Moradia

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Texto: Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Moradia

São variados os tipos de moradia humana. De maneira ampla moradia como conceito pode ser entendido como um lugar de vivência compartilhada no tempo e no espaço entre pessoas com maior ou menor grau de afinidade entre si. A ideia de moradia carrega consigo a busca pela mínima estabilidade do habitar, do morar construído fixado ao solo, da casa que protege e abriga materialmente. É o lugar no espaço onde as rotinas de vida são compartilhadas e os compromissos sob ordenamentos sociais – sejam eles formais e/ou informais – se estabelecem. É o lugar onde as pessoas negociam e transitam entre relações de parceria e dominação, de cooperação e exploração, de verdades e mentiras, de fidelidade e traição, de expectativas e decepções, de amor incondicional e ódio visceral. Um lugar de vida.

Moradia é o fazer cotidiano. O lugar onde seus viventes exercitam as experiências do dia-a-dia sob condições materiais e simbólicas específicas que as situam dentro de um conjunto normativo interpretativo a respeito de quem elas são no mundo. Em cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, a moradia tornou-se a expressão visível das desigualdades econômicas e sociais por meio do tipo de construção da casa e do local da residência dos quais se faz uso para existir no espaço urbano. Da mesma forma expõe as representações sociais ora valorizadas, ora estigmatizadas, resultantes das relações sociais estruturadas pelo sistema de mercado na produção do espaço social[1]. Morar é estar no mundo.

Morar é praticar as rotinas do cotidiano utilizando-se, mesmo que de maneira parcial, da infraestrutura disponível. Se movimentar e circular na cidade por meio dos transportes públicos e dos veículos particulares, acessar os diferentes equipamentos públicos e instituições privadas que ofertam serviços como hospitais, escolas, creches, parques, praças. Morar significa ter condições mínimas para adquirir bens de consumo como a vestimenta, a alimentação e o lazer próprios e dos seus pelos quais é responsável – filhos, idosos e quaisquer que estejam sob dependência econômica e afetiva direta dentro de uma mesma construção residencial. Significa complementarmente a garantia da possibilidade de recorrer as instituições do Estado democrático de direito quando seus direitos estiverem em risco ou já violados. De uma maneira mais ampla exercer o papel de cidadão e consumidor ao mesmo tempo. Usar o que há de disponível de recursos para que as necessidades básicas e complexas sejam atendidas de maneira satisfatória. Assim, a moradia pressupõe a preservação da construção física da casa ou do local definido como morada, da mesma forma o bem estar das pessoas que nela coabitam. Morar é a prática da existência.

No entanto, tais condições não estão garantidas, mesmo contidas como um direito no art. 6º da Constituição Federal de 1988[2]. Pelo contrário. A moradia no Brasil tem resultado de um longo processo histórico de disputas, acordos e conflitos, em que pesem as desigualdades socioeconômicas e a posição social das pessoas, em torno dos espaços urbanos para a fixação, provisória e/ou permanente, no solo. Da complexa disputa entre não-proprietários[3] e proprietários de terras e imóveis nos centros urbanos e no campo tem se instituído mecanismos diferenciados para a aquisição de imóveis para a moradia. O resultado dessa dinâmica pautada majoritariamente pelas regras do mercado imobiliário – a moradia como produto industrial e meio para especulação financeira – é a exclusão de milhares de pessoas do acesso a moradia que passam a viver na condição de “sem-teto”. De acordo com dados da Fundação João Pinheiro publicado em 2013[4], há um déficit habitacional quantitativo no Brasil de 6.940.691 famílias, o que corresponde a cerca de 22 milhões de pessoas sem casa, ou seja, 10% da população do país.

