Racismo Religioso

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 18h19min de 14 de junho de 2023 por Clara (discussão | contribs)
Autoria: Carolina Rocha.

De acordo com algumas concepções africanas, a palavra é regida pelo elemento fogo. Ela pode tanto queimar, quanto aquecer. É por isso que ativistas e defensores de direitos humanos ligados ao movimento negro reconhecem a importância de refletir sobre termos amplamente absorvidos pelo senso comum. Neste verbete, Carolina Rocha traz elementos para discussão sobre o racismo religioso no Brasil.

Os brancos evangélicos estão sempre atrás do diabo, e quem é o diabo? Ele é um espírito que está sempre em um negro. A caça ao diabo começa a eliminar aos poucos a cultura e memória coletiva (Paulina Chiziane)

Apresentação

Desde o jardim de infância, eu aprendi que anjinhos são loirinhos e diabinhos são pretinhos, minha professora fazia, inclusive, chifrinhos com o cabelo crespo do Josué, meu coleguinha. Não o chamava de preto, mas o menino já havia sido um macaquinho simpático no Dia do Meio Ambiente e o saci na Festa do Folclore. Eu gostaria que essa fosse apenas a minha história, mas é a de tantas outras pessoas negras neste país. Gostaria de ter lido ainda pequena a obra da escritora Sonya Silva, somada a tantas outras escritoras da literatura afro-brasileira, que, preocupada com as narrativas construídas para crianças negras, criou uma história com um anjo de chocolate[1]. Mas eu só a conheci já com 30 anos.

Vivemos em um país majoritariamente cristão. Existem símbolos que exteriorizam essa fé nas mais diversas instituições públicas. O nosso próprio modelo educacional é herdeiro dessa lógica. Sem dúvida, as diversas religiões que professam fé em Cristo não formam um bloco coeso; existem, diferenças importantes entre os grupos, inclusive dentro do mesmo segmento. Entretanto, acreditar e defender a doutrina cristã é, historicamente, no Brasil, muito mais palatável e aceitável do que pertencer às diversas denominações minoritárias que defendem crenças fora desse sistema, que se impôs de forma proselitista e bélica em diversos territórios no mundo, em detrimento, inclusive, de culturas milenares.

Catolicismo e protestantismo foram amplamente perseguidos e ameaçados em outros momentos históricos, mas em nosso tempo vivemos uma era cristã, até na contagem dos dias, no modelo do nosso calendário ou nos símbolos de nossas cédulas de dinheiro, e, ao contrário de antes, foram esses grupos que, institucionalmente, associados a políticas de Estado, perseguiram, mataram e criminalizaram pessoas em nome da sua necessidade de expansão e da defesa de uma verdade única. Ainda que matar, roubar e destruir não sejam princípios vistos como corretos em suas doutrinas, classificados, inclusive, como pecados, foram utilizados como estratégias de dominação de territórios e de culturas, tidas como inferiores. Temos as Cruzadas, o Tribunal da Santa Inquisição, a Colonização, o Tráfico Transatlântico Negreiro, a Caça às Bruxas, a Escravidão, dentre outras empreitadas, com consequências muito nítidas até os dias de hoje (racismo, intolerância, apropriação, genocídio), como exemplificação.

Grupos pentecostais e neopentecostais são, muitas vezes, definidos a partir de estereótipos, limitados e limitantes, considerados “um bando de ignorantes e fanáticos”. Contudo, mesmo passíveis de generalizações preconceituosas e difamatórias, esses segmentos não convivem com uma frequente ameaça à sua existência ou à sua integridade física, motivada pela sua escolha religiosa. Não são as principais vítimas dos canais de denúncia nos casos de intolerância religiosa, mas, ao contrário: figuram entre os principais protagonistas dessas agressões. Eu nunca ouvi relatos de pessoas que invadem igrejas “evangélicas” para quebrar, queimar ou saquear os seus templos, dizendo que não podem exercer sua fé e que são criminosos por isso. O mais próximo que vi disso foi no caso dos pastores brasileiros neopentecostais “expulsos” de países africanos, como Angola. Porém, nessa situação, sua atuação nesses territórios estava marcada por essa série de crimes comprovados, como escândalos de corrupção, desvio e lavagem de dinheiro, racismo e abuso de autoridade.

