Luiz Antonio Machado da Silva: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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1. '''Introdução'''
1. '''Introdução'''


Este artigo tem como objetivo apresentar as primeiras considerações sobre um projeto de sociografia da Sociologia Urbana brasileira. Através da reconstituição das obras e dos perfis dos fundadores e protagonistas deste campo de conhecimento – a partir de suas produções acadêmicas e de um material de entrevistas – buscamos descrever e interpretar as trajetórias, as obras e os modos de pesquisar que constituem, estruturam e singularizam a tradição da Sociologia Urbana Brasileira. Com esta abordagem, trata-se de compreender não somente a formação desse campo de conhecimento à luz da circulação e das trajetórias dos diferentes atores e de suas obras no cenário acadêmico brasileiro, mas também o lugar da Sociologia Urbana no Brasil em relação a outros campos de conhecimento da própria sociologia ou da antropologia (em particular urbana). O projeto de realizar uma “sociologia da sociologia” ou uma antropologia das ciências não é novo. A publicação em 1979 do livro Laboratory Life. The construction of Scientific Facts, de Bruno Latour e Steve Woolgar, anuncia uma agenda de pesquisa voltada para a descrição das ciências a partir de seus bastidores e de seus universos científicos (isto é, etnografando os cientistas). No Brasil, ainda que de forma diferente, os numerosos trabalhos de Lícia Valladares e de sua equipe sobre a história da pesquisa urbana no Brasil, ou ainda, aqueles que elaboram e sistematizam informações referentes à pesquisa urbana (desde as publicações organizadas no âmbito do URBANDATA, no final da década de 1980, às mais recentes sobre “a Escola de Chicago” e sua circulação no Brasil) permitem apreender a construção do “pensamento social-urbano” no interstício das formulações e das problematizações das sociologias urbanas brasileiras com as francesas e norte-americanas. Entre muitas outras, a contribuição dos trabalhos de Lícia Valladares foi ter destacado a presença de temas recorrentes no pensamento urbano brasileiro, os quais acabam caracterizando formas singulares de problematizar essa área no Brasil, mas muitas vezes construídas em zonas de interstício de sociologias brasileiras, francesas e norte-americanas (entre outras) e de circulação de seus pesquisadores no Brasil e em outros países. Partindo dessa ideia, propomos descrever as trajetórias e circulações de protagonistas brasileiros para analisar a dimensão intersticial da Sociologia Urbana brasileira, isto é, a maneira como ela se elabora a partir dos contatos com diversas outras sociologias urbanas, contatos estes que se 
Este artigo tem como objetivo apresentar as primeiras considerações sobre um projeto de sociografia da Sociologia Urbana brasileira. Através da reconstituição das obras e dos perfis dos fundadores e protagonistas deste campo de conhecimento – a partir de suas produções acadêmicas e de um material de entrevistas – buscamos descrever e interpretar as trajetórias, as obras e os modos de pesquisar que constituem, estruturam e singularizam a tradição da Sociologia Urbana Brasileira. Com esta abordagem, trata-se de compreender não somente a formação desse campo de conhecimento à luz da circulação e das trajetórias dos diferentes atores e de suas obras no cenário acadêmico brasileiro, mas também o lugar da Sociologia Urbana no Brasil em relação a outros campos de conhecimento da própria sociologia ou da antropologia (em particular urbana). 
 
