Exibir código-fonte para O efeito gangue sobre a dinâmica dos homicídios: um estudo sobre o caso de Cambé/PR (artigo)

<p>Artigo publicado originalmente na '''Revista USP''', n. 129 de 2021, Dossiê de Segurança Pública. Para acessar o Dossiê na íntegra, [https://www.revistas.usp.br/revusp/issue/view/12074 clique aqui].</p>
 Autoria:: '''CLEBER DA SILVA LOPES''' é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS), e '''ANDERSON ALEXANDRE FERREIRA''' é doutorando em Sociologia da UEL e pesquisador do LEGS.

== Resumo ==
Este &nbsp; trabalho &nbsp; analisa &nbsp; os &nbsp; processos &nbsp; que &nbsp;produzem &nbsp;dinâmicas &nbsp;homicidas &nbsp;ascendentes &nbsp;em &nbsp;territórios &nbsp;marcados &nbsp;por conflitos entre gangues. O objetivo é entender como a emergência de gangues em &nbsp;determinados &nbsp;territórios &nbsp;impacta &nbsp;os &nbsp;padrões &nbsp;de &nbsp;violência &nbsp;letal &nbsp;entre &nbsp;jovens. &nbsp;Para &nbsp;demonstrar &nbsp;como &nbsp;o &nbsp;efeito &nbsp;gangue &nbsp;ocorre, &nbsp; analisamos &nbsp; os &nbsp; padrões &nbsp; de &nbsp; homicídios em um território periférico do município &nbsp;de &nbsp;Cambé, &nbsp;Paraná, &nbsp;ao &nbsp;longo &nbsp;de &nbsp;15 &nbsp;anos &nbsp;(1991 &nbsp;a &nbsp;2006). &nbsp;Os &nbsp;resultados &nbsp;mostram &nbsp;que &nbsp;as &nbsp;dinâmicas &nbsp;homicidas &nbsp;são fortemente impactadas por conflitos intragangues, &nbsp;disputas &nbsp;por &nbsp;poder &nbsp;e &nbsp;status &nbsp;entre &nbsp;membros &nbsp;de &nbsp;gangues &nbsp;e, &nbsp;principalmente, “guerras” de gangues.
== Introdução&nbsp;==
Este &nbsp;trabalho &nbsp;analisa &nbsp;os &nbsp;processos &nbsp;que &nbsp;produzem &nbsp;dinâmicas &nbsp;homicidas &nbsp;ascendentes &nbsp;em &nbsp;territórios &nbsp;marcados &nbsp;por &nbsp;conflitos &nbsp;entre &nbsp;gangues – agrupamentos juvenis cuja identidade se vincula a atividades &nbsp;ilícitas &nbsp;e &nbsp;ao &nbsp;controle &nbsp;do &nbsp;território, &nbsp;não &nbsp;raramente &nbsp;com o uso de armas de fogo (Zilli, &nbsp;2011; &nbsp;Klein &nbsp;& &nbsp;Maxson, &nbsp;2006). O objetivo é entender como a emergência de gangues &nbsp;em &nbsp;determinados &nbsp;territórios &nbsp;impacta os padrões de violência letal entre jovens.

Para &nbsp;demonstrar &nbsp;como &nbsp;o &nbsp;efeito &nbsp;gangue ocorre, &nbsp;analisamos &nbsp;os &nbsp;padrões &nbsp;de &nbsp;homicídios &nbsp;em um território periférico do município de Cambé, Paraná, ao longo de 15 anos (1991 a 2006). A análise se baseia (i) no conhecimento pessoal do segundo autor deste artigo, morador do território analisado e integrante de uma das gangues ativas no começo da década de 2000; (ii) nos depoimentos de 11 ex-membros de gangues e de nove moradores locais, obtidos por meio de entrevistas diretivas e conversas informais; (iii) em matérias jornalísticas sobre os crimes ocorridos no território analisado; e (iv) em notas tomadas dos escassos registros disponíveis na Delegacia do município de Cambé  <ref>O material empírico foi produzido pela dissertação de Ferreira (2018). Este artigo é um subproduto da dissertação.</ref>  .

Os &nbsp;dados &nbsp;mostram &nbsp;que &nbsp;conflitos &nbsp;intragangues, disputas por poder e status &nbsp;entre &nbsp;membros de gangues e “guerras” de gangues produzem &nbsp;taxas &nbsp;de &nbsp;homicídios &nbsp;ascendentes &nbsp;nos territórios dominados por gangues. As guerras de gangues são as que mais impactam &nbsp;os &nbsp;padrões &nbsp;locais &nbsp;de &nbsp;homicídios, &nbsp;pois &nbsp;geram processos de contágio que difundem o homicídio no tempo e no espaço. Assim, uma vez iniciadas, as guerras geram dinâmicas homicidas de médio prazo (gerando mortes &nbsp;até &nbsp;sete &nbsp;anos &nbsp;depois &nbsp;do &nbsp;início &nbsp;da contenda) &nbsp;e &nbsp;capazes &nbsp;de &nbsp;transbordar &nbsp;o &nbsp;território de origem dos conflitos.

Além desta seção introdutória, o trabalho está organizado em mais quatro. A seção dois apresenta o caso que será analisado. A seção três &nbsp;expõe &nbsp;a &nbsp;maneira &nbsp;como &nbsp;a &nbsp;teoria &nbsp;social relaciona &nbsp;gangues &nbsp;e &nbsp;homicídios. &nbsp;A &nbsp;seção seguinte mostra como as gangues impactaram os padrões de violência letal em Cambé. As &nbsp;considerações &nbsp;sumarizam &nbsp;os &nbsp;resultados e chamam a atenção para o fato de Cambé também ser um caso crucial para entendermos &nbsp;melhor &nbsp;por &nbsp;que &nbsp;as &nbsp;taxas &nbsp;de &nbsp;homicídios &nbsp;sobem &nbsp;e &nbsp;caem &nbsp;em &nbsp;determinados &nbsp;territórios.
== Do  passo do veado ao rastro de sangue: o caso de Cambé ==
Em tupi-guarani, cambé significa o “passo do veado”. O município que hoje tem cerca de 106 mil habitantes, pertencente à Região Metropolitana de Londrina (RML), surgiu em 1930 e se urbanizou ao redor dos trilhos, sob o &nbsp;impulso &nbsp;da &nbsp;economia &nbsp;cafeeira &nbsp;(Gonzales &nbsp;Neto, 1987). O processo de urbanização dos bairros só veio a ocorrer na segunda metade do século XX. Na região norte da cidade, em particular, &nbsp;o &nbsp;Parque &nbsp;Residencial &nbsp;Ana &nbsp;Rosa &nbsp;(Ana &nbsp;Rosa) &nbsp;foi &nbsp;o &nbsp;primeiro &nbsp;a &nbsp;ser &nbsp;loteado, &nbsp;em &nbsp;1976. Anos depois, foram loteados os terrenos do que viria a ser o Jardim Tupi (Tupi) e o Conjunto Habitacional Roberto Conceição (Cambé IV), em 1979 e 1983, respectivamente.

