Maré e Manguinhos - uma experiência de inovação e mobilização em saúde durante a pandemia (relatório)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Redes da Maré.

Apresentação

Quando o Conexão Saúde – De olho na Covid foi criado, em junho de 2020, a expectativa era de que o projeto durasse quatro, cinco meses, no máximo. Um prognóstico que se mostrou demasiado otimista: a pandemia não só durou muito mais tempo, como desafios, crises e demandas urgentes foram uma constante durante os seus quase dois anos de duração.

Estruturado em dois territórios de favela situados na Zona Norte do Rio de Janeiro, Maré e Manguinhos, o projeto foi marcado pela necessidade de respostas rápidas a problemas que não paravam de aparecer. E assim, de desafio em desafio, repleto de dúvidas, erros, acertos e aprendizados, o projeto foi construído no dia a dia, em um processo coletivo e colaborativo entre pessoas e instituições.

Naquele momento, quando não havia vacina e o número de mortos por covid-19 aumentava, situações-limite exigiam soluções que ainda não existiam. Foi preciso criar respostas eficazes para problemas novos, sem modelos ou precedentes inspiradores e nem tempo a perder.

Esta dinâmica desafiadora, imposta pela realidade, tornou-se uma das principais marcas do projeto e pode ser resumida em uma palavra: INOVAÇÃO. O Conexão Saúde – De Olho na Covid tornou-se inovador por natureza por sua governança participativa, por sua capacidade de apresentar soluções rápidas e customizadas para cada território, a cada momento, e pela agilidade em detectar erros e mudar de rota. INOVAÇÃO E TECNOLOGIA EM SAÚDE A SERVIÇO DOS MORADORES DE FAVELAS

Em todas as ações, o uso de tecnologias demonstrou o aspecto inovador em saúde para o combate à pandemia em territórios de favela e periferias. Testagem molecular, uso de aplicativos na produção e monitoramento de dados, utilização da telessaúde, implantação das cabines de telemedicina, criação de diagnósticos territoriais, invenção do Programa de Isolamento Domiciliar Seguro, introdução de modelo de gestão inovador - reunindo ONGs, academia, setor público e privado - e aplicação de ações inventivas de mobilização e comunicação em um contexto de crise são alguns dos exemplos de tecnologias – digitais e sociais – aplicadas durante o processo.

O projeto, contudo, não pôde dar conta de toda a complexidade do momento. Muitos morreram por covid-19 na Maré e em Manguinhos, escancarando os limites de atuação de uma iniciativa capitaneada pela sociedade civil em um momento de crise sanitária global agravado pela ausência de políticas públicas eficazes – sobretudo para as favelas.

Mas os resultados alcançados, a diminuição drástica no índice de mortes de moradores, as palavras de agradecimento das pessoas atendidas, os pacientes recuperados, o envolvimento e dedicação da equipe e o reconhecimento público do projeto mostram que uma experiência única foi construída e que pode inspirar novas iniciativas em momentos de crise e emergência em saúde nos territórios periféricos.

Sociedade civil e o combate à pandemia

Com a rápida propagação do novo coronavírus, não tardou para que a fome, a perda de renda, o adoecimento, a morte de entes queridos e a incerteza do futuro dominassem o cotidiano dos moradores dos territórios de favela e periferias. A expectativa era de que o Poder Público, em todas as esferas, atuasse para atender às demandas emergenciais que surgiam.

No entanto, sobretudo em territórios vulnerabilizados, o Poder Público tardou a chegar ou simplesmente se ausentou. No vácuo de políticas públicas rápidas e eficazes, projetos e iniciativas de organizações da sociedade civil e coletivos tiveram que dar conta do cenário caótico, suprir emergências e tapar os vazios deixados por governos e autoridades.

Na Maré, a campanha Maré Diz Não ao Coronavírus – mobilizada pela Redes da Maré - distribuía cestas básicas, máscaras caseiras e álcool em gel para moradores, refeições para pessoas em situação de rua e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para profissionais de saúde, além de ações como desinfecção das ruas da favela, em uma iniciativa que visava atender emergências que batiam à porta de todos.

O prolongamento e agravamento da pandemia fez com que o número de casos e óbitos na Maré saltasse a olhos vistos. Ficou claro que seria impossível fazer a longa travessia pelas incertezas que surgiam a cada dia sem articular uma ação mais ampla, focada na saúde da população.