Em contrapartida, as/os adeptas/os das religiões afro-brasileiras vivem em constante tensão, dentro e fora dos terreiros. Crianças de axé são alvo de apedrejamentos públicos e impedidas de frequentarem a escola; mães e pais de santo tem seus terreiros invadidos e queimados; filhas/os de santo são impedidas/os de circularem por alguns territórios externando os símbolos de sua devoção; dentre outros exemplos. Ou seja, embora a relação entre religião e criminalidade seja constante em fenômenos humanos, essa ligação se torna muito mais letal para alguns grupos do que para outros. Temos relatos, rumores e notícias de varejistas de drogas que procuravam lideranças de terreiro para obterem magias de proteção, tais como o popular “fechamento de corpo”, mas nenhum episódio dos dirigentes desses espaços orientando o fechamento de igrejas em virtude de uma escolha de fé. Nenhum coletivo está a salvo de sofrer como alvo de perseguição e preconceito na sociedade em que vivemos, entretanto, nem todos serão ameaçados e/ou assassinados em função disso. Quais são mesmo os corpos matáveis?

De acordo com o Atlas da Violência 2020, de 2008 a 2018, 628.595 pessoas foram assassinadas no país. O perfil das vítimas aponta que 91,8% eram homens e 8% eram mulheres. O risco de um homem negro ser assassinado é 74% maior, e para as mulheres negras a taxa é de 64,4%. Os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentaram 11,5% em uma década, ao passo que, entre 2008 e 2018, a taxa entre não negros (brancos, amarelos e indígenas) fez o caminho inverso, apresentando queda de 12,9%. Em relação às taxas de encarceramento na cidade, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com dados referentes a 2019, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Atualmente, a cada três presos no sistema carcerário, dois são negros.

E ainda segundo o Disque 100, serviço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no primeiro semestre de 2021, o estado do Rio de Janeiro ultrapassou São Paulo e assumiu o primeiro lugar em denúncias registradas por vítimas de intolerância ligadas ao candomblé, à umbanda e a outras religiões de matriz africana. 71% das vítimas de intolerância religiosa são mulheres e praticantes de candomblé e de umbanda (TINOCO; GUIMARÃES, 2021, n. p.).

“A culpa é do diabo”: a longa duração do racismo e da intolerância religiosa no Brasil

No período colonial, era expressamente proibido professar outra religião que não fosse a da Igreja Católica Apostólica Romana. E mais do que isso, a cultura douta europeia cristã — com seus códigos, ritos, práticas e formas de construção de pensamento, entendimento e conhecimento — colocou-se como parâmetro único de civilidade e humanidade. Enquanto território colonizado, nós herdamos essa sentença. É o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019) chama de “perigo de uma história única”. E, como nos diz o sociólogo e jornalista Muniz Sodré (2017), é importante compreender as consequências disto a partir do pressuposto de que “toda verdade única é germe de violência”.

Durante o Império, o catolicismo continuou a vigorar como a religião oficial no país; assim, o artigo 176 do código criminal de 1830, por exemplo, punia a celebração, a propaganda e o culto de outras religiões (BRASIL, 1886). O código penal de 1890 também criou mecanismos legais para combater os chamados “feiticeiros” (BRASIL, 1890). Só a primeira Constituição da República, em 1891, torna o Estado laico e prevê a separação entre religião e poder político. A partir daí a liberdade religiosa passou a ser defendida por lei, mas isso não impediu, na prática, a perseguição às religiões afro-brasileiras durante todo século XX e até os dias atuais (BRASIL, 1934). Elas foram — e ainda são — alvo da Igreja católica e do Estado, que procurou estigmatizar seus ritos e seus símbolos, ligando-os à criminalidade e ao Diabo. Na contemporaneidade, as igrejas neopentecostais são acusadas de preconceito, de violência, de fundamentalismo e de intolerância, pois sua teologia tem levado até as últimas consequências discursos e ações de ódio e de demonização.

