Mudança e resistência - Experiências de moradores de favelas no Rio de Janeiro (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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O Vale Encantado está encravado no Alto da Boa Vista, um bairro com nove favelas, dentre elas: Mata Machado, Tijuaçu, Agrícola, Furnas, Biquinhas, Ricardinho, Redentor Violão e o Vale Encantado, que se subdivide em: Santo André, Campo João Lagoa, Açude da Solidão e Soberbo. Vale Encantado originou-se de um projeto urbanístico do final da década de 60, que pretendia construir um grande condomínio de prédios – O Enchanted Valley. Apenas um prédio e o clube foram construídos. Ao percorrer o lugar, observando o dia-a-dia, a minha intenção era interrogar a memória como elemento relevante da construção coletiva do presente das famílias no local e continuar o debate iniciado na praia sobre as fronteiras indefinidas entre o formal e o informal. Foi escolhida a experiência dos moradores do Vale para relativizar a imagem negativa da favela4 carioca associada à violência do tráfico de drogas ou aos danos ambientais e mostrar que os moradores escrevem outra história, que inclui preservação ambiental e geração de renda. O informante principal, no início da pesquisa era o Otávio, dirigente da cooperativa COOVE, indicado pela ONG franco brasileira Abaquar5 . De fato, foi esse resgate da memória, intenção do pesquisador, que gerou emoções no Vale, no contexto da remoção, quando os moradores estavam envolvidos no processo de regularização fundiária. Evidenciou-se de imediato certo constrangimento ao falar da vida no passado e no presente. Comecei o trabalho de campo entrevistando os moradores mais antigos do local, e depois pensei em organizar oficinas de memória, pedindo aos moradores para contarem histórias e, quando pudessem, para levarem fotos da vida na comunidade. Percebi que o local era composto por famílias - “todo mundo se conhece”, foi a frase chave recolhida.
 
O Vale Encantado está encravado no Alto da Boa Vista, um bairro com nove favelas, dentre elas: Mata Machado, Tijuaçu, Agrícola, Furnas, Biquinhas, Ricardinho, Redentor Violão e o Vale Encantado, que se subdivide em: Santo André, Campo João Lagoa, Açude da Solidão e Soberbo. Vale Encantado originou-se de um projeto urbanístico do final da década de 60, que pretendia construir um grande condomínio de prédios – O Enchanted Valley. Apenas um prédio e o clube foram construídos.
 
Ao percorrer o lugar, observando o dia-a-dia, a minha intenção era interrogar a memória como elemento relevante da construção coletiva do presente das famílias no local e continuar o debate iniciado na praia sobre as fronteiras indefinidas entre o formal e o informal. Foi escolhida a experiência dos moradores do Vale para relativizar a imagem negativa da favela4 carioca associada à violência do tráfico de drogas ou aos danos ambientais e mostrar que os moradores escrevem outra história, que inclui preservação ambiental e geração de renda. O informante principal, no início da pesquisa era o Otávio, dirigente da cooperativa COOVE, indicado pela ONG franco brasileira Abaquar.
 
De fato, foi esse resgate da memória, intenção do pesquisador, que gerou emoções no Vale, no contexto da remoção, quando os moradores estavam envolvidos no processo de regularização fundiária.
 
Evidenciou-se de imediato certo constrangimento ao falar da vida no passado e no presente. Comecei o trabalho de campo entrevistando os moradores mais antigos do local, e depois pensei em organizar oficinas de memória, pedindo aos moradores para contarem histórias e, quando pudessem, para levarem fotos da vida na comunidade. Percebi que o local era composto por famílias - “todo mundo se conhece”, foi a frase chave recolhida.
 
Dessa forma, não resultou tão fácil organizar as reuniões coletivas com os membros dessas famílias.
 