Desta compreensão, aliada a uma relação histórica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - instituição referência em saúde pública no País - com os territórios da Maré e de Manguinhos, foi criado o projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid. A iniciativa, que surgiu de uma ideia ousada e mobilizou as lideranças das organizações para implementá-la em tempo recorde, reuniu diferentes parceiros em uma estratégia em comum: criar um modelo de vigilância em saúde que atendesse os moradores da Maré e de Manguinhos durante a pandemia, especialmente as pessoas diagnosticadas com covid-19.

Inicialmente com financiamento do Instituto Todos pela Saúde, as organizações Fiocruz, Redes da Maré, Dados do Bem, SAS Brasil, Conselho Comunitário de Manguinhos e União Rio se aliaram em uma parceria que rendeu muitos resultados e se tornou referência em atenção e vigilância em saúde e governança de projetos.

Àquela altura, em junho de 2020, os testes eram escassos e a subnotificação de casos em favelas e periferias dificultava a criação de estratégias de combate à doença. Longas filas se formavam nas unidades básicas de saúde e havia a ideia de criar grandes polos de isolamento para as pessoas infectadas.

Com este diagnóstico em mãos, o Conexão Saúde – De Olho na Covid foi concebido a partir do tripé Testagem em massa – Telessaúde – Isolamento Seguro, com o objetivo de dar suporte aos moradores em frentes consideradas fundamentais para o atendimento de pacientes com covid-19.

Não tardou para que outra frente de trabalho ganhasse protagonismo e se juntasse às ações principais: a mobilização e comunicação. Com a propagação de notícias falsas no território, tornou-se urgente esclarecer dúvidas e desmentir fake news que surgiam a cada dia. Era necessário ainda orientar os moradores sobre a gravidade da doença, os cuidados a serem tomados e os serviços oferecidos gratuitamente pelo projeto.

Foi formado um Comitê Gestor que, desde o início, foi desafiado a dar respostas rápidas e soluções eficazes aos muitos e cotidianos problemas e urgências que surgiam durante a implementação e execução do projeto. Reuniões periódicas eram realizadas e foi implementado um modelo inovador de gestão, baseado na autonomia de ação dos parceiros dentro de suas expertises, em decisões ágeis e capacidade de adaptação às muitas mudanças de realidade no curso da pandemia.

Em meio a uma onda negacionista, com movimentos antivacina, falta de dados confiáveis sobre número de casos e óbitos, sobretudo por parte do governo federal, e ausência de políticas públicas à altura da crise sanitária instalada no país, nascia – na Maré e em Manguinhos - uma experiência única de atendimento à saúde de moradores de favelas durante a pandemia.

Conexão Saúde em números

Mais de 600 voluntários em telessaúde, entre profissionais da saúde e estudantes, atuaram na Maré e em Manguinhos.

Premiações

  • 2020 Prêmio Alceu Amoroso Lima de Direitos Humanos Universidade Candido Mendes e Centro Alceu Amoroso Lima pela Liberdade - Pessoas e organizações que se destacam na luta pela justiça, pela paz e pelos direitos humanos.
  • 2020 Prêmio Tech Tudo - App do Ano pelo Voto Popular Site especializado em tecnologia Tech Tudo - O Dados do Bem foi eleito aplicativo destaque de 2020 pela inovação e relevância dos serviços prestados no combate ao coronavírus.
  • 2021 Prêmio Convivs 1º Congresso Virtual de Vigilância em Saúde (Convivs), do Ministério da Saúde - Projetos que se destacaram nacionalmente pelas experiências bem-sucedidas em vigilância em saúde.
  • 2022 Prêmio Empreendedor Social 2021 Jornal Folha de São Paulo - Empreendedores sociais de destaque. O projeto foi premiado pelo trabalho da SAS Brasil durante a pandemia, na categoria Inovação para a Retomada.
Maré e Manguinhos em números
Maré e Manguinhos em números.

Testagem em massa e monitoramento nos territórios

O início do Conexão Saúde – De Olho na Covid se deu com uma ação de vigilância em saúde ancorada na tecnologia inovadora disponibilizada pelo aplicativo Dados do Bem. Por meio de um app baixado no celular, os moradores da Maré e de Manguinhos tiveram acesso a testes gratuitos de covid-19 com resultado online.

A tecnologia, desenvolvida no início da pandemia, possibilitou identificar os moradores infectados e pessoas próximas que também poderiam estar contaminadas, além de reunir dados geolocalizados para acompanhamento da evolução da doença nos dois territórios em tempo real.