Operamos em uma dinâmica que separa as pessoas de forma binária entre o “eu” e as/os “outras/os”, entre sujeitos/as e objetos, classificados e hierarquizados. Em Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, a autora Grada Kilomba traz a definição da intelectual bell hooks sobre sujeito e objeto e a importância da escrita como ferramenta de subversão das lógicas coloniais, ao possibilitar legitimar/criar novas narrativas e histórias, tornando-se, portanto, um ato político:

bell hooks usa estes dois conceitos de "sujeito" e "objeto" argumentando que sujeitos são aqueles que “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias" (hooks, 1989, p. 42). Como objetos, no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identidades são criadas por outros, e nossa "história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles que são sujeitos." (hooks, 1989, p. 42). Essa passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político. Além disso, escrever é um ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/escritor "validada/o" e "legitimada/o" e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada (KILOMBA, 2019a, p. 28, grifos da autora).

Grada Kilomba define esse processo da seguinte forma: “A política do colonialismo é a política do medo. É criar o 'outro', criar corpos desviantes e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-nos deles como barreiras, como passaportes e fronteiras” (KILOMBA, 2019b, n. p.). Assim, é definido e reforçado o etnocentrismo, “renegar o Outro é de certa forma afirmar a própria identidade a partir dessa negação. Por conta da negação da religião e da cultura do “Outro”, a humanidade assistiu, no decorrer de sua história, a violações frequentes à chamada liberdade religiosa” (NOGUEIRA, 2020, p. 43).

O antropólogo Kabengele Munanga (2005-6), grande referência nos estudos sobre raça, racismo e identidade no Brasil, faz um apanhado histórico de como esses conceitos foram se operando dentro da civilização ocidental. Diante das invasões do século XV e do contato frequente com outros povos, os europeus colocaram em xeque o conceito de humanidade que até então conheciam: os “outros” são bestas ou seres humanos como nós? Assim, Munanga diz que, até o século XVII, essas explicações buscavam fundamentações em bases teológicas. Em seus textos e em suas conferências, o mestre quilombola Antônio Bispo faz sempre uma observação interessante: mostra que em grande parte dos escritos e dos documentos produzidos pela Igreja colonial o que aparece não são as definições de “eu” e dos “outros” baseadas em critérios de cor de pele ou de raça, mas por meio do binômio “cristãos” e “pagãos”. O autor traz alguns fragmentos de bulas papais para exemplificar:

Nós [...] concedemos livre e ampla licença ao rei Afonso para invadir, perseguir, capturar, derrotar e submeter todos os sarracenos e quaisquer pagãos e outros inimigos de Cristo onde quer que estejam seus reinos [...] e propriedades e reduzi-los à escravidão perpétua e tomar para si e seus sucessores seus reinos [...] e propriedades" (Bula "Romanus Pontifex", Papa Nicolau V, 08 de janeiro de 1455). (SANTOS, 2015, p. 28. Grifo do autor).

É importante ressaltar que, embora essa distinção faça muito sentido, a primeira origem de racismo tem como explicação uma história bíblica, derivada do mito de Cam, presente no nono capítulo da Gênese, na qual Noé, irritado com os comentários irônicos dos seus filhos em relação à posição em que estava deitado, descansando após muito trabalho na condução da sua arca no dilúvio, amaldiçoou seu filho Cam, dedurado pelos irmãos, e todos os seus descendentes, condenando-os à escravidão.

De todo modo, cronistas e eclesiásticos europeus descreveram as práticas mágico-religiosas-culturais afro-pindorâmicas[2], utilizando como parâmetro as concepções e as terminologias cristãs e demonológicas que lhes eram familiares. Consequentemente, os/as responsáveis pelo espaço sagrado foram quase sempre chamados e perseguidos como bruxos/bruxas e feiticeiros/feiticeiras. Dessa forma, os rituais heterodoxos das mais diversas populações que existiram na chamada América Portuguesa foram reduzidos ao seu potencial para o mal, sendo demonizados e criminalizados. Foram colocados diabos, que não pertenciam ao imaginário desses povos, em quase todas as representações e descrições sobre a colônia. O próprio nome da terra — “Brasil” — remetia, para os religiosos da época, ao Diabo, pois advinha da árvore infernal de pau vermelho que roubou o antigo e santo nome: “Terra de Santa Cruz”.