Assim, a partir dessas relações de produção da vida cotidiana constitui-se um modo de vida[5] que condiciona para um tipo de existência no mundo compartilhado entre pessoas situadas em um mesmo estrato social e local de vivência. Passam a se configurar espaços mais ou menos valorizados a partir do perfil de seus moradores – áreas consideradas nobres e outras precarizadas. Desses entendimentos desdobram-se processos estruturantes de segregação socioespacial. Os espaços urbanos segregados materializam um tipo de organização desigual da moradia nas cidades. Entre pessoas de classes sociais mais altas percebe-se – quase que de maneira natural – a moradia imbuída de todo o aparato material e simbólico para o pleno exercício da cidadania. A medida em que as pessoas passam a se enquadrar em estratos sociais mais baixos, esse aparato torna-se mais precário e as possibilidades de exercício da cidadania mais fragilizadas, ao ponto de ter sua integridade física e moral sob intensa ameaça. As favelas e as periferias brasileiras expõem cotidianamente a maneira desigual com que as leituras do poder público e os acessos ao bens e serviços são pormenorizados – os indicadores de violência atestam essa afirmativa cotidianamente. Por outro lado, bairros e conglomerados residenciais de média e alta classe média seguem como ideal a ser alcançado na sociedade de consumo.

A moradia de uma maneira mais ampla deve possibilitar uma estrutura capaz de fomentar as relações entre o mundo interno da casa, com todos os desejos e necessidades que formam as bases das relações entre pessoas que coabitam um mesmo espaço da casa, e a externalidade dos acessos ao atendimento dessas demandas do cotidiano. Trabalho e geração de renda, educação e formação profissional, reconhecimento da legitimidade do morar sem que esteja condicionada a uma configuração jurídico-legal da propriedade, o ir e vir, são elementos centrais, condições básicas para a regularidade da residência. Quanto mais distante desses acessos, mais comprometidas ficam as possibilidades de permanência da moradia.

 

Moradia: casa, lar, habitação popular

É recorrente nos estudos sobre moradia a mobilização de alguns termos quando se busca apresentar, compreender e explicar o lugar de vivência das pessoas. Como escrito acima a moradia estaria no âmbito do lugar, do núcleo de coabitação afetiva e efetiva articulado entre o “dentro” e o “fora” da casa, o espaço circundante e formador da realidade vivida. O lar, por outro lado, pode ser compreendido como o lugar da vivência interior, das relações afetivas que formam a origem, os sentidos da existência entre familiares e pessoas que compartilham de certa intimidade da vivência. Ou, até mesmo, o passado no mundo, a “casa natal”, onde “na profundidade extrema do devaneio, participa-se desse calor primeiro, dessa matéria bem temperada do paraíso material... ambiente que vivem os seres protetores”[6]. A “moradia” e o “lar” seriam assim duas das dimensões do que se pode entender como “casa”. A casa exprime a concretude da existência de um lar ao mesmo tempo que está na fronteira simbólica do público e do privado da moradia. A casa denota um lugar no mundo, um tipo existência na habitação (no sentido do ser presente e atuante no lugar) e uma forma de construção do espaço habitado ao redor. A casa é o limiar entre a circulação e a imobilidade de sua representação física no espaço. É ela quem possibilita partirmos de um lugar para qualquer outro. Uma referência, o lugar de onde se vem e pra onde se vai.

Quando se mobiliza o termo “habitação” refere-se também ao lugar da casa, mas, no seu sentido mais frio, material, estrutural e pragmático. Recorrentemente, o termo é utilizado como chave para analisar – tanto na academia quanto na burocracia estatal – o conteúdo normativo que abrange os projetos institucionais e do mercado imobiliário de construção de residências para as classes médias e populares. Estão dentro desse escopo, por exemplo, os projetos de casas em vilas operárias construídas pelas indústrias para seus funcionários desde meados do século XIX. No entanto, foram os programas governamentais dos últimos 80 anos que estruturaram a ideia de “habitação popular” para trabalhadores e classes populares. Ora sob o viés explícito da higienização, da remoção das favelas e reordenamento urbano, ora sob a perspectiva da inclusão social e formalização da propriedade privada, as “políticas de habitação” tornaram-se poderosos instrumentos burocráticos para o incremento mercantil da produção capitalista da moradia. Em outra chave, mas de maneira complementar, as políticas de habitação também serviram como mecanismo de controle, cooptação, alienação e disciplinarização das classes populares, tanto em períodos de regimes políticos ditatoriais, quanto no recente período democrático[7]. De uma forma geral, os estudiosos do tema apontam para o caráter distinto dessas políticas ao longo tempo, mas indicam certa complementariedade de seus conteúdos e propósitos finais.

