandou um catatau pra gente dizendo que mandava uma caixa de bala pra gente na metade do preço da tua, tá sabendo? Isso quer dizer que tu arruma o dobro que tinha que arrumar. Então dessa vez eu vou segurar os ferros na mão grande. Me dá o teu também e devolve o dinheiro! (p.103-104)

 

  1. 1 COSTALLAT, Benjamin. Mistérios do Rio, in COSTA, Flávio Moreira da (org.), Crime à brasileira, pp. 166-167.
  2. Ibid., p. 167.