O que os povos ocidentais cristãos classificaram como religião diz respeito não só ao espaço de vivências da espiritualidade, da ritualística e das devoções dos povos afro-pindorâmicos, mas à sua identidade coletiva, aos seus valores socioculturais, ao seu entendimento de mundo, de humanidade, de natureza, de comunidade e de vida, que eram/são distintos. A negação e o aniquilamento do “outro” foram recursos usados para a afirmação de si.

A partir do século XVIII, com o questionamento dos filósofos iluministas sobre o monopólio de conhecimento produzido no interior das igrejas, associado aos poderes dos reis, os europeus começaram a traçar uma explicação para as diferenças baseada na racionalidade universal e em uma história cumulativa e linear. Assim, começaram a operar o conceito de raça, já existente, na época, nas ciências naturais. O problema maior não foi classificar os seres humanos em raças, afinal, a própria história mostra que essa é uma necessidade humana constante, mas hierarquizá-las. Primeiro, a cor da pele foi o elemento fundamental para operacionalizar essa construção; depois, no século XIX, agrega-se a esse modelo outras características, ligadas à morfologia, tais como as formas do nariz, da boca, do queixo e do crânio:

assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação. A classificação da humanidade em raças hierarquizadas desembocou numa teoria pseudo-científica, a raciologia, que ganhou muito espaço no início do século XX. Na realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana. (MUNANGA, 2003, p. 5).

No século XXI, com o desenvolvimento da genética, a ideia de raça, do ponto de vista biológico, é refutada, pois descobre-se que não há no sangue humano componentes químicos capazes de estabelecer distinções e hierarquias. Tornou-se, portanto, um conceito carregado de ideologia, muitas vezes escamoteada por relações de poder e de dominação, expressando uma realidade social e política:

o racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, linguísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo à qual ele pertence (MUNANGA, 2003, p. 8).

Embora a ciência ocidental tenha provado que, do ponto de vista biológico, raça não existe, essa constatação é insuficiente para fazer desaparecerem as categorias mentais, alterar os comportamentos sociais e transformar o cerne das instituições, projetos e dinâmicas nutridas por essa lógica. Assim, como diz o professor Munanga (2005-6, p. 10), “o difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos”, em mais de três séculos de elaboração dessas teorias, amplamente disseminadas.

O conceito de raça se opera, hoje, como uma construção sociológica e uma categoria social. Algumas vertentes têm defendido a extinção do termo e se recusado a fazer um debate sobre racismo, sob alegação de que ele não é operante, ignorando, de forma intencional, o quanto está arraigado no imaginário social e se recusando, portanto, a admitir um grave problema. No Brasil, as construções teóricas, intelectuais e políticas em torno do mito da democracia racial adiaram bastante um debate sólido e honesto sobre a implementação das políticas de “ação afirmativa” e a necessidade de um sistema educacional que esteja comprometido com uma história diversa e múltipla.

Escritores como Frantz Fanon (1952), Lélia Gonzalez (1980), Grada Kilomba (2019a) e outras recorrem à psicanálise para destrinchar conceitos como negação, self e ego, que contribuem para o entendimento de como se constrói esse racismo. Dessa forma,

no racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial: “Elas/es querem tomar o que é Nosso, por isso Elas/es têm de ser controladas(os).” A informação original e elementar – “Estamos tomando o que é Delas(es)” – é negada e projetada sobre a/o “Outra/o” – “elas/eles estão tomando o que é Nosso” –, o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano. Esse fato é baseado em processos nos quais partes cindidas da psique são projetadas para fora, criando o chamado “Outro”, sempre como antagonista do “eu” (self). [...] Aspectos desonrosos, cuja intensidade causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetados para o exterior como um meio de escapar dos mesmos. Em termos psicanalíticos, isso permite que os sentimentos positivos em relação a si mesma/o permaneçam intactos – branquitude como a parte “boa” do ego – enquanto as manifestações da parte “má” são projetadas para o exterior e vistas como objetos externos e “ruins” (KILOMBA, 2019a, p. 34-37, grifos da autora).