A habitação dosParques Proletários Provisórios (PPP), instituídos pelo Estado Novo (1930-1945), foram os primeiros a materializarem a institucionalização das política de Estado de caráter “pedagógico” na política de habitação. Tinham como princípio central fomentar um “processo civilizatório” de pobres, favelados e despossuídos, moralizando o morar por meio de regras rígidas de comportamento e rotinas pré-definidas para as famílias. Diferente dos PPPs, os conjuntos habitacionais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) foram implementados a partir da década de 1940 como instrumentos de acesso moradia condicionando a aquisição dos imóveis a necessidade de formalização do novos proletários no mundo do trabalho. Para obter o financiamento dos institutos era necessária a comprovação da formalidade do trabalho via carteira profissional (CTPS). Somente os trabalhadores formais tinham a possibilidade de adquirir suas unidades habitacionais.

Mais tarde, nos anos de 1960, com a criação da Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM), o Sistema Financeiro de Habitação e Banco Nacional de Habitação (SFH/BNH), a Companhia de Habitação Popular (COHAB) e o financiamento do governo norte-americano (USAID), diversos conjuntos habitacionais populares foram construídos pela cidade, principalmente nas zonas norte e oeste do Rio, cujo o objetivo era erradicar as favelas do centro e zona sul, áreas mais nobres e há muito almejadas pelo mercado imobiliário. Políticas de remoção foram a marca do período em que esteve em vigência um regime ditatorial de caráter civil-militar (1964-1985) no país. As políticas institucionais de remoção perduraram até meados dos anos de 1970, quando as políticas de urbanização de favelas e as mobilizações comunitárias em torno dos mutirões para a construção de casas – que resultou inclusive na fundação da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) – passou a ditar o rumo que as políticas de habitação teriam a partir do processo de redemocratização do Brasil. Cabe aqui ressaltar a importância do grupo QUADRA, integrado pelo arquiteto e professor Carlos Nelson Ferreira do Santos[8], em parceria com a Companhia de Desenvolvimento de Comunidade (CODESCO) como ponto de inflexão enquanto experiência paradigmática do processo participativo de urbanização em espaços informais em um contexto onde o que predominava era a lógica de remoção de favelas[9]. Com o fim do BNH e a suspensão quase total desses programas nos anos de 1980 e 1990, somente nos últimos 15 anos, programas como o “Minha Casa, Minha Vida”, “PAC Favelas” e “Morar Carioca” trouxeram novamente para o debate a questão das moradias populares como meio propulsor de desenvolvimento econômico e inserção das classes populares no mercado consumidor.

 

Moradia nas favelas

As moradias nas favelas constituiram-se em um processo marcado pelas desigualdades econômicas e socioestruturais da sociedade brasileira. As ocupações nos morros e espaços periféricos no Rio de Janeiro ocorreram sob forte influência das sucessivas reformas urbanas no centro da cidade que marcaram o início do século XX e pelo intenso processo de urbanização e industrialização dos subúrbios que desenvolveu-se por toda primeira metade desse mesmo século. Os morros localizados na região do Centro comercial da cidade e nos bairros mais próximos foram os primeiros locais a serem ocupados para a moradia, majoritariamente pela população negra. Mais tarde esse perfil se diversificou com a chegada de trabalhadores nordestinos e de outros estados da região sudeste – como Minas Gerais e Espírito Santo.

