Luta Indígena no Contexto Urbano

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Desde o início da invasão colonial a doutrina da guerra justa foi empregada para nos assimilar e apagar nosso pertencimento. Não havia como um milhão de portugueses dominarem apenas pela força algo entre cinco e dez milhões de indígenas que encontraram aqui. Até porque foi um percentual mínimo deles que cruzou o Atlântico. Então a catequese colonial e o apagamento das identidades indígenas sempre foram partes essenciais de seu projeto de dominação. Afinal, se muitos de nós foram trucidados pelas espadas, pelas balas e pelas doenças trazidas pelo colonizador, muito mais foram convencidos a negarem suas ancestralidades originárias e se autodeclararem caboclos, ribeirinhos, mestiços ou pardos.

Este projeto colonial de extermínio do nosso pertencimento étnico foi tão bem sucedido que convenceu muitos de nós que indígenas não representam nem sequer 1% da população do país. Segundo o Censo do IBGE de 2022, apenas 1.693.535 pessoas se reconhecem indígenas no Brasil, o que corresponde a 0,83% da população total do país. E, ainda assim, quase dois terços desse ínfimo percentual vive fora das Terras Indígenas, demarcadas ou em processo de demarcação, quase sempre em situação de vulnerabilidade social, nas periferias dos centros urbanos, sem qualquer acesso às politicas públicas voltadas às pessoas indígenas.

Apesar dos avanços institucionais em nossas lutas, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o surgimento de Secretarias dos Povos Indígenas em diversos Estados e o fato de termos uma indígena à frente da presidência da FUNAI, seguimos ameaçados por ataques brutais que partem do próprio Estado Brasileiro, que segue sob o domínio de uma elite econômica mesquinha, reacionária e inimiga dos povos indígenas.

Exemplos de tais ataques são a paralisia nos processos de demarcação; a aprovação da inconstitucional Lei 14.701/2023 e a tramitação da PEC 48/2023 (do Marco Temporal), que ameaçam inviabilizar novas demarcações e fazer retroceder a situação de territórios já demarcados. Além disso tudo, dados do IBGE de 2022 e do CIMI de 2023 revelam que a mortalidade entre nossas crianças é quase duas vezes e meia maior do que a registrada entre não indígenas; o índice de analfabetismo entre nós é quase quatro vezes maior do que entre o restante da população; a taxa de suicídios entre nós supera em quase três vezes a média nacional; e, só em 2023, registramos nada menos que 208 assassinatos de parentes.

Mas se a situação em geral é alarmante, ela não é menos grave para nós, que nascemos e/ou vivemos fora dos territórios demarcados ou em processo de demarcação, quase sempre invisibilizados nas periferias dos centros urbanos. Embora, segundo o Censo do IBGE de 2022, representemos 63% do total de pessoas indígenas do Brasil, seguimos sendo ignorados pelos governos e pelo próprio movimento indígena institucionalizado. Não temos representantes na ampla maioria dos Fóruns da APIB e de suas entidades de base; nossa presença é boicotada nos espaços formais de interlocução com os governos municipais, estaduais e federal; não conseguimos acessar políticas públicas; e nos vemos forçados a conviver com o permanente questionamento de nosso pertencimento enquanto pessoas indígenas.

Nenhuma outra luta é mais urgente e decisiva para nós do que a luta contra o Marco Temporal e pela demarcação imediata dos mais de 200 territórios indígenas que, segundo a APIB, aguardam sua demarcação pelo Estado Brasileiro. A demarcação é condição necessária, porém, não suficiente para atender as demandas históricas da luta indígena no país. Até porque, territórios demarcados não estão livre de ameaças como as invasões e a violência patrocinadas pelo garimpo, pelo agronegócio e pelo narcotráfico, ou pela falta de acesso à direitos básicos como saúde e educação. Mas a questão indígena vai muito além da dura realidade no interior dos territórios demarcados ou em luta por demarcação. 

Afinal, nunca estivemos restritos aos territórios demarcados e nossas existências jamais estarão reduzidas aos limites territoriais impostos pelas demarcações, sob o risco de submeter nossa luta  legítima pela preservação de nosso estar no mundo originário à lógica autoritária e restritiva dos campos de concentração estipulados pelo colonizador às minorias étnicas nos mais diferentes contextos pelo mundo.

O conceito de território se tornou uma ferramenta fundamental para a resistência indígenas na atualidade, sendo uma forma que encontramos de tentar impor limites aos avanços do colonizador sobre nossos territórios ancestrais. Mas não era assim para nossos ancestrais nômades. Tanto que o termo em tupi antigo para o que hoje se traduz como território é "retama", que não encontra sua raiz etimológica em "yby" (terra/solo), mas em "retá" (multidão/população).

Antes do chão em que pisamos, nossa identidade vem do povo ao qual vinculamos nossa ancestralidade. Daí a necessidade de pensarmos a questão indígena para além dos limites dos territórios demarcados, talvez a partir da apropriação do conceito não indígena de "territorialidade", que designa a forma como um determinado grupo social interage com o território que ocupa. E a importância das nossas lutas pela garantia de acesso à saúde, à educação, ao meio ambiente, à soberania alimentar e à manutenção de nossa história, cultura e pertencimento étnico, mesmo no contexto urbano. Indígena é indígena em qualquer lugar!