Esses conceitos ajudam a compreender como o Diabo foi usado, na sociedade eurocristã ocidental, como uma máscara sem rosto, convenientemente colocada na face de qualquer um/a capaz de oferecer algum risco ao controle político-religioso vigente, dando vasão à necessidade de exteriorizar medos, culpas e tragédias e terceirizando a responsabilidade pelos dilemas pessoais e sociais. E o Diabo nunca age sozinho, mas sim por meio das/os agentes, inimigas/os, imaginárias/os e/ou efetivas/os, da Igreja cristã, acusadas/os de heresia (crimes contra a fé). Foram agentes do Diabo as mulheres, transformadas nas ameaçadoras bruxas de Satã, com a criminalização da feitiçaria e a suposição, amplamente defendida nos manuais de demonologia, como o Malleus Maleficarum[3], de que esse era o gênero mais propenso a pactuar com o Demônio, os mouros, os judeus, dentre outras/os, e, após o século XV, foram opositoras/es da cristandade todos os “outros” povos “descobertos” pelos países europeus e alvos de colonização, dentre os quais a imensa diversidade das existências afro-pindorâmicas.

Desse modo, é preciso eliminar todos os vestígios da presença do Diabo, por todos os meios necessários, inclusive a “morte justa”. De acordo com essa mentalidade, para não condenar o plano de Deus para toda a humanidade, os fins justificam os meios: colonização, cruzadas, inquisição, invasão, encarceramento, silenciamento, tortura, aniquilamento. O cristianismo destituiu de poder as pessoas responsáveis por mobilizar saberes ancestrais, familiares, ritualísticos e políticos diversos, pois entende que a possibilidade de atuação e de intervenção eficaz de mulheres como parteiras, benzedeiras, anciãs, feiticeiras, iyalorixás e de homens como pajés, sacerdotes, babalaôs não vem do seu conhecimento, das suas habilidades, da sua preparação, das suas pesquisas, da sua inteligência, da sua criatividade/inventividade e/ou do seu destino, mas sim do suposto pacto realizado por elas/eles com o Diabo. Não se nega a eficácia de suas intervenções, mas lhes destitui a fonte e o protagonismo do poder; é inadmissível reconhecer como fruto de outra coisa, senão do próprio Demônio cristão.

Agora, uma coisa é certa: não existe tentativa de dominação/opressão sem resposta, sem estratégia, ainda que dentro de relações assimétricas e hierarquizadas. É impossível negar a violência do projeto colonialista, mas é igualmente inaceitável deixar de destacar a capacidade de produção de vida, de existência, dentro de uma política de morte. E os trunfos das sociedades afro-pindorâmicas foram exatamente a sua possibilidade de encantamento do mundo, a força da sua magia e a sua capacidade de amalgamar e ressignificar experiências, características que foram, simultaneamente, potências e vulnerabilidades. De um lado temos o projeto de poder vigente e as diretrizes impostas pelas instituições, de outro as práticas, as reinvenções cotidianas, populares, que transitam circularmente e ultrapassam os limites impostos entre o sagrado e o profano. Como diz um ponto popular de pombogria dentro dos terreiros:

Foi condenada

Pela lei da inquisição

Para ser queimada viva

Sexta-feira da paixão

O padre rezava

E o povo acompanhava

Quanto mais o fogo ardia

Ela dava gargalhada...

Observo muitas pessoas nos tempos atuais dizendo que algumas declarações sustentadas por igrejas e por fiéis neopentecostais são frutos da “ignorância”, principalmente os discursos que responsabilizam o Diabo — e suas/seus intermediárias/os — pelos males do mundo. Essa é uma inverdade, pois tal construção é fruto de racionalidade, ainda que esteja a serviço de uma ideologia, com vertente religiosa. Da mesma forma que o racismo, muitas vezes também visto como “ignorância”, é resultado de uma construção filosófica e científica. Por isso, para Silvio Almeida (2019), não existe racismo sem uma teoria racista.  Nesse caso, a situação é ainda mais emblemática, porque foi/é uma teoria elaborada pela ciência, que possui autoridade, status de incontestabilidade.

Em relação à tentativa de solucionar ou de amenizar desafios contemporâneos como o racismo e a intolerância religiosa, há um argumento muito comum, amplamente mobilizado, que passa pela ideia de que o problema é a falta de educação, entretanto: “No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 71). Afinal, todas as teorias mencionadas anteriormente faziam parte do programa educacional religioso e laico. É nítido que a educação que defendemos é distinta desses modelos conservadores e opressores, que a escrita é um importante campo de disputas da luta antirracista, que precisamos elaborar e difundir outras narrativas e versões da história e impulsionar letramento racial, mas esse debate precisa ir além: “pois é preciso discutir a escravidão e o racismo sob o prisma da economia política” (ALMEIDA, 2019, p.182). Além disso,

o racismo não é um resto da escravidão, até mesmo porque não há oposição entre modernidade/capitalismo e escravidão. A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como desassociar um do outro (ALMEIDA, 2019, p. 183).