Os insumos foram garantidos pela Fiocruz, que intensificou sua capacidade de produção de testes moleculares e ampliou o processamento de diagnósticos, por meio da Unidade de Apoio ao Diagnóstico da Covid-19 (Unadig), disponibilizando materiais e serviços necessários para a implementação da testagem em massa nos dois territórios.

Tudo isso em um momento em que, ao lado da escassez de testes, havia ainda a subnotificação de casos e óbitos – sobretudo na Maré, onde muitos registros de covid-19 eram feitos no bairro de Bonsucesso – o que impedia medir a real dimensão da pandemia entre os moradores do complexo.

No entanto, a realidade não tardou a se impor: muitas pessoas nem sequer tinham celular para baixar o aplicativo. E outras, mesmo possuindo um aparelho, não contavam com memória suficiente ou não acessavam pacotes de dados móveis. Havia ainda as pessoas, sobretudo entre os idosos, que não sabiam utilizar aplicativos.

A necessidade exigiu um trabalho focado no esclarecimento dos moradores sobre como baixar o aplicativo e utilizá-lo. Peças nas redes sociais e instruções no panfleto de apresentação do projeto foram criadas para este fim. O desafio, porém, era grande e garantir o acesso de todos os moradores à testagem exigiu mudança de planos. Na Maré, embora o incentivo ao agendamento prévio continuasse, foi necessário abrir espaço para o atendimento por ordem de chegada – gerando filas em frente à tenda de testagem, no Galpão Ritma, localizado no Parque Maré. Isso em um momento de incertezas e dúvidas sobre a doença e aumento de casos e mortes por covid-19.

A experiência com a testagem em Manguinhos foi muito boa. Eu precisei fazer o teste para voltar ao trabalho e os particulares são muito caros. Então, eu precisei ter essa facilidade, o resultado chegava no celular, eu nem precisava ir até o polo. E toda vez que sentia um sintoma diferente, eu podia realizar o exame.” Carine Lopes, Moradora de Manguinhos.

Mas testar e cuidar imediatamente das pessoas com resultado positivo, por meio de acompanhamento médico, - e, no caso da Maré, orientações para o ingresso no Programa de Isolamento Domiciliar Seguro durante a recuperação - eram as prioridades. Espaçamento entre as pessoas na fila para entrada no Galpão Ritma, uso de máscaras, higienização constante das mãos e superfícies com álcool 70% e evitar aglomerações foram as táticas utilizadas para garantir a testagem em massa.

Responsáveis pela organização das filas que aumentavam a cada dia, os articuladores de campo, em sua maioria moradores da Maré, aproveitavam estes momentos para ouvir necessidades, dúvidas e demandas da população, orientar sobre os demais serviços do Conexão Saúde e fornecer informações seguras sobre prevenção e cuidados. Em Manguinhos, o processo aconteceu de forma semelhante.

Aos poucos, o fluxo para a testagem foi sendo adaptado às necessidades dos moradores e à realidade de cada momento. Outras portas de entrada para o teste foram abertas, por meio de parceria com as unidades básicas de saúde, com encaminhamentos feitos pelos profissionais do SUS no território e pelos atendimentos em telessaúde feitos pela SAS Brasil. Os próprios articuladores também se encarregaram de agendar testes para os moradores por meio de celulares do projeto.

Superado este desafio e com dados inéditos e confiáveis em mãos, o projeto alimentou o banco de dados oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, o Painel Rio Covid, com informações sobre a pandemia nos territórios da Maré e de Manguinhos, colaborando decisivamente para a diminuição de casos subnotificados nestes dois territórios.

Ao longo de todo o projeto, as informações geradas pelo monitoramento epidemiológico subsidiaram o planejamento de ações, logística e agenda de atividades orientaram a definição de prioridades e auxiliaram as estratégias de mobilização e comunicação com os moradores.

No início de 2021, um diagnóstico sobre o alcance dos serviços na Maré apontou que moradores de favelas mais distantes do Centro de Testagem tinham dificuldades em acessar o Galpão Ritma. Assim, no melhor estilo “se o morador não vai até a testagem, a testagem vai até o morador”, foram abertos novos pontos, em abril de 2021, em outras três favelas da Maré: Marcílio Dias, Vila do Pinheiro e Nova Maré. A testagem móvel funcionou durante três meses ininterruptos e não só facilitou o acesso de moradores a este serviço, como ajudou a desafogar o movimento intenso do Galpão Ritma neste período.

O fluxo e procura pelos serviços de testagem se mantiveram altos durante todo o período da pandemia, com picos em momentos críticos como pós férias e festas de final de ano e de surgimento de novas variantes.