Nos subúrbios cariocas, anteriormente caracterizados pelo ar bucólico das grandes fazendas e chácaras, as favelas também surgiram e se expandiram ao longo de todo o século XX. As moradias populares nessa região resultaram de um conjunto de fatores sociais, econômicos e ideológicos que desencadearam um contínuo movimento de povoamento e permanência na região, como por exemplo: a crise habitacional que se instaura na cidade devido ao rápido crescimento populacional provocado pelos efeitos da abolição da escravatura e da intensa migração de estrangeiros; os incentivos econômicos dados pelos governos do período à iniciativa privada para a construção das primeiras “vilas operárias”; o forte impulso gerado pelas instalações das primeiras fábricas da região; a expansão da rede de transporte ferroviário; e a enorme oferta de terrenos baratos e vendidos a prazo para as classes trabalhadoras, o que denota a constituição de um vultuoso mercado imobiliário na região[10].

Em um país profundamente desigual econômica e socialmente como o Brasil, a representação social da moradia ganhou significados distintos, tanto em seu acesso e aquisição, quanto na garantia legal e simbólica de sua permanência como espaço de vivência. Para grupos sociais historicamente subalternizados o próprio morar ainda revela-se como ato de resistência para continuar existindo no mundo. A construção representativa sobre a moradia na favela foi, e continua sendo, recorrentemente, feita em tom de efemeridade. Há pelo menos um século, entendida como lugar homogêneo da pobreza e das ausências, a “casa na favela” foi interpretada por agentes públicos e privados como lugar provisório, de transição, como uma doença no tecido urbano[11]. A conservação das construções residenciais e o bem-estar de seus moradores ainda encontram-se ameaçados pelo discurso reiterado da ilegalidade e da marginalidade, que valida por meio da aprovação do senso comum o regime de violência física e simbólica por parte das representações estatais – principalmente pela polícia militar – contra os moradores de favela. Nesse cenário, o que parecia ser obviamente um valor humano, como o direito de existir, torna-se uma reivindicação elementar, principalmente nesse momento de vitória eleitoral de grupos políticos de extrema-direita e a tomada dos principais postos de comando político e burocrático do país. Suas interpretações racistas têm se mostrado radicalmente intolerante quanto a própria existência da população pobre e negra das favelas.

Nos estudos urbanos há o consenso sobre a diversidade que compõe o tecido urbano das favelas na cidade. Cada favela na cidade possui suas narrativas de fundação, suas dinâmicas econômicas, suas relações de poder que caracterizam um dado território. Da mesma forma, já não se pode falar em um tipo único de moradia, mas, moradias. Vistas a olhos nus, as casas nos morros e nas favelas planas dialeticamente se contrapõem entre si, internamente, evidenciando as diferenças econômicas e sociais que existem dentro do próprio grupo comunitário. Essa diversidade visível do morar está exposta tanto nos variados tipos de construção arquitetônica – são casas de dois, três andares, pequenos prédios, barracos de estuque, casas de alvenaria com e sem embolso, apartamentos condominiais, vilas etc. – como nos próprios modos de vida e valores que estruturam o cotidiano desses espaços da cidade. Para fora dos limites territoriais das favelas, tal dialética da moradia se mostra mais evidente e nítida quando opostas aos condomínios de luxo da Barra da Tijuca e os aglomerados prediais da zona sul do Rio de Janeiro.

Nos últimos 40 anos, a constituição não só da moradia na favela, mas como do próprio espaço social em que eles se conformam, tem sido radicalmente afetada pelos efeitos de dois processos sócio-históricos que paulatinamente se interconectaram e tem ordenado esses espaços: o processo de ocupação informal e a mercantilização dos espaços vazios[12] da cidade por meio de grilagem e negociações de caráter pessoal informal; e a consolidação de um ordenamento socioespacial exercido por grupos armados que em alguns territórios se estabelecem fundamentalmente por meio do controle da venda do varejo de drogas na favela – o “tráfico” – e em outros por meio da venda de serviços privados de segurança local, o comércio de produtos contrabandeados e/ou falsificados como botijão de gás, TV por assinatura e a grilagem e o loteamento de terras em regiões periféricas da cidade, entre outras mercadorias políticas – as “milícias”.