Ana Rosa, Tupi e Cambé IV são áreas relativamente &nbsp;pobres &nbsp;do &nbsp;município. &nbsp;Entretanto, as características desses três bairros surpreenderiam um visitante bem informado sobre os espaços urbanos onde ocorre a violência &nbsp;letal &nbsp;das &nbsp;grandes &nbsp;metrópoles &nbsp;brasileiras: &nbsp;são &nbsp;bairros &nbsp;planejados &nbsp;– &nbsp;ruas &nbsp;bem delimitadas e vias largas – que foram ocupados por levas de migrantes vindos de São Paulo e Minas Gerais sob relativo controle do poder público (Figura 1). Ainda assim, esses três bairros formam o palco de algumas &nbsp;dezenas &nbsp;de &nbsp;homicídios &nbsp;que &nbsp;deixaram &nbsp;no município um rastro de sangue a partir da década de 2000.

Até &nbsp;o &nbsp;final &nbsp;dos &nbsp;anos &nbsp;1990 &nbsp;Cambé &nbsp;foi uma &nbsp;localidade &nbsp;relativamente &nbsp;pacata, &nbsp;com taxa média de homicídios na casa dos 6 por 100 &nbsp;mil &nbsp;habitantes. &nbsp;Entretanto, &nbsp;os &nbsp;casos &nbsp;de &nbsp;violência letal subiram bruscamente a partir de &nbsp;2001 &nbsp;e &nbsp;o &nbsp;município &nbsp;passou &nbsp;a &nbsp;conviver com taxas de homicídios elevadas em toda a &nbsp;década &nbsp;de &nbsp;2000, &nbsp;vivenciando &nbsp;picos &nbsp;nos anos &nbsp;2004 &nbsp;e &nbsp;2012 &nbsp;que &nbsp;superaram &nbsp;as &nbsp;taxas &nbsp;mais altas já registradas no Brasil, na Região Sul e no estado do Paraná (Gráfico 1). Entre 2004 e 2006, o município chegou a figurar na segunda posição do ranking nacional de vitimização juvenil, que mede a proporção de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos em localidades com mais de 70 mil habitantes (Waiselfsz, 2018). Depois de alcançar o recorde de 38 casos por 100 mil habitantes em 2012, Cambé assistiu a uma queda contínua da violência letal intencional, que no &nbsp;final &nbsp;da &nbsp;década &nbsp;de &nbsp;2010 &nbsp;regressou &nbsp;aos patamares da década de 1990. Essa trajetória dos homicídios é bastante similar à da RML, &nbsp;formada &nbsp;por &nbsp;um &nbsp;conglomerado &nbsp;de cinco municípios com população aproximada de &nbsp;824 &nbsp;mil &nbsp;habitantes &nbsp;– &nbsp;Cambé, &nbsp;Ibiporã, Londrina, Pitangueiras, Rolândia e Tamarana.

O perfil etário e de gênero das vítimas de homicídios em Cambé a partir da década de 2000 &nbsp;se &nbsp;assemelha &nbsp;ao &nbsp;encontrado &nbsp;no &nbsp;restante do Brasil: são em sua maioria homens com idade entre 15 e 29 anos. Esses jovens geralmente são mortos em vias públicas por meio de armas de fogo, outro padrão característico das estatísticas nacionais. Entretanto, não existe um &nbsp;viés &nbsp;racial &nbsp;claro &nbsp;entre &nbsp;as &nbsp;vítimas &nbsp;em Cambé. No Brasil como um todo o número de vítimas de homicídios negras supera em quase três as vítimas brancas, mas no estado do Paraná esses dados se invertem. Como mostrou Ferreira (2017), Cambé destoa tanto do &nbsp;padrão &nbsp;nacional &nbsp;quanto &nbsp;do &nbsp;padrão &nbsp;paranaense, pois não há uma cor/raça claramente predominante entre as vítimas de homicídios.

Informações &nbsp;sobre &nbsp;o &nbsp;perfil &nbsp;das &nbsp;vítimas de &nbsp;homicídios &nbsp;são &nbsp;úteis &nbsp;para &nbsp;a &nbsp;compreensão &nbsp;do fenômeno. Entretanto, elas pouco ajudam a &nbsp;entender &nbsp;por &nbsp;que &nbsp;as &nbsp;pessoas &nbsp;foram &nbsp;assassinadas &nbsp;e &nbsp;por &nbsp;que &nbsp;os &nbsp;homicídios &nbsp;cresceram &nbsp;de maneira relativamente brusca em Cambé durante a década de 2000. Sustentamos que as &nbsp;principais &nbsp;razões &nbsp;estão &nbsp;relacionadas &nbsp;à &nbsp;proliferação de gangues localmente conhecidas como “bancas” ou “ternos”.
== Por que as gangues impactam os homicídios ==
O &nbsp;senso &nbsp;comum &nbsp;tende &nbsp;a &nbsp;pensar &nbsp;o &nbsp;homicídio &nbsp;como &nbsp;um &nbsp;ato &nbsp;moralmente &nbsp;abjeto &nbsp;e socialmente reprovado. Entretanto, os estudos mostram que em alguns contextos sociais o homicídio não é nem uma coisa nem outra. Do ponto de vista dos indivíduos ou grupos que &nbsp;o &nbsp;cometem, &nbsp;ele &nbsp;tende &nbsp;a &nbsp;ser &nbsp;considerado &nbsp;um &nbsp;ato &nbsp;de &nbsp;justiça, &nbsp;isto &nbsp;é, &nbsp;uma &nbsp;ação &nbsp;realizada para vingar uma agressão anterior e/ou preservar uma honra violada (Black, 1983; Rocha, 2017). Pesquisas realizadas em diferentes &nbsp;locais &nbsp;e &nbsp;momentos &nbsp;históricos &nbsp;mostram &nbsp;que alguns grupos sociais – especialmente jovens, do sexo masculino e de classe baixa – podem vincular a honra a noções de hipermasculinidade que prescrevem o uso da violência física como mecanismo de resolução de conflitos e defesa da reputação (Nisbett, 2008; Polk, 1999; Zaluar, 2001). Nesses grupos, matar ou mostrar disposição para fazê-lo &nbsp;em &nbsp;disputas &nbsp;interpessoais &nbsp;por &nbsp;honra &nbsp;e &nbsp;reputação &nbsp;serve &nbsp;ao &nbsp;propósito &nbsp;de &nbsp;aumentar o status social dos indivíduos e colocá-los em &nbsp;posição &nbsp;de &nbsp;dominância &nbsp;(Papachristos, 2009; Gould, 2003).