O polo de testagem de Manguinhos foi desativado em dezembro de 2021, mas, já em janeiro de 2022, a alta contaminação pela variante Ômicron aliada a um surto de gripe impuseram a criação emergen - cial de novos polos de testagem – desta vez em parceria com a Prefeitura do Rio - nos dois territórios, com curta duração. Por dois meses, um novo polo de testa - gem funcionou na Maré, no Ciep Ministro Gustavo Capanema, além do Galpão Rit - ma. Em Manguinhos o polo funcionou em dois locais: no Centro Comunitário de De - fesa da Cidadania (CCDC) e na Clínica da Família Victor Valla.

O alto índice de vacinação - incentiva - da pela campanha Vacina Maré -, a queda no número de casos e a ausência de óbi - tos na Maré e em Manguinhos a partir de outubro de 2021 aliados ao arrefecimen - to – mas não final – da pandemia fizeram com que parte dos serviços de testagem fossem desativados em março de 2022, juntamente com os demais serviços do Conexão Saúde – De Olho na Covid.

Recuperação em casa, com apoio e orientação

Uma vez testadas e diagnosticadas com covid-19, as pessoas precisavam fazer pelo menos 14 dias de isolamento social, evitando o contágio de familiares, amigos e desconhecidos. Nos primeiros meses da pandemia, centros de acolhimento e isolamento de pacientes com a doença foram vistos como alternativa para o isolamento seguro e chegaram a ser implementados em várias cidades do país.

Equipamentos públicos – como escolas e centros esportivos - da favela de Paraisópolis, em São Paulo, e de bairros de Porto Alegre (RS), João Pessoa (PB), Fortaleza (CE), Maceió (AL), entre outros locais, foram adaptados para receber pacientes com covid-19. Embora este modelo fizesse parte do projeto inicial para o isolamento de pessoas doentes na Maré, a avaliação de que este dispositivo não estava tendo a adesão esperada fez com que outro modelo fosse desenvolvido e implantado no território.

Assim, sem exemplos ou modelos preexistentes, foi criado o Programa de Isola - mento Domiciliar Seguro – uma proposta inovadora e multidisciplinar de atenção à saúde e incentivo à recuperação de pacientes com covid-19 nas favelas, implementada de forma conjunta e cooperada pela Redes da Maré e SAS Brasil.

Após ser testado positivo para covid-19, o paciente era convidado a entrar no Programa. O passo seguinte era o contato com a família, feito por assistentes sociais, para levantamento de informações sobre as condições de moradia, número de moradores, existência de pessoas de grupos de risco, idosos, crianças, situação econômica, estado de saúde etc.

Durante todo o período de isolamento, o paciente e sua família eram acompanhados por uma equipe multidisciplinar, formada por profissionais de saúde e assistentes sociais. Além disso, recebiam alimentação diária (três refeições completas), produtos de higiene e limpeza para a casa, insumos de proteção pessoal (máscara e álcool em gel) e, quando necessário, oxímetro (aparelho para medir a oxigenação do sangue) – além de orientações para manter o distanciamento seguro dos familiares.

Para auxiliar nas orientações sobre cuidados durante o período, foi produzido, com orientação de especialistas da Fiocruz, o Guia do Isolamento Domiciliar Seguro. O material apresentou, de forma ilustrada e didática, dicas sobre como preparar e servir refeições, organizar os cômodos, limpar a casa e higienizar as roupas da pessoa acometida pela doença, entre outros cuidados e práticas de proteção aos demais membros da família.

A parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS) garantiu que as clínicas da família do território também encaminhassem pessoas testadas positivas para o programa, otimizando e unificando esforços para assegurar o acesso dos moradores ao isolamento seguro. Ao final do programa, que atendeu mais de 1.400 pessoas entre agosto de 2020 e março de 2022, foi constatado - a partir de um questionário de avaliação aplicado aos participantes - que 98% dos pacientes conseguiram manter o isolamento por pelo menos 14 dias.

Os frequentes momentos de entrega das refeições e insumos para os moradores logo se mostraram preciosos para entender as dinâmicas, dúvidas e necessidades das famílias atendidas e também de seus vizinhos. Assim, com uma equipe de articuladores formada majoritariamente por moradores da Maré, o programa se consolidou como uma potente frente de escuta e coleta de impressões e necessidades do território em tempo real e é hoje apontado como uma inovadora tecnologia social em saúde para o isolamento de pacientes com doenças como a covid-19.

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