Morro de Favela: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
(O Rio de Janeiro foi palco dos primeiros anos intensos da República, tanto nas agitações populares quanto na força repressiva do Estado. Com as reformas urbanísticas, os cortiços foram demolidos e a população preta e pobre que moravam nestas habitações sofreram o processo de afastamento da área central do Rio de Janeiro. É neste momento que ocorre a periferização habitacional e o surgimento das primeiras favelas. Palavras-chave: Morro, Habitação, Classes Perigosas, República)
(O Rio de Janeiro foi palco dos primeiros anos intensos da República, tanto nas agitações populares quanto na força repressiva do Estado. Com as reformas urbanísticas, os cortiços foram demolidos e a população preta e pobre que moravam nestas habitações sofreram o processo de afastamento da área central do Rio de Janeiro. É neste momento que ocorre a periferização habitacional e o surgimento das primeiras favelas. Palavras-chave: Morro, Habitação, Classes Perigosas, República)
 
(Sem diferença)

Edição atual tal como às 18h40min de 15 de abril de 2024

O Rio de Janeiro era a cidade de maior agitação sociocultural nos primeiros anos do século XX; as grandes modificações foram experimentadas aqui primeiramente. A República e o fim da escravidão impactaram diretamente a estrutura da cidade, tanto geograficamente, quanto no aspecto populacional. A chegada de imigrantes e o êxodo de libertos das fazendas cafeeiras aumentaram o número populacional e o número de desempregados ou não assalariados, acirrando a crise habitacional. As reformas urbanas e a política higienista dos primeiros anos da república, são fatores principais para entender a relação repressiva do Estado com a população preta, parda e pobre.

A cidade vivia problemas antigos no início da república como a falta de saneamento, abastecimento de água e higiene. Os surtos epidêmicos de varíola, febre amarela, tuberculose e malária, elevaram a taxa de mortalidade. A política de encilhamento afundou a economia, o aumento de impostos e a inflação levou ao aumento dos preços, e ao encarecimento do custo de vida. Os conflitos políticos, as combustões populares na derrubada dos cortiços, revolta da vacina e reforma urbanística. Constituíram o grande caldeirão de acontecimentos históricos que o Rio de Janeiro vivenciou como plano de fundo.

Na última década do século XIX o maior cortiço do Rio de Janeiro foi demolido, o cabeça de porco. A sua derrubada contou com um grande aparato policial e aclamação da imprensa. A queda desse cortiço famoso fez parte do processo de caçada a esse tipo de moradia, que abrigavam os mais pobres. Os cortiços tinham grande relevância na luta dos escravizados pela sua liberdade. Por fim, nos cortiços era uma decisão política, afastando a memória recente dos movimentos urbanos, expulsando pobres, pardos e pretos das áreas centrais da cidade. O número de cortiços aumentaram junto dos números de alforriados, eram conhecidos como habitações de escravos fugitivos e escravizados que viviam sobre si. A perseguição a esse tipo de moradia ganhou mais fôlego nos primeiros anos da república, ganhando justificativas higienistas e a grande reforma na avenida central.

O pensamento republicano almejava uma posição de destaque para o Brasil na economia mundial porque seguia modelos de sociedades europeias e o que era considerado o mais civilizado na época. Para se enquadrar como uma sociedade forte, burguesa e urbanizada, tomou medidas repressivas contra o seu próprio povo.

A publicação da regulamentação para aplicação obrigatória da vacina contra a varíola inflamou a revolta popular, dando origem à revolta da vacina em 1904. Conspirações políticas e da tentativa de um golpe militar, também pairavam no cenário de caos, juntando com a insatisfação popular. O desgosto pelo autoritarismo do governo inflamou as manifestações populares, transformando a parte central da cidade em uma zona de guerra. As forças militares foram convocadas, já que a polícia não dava conta de reprimir a multidão, sendo atacados com paus e pedras. Entre mortos e feridos, os presos pela revolta da vacina passaram pela Ilha das Cobras, até sua estadia definitiva no Acre. A região central da cidade virou um canteiro de obras, e o material daquela reforma servia de armamento para aquela população consternada e insatisfeita com a subjugação do governo. O projeto de obras da Avenida Central foi pensado também como a reforma de Paris. Abrir grandes avenidas eliminando becos e vielas onde a população poderia se esconder durante motins e revoltas populares. Pereira Passos esteve em Paris na época das obras, trazendo a estratégia política parisiense para o Rio de Janeiro. A reforma do prefeito estava além de trazer a modernidade para esse espaço urbano. Para a gestão administrativa da cidade e para a elite era necessário o afastamento definitivo do que eles consideravam escusos. A reforma comprimia diretamente aqueles que eram taxados como classes perigosas, trabalhadores pobres e desempregados. Que tiveram não só a sua habitação como os seus hábitos afetados, por uma moral civilizadora burguesa. A derrubada dos cortiços, a revolta da vacina e a reforma de Pereira Passos estão fundidas como uma única forma de repressão aos mais pobres.

A primeira favela carioca

A população que vivia nos cortiços e na área mais central da cidade que passou pela grande reforma foi empurrada para as zonas periféricas e para as primeiras favelas cariocas, ocupando lugares adversos com barracos de madeira e sem acesso às necessidades básicas. Causando um efeito adverso para aqueles que projetaram a cosmopolidade da Paris dos trópicos, o projeto foi atravessado pelo crescimento das favelas na área urbana.

Por meio de uma notícia no Jornal do Commercio em 1907 é possível compreender como os morros e seus moradores eram descritos de uma forma marginalizada. Os morros Santo Antônio e da Favela aparecem como numerosas habitações ilegais, sem higiene, levantados de uma hora para outra por sem tetos, sem profissão e sem escrúpulos. A mesma fama negativa que os cortiços carregavam, transpôs para a má fama dos morros.

A má fama não era dirigida somente pela moradia precária, e sim destinada principalmente para aqueles que residiam e seus hábitos. O processo histórico que o Rio de Janeiro passou na Primeira República tem caráter de continuidade com os tempos coloniais. O negro continuou em posição desvantasoja, mesmo sendo trabalhador livre. Na estrutura social da república os negros prosseguiram ocupando o mesmo lugar que no período imperial. Na busca por emprego havia uma certa rivalidade com os estrangeiros que migraram para a cidade. Trabalhadores pretos eram preteridos em relação aos outros trabalhadores e que por muitas vezes eram imigrantes europeus que eram empregados.

Atualmente, o Morro de Favela é conhecido como Morro da Providência. O recorte temporal do texto fica delimitado no início do século XX. Mesmo assim, a população preta e periférica ainda convive com as mazelas causadas pela longa duração da estrutura escravocrata do Estado brasileiro.


Referências:

CARVALHO, José Murilo. (1987) Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

_________. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes.São Paulo: Cosac Naify. Brasiliense, 1984.