Disputas para a manutenção da honra e da &nbsp;reputação &nbsp;ganham &nbsp;contornos &nbsp;distintos quando &nbsp;envolvem &nbsp;indivíduos &nbsp;vinculados &nbsp;a gangues. Entre membros de gangues essas disputas podem se tornar conflitos grupais potencialmente &nbsp;capazes &nbsp;de &nbsp;produzir &nbsp;dinâmicas &nbsp;homicidas &nbsp;ascendentes. &nbsp;Isso &nbsp;ocorre principalmente &nbsp;porque &nbsp;ameaças &nbsp;e &nbsp;ofensas a membros de gangues passam a ser entendidas como um problema de todo o grupo (Decker, 1996; Manso, 2005; Papachristos, 2009). &nbsp;Nesses &nbsp;contextos, &nbsp;o &nbsp;assassinato &nbsp;de um membro de gangue representa uma ameaça ao status e à posição de dominância do grupo e dos indivíduos que o integram. Se o assassinato não for vingado, os membros da gangue perdem status e ficam fragilizados perante &nbsp;inimigos, &nbsp;que &nbsp;podem &nbsp;aproveitar &nbsp;a fraqueza para realizar ataques futuros. Já a retaliação rápida e enérgica ao assassinato aumenta a solidariedade do grupo, restaura o &nbsp;seu &nbsp;status &nbsp;e &nbsp;pode &nbsp;colocar &nbsp;novamente &nbsp;a gangue &nbsp;em &nbsp;posição &nbsp;de &nbsp;dominância. &nbsp;Como alguns grupos retaliarão agressões sofridas de modo a assegurar sua posição de dominância, &nbsp;os &nbsp;homicídios &nbsp;acabam &nbsp;se &nbsp;difundido &nbsp;no tempo e no espaço. Essa difusão ocorre por meio de mecanismos de contágio que operam em duas direções: gerando homicídios e atos violentos entre as partes em contenda ao longo do tempo (retaliação direta); e &nbsp;expandindo &nbsp;as &nbsp;agressões &nbsp;para &nbsp;além &nbsp;dos territórios e pessoas inicialmente envolvidas no conflito (violência generalizada) (Decker, 1996; Papachristos, 2009).

As &nbsp;próximas &nbsp;seções &nbsp;mostram &nbsp;como &nbsp;os processos &nbsp;sociais &nbsp;descritos &nbsp;acima &nbsp;ocorreram &nbsp;na &nbsp;região &nbsp;norte &nbsp;do &nbsp;município &nbsp;de &nbsp;Cambé. Pretendemos mostrar como conflitos intragangues, disputas por poder e status &nbsp;entre &nbsp;membros de gangues e, principalmente, as retaliações &nbsp;a &nbsp;assassinatos &nbsp;de &nbsp;membros &nbsp;de gangues &nbsp;contribuíram &nbsp;para &nbsp;as &nbsp;dinâmicas homicidas ascendentes verificadas em Cambé na década de 2000.
== A  dinâmica dos homicídios na região norte de Cambé ==
A curva dos homicídios relacionados a conflitos (interpessoais ou de gangues) ocorridos &nbsp;na &nbsp;região &nbsp;norte &nbsp;de &nbsp;Cambé &nbsp;captados em nossa amostra é basicamente a mesma registrada em Cambé entre 1991 e 20062. &nbsp;A &nbsp;correlação dos dados é extremamente forte (p de Pearson = 0.91!). Essas curvas podem ser divididas em duas fases: uma fase ante-rior &nbsp;à &nbsp;ascensão &nbsp;das &nbsp;bancas &nbsp;na &nbsp;cena &nbsp;criminal &nbsp;local, &nbsp;marcada &nbsp;por &nbsp;um &nbsp;número &nbsp;de &nbsp;homicídios &nbsp;relativamente baixo e estável (13 ocorrências na &nbsp;amostra &nbsp;e &nbsp;54 &nbsp;no &nbsp;município &nbsp;entre &nbsp;1991 e 2000); e a fase de atividade das bancas, caracterizada pela rápida elevação dos homicídios (36 ocorrências na amostra e 157 no município &nbsp;entre &nbsp;2001 &nbsp;e &nbsp;2006).
=== A dinâmica anterior às bancas (1991 a 2000) ===
A nossa amostra registra um total de 13 homicídios ocorridos na região norte de Cambé na fase anterior à dinâmica das bancas. Um deles resulta de retaliação para vingar a morte de um amigo anteriormente assassinado &nbsp;em &nbsp;uma &nbsp;briga &nbsp;entre &nbsp;jovens. Todos os demais estão relacionados a conflitos interpessoais com motivações diversas e que não resultaram em retaliações: discussões por motivos banais como uma “trucada &nbsp;ríspida” &nbsp;ou &nbsp;a &nbsp;expulsão &nbsp;em &nbsp;um jogo de futebol, competições por parceiras amorosas e disputas envolvendo honra. Vários desses homicídios estão relacionados a demonstrações públicas de hipermasculinidade &nbsp;nos &nbsp;espaços &nbsp;públicos &nbsp;de lazer frequentados pelos jovens da década de 1990. Essas demonstrações conferiam status aos seus protagonistas, chamados pelos adolescentes de bancas, que protagonizariam os conflitos da década seguinte dos “caras considerados”.