Finalmente, as emoções surgiram através de outras maneiras de trabalhar no campo: a realização de oficinas com crianças, a construção de um mapa da memória, e a organização de um seminário de devolução da pesquisa. Entre esses diversos tempos da pesquisa, foram importantes os contatos, a participação em diversas reuniões do Conselho da Cidadania dos moradores do Alto da Boa Vista (o CONCA), e as entrevistas com atores periféricos6 . Esse Conselho tem um papel de grande importância: reúne- -se de forma regular e sistemática todas as quintas-feiras: depois, suas decisões são votadas em Assembleias Gerais, dando legitimidade àquele grupo das quintas- -feiras. Nessas reuniões são analisados os problemas do dia-a-dia. O seu presidente (in memoriam, entrevista de 17 de abril de 2010) apresentou o CONCA como um foro permanente de moradores que quer se manter informal, para o poder público não ter como processar:
 
Os moradores de comunidades do Parque Nacional também têm direito, da área em torno do Parque, têm direito de participar (...) nós fomos pela insistência... e o diretor do Parque Nacional... indicou o CONCA pra ser Secretário Geral do Conselho. Então isso são conquistas... conquistas da insistência...remoção é crime social!
 
Depois desses contatos e da primeira oficina com crianças de 6 a 12 anos, chamada “Eu, moro aqui!”, as entrevistas com os moradores suscitaram, às vezes, emoções (só tristeza, expressaram alguns) e constrangimento ao falar dos momentos à espera de ser removidos (medo, muito medo, mas não quero te falar disso).
 
Foi na parte devolutiva da pesquisa, no seminário Outro Rio, em agosto de 2010, que as emoções se expressaram melhor. Ao longo de todo o seminário, a restituição procurou recriar a pluralidade das vozes que se expressaram na praia e na floresta. Inclusive a barraqueira Mamá participou um dia inteiro, no Vale Encantado.
 
A distribuição do mapa da memória encerrou um passeio com o responsável da cooperativa, exatamente antes do almoço.
 
Uma maneira de colocar em situação o grupo que tinha um conhecimento parcial do Vale, a partir da apresentação da pesquisa. A caminhada, o almoço preparado pelos membros da cooperativa, que nos fizeram descobrir sabores desconhecidos e refinados, bem como a oficina da tarde, com duas exibições (vídeo da etnografia e vídeo do dispositivo na praia) criaram um espaço/tempo de expressão de sentimentos de medo, de raiva, de indignação, de injustiça. A barraqueira provocou esse momento, quando explicou como, nesse período de implementação do Choque de Ordem, se sentiu, algumas vezes, excluída da praia onde trabalhava havia mais de 10 anos. A partir dessa intervenção, vários moradores do Vale se expressaram sobre as situações de medo repetidas pelas quais passaram na espera de serem removidos; falaram das noites sem dormir, prestando atenção ao barulho de carros que pudessem chegar na madrugada e levá-los para outro lugar.
 
Em outubro de 2010, os moradores receberam a notícia de que entravam no processo de regularização. A mobilização parecia ser uma solução apesar da demora do processo e de anos de medo. Os moradores do Vale Encantado estavam para receber o título de posse (final de março de 2015), mas ao mesmo tempo uma notícia assustadora se espalhou nas redes sociais como o Facebook: os moradores do Vale Encantado estão ameaçados de remoção devido a uma ação da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente! Novamente o medo e o sentimento de perder a paz podem voltar.
 
 

Edição das 18h21min de 13 de abril de 2020

O Vale Encantado está encravado no Alto da Boa Vista, um bairro com nove favelas, dentre elas: Mata Machado, Tijuaçu, Agrícola, Furnas, Biquinhas, Ricardinho, Redentor Violão e o Vale Encantado, que se subdivide em: Santo André, Campo João Lagoa, Açude da Solidão e Soberbo. Vale Encantado originou-se de um projeto urbanístico do final da década de 60, que pretendia construir um grande condomínio de prédios – O Enchanted Valley. Apenas um prédio e o clube foram construídos.

Ao percorrer o lugar, observando o dia-a-dia, a minha intenção era interrogar a memória como elemento relevante da construção coletiva do presente das famílias no local e continuar o debate iniciado na praia sobre as fronteiras indefinidas entre o formal e o informal. Foi escolhida a experiência dos moradores do Vale para relativizar a imagem negativa da favela4 carioca associada à violência do tráfico de drogas ou aos danos ambientais e mostrar que os moradores escrevem outra história, que inclui preservação ambiental e geração de renda. O informante principal, no início da pesquisa era o Otávio, dirigente da cooperativa COOVE, indicado pela ONG franco brasileira Abaquar.