Por outro lado, saindo da chave da violência e das relações de dominação entre grupos de poder assimétricos, morar na favela também tem significado no imaginário social da cidade viver de maneira simples, solidária e alegre, tendo nas expressões culturais da diáspora negra no Brasil sua maior fonte de inspiração e representação social. Das relações de amizade e solidariedade entre vizinhos nos momentos de falta e de dificuldade, que em muitos casos oriundam da mesma linhagem familiar, dos jogos infantis de rua como a pipa no céu, a bola de gude, o pião e o futebol nos campos de várzea, das rodas de samba aos bailes funks dos finais de semana, das cadeiras de praia nas calçadas recentemente asfaltadas pelos programas governamentais de urbanização. Cabe ressaltar ainda os diversos coletivos e organizações locais de comunicação e defesa dos direitos humanos que surgiram nos últimos anos e que tem contribuído de maneira crucial para a ressignificação dos olhares sobre favelas e periferias, e complexificado o debate sobre o que se entende a respeito da produção de conhecimento local pelos e para os próprios moradores.

Todo esse cenário faz da vida cotidiana na favelas, ou seja, o morar, o resultado de uma disputa narrativa sobre o que é morar e viver nas favelas. Essa disputa hermenêutica sobre a moradia nesses espaços passa pelo entendimento sobre quem são seus moradores e quais direitos são inalienáveis, independente do conteúdo jurídico que normatiza e regula as propriedades privadas. Morar está para além da posse, da propriedade privada. Morar é um direito à cidade[13], um direito de existir no mundo, e é esse direito que está em cheque no país para milhões de pessoas que encontram-se em situação de precariedade.

Como defesa, pode-se afirmar que a permanência no tempo dos espaços de moradia em favelas apontam para a necessária reflexão sobre seu processo de “consolidação” como espaço de vivência e experiências comunitárias na cidade contemporânea[14]. Considerar a favela como espaço de moradia consolidada implica remontar e reconhecer sua legitimidade histórica como forma social (...) como processo espaço-temporal, atravessado por relações de poder que se (re)produzem em diversas escalas. A consolidação ocorre a partir de um novo olhar sobre esses espaços no corpo da cidade: da necessidade de remoção à emergência pela sua urbanização. A mudança de paradigmas das políticas governamentais fundamentadas na remoção para programas que visam à ‘integração’ da favela à cidade dita ‘formal’ pode ser lida como a história da passagem do ‘barraco’ de estuque a casa de alvenaria[15], reafirmando seu lugar de vida permanente no espaço urbano.

 

Moradias e seguranças

A moradia está intimamente relacionada com a ideia de segurança. Desde o princípio, a humanidade buscou locais onde pudesse se abrigar e se proteger de eventos naturais ou de inimigos predadores que colocassem a vida sob risco de morte. Na modernidade, esse elemento ontológico constitutivo da sociabilidade configura-se como a possibilidade para se organizar as relações sociais de maneira rotinizada em um mundo marcado pelo medo, a fragmentação das individualidades e o desencaixe das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação em extensões indefinida no tempo-espaço[16].

Em estudos recentes sobre a moradia nas favelas do Rio de Janeiro, a partir de narrativas de pessoas removidas dos morros e realocadas para conjuntos habitacionais do PAC-Favelas e o Programa Minha Casa, Minha Vida[17], evidenciou-se que a ideia de segurança esteve presente nas falas e expectativas em torno das novas moradias oferecidas como indenização por parte dos governos. Dentro dessa chave da segurança, três dimensões dessa ideia foram recorrentemente mobilizadas discursivamente, tanto pelos gestores públicos, quanto pelos moradores, como justificativa para a implementação dos processos de remoção e a aceitação das ofertas de indenização por meio das unidades habitacionais: a segurança jurídica; a segurança material; e a segurança espacial.