Os “caras considerados” são responsáveis por &nbsp;sete &nbsp;assassinatos &nbsp;nesse &nbsp;período. &nbsp;Apesar &nbsp;da disposição mostrada para usar violência em conflitos interpessoais – incluindo violência &nbsp;letal &nbsp;–, &nbsp;a &nbsp;maioria &nbsp;dos &nbsp;crimes &nbsp;cometidos &nbsp;por &nbsp;esses &nbsp;jovens &nbsp;não &nbsp;produziu &nbsp;dinâmicas criminais ascendentes. A situação mudou na década seguinte, quando os “caras considerados” foram sucedidos por outros jovens, com &nbsp;uma &nbsp;forma &nbsp;de &nbsp;organização &nbsp;distinta. Os &nbsp;grupos &nbsp;juvenis &nbsp;que &nbsp;nos &nbsp;anos &nbsp;1990 &nbsp;se reuniam por afinidades, como o gosto pela dança (Black Line, Relâmpagos Funk, dentre outros), pela música (metaleiros, pagodeiros, rappers, dentre outros) ou por práticas espor-tivas (boleiros), deram lugar às “bancas” ou “ternos”. A emergência dessa nova forma de organização juvenil impactou profundamente a &nbsp;dinâmica &nbsp;local &nbsp;dos &nbsp;homicídios.
=== A  dinâmica  das  bancas  (2001  a  2006) ===
É difícil precisar a data de surgimento das bancas na região norte de Cambé. No ano de 1998, elas já estavam em atividade, formadas quase que exclusivamente por adolescentes e sem protagonismo algum na cena criminal. Já no ano de 2000, o cenário era outro, com ao menos sete delas em atividade (Figura 2). No &nbsp;bairro &nbsp;Ana &nbsp;Rosa &nbsp;concentravam-se cinco grupos: Banca dos Noias; Banca do Vareta; Banca do Cavalo Roubado; Banca do Dinho; e Banca Chapa Coco. No bairro Cambé IV situava-se a Banca do Ciganinho e no bairro Tupi a chamada Banca do Lelo. A Banca do Marcelinho emergiria apenas em &nbsp;2002 &nbsp;e &nbsp;a &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Nitão, &nbsp;em &nbsp;2004, ambas &nbsp;no &nbsp;bairro &nbsp;Ana &nbsp;Rosa. &nbsp;Como &nbsp;é &nbsp;possível &nbsp;notar, &nbsp;a &nbsp;maioria &nbsp;das &nbsp;bancas &nbsp;trazia nome de um de seus membros, um “líder”, mas não se organizava de forma hierárquica. Elas tinham como referência pontos fixos do espaço público, controlados a seu bel-prazer. Seus &nbsp;membros &nbsp;não &nbsp;eram &nbsp;necessariamente rivais &nbsp;e &nbsp;alianças &nbsp;ocorriam &nbsp;para &nbsp;combater inimigos comuns, para realizar deslocamentos &nbsp;para &nbsp;outros &nbsp;territórios &nbsp;ou &nbsp;em &nbsp;razão &nbsp;de &nbsp;afinidades variadas. Elas possuíam em média 20 jovens, alguns sistematicamente e outros esporadicamente envolvidos com atividades ilícitas &nbsp;como &nbsp;pequenos &nbsp;furtos, &nbsp;roubos, &nbsp;posse &nbsp;de arma, consumo e venda de drogas. O Gráfico 6 apresenta uma categorização de todos os homicídios registrados em nossa amostra no período de maior atividade das bancas &nbsp;(2001 &nbsp;a &nbsp;2006). &nbsp;Essa &nbsp;categorização segue &nbsp;a &nbsp;literatura &nbsp;especializada &nbsp;(Maxson, 1999), dividindo os homicídios associados a gangues em dois grupos: (i) os “homicídios motivados por gangues”, que incluem crimes que têm relação direta com as atividades dos grupos, tais como aqueles resultantes de disputas &nbsp;por &nbsp;poder &nbsp;e &nbsp;status &nbsp;entre &nbsp;seus &nbsp;membros, &nbsp;retaliações vinculadas a “guerras” grupais e também os decorrentes de conflitos internos relacionados às atividades dos grupos; e (ii) os “homicídios relacionados a gangues”, que envolvem crimes não necessariamente motivados por conflitos entre ou intragangues, mas cujos autores e/ou vítimas eram membros de bancas no momento da ocorrência. Dos 35 homicídios registrados no período 2001 &nbsp;a &nbsp;2006, &nbsp;apenas &nbsp;um &nbsp;não &nbsp;se &nbsp;enquadra &nbsp;em uma dessas duas categorias – um crime passional &nbsp;ocorrido &nbsp;no &nbsp;Ana &nbsp;Rosa &nbsp;em &nbsp;2004. &nbsp;Os &nbsp;homicídios &nbsp;relacionados &nbsp;a &nbsp;gangues representam 26% da amostra e os motivados por gangues, 74%. Por razões substantivas (importância) &nbsp;e &nbsp;pragmáticas &nbsp;(limite &nbsp;de espaço), &nbsp;analisaremos &nbsp;apenas &nbsp;os &nbsp;homicídios desta última categoria.
== Os  homicídios  entre  gangues  motivados  por  dominância ==
A &nbsp;nossa &nbsp;base &nbsp;de &nbsp;dados &nbsp;registra &nbsp;sete homicídios entre gangues que estão relacionados &nbsp;a &nbsp;disputas &nbsp;por &nbsp;status &nbsp;no &nbsp;mundo &nbsp;criminal e/ou são respostas a ofensas ou ameaças praticadas no contexto das relações de competição e domínio territorial das &nbsp;bancas. &nbsp;Dois &nbsp;casos &nbsp;representativos desses &nbsp;conflitos &nbsp;letais &nbsp;merecem &nbsp;ser &nbsp;destacados, pois envolvem o ator com maior centralidade &nbsp;nas &nbsp;dinâmicas &nbsp;homicidas &nbsp;da &nbsp;região norte da cidade. Dos 35 homicídios registrados entre 2001 e 2006, 21 (60%) tiveram pessoas ligadas ao grupo de Marcelinho como autores e/ou vítimas. A trajetória &nbsp;de &nbsp;Marcelinho &nbsp;exemplifica &nbsp;bem &nbsp;como &nbsp;disputas &nbsp;por &nbsp;dominância &nbsp;entre &nbsp;membros &nbsp;de &nbsp;gangues podem gerar homicídios.