O projeto de realizar uma “sociologia da sociologia” ou uma antropologia das ciências não é novo. A publicação em 1979 do livro Laboratory Life. The construction of Scientific Facts, de Bruno Latour e Steve Woolgar, anuncia uma agenda de pesquisa voltada para a descrição das ciências a partir de seus bastidores e de seus universos científicos (isto é, etnografando os cientistas). No Brasil, ainda que de forma diferente, os numerosos trabalhos de Lícia Valladares e de sua equipe sobre a história da pesquisa urbana no Brasil, ou ainda, aqueles que elaboram e sistematizam informações referentes à pesquisa urbana (desde as publicações organizadas no âmbito do URBANDATA, no final da década de 1980, às mais recentes sobre “a Escola de Chicago” e sua circulação no Brasil) permitem apreender a construção do “pensamento social-urbano” no interstício das formulações e das problematizações das sociologias urbanas brasileiras com as francesas e norte-americanas. Entre muitas outras, a contribuição dos trabalhos de Lícia Valladares foi ter destacado a presença de temas recorrentes no pensamento urbano brasileiro, os quais acabam caracterizando formas singulares de problematizar essa área no Brasil, mas muitas vezes construídas em zonas de interstício de sociologias brasileiras, francesas e norte-americanas (entre outras) e de circulação de seus pesquisadores no Brasil e em outros países.
 
Partindo dessa ideia, propomos descrever as trajetórias e circulações de protagonistas brasileiros para analisar a dimensão intersticial da Sociologia Urbana brasileira, isto é, a maneira como ela se elabora a partir dos contatos com diversas outras sociologias urbanas, contatos estes que se tornam constitutivos de um movimento permanente de reapropriação no cerne do processo de construção desse campo científico no país. Por este motivo, torna-se imprescindível tomar como ponto de partida as trajetórias e os pontos de vista particulares dos atores desse campo de conhecimento e cruzá-los com os contextos, obras e outros autores que participam desse processo. Nossa proposta dialoga ainda diretamente com as indagações que norteiam a série Narrativas Urbanas de Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha, que as autoras apresentam como um projeto “fílmico” que retraça o percurso de conformação do pensamento antropológico sobre a cidade moderna brasileira, tendo como foco central a trajetória intelectual de “antropólogos urbanos” no Brasil ao interpretarem a cidade pesquisada. Assim, propõem situar “o personagem do antropólogo a partir de seu lugar de habitante de uma grande metrópole, através do convite para um deslocamento pela narrativa de suas experiências intelectuais e acadêmicas, no tempo e no espaço” (ECKERT e ROCHA, 2009, p.1).
 
Vale destacar que outros autores propuseram analisar a circulação nos meios acadêmicos nacionais de autores americanos, em particular nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Por exemplo, Velho (2002) retrata as vindas de Becker e Goffman ao Rio de Janeiro e destaca que a “presença de Goffman e Becker valorizou a contribuição da ciência social norte-americana para a temática indivíduo e sociedade, através da Escola de Chicago e, especificamente da linha interacionista” e que eles “são hoje autores fundamentais dentro da antropologia que se faz no Brasil, particularmente nos trabalhos voltados para os estudos urbanos e para a temática ampla de indivíduo e sociedade.” (idem, ibid.). Quando Mendoza (2003) analisa a presença da Escola de Chicago em São Paulo e o momento embrionário da Sociologia Urbana paulistana, ele analisa a influência de Pierson nos estudos realizados na década de 1940-1950 e na formação de duas gerações de pesquisadores.
 
Nos casos dos autores acima citados, observa-se que a leitura da influência da Escola de Chicago (e de seus herdeiros) – ou ainda, em outros casos, de outras sociologias americanas – se fundamenta na formação de uma Sociologia Urbana brasileira analisada à luz da vinda de alguns de seus porta-vozes ao Brasil. Esses porta-vozes formam ou tecem relações com “pesquisadores nativos” que se tornam, por sua vez, mediadores dessas sociologias e antropologias de fora para dentro. 
 