De fato, foi esse resgate da memória, intenção do pesquisador, que gerou emoções no Vale, no contexto da remoção, quando os moradores estavam envolvidos no processo de regularização fundiária.

Evidenciou-se de imediato certo constrangimento ao falar da vida no passado e no presente. Comecei o trabalho de campo entrevistando os moradores mais antigos do local, e depois pensei em organizar oficinas de memória, pedindo aos moradores para contarem histórias e, quando pudessem, para levarem fotos da vida na comunidade. Percebi que o local era composto por famílias - “todo mundo se conhece”, foi a frase chave recolhida.

Dessa forma, não resultou tão fácil organizar as reuniões coletivas com os membros dessas famílias.

Finalmente, as emoções surgiram através de outras maneiras de trabalhar no campo: a realização de oficinas com crianças, a construção de um mapa da memória, e a organização de um seminário de devolução da pesquisa. Entre esses diversos tempos da pesquisa, foram importantes os contatos, a participação em diversas reuniões do Conselho da Cidadania dos moradores do Alto da Boa Vista (o CONCA), e as entrevistas com atores periféricos6 . Esse Conselho tem um papel de grande importância: reúne- -se de forma regular e sistemática todas as quintas-feiras: depois, suas decisões são votadas em Assembleias Gerais, dando legitimidade àquele grupo das quintas- -feiras. Nessas reuniões são analisados os problemas do dia-a-dia. O seu presidente (in memoriam, entrevista de 17 de abril de 2010) apresentou o CONCA como um foro permanente de moradores que quer se manter informal, para o poder público não ter como processar:

Os moradores de comunidades do Parque Nacional também têm direito, da área em torno do Parque, têm direito de participar (...) nós fomos pela insistência... e o diretor do Parque Nacional... indicou o CONCA pra ser Secretário Geral do Conselho. Então isso são conquistas... conquistas da insistência...remoção é crime social!

Depois desses contatos e da primeira oficina com crianças de 6 a 12 anos, chamada “Eu, moro aqui!”, as entrevistas com os moradores suscitaram, às vezes, emoções (só tristeza, expressaram alguns) e constrangimento ao falar dos momentos à espera de ser removidos (medo, muito medo, mas não quero te falar disso).

Foi na parte devolutiva da pesquisa, no seminário Outro Rio, em agosto de 2010, que as emoções se expressaram melhor. Ao longo de todo o seminário, a restituição procurou recriar a pluralidade das vozes que se expressaram na praia e na floresta. Inclusive a barraqueira Mamá participou um dia inteiro, no Vale Encantado.

A distribuição do mapa da memória encerrou um passeio com o responsável da cooperativa, exatamente antes do almoço.

Uma maneira de colocar em situação o grupo que tinha um conhecimento parcial do Vale, a partir da apresentação da pesquisa. A caminhada, o almoço preparado pelos membros da cooperativa, que nos fizeram descobrir sabores desconhecidos e refinados, bem como a oficina da tarde, com duas exibições (vídeo da etnografia e vídeo do dispositivo na praia) criaram um espaço/tempo de expressão de sentimentos de medo, de raiva, de indignação, de injustiça. A barraqueira provocou esse momento, quando explicou como, nesse período de implementação do Choque de Ordem, se sentiu, algumas vezes, excluída da praia onde trabalhava havia mais de 10 anos. A partir dessa intervenção, vários moradores do Vale se expressaram sobre as situações de medo repetidas pelas quais passaram na espera de serem removidos; falaram das noites sem dormir, prestando atenção ao barulho de carros que pudessem chegar na madrugada e levá-los para outro lugar.

Em outubro de 2010, os moradores receberam a notícia de que entravam no processo de regularização. A mobilização parecia ser uma solução apesar da demora do processo e de anos de medo. Os moradores do Vale Encantado estavam para receber o título de posse (final de março de 2015), mas ao mesmo tempo uma notícia assustadora se espalhou nas redes sociais como o Facebook: os moradores do Vale Encantado estão ameaçados de remoção devido a uma ação da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente! Novamente o medo e o sentimento de perder a paz podem voltar.