Com &nbsp;apenas &nbsp;14 &nbsp;anos, &nbsp;Marcelinho &nbsp;ascendeu &nbsp;na &nbsp;cena &nbsp;criminal &nbsp;local &nbsp;por &nbsp;meio &nbsp;de &nbsp;um &nbsp;lance &nbsp;ousado: &nbsp;matou &nbsp;um &nbsp;fornecedor &nbsp;de &nbsp;armas de outra banca em uma negociação para a compra de um revólver calibre 38. Depois da execução, pediu que seus comparsas acionassem a ambulância e alegassem que a morte havia sido um suicídio por roleta-russa – versão posteriormente aceita &nbsp;pela &nbsp;polícia. &nbsp;Esse &nbsp;assassinato &nbsp;tem &nbsp;caráter tanto instrumental quanto expressivo: por um lado, permitiu que o jovem se &nbsp;armasse &nbsp;para &nbsp;os &nbsp;múltiplos &nbsp;conflitos &nbsp;nos &nbsp;quais começava a se envolver; por outro, serviu para posicioná-lo na dinâmica das bancas como um jovem destemido.

O status &nbsp;que &nbsp;Marcelinho &nbsp;obteve &nbsp;com esse &nbsp;assassinato &nbsp;aumentou &nbsp;a &nbsp;sua &nbsp;capacidade &nbsp;de atrair outros adolescentes envolvidos em rivalidades interpessoais ou grupais. Em territórios marcados por disputas entre gangues, ascensões criminais dessa natureza podem ser interpretadas como uma ameaça à hegemonia de atores há mais tempo estabelecidos &nbsp;na &nbsp;cena &nbsp;criminal, &nbsp;desencadeando &nbsp;novos conflitos. Um conflito dessa natureza &nbsp;é &nbsp;a &nbsp;motivação &nbsp;do &nbsp;segundo &nbsp;assassinato cometido por Marcelinho. Dessa vez a &nbsp;vítima &nbsp;foi &nbsp;um &nbsp;jovem &nbsp;conhecido &nbsp;como Neguinho (21 anos), expoente da Banca do Cavalo Roubado, que havia construído a reputação de “rei” da zona norte com base em ações violentas contra rivais pessoais e rivais de sua banca, da qual se distanciou aos poucos para ações criminais solo. Depois de pouco mais de um ano fora das dinâmicas &nbsp;das &nbsp;bancas, &nbsp;por &nbsp;conta &nbsp;de &nbsp;um &nbsp;assalto &nbsp;malsucedido &nbsp;no &nbsp;qual &nbsp;foi &nbsp;baleado &nbsp;e &nbsp;preso, Neguinho tentou um retorno triunfal: &nbsp;assassinou &nbsp;um &nbsp;homem &nbsp;por &nbsp;ele &nbsp;supostamente ter se envolvido com sua amante à &nbsp;época; e escreveu em uma carta uma lista de 30 pessoas que mataria, incluindo Marcelinho e vários de seus parceiros de banca. Diante das ameaças de Neguinho, o grupo de Marcelinho tramou e executou seu assassinato em maio de 2003. Esse e os &nbsp;demais &nbsp;homicídios &nbsp;classificados &nbsp;como &nbsp;“motivados por dominância” não geraram retaliações. Situação distinta ocorreu com os homicídios descritos a seguir.
== Os  homicídios  entre  gangues  motivados  por  “guerras” ==
Essa &nbsp;categoria &nbsp;reúne &nbsp;15 &nbsp;homicídios (43% da amostra) tipicamente retaliatórios decorrentes de duas “guerras” travadas pela Banca do Marcelinho, uma com a Banca do Lelo e outra com a Banca do Nitão. São os casos mais numerosos (43% da amostra) e &nbsp;de &nbsp;maior &nbsp;impacto &nbsp;na &nbsp;dinâmica &nbsp;local &nbsp;dos &nbsp;homicídios. Além dos 15 homicídios registrados &nbsp;no &nbsp;período &nbsp;2002 &nbsp;a &nbsp;2006, &nbsp;diretamente &nbsp;associados a essa dinâmica, há outros dois casos ocorridos em 2010 e 2012. A Tabela 1 apresenta esses 17 homicídios retaliatórios, &nbsp;o &nbsp;tempo &nbsp;transcorrido &nbsp;entre &nbsp;os &nbsp;crimes &nbsp;e os locais das ocorrências. A “guerra” entre a Banca do Marcelino e a Banca do Lelo foi mais curta (menos de um &nbsp;ano &nbsp;entre &nbsp;o &nbsp;primeiro &nbsp;e &nbsp;o &nbsp;último &nbsp;homi-cídio) e menos sangrenta (quatro vítimas fatais, duas de cada lado). Ela seguiu linhas bastante &nbsp;territorializadas, &nbsp;opondo &nbsp;os &nbsp;bairros &nbsp;Ana Rosa (Banca do Marcelinho) e Tupi/Cambé IV (Banca do Lelo e aliados rivais do &nbsp;grupo &nbsp;do &nbsp;Marcelinho). &nbsp;A &nbsp;motivação inicial &nbsp;do &nbsp;confronto &nbsp;foi &nbsp;assim &nbsp;descrita &nbsp;por &nbsp;um &nbsp;interlocutor:

::''“Interlocutor IV: Essa treta começou, Indião, assim, eu sei um pedaço dela. Você lembra de um lugar perto da garagem da TIL, que tinha sinuca, essa briga começou ali. Pesquisador: Não era droga então [o estopim do conflito]? Interlocutor IV: Não, não! Era ‘treta’ mesmo, foi ‘treta’ de birra, essa aí é briga de gangue mesmo, &nbsp;não &nbsp;teve &nbsp;droga &nbsp;no &nbsp;meio. &nbsp;Que &nbsp;na verdade uns traficava aqui, outros traficava lá, e não tinha isso aí”. ''
Os operadores do sistema de justiça criminal &nbsp;e &nbsp;a &nbsp;mídia &nbsp;tendem &nbsp;a &nbsp;atribuir &nbsp;os &nbsp;assassinatos de pessoas envolvidas com o crime a disputas &nbsp;instrumentais &nbsp;relacionadas &nbsp;ao &nbsp;mercado de drogas. Entretanto, nos territórios com gangues esses conflitos podem começar com brigas banais relacionadas à manutenção da honra ou reputação. Esse foi o caso da “guerra” entre os grupos do Marcelinho e do &nbsp;Lelo, &nbsp;iniciada &nbsp;por &nbsp;causa &nbsp;de &nbsp;olhares &nbsp;atravessados em uma casa de jogos na divisa da região norte com a região central de Cambé. Dias depois da troca de insultos mencionada pelo &nbsp;Interlocutor &nbsp;IV, &nbsp;Adilsinho &nbsp;(25 &nbsp;anos), membro do grupo de Lelo, foi flagrado em um &nbsp;bar &nbsp;no &nbsp;bairro &nbsp;Ana &nbsp;Rosa &nbsp;e &nbsp;morto &nbsp;pelo &nbsp;grupo do Marcelinho. Esse homicídio gerou três outros em um período de 337 dias. O mais emblemático foi o que vitimou Lelo (28 anos), &nbsp;assassinado &nbsp;publicamente &nbsp;em &nbsp;um &nbsp;bar &nbsp;movimentado da região central de Londrina.