Retomando essa proposta e buscando analisar as relações entre a figura do mediador (aqueles que são formados por ou em contato com porta-vozes de “sociologias de fora”) e do tradutor (uma vez posto em contato “ou formado”, o mediador se tornaria uma espécie de tradutor das “sociologias de fora” para “dentro”, isto é, nos contextos acadêmicos nos quais ele se encontra), propomos inserir, nessas abordagens, análises sobre as avaliações pessoais de pesquisadores brasileiros de destaque nessa área como pontos de vista nativos (e começando com pesquisadores acadêmicos atuando no Rio de Janeiro) sobre a presença destes e de outros protagonistas “de fora”. A avaliação desses atores torna-se importante para compreender como esta Sociologia Urbana (certamente como muitas outras) se forma em um processo criativo e dinâmico de trocas recíprocas e de interpretação de outros autores e abordagens. Desta forma, ao analisar a dinâmica da Sociologia Urbana brasileira e, mais especificamente, as influências recíprocas que participam de sua constituição, propomos entender como ela se constitui como uma ciência en train de se faire (LATOUR, 1989), através das formas de explorar e de experimentar outros mundos (científicos, mas, como veremos com nosso primeiro autor, não somente) vizinhos e estranhos, próximos e distantes, o que acaba formando este arranjo denominado Sociologia Urbana. Dessa forma, em vez de buscar a essência deste arranjo, propomos aqui apenas descrever a “feliz bagunça” (op. cit.) deste arranjo científico.  Por este motivo, o presente artigo apresenta-se como um fragmento de um mosaico que procuramos reconstituir, escolhendo dar início a este projeto com a análise da obra de Luiz Antonio Machado da Silva.
 
 
 
'''2. Por que inaugurar este ProJeto coM a traJetória e a obra de Luiz antonio Machado da siLva? '''
 
 

Edição das 17h19min de 28 de outubro de 2019

Autoras: Jussara Freire e Lia de Mattos Rocha.    

1. Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar as primeiras considerações sobre um projeto de sociografia da Sociologia Urbana brasileira. Através da reconstituição das obras e dos perfis dos fundadores e protagonistas deste campo de conhecimento – a partir de suas produções acadêmicas e de um material de entrevistas – buscamos descrever e interpretar as trajetórias, as obras e os modos de pesquisar que constituem, estruturam e singularizam a tradição da Sociologia Urbana Brasileira. Com esta abordagem, trata-se de compreender não somente a formação desse campo de conhecimento à luz da circulação e das trajetórias dos diferentes atores e de suas obras no cenário acadêmico brasileiro, mas também o lugar da Sociologia Urbana no Brasil em relação a outros campos de conhecimento da própria sociologia ou da antropologia (em particular urbana). 

O projeto de realizar uma “sociologia da sociologia” ou uma antropologia das ciências não é novo. A publicação em 1979 do livro Laboratory Life. The construction of Scientific Facts, de Bruno Latour e Steve Woolgar, anuncia uma agenda de pesquisa voltada para a descrição das ciências a partir de seus bastidores e de seus universos científicos (isto é, etnografando os cientistas). No Brasil, ainda que de forma diferente, os numerosos trabalhos de Lícia Valladares e de sua equipe sobre a história da pesquisa urbana no Brasil, ou ainda, aqueles que elaboram e sistematizam informações referentes à pesquisa urbana (desde as publicações organizadas no âmbito do URBANDATA, no final da década de 1980, às mais recentes sobre “a Escola de Chicago” e sua circulação no Brasil) permitem apreender a construção do “pensamento social-urbano” no interstício das formulações e das problematizações das sociologias urbanas brasileiras com as francesas e norte-americanas. Entre muitas outras, a contribuição dos trabalhos de Lícia Valladares foi ter destacado a presença de temas recorrentes no pensamento urbano brasileiro, os quais acabam caracterizando formas singulares de problematizar essa área no Brasil, mas muitas vezes construídas em zonas de interstício de sociologias brasileiras, francesas e norte-americanas (entre outras) e de circulação de seus pesquisadores no Brasil e em outros países.