A primeira estaria relacionada com a ideia de legitimidade jurídica da propriedade privada, ou seja, a dimensão da garantia formal da residência. Essa segurança estaria relacionada tanto com as expectativas em torno do valor de uso da casa, quanto com o valor de troca do imóvel. Sobre o valor de uso, o princípio é assegurar minimamente a permanência das pessoas em seus lugares de moradia ao longo do tempo por meio do direito de propriedade. Esse tipo de segurança possibilitaria às pessoas o planejamento de suas vidas de maneira mais regular a partir da estabilidade do endereço, ao mesmo tempo que não estaria submetida à lógica do mercado de aluguéis, volátil em momentos de valorização simbólica e financeira das terras urbanas. Por outro lado, a segurança jurídica auxiliaria não só na defesa sobre o direito de uso e venda do imóvel, como permitiria que as pessoas se resguardassem legalmente quanto aos limites das operações policiais – como nos casos de abusos de autoridade e da força institucional-legal sobre os limites jurídicos dessas intervenções militares dentro das propriedades privadas regulares – e das chamadas “políticas de urbanização”, garantindo aos proprietários o direito a indenizações por parte do poder público em caso de remoção.

Sobre o valor de troca, a segurança jurídica garantiria a possibilidade de negociação dentro do mercado formal de imóveis, tornando mais rentável e estável os contratos para locação e de compra e venda. Morar em um apartamento do programa Minha Casa, Minha Vida insere o imóvel em um espaço de negociação que as casas construídas nos morros sem reconhecimento cartorial não participam. Almejada por pessoas que, ao longo de suas vidas, moraram em casas sob condições de informalidade, sem qualquer tipo de título de propriedade ou posse, ou somente com reconhecimento local das declarações de propriedade concedidas por associações de moradores, muitas vezes, questionados até mesmo em disputas locais, o título de propriedade do imóvel está constantemente na lista dos desejos fomentadas pelas inseguranças cotidianas da moradia na favela. No entanto, esse tipo de legalização da propriedade em conjunto com intervenções urbanísticas abrem o caminho para a especulação imobiliária e os processos de gentrificação (quando a formalização aumenta o custo de vida local e resulta na saída compulsória do proprietários de seus locais de moradia) promovidas tanto por agentes estatais quanto do mercado de imóveis.

A segunda, a “segurança material”, estaria relacionada tanto com as condições materiais de existência na vida cotidiana, quanto de manutenção e preservação da residência em si. Sobre as condições de existência aqui estão as expectativas quanto as possibilidades de acesso mais facilitado aos bens e serviços da cidade, bem como o acesso ao mercado de trabalho, seja ele formal ou informal. No caso do trabalho formal, uma casa “segura” materialmente possibilitaria ao seu morador ter maior previsibilidade de retorno para o descanso em seus trajetos diários. Na informalidade do trabalho, uma casa com estrutura de construção mais rígida possibilita sua utilização para outros fins, além da residência estrita. Como é comum em casas nas favelas e nos subúrbios, estas também são utilizadas como meio de geração de renda, como a instalação de “biroscas”, “mercadinhos” e outras formas de comércio, criando uma dinâmica mais complexa no cotidiano da moradia[18]. Ao mesmo tempo uma casa bem estruturada fisicamente também evitaria ou diminuiria as possibilidades de desabamento/deslizamento em momentos de chuva forte e intensa, situação recorrente em morros e áreas periféricas da cidade[19]. Morar em um conjunto residencial altera substancialmente as percepções sobre a segurança material da casa.

Por último, a “segurança espacial”, refere-se ao espaço vivido, o território compartilhado e construído na relação entre moradores, lideranças comunitárias e agentes estatais. Com a construção dos conjuntos residenciais e a propaganda da moradia do tipo “condomínio de classe média”[20] as pessoas passaram a vislumbrar um modelo de segurança da moradia e proteção da vida suportado pelo modo de vida condominial, este alicerçado por um conjunto de normas, equipamentos e tecnologias – muros, grades, guaritas, seguranças privados, câmeras etc. – capazes de afastá-los do perigo do lado de fora – invasões de propriedade, furtos e comércio de drogas ilegais. Do mesmo modo, ter segurança no espaço vivido é de algum modo estar mais distante do que se considera o “mundo do crime”[21], ou seja, um universo permeado por leituras estigmatizantes das pessoas que praticam cotidianamente ações em dissonância com as leis vigentes. Estar fora ou longe desses espaços geraria uma certa “limpeza moral” daqueles que de forma distanciada procuram demonstrar publicamente que não estão diretamente associadas ao “mundo do crime”.