::''“Pesquisador: &nbsp;Você &nbsp;lembra &nbsp;dessa &nbsp;cena &nbsp;do Coelho e do Lelo? Interlocutor IV: Do Coelho e do Lelo? Eu lembro &nbsp;sim, &nbsp;contado &nbsp;pelo &nbsp;próprio &nbsp;cara &nbsp;que &nbsp;tava junto. Ele diz que eles tava seguindo o Lelo, seguiram o Lelo um tempo, daí não achou. &nbsp;Aí, &nbsp;não &nbsp;lembro &nbsp;quem &nbsp;foi, &nbsp;liga &nbsp;pra ele [Coelho] e fala que o Lelo tá [no bar]. Aí eles saem de carro daqui e vai lá. [...] Tinha um cara lá de dentro [infiltrado] pas-sando a informação [...] na mesa tinha um traidor [...] eu lembro que quase pega tiro nele. Ninguém ia matá, eles ia esperar sair, seguir, e atirar. Daí o Coelho pega a pistola e fala assim: ‘Qui, eu vou entrá lá dentro e vou matá ele, sabe por que vocês não mata ele? &nbsp;Porque &nbsp;toda &nbsp;vez &nbsp;vocês &nbsp;fica &nbsp;querendo espera não ter gente perto, eu vou entrar e vou &nbsp;matá’ &nbsp;[...] &nbsp;Daí &nbsp;ele &nbsp;[Coelho]: &nbsp;‘Dá &nbsp;aqui essa &nbsp;pistola’ &nbsp;[engatilhou] &nbsp;e &nbsp;foi. &nbsp;E &nbsp;entra &nbsp;e atira no cara no meio de todo mundo [...] depois eles saem e fazem um churrasco.”''
Esse &nbsp;homicídio &nbsp;é &nbsp;ilustrativo &nbsp;do &nbsp;modo como as “guerras” entre gangues contribuem para &nbsp;a &nbsp;difusão &nbsp;dos &nbsp;homicídios &nbsp;não &nbsp;apenas &nbsp;no &nbsp;tempo, &nbsp;mas &nbsp;também &nbsp;no &nbsp;espaço. &nbsp;Como mostra &nbsp;a &nbsp;Tabela &nbsp;1, &nbsp;12 &nbsp;dos &nbsp;17 &nbsp;homicídios relacionados &nbsp;diretamente &nbsp;às &nbsp;“guerras” &nbsp;de gangues &nbsp;ocorreram &nbsp;na &nbsp;própria &nbsp;zona &nbsp;norte de Cambé (71%), indicando a natureza predominantemente intracomunitária desses crimes. Entretanto, em alguns casos a violência letal transborda o território de origem das gangues e se manifesta em locais como o sistema prisional (quando alvos de retaliação estão presos), outras regiões da mesma cidade ou cidades da mesma região metropolitana. Embora as gangues sejam grupos fortemente vinculados aos seus territórios, seus &nbsp;membros &nbsp;se &nbsp;deslocam &nbsp;pelo &nbsp;espaço urbano. Ao fazê-lo abrem possibilidade para que &nbsp;os &nbsp;homicídios &nbsp;retaliatórios &nbsp;se &nbsp;difundam &nbsp;no espaço. Esse fenômeno explica parcialmente as semelhanças existentes nas curvas de homicídios de um mesmo conglomerado urbano – no nosso caso, Cambé e Região Metropolitana &nbsp;de &nbsp;Londrina. &nbsp;A menção do Interlocutor IV ao fato de o &nbsp;grupo &nbsp;do &nbsp;Marcelinho &nbsp;ter &nbsp;comemorado &nbsp;a morte de Lelo com um churrasco também é reveladora do modo como os crimes retaliatórios repercutem no interior das gangues e alimentam os conflitos. Eventos comemorativos desse tipo foram diversas vezes organizados pela &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Marcelinho &nbsp;para &nbsp;celebrar &nbsp;a morte de opositores. No contexto das rivalidades &nbsp;entre &nbsp;gangues, &nbsp;esses &nbsp;rituais &nbsp;servem ao propósito de revigorar o senso de pertencimento &nbsp;à &nbsp;banca, &nbsp;sua &nbsp;identidade &nbsp;e &nbsp;disposição para retaliar qualquer ofensa ou ameaça aos seus membros. Essa disposição é particularmente visível em vários atos praticados por membros da Banca do Marcelinho, bem como no protagonismo do grupo nas “guerras”. Logo após a execução pública ocorrida em Londrina, por exemplo, jovens ligados a Marcelinho violaram o túmulo de Lelo para deixar, &nbsp;ao &nbsp;lado &nbsp;do &nbsp;corpo, &nbsp;um &nbsp;recado &nbsp;para &nbsp;o &nbsp;seu braço direito: “Valdinho-Demorô-Morreu”. Esse &nbsp;ato &nbsp;“covarde”, &nbsp;por &nbsp;sua &nbsp;vez, &nbsp;explica &nbsp;a última retaliação registrada nessa “guerra”: o assassinato de Costelinha (16 anos), protagonista do episódio de violação do túmulo, por membros do grupo do Lelo pouco mais de três meses depois da execução de seu líder. A “guerra” entre a Banca do Marcelinho e &nbsp;a &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Nitão &nbsp;foi &nbsp;bem &nbsp;mais &nbsp;intensa e gerou dinâmicas retaliatórias mais longas, como &nbsp;mostra &nbsp;a &nbsp;Tabela &nbsp;1. &nbsp;Ela &nbsp;vitimou &nbsp;13 jovens, sete do lado de Marcelinho e cinco do lado de Nitão. Dentre as vítimas do lado de Nitão estão Chepa (28 anos) e Bola (35 anos), &nbsp;mortos, &nbsp;respectivamente, &nbsp;seis &nbsp;e &nbsp;sete anos &nbsp;depois &nbsp;do &nbsp;homicídio &nbsp;que &nbsp;marca &nbsp;o &nbsp;início do embate grupal. Esse homicídio inicial foi &nbsp;antecedido &nbsp;pelo &nbsp;assassinato &nbsp;do &nbsp;Skatista (19 &nbsp;anos; &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Nitão) &nbsp;por &nbsp;Branco &nbsp;(20 anos; Banca do Marcelinho), que mata para antecipar um possível ataque ao seu irmão, que &nbsp;anteriormente &nbsp;havia &nbsp;desferido &nbsp;“alguns tapas &nbsp;na &nbsp;cara” &nbsp;de &nbsp;Skatista. &nbsp;Esse &nbsp;homicídio não foi imediatamente retaliado pelo grupo de &nbsp;Nitão. &nbsp;Primeiro, &nbsp;porque &nbsp;o &nbsp;Skatista &nbsp;não tinha relações fortes com o grupo de Nitão; era &nbsp;um &nbsp;jovem &nbsp;oriundo &nbsp;de &nbsp;São &nbsp;Paulo, &nbsp;que havia &nbsp;se &nbsp;mudado &nbsp;para &nbsp;a &nbsp;casa &nbsp;dos &nbsp;avós &nbsp;em Cambé depois que os pais foram assassinados. Segundo, porque a Banca do Nitão não dispunha, &nbsp;naquele &nbsp;momento, &nbsp;de &nbsp;recursos &nbsp;para &nbsp;iniciar uma “guerra” com a Banca do Marcelinho, que reinava absoluta na cena criminal da zona norte de Cambé. Essa assimetria de poder &nbsp;e &nbsp;reputação &nbsp;entre &nbsp;as &nbsp;duas &nbsp;bancas &nbsp;é crucial para entender o estopim da “guerra”.