Partindo dessa ideia, propomos descrever as trajetórias e circulações de protagonistas brasileiros para analisar a dimensão intersticial da Sociologia Urbana brasileira, isto é, a maneira como ela se elabora a partir dos contatos com diversas outras sociologias urbanas, contatos estes que se tornam constitutivos de um movimento permanente de reapropriação no cerne do processo de construção desse campo científico no país. Por este motivo, torna-se imprescindível tomar como ponto de partida as trajetórias e os pontos de vista particulares dos atores desse campo de conhecimento e cruzá-los com os contextos, obras e outros autores que participam desse processo. Nossa proposta dialoga ainda diretamente com as indagações que norteiam a série Narrativas Urbanas de Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha, que as autoras apresentam como um projeto “fílmico” que retraça o percurso de conformação do pensamento antropológico sobre a cidade moderna brasileira, tendo como foco central a trajetória intelectual de “antropólogos urbanos” no Brasil ao interpretarem a cidade pesquisada. Assim, propõem situar “o personagem do antropólogo a partir de seu lugar de habitante de uma grande metrópole, através do convite para um deslocamento pela narrativa de suas experiências intelectuais e acadêmicas, no tempo e no espaço” (ECKERT e ROCHA, 2009, p.1).

Vale destacar que outros autores propuseram analisar a circulação nos meios acadêmicos nacionais de autores americanos, em particular nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Por exemplo, Velho (2002) retrata as vindas de Becker e Goffman ao Rio de Janeiro e destaca que a “presença de Goffman e Becker valorizou a contribuição da ciência social norte-americana para a temática indivíduo e sociedade, através da Escola de Chicago e, especificamente da linha interacionista” e que eles “são hoje autores fundamentais dentro da antropologia que se faz no Brasil, particularmente nos trabalhos voltados para os estudos urbanos e para a temática ampla de indivíduo e sociedade.” (idem, ibid.). Quando Mendoza (2003) analisa a presença da Escola de Chicago em São Paulo e o momento embrionário da Sociologia Urbana paulistana, ele analisa a influência de Pierson nos estudos realizados na década de 1940-1950 e na formação de duas gerações de pesquisadores.

Nos casos dos autores acima citados, observa-se que a leitura da influência da Escola de Chicago (e de seus herdeiros) – ou ainda, em outros casos, de outras sociologias americanas – se fundamenta na formação de uma Sociologia Urbana brasileira analisada à luz da vinda de alguns de seus porta-vozes ao Brasil. Esses porta-vozes formam ou tecem relações com “pesquisadores nativos” que se tornam, por sua vez, mediadores dessas sociologias e antropologias de fora para dentro. 

Retomando essa proposta e buscando analisar as relações entre a figura do mediador (aqueles que são formados por ou em contato com porta-vozes de “sociologias de fora”) e do tradutor (uma vez posto em contato “ou formado”, o mediador se tornaria uma espécie de tradutor das “sociologias de fora” para “dentro”, isto é, nos contextos acadêmicos nos quais ele se encontra), propomos inserir, nessas abordagens, análises sobre as avaliações pessoais de pesquisadores brasileiros de destaque nessa área como pontos de vista nativos (e começando com pesquisadores acadêmicos atuando no Rio de Janeiro) sobre a presença destes e de outros protagonistas “de fora”. A avaliação desses atores torna-se importante para compreender como esta Sociologia Urbana (certamente como muitas outras) se forma em um processo criativo e dinâmico de trocas recíprocas e de interpretação de outros autores e abordagens. Desta forma, ao analisar a dinâmica da Sociologia Urbana brasileira e, mais especificamente, as influências recíprocas que participam de sua constituição, propomos entender como ela se constitui como uma ciência en train de se faire (LATOUR, 1989), através das formas de explorar e de experimentar outros mundos (científicos, mas, como veremos com nosso primeiro autor, não somente) vizinhos e estranhos, próximos e distantes, o que acaba formando este arranjo denominado Sociologia Urbana. Dessa forma, em vez de buscar a essência deste arranjo, propomos aqui apenas descrever a “feliz bagunça” (op. cit.) deste arranjo científico.  Por este motivo, o presente artigo apresenta-se como um fragmento de um mosaico que procuramos reconstituir, escolhendo dar início a este projeto com a análise da obra de Luiz Antonio Machado da Silva.

 

2. Por que inaugurar este ProJeto coM a traJetória e a obra de Luiz antonio Machado da siLva?