Do mesmo modo, estar seguro é também perceber-se distante ou fora das áreas onde as pessoas permanecem com armas em punho transitando pelos espaços públicos, sejam elas operadores do mercado varejista de drogas – o “tráfico” –, grupos paramilitares – as “milícias” –, como policiais em suas rondas diárias em becos e vielas das favelas. Consequentemente, morar em um local sem o convívio diário com os confrontos armados (tiroteios) entre esses agentes torna-se um bem almejado pela incansável busca pela sensação de segurança gerada pela estabilidade da paz na vida cotidiana. Uma paz que possibilite a fala e a participação comunitária que não esteja atravessada por uma sociabilidade violenta[22] onde quem tem voz e decide é quem impõem-se por meio do exercício do medo e da opressão. Uma paz que seja minimamente pautada por valores republicanos e democráticos.

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. KOWARICK, L. A Espoliação Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
  2. http://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_17.03.2015/art_6_.asp. Acesso em 29/03/2019.
  3. A utilização do termo “não proprietários” busca uma maior abrangência das representações de trabalhadores formais ou informais, estes os que não dispõem dos meios de produção da mais-valia.
  4. BOULOS, Guilherme. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. 4ªed. São Paulo (SP): Autonomia literária. 2015.
  5. MARX, K. A ideologia alemã. Editora Hucitec, 10ª ed. São Paulo, 1996.
  6. BACHELARD, Gaston. 1994. “Introduction”, “The house. From cellar to garret. The significance of the hut”. In: __________. The Poetics of Space. Boston: Beacon Press. [pp. xv-xxxix; 3 – 38). p. 202.
  7. CONCEIÇÃO, Wellington da Silva.
Minha casa, suas regras, meus projetos: gestão, disciplina e resistências nos condomínios populares do PAC e MCMV no Rio de Janeiro/ Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Sociais. 2016. 280 f.
  8. FERREIRA DOS SANTOS, Carlos Nelson. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1981.
  9. http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1565.
  10. FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O rapto ideológico da categoria subúrbio: Rio de Janeiro 1858/1945. Rio de Janeiro. Apicuri, 2011. p.184.
  11. VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se Uma Casa: análise do programa de remoções de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1978.
  12. MENEGUELLO, Cristina. “Espaços e vazios urbanos”. In: Plural de cidade: léxico e culturas urbanas. Org. Carlos Fortuna, Rogério Proença Leite. (CES) Coimbra, Portugal. Setembro, 2009. pp 127-138.
  13. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.
  14. CAVALCANTI, Mariana.
  15. CAVALCANTI, Mariana.
  16. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Editora Unesp. São Paulo, 1991.
  17. OLIVEIRA, Bruno Coutinho de Souza.
“Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão !”: uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro / Bruno Coutinho de Souza Oliveira.Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos. Rio de Janeiro: UERJ/IESP, 2018. 254 f.
  18. MOTTA, Eugênia. “Houses and economy in the favela”. in: Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, v. 11, n. 1.January to June 2014. Brasília, ABA. P. 118-158.
  19. CUNHA, M et al. “O desastre no cotidiano da favela: reflexões a partir de três casos no Rio de Janeiro”. O Social em questão. Ano XVIII, n.º 33. Departamento de Serviço Social. PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2015.
  20. O economista da Fundação Getúlio Vargas Marcelo Neri cunhou o termo “nova classe média” (2012), para caracterizar a população de baixa renda que ascende economicamente no período dos governos do Partido do Trabalhadores (PT), especificamente, nos governos do presidente Lula (2003-2010). Foi utilizado recorrentemente como sinônimo de inclusão e ascensão social doa mais pobres.
  21. GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da Vida no Crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas / Carolina Christoph Grillo – Tese (Doutorado em Ciências Humanas – Antropologia Cultural) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2013. 280 p.
  22. MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio..“Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, jan/jun. 2004a.