:::''“Interlocutor &nbsp;I: &nbsp;Nitão &nbsp;e &nbsp;Marcelinho? &nbsp;Foi porque do Lagartixa. [ele] ‘tirava’ eles pra macaco, né? ‘É seus macacos’, tirava os mole-ques. &nbsp;Porque &nbsp;os &nbsp;moleques &nbsp;era &nbsp;mais &nbsp;destaca-dão também, né? Não tinha uns pano, não dava rolezão e tal. ‘É seus mendigos’, ‘cadê as espingardas veia’. Porque eles [Banca do Marcelinho] estavam no auge naquela época, né? [...] você lembra, também, uma vez que a gente bateu o carro do Mineiro, isso foi uma das inflamadas [...] pra virar a ‘treta’ do Nitão. &nbsp;O &nbsp;Mineiro &nbsp;tinha &nbsp;comprado &nbsp;um &nbsp;Uno &nbsp;vermelho &nbsp;e &nbsp;nóis &nbsp;falou &nbsp;assim &nbsp;‘vamo &nbsp;roletá todas as avenidas’ [...]. Roletamo atravessando tudo, &nbsp;nóis &nbsp;roletô &nbsp;tudo, &nbsp;chegou &nbsp;na &nbsp;Jacomo Rosine nóis bateu no Chevette do Boy. Nóis desceu do carro [...] aí eu saí assim e fui batê no Boy ‘tá loco, mano’, [Boy]: ‘oh, é avenida, mano, cêis tá errado’. [Interlocutor I]: ‘vocêis vai pagá o bagulho e é o seguinte, vocêis tá na obrigação’. [...] aí nisso o Boy foi e comunicou o Lagartixa, porque o Boy ‘colava’ com os caras. O Lagartixa comuni-cou o Mineiro: ‘É o seguinte, ninguém vai pagar nada e você tá na obrigação de pagá o Chevette’. Aí o Mineiro chegou em mim e ‘deu a voz’, falei assim: ‘Demorô, então, nóis vai catá o Lagartixa’. Aí nisso ele nem procurô eu, procurô o Nitão e os caras. Daí o Nitão desceu e deu tiro no braço do Lagartixa &nbsp;[risos]. &nbsp;Aí &nbsp;começou &nbsp;essa &nbsp;guerra, &nbsp;‘ah, os neguim tá querendo guerra’, aí os caras subiam lá e dava tiro na casa do Nitão.”''
A Banca do Nitão até então não figurava entre as mais populares da região. Ela era formada por um pequeno grupo de jovens tratados &nbsp;como &nbsp;escória &nbsp;entre &nbsp;as &nbsp;bancas &nbsp;e &nbsp;frequentemente &nbsp;desrespeitados &nbsp;pelos &nbsp;adolescentes &nbsp;da &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Marcelinho. &nbsp;O &nbsp;pequeno grupo era formado, basicamente, por colegas moradores &nbsp;da &nbsp;mesma &nbsp;rua, &nbsp;aos &nbsp;quais &nbsp;se &nbsp;atribuiu o envolvimento em pequenos assaltos e o homicídio de um homossexual na região central &nbsp;– &nbsp;o &nbsp;que &nbsp;não &nbsp;é &nbsp;consenso &nbsp;entre &nbsp;os interlocutores. &nbsp;Às &nbsp;ofensas &nbsp;aos &nbsp;adolescentes &nbsp;que andavam com Nitão se somou o evento inesperado narrado pelo Interlocutor I. Esses fatores geraram a primeira agressão de Nitão contra o grupo de Marcelinho: um tiro no braço de Lagartixa. Depois disso, o grupo do &nbsp;Marcelinho &nbsp;deu &nbsp;início &nbsp;a &nbsp;uma &nbsp;série &nbsp;de ataques. &nbsp;O &nbsp;primeiro &nbsp;foi &nbsp;para &nbsp;mostrar &nbsp;seu &nbsp;poderio bélico a Nitão, que teve a casa alvejada &nbsp;por &nbsp;dezenas &nbsp;de &nbsp;disparos &nbsp;de &nbsp;arma &nbsp;de fogo. Ninguém foi vitimado no ataque, mas por &nbsp;conta &nbsp;dele &nbsp;a &nbsp;família &nbsp;de &nbsp;Nitão &nbsp;abandonou &nbsp;o &nbsp;bairro &nbsp;Ana &nbsp;Rosa &nbsp;às &nbsp;pressas. &nbsp;Embora &nbsp;longe &nbsp;do &nbsp;epicentro &nbsp;do &nbsp;conflito, &nbsp;a &nbsp;família de Nitão contribuiria para a “guerra” mais adiante, levantando recursos financeiros para a compra de armas, na esperança de contrabalançar &nbsp;o &nbsp;poder &nbsp;dos &nbsp;rivais, &nbsp;que &nbsp;financiavam suas atividades por meio da venda de drogas e assaltos. &nbsp;O &nbsp;primeiro &nbsp;homicídio &nbsp;dessa &nbsp;guerra &nbsp;foi ocorrer &nbsp;tempos &nbsp;depois, &nbsp;com &nbsp;Zoinho &nbsp;(20 &nbsp;anos; &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Marcelinho) &nbsp;matando &nbsp;o &nbsp;Vermelhinho &nbsp;(23 &nbsp;anos; &nbsp;Banca &nbsp;do &nbsp;Nitão) &nbsp;no &nbsp;início &nbsp;de &nbsp;setembro &nbsp;de &nbsp;2004. &nbsp;Esse &nbsp;assassinato &nbsp;foi &nbsp;sucedido &nbsp;pelos &nbsp;11 &nbsp;outros &nbsp;descritos &nbsp;na &nbsp;Tabela 1. Marcelinho (15 anos) seria morto pelo grupo de Nitão um ano e sete meses depois, junto com o tio (38 anos), em frente à sua casa. Seis meses depois seria morto seu &nbsp;irmão. &nbsp;Nitão, &nbsp;por &nbsp;sua &nbsp;vez, &nbsp;sobreviveu ao &nbsp;conflito, &nbsp;mas &nbsp;perdeu &nbsp;o &nbsp;irmão, &nbsp;Nitinha (19 anos), assassinado em outubro de 2010 em &nbsp;um &nbsp;tiroteio &nbsp;ocorrido &nbsp;em &nbsp;um &nbsp;posto &nbsp;da &nbsp;região central de Cambé, que feriu aleatoriamente &nbsp;outras &nbsp;três &nbsp;pessoas &nbsp;que &nbsp;estavam no &nbsp;local. &nbsp;Os &nbsp;assassinatos &nbsp;de &nbsp;Marcelinho &nbsp;e &nbsp;Nitinha ilustram como conflitos de gangues também contribuem para a difusão da violência por meio da vitimização de pessoas de fora do conflito.
== Os  homicídios  intragangues ==
Além das dinâmicas homicidas descritas anteriormente, &nbsp;territórios &nbsp;marcados &nbsp;pela &nbsp;presença &nbsp;de &nbsp;gangues &nbsp;também &nbsp;são &nbsp;impactados pelos &nbsp;conflitos &nbsp;intragangues &nbsp;com &nbsp;desfecho letal. A nossa amostra registra quatro homicídios dessa natureza entre 2001 e 2006. Dois casos são suficientes para mostrar como esses conflitos podem ocorrer. O primeiro envolveu uma desavença relacionada ao consumo de drogas, atividade comum entre os membros da chamada Banca dos Noias, que levou Per-neta (22 anos) a matar Alexzinho (27 anos) a golpes de faca. “Os dois estavam tomando cachaça quando decidiram comprar uma pedra de crack para fumar. Perneta teria empres-tado &nbsp;cinco &nbsp;reais &nbsp;para &nbsp;Alexzinho &nbsp;comprar &nbsp;a &nbsp;droga. &nbsp;Só &nbsp;que &nbsp;Alexzinho &nbsp;acabou &nbsp;fumando sozinho”, &nbsp;contou &nbsp;o &nbsp;delegado &nbsp;da &nbsp;época. &nbsp;O homicídio &nbsp;ocorreu &nbsp;em &nbsp;março &nbsp;de &nbsp;2002. &nbsp;O segundo caso foi uma “queima de arquivo” dentro da Banca do Nitão, datada em setembro de 2006. O homicídio envolveu dois jovens, Noinha e Beringela, que antes tinham tramado e executado a tiros um membro da Banca do Marcelinho &nbsp;chamado &nbsp;Branco &nbsp;(23 &nbsp;anos). &nbsp;O autor do disparo foi Noinha; Beringela, por sua &nbsp;vez, &nbsp;apenas &nbsp;“passou &nbsp;um &nbsp;pano”. &nbsp;Meses depois Beringela matou a pauladas Noinha, que &nbsp;supostamente &nbsp;estava &nbsp;“falando &nbsp;demais” sobre o assassinato de Branco.
==== Considerações finais ====
O &nbsp;estudo &nbsp;de &nbsp;caso &nbsp;que &nbsp;realizamos &nbsp;em &nbsp;Cambé &nbsp;revela &nbsp;que &nbsp;as &nbsp;dinâmicas &nbsp;homicidas são fortemente impactadas por conflitos intragangues; &nbsp;disputas &nbsp;por &nbsp;poder &nbsp;e status &nbsp;entre &nbsp;membros &nbsp;de &nbsp;gangues; &nbsp;e, &nbsp;principalmente, por “guerras” de gangues que geram ações e reações que difundem a violência letal no tempo e no espaço. Esse efeito de contágio produzido pelos conflitos de gangues explica em grande medida por que a violência letal cresce e persiste por períodos relativamente longos em determinados territórios. Os homicídios retaliatórios típicos das “guerras” de gangues formam redes de conflitos grupais que &nbsp;persistem &nbsp;independentemente &nbsp;da &nbsp;morte &nbsp;ou &nbsp;prisão &nbsp;de &nbsp;seus &nbsp;membros. &nbsp;Nesse &nbsp;sentido, &nbsp;políticas públicas meramente repressivas baseadas na prisão de membros de gangues tendem a ser ineficazes. Dinâmicas homicidas motivadas por gangues demandam políticas públicas &nbsp;mais &nbsp;amplas, &nbsp;capazes &nbsp;de &nbsp;combinar &nbsp;repressão qualificada, ações de mediação voltadas à interrupção da reciprocidade violenta e intervenções sociais focalizadas em jovens. O desenho &nbsp;de &nbsp;políticas &nbsp;com &nbsp;essas &nbsp;características &nbsp;demanda grande capacidade de governança por &nbsp;parte &nbsp;de &nbsp;atores &nbsp;estatais &nbsp;e &nbsp;não &nbsp;estatais &nbsp;com &nbsp;responsabilidades &nbsp;diretas &nbsp;ou &nbsp;indiretas &nbsp;na área de segurança. Infelizmente, no Brasil essa capacidade tem sido problemática.

Para acompanhar os gráficos e referências bibliográficas, [https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/188577/174175 clique aqui]. Para acessar os demais verbetes do Dossiê, [https://wikifavelas.com.br/index.php/Dossi%C3%AA_de_Seguran%C3%A7a_P%C3%BAblica_(colet%C3%A2nea)#Os_textos_da_colet.C3.A2nea clique aqui].&nbsp;

== Referências ==
<references />
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