Assim, quando nos debruçamos sobre as construções históricas de formação da sociedade brasileira, é perceptível que o racismo é um dos fios condutores para que possamos compreender as articulações e as ações de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Existem alguns conceitos que vêm norteando os debates sobre os casos de violência religiosa a terreiros: intolerância religiosa, racismo religioso, terrorismo e fundamentalismo. Concentrar-me-ei aqui no que me parece ser mais condizente com as dinâmicas observadas, os dois primeiros, uma vez que os termos “racismo religioso” e “intolerância religiosa” estão intimamente entrelaçados dentro dos contextos social e político aos quais são vinculados. A classificação dos atos de violência religiosa como “intolerância religiosa” ou “racismo religioso” alimentam mudanças significativas nas metodologias e nas epistemologias de análises dentro e fora dos espaços acadêmicos.

Intolerância religiosa e racismo religioso

Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos, conforme se observa:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (BRASIL, 1988, n. p.).

Por sua vez, o uso do termo “racismo religioso” e suas implicações epistemológicas, apesar de defendido por algumas/alguns autoras/es, ainda está em construção. De forma geral, o termo “racismo religioso” tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. Grada Kilomba destaca que “o racismo, por sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídias, emprego, educação, habitação, saúde [...]” (KILOMBA, 2019a, p. 76). Para alguns, contudo, esse termo é limitado, pois enfatiza o condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Nesse caso caberia o questionamento: como dizer que uma pessoa não negra, adepta das religiosidades afro-brasileiras, sofre “racismo religioso”, uma vez que as práticas de racismo estão ligadas às estruturas de poder, dimensões políticas e sociais? Quem defende o termo argumenta que, no caso das violências que atingem as religiões de origem africana no Brasil, o componente nuclear é o racismo. Nesse caso, parte-se do entendimento de que o objeto do racismo não é uma pessoa em particular, mas certa forma de existir. “Trata-se da negação de uma forma simbólica e semântica de existir, de ser e estar no mundo” (NOGUEIRA, 2020, p. 91), de um racismo que está, portanto, incidindo além do genótipo ou do fenótipo, mas na própria cultura (tradições de origem negro-africana). Para essa vertente, chamar o processo sistemático de perseguição às Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro)[4] de “intolerância religiosa”, comparando-o à hostilidade sofrida, por exemplo, por outros grupos religiosos, como os cristãos, é diminuir e invisibilizar a gravidade e a complexidade do fenômeno, que ultrapassa as dimensões meramente espirituais/devocionais/ritualísticas:

Apesar dos processos de invisibilidade e agressões sistêmicas a essas comunidades, muitas de suas lideranças possuem plena consciência da estrutura social racista e dos agentes que promovem a manutenção da intolerância religiosa. [...]. Assim demarcam a gravidade e, sobretudo, a especificidade da experiência de uma violência perpetrada contra as religiões de matriz africana, que tem no racismo seu sustentáculo de legitimação e ação distribuidora. É no racismo que está o componente nuclear das diversas formas de violência contra as CTTro. O racismo evidencia igualmente como as agressões não se circunscrevem a um caráter puramente religioso, mas há uma dinâmica civilizatória repleta de valores, saberes, filosofias, sistemas cosmológicos, em suma, modos de viver e existir negro- africano amalgamados na CTTro. (NOGUEIRA, 2020, p. 84-88).

O que a maioria desses autores ressalta é que existe um amplo histórico de perseguição à cultura afro-brasileira no Brasil, do período colonial até os dias atuais. O ataque aos terreiros não é um resquício da escravidão, assim como bem pontua Silvio Almeida (2019); o racismo também não, mas é uma engrenagem própria do capitalismo e da racionalidade moderna, constantemente reajustada por novos motivadores, repertórios e agentes. Seja no período colonial, no Império, na República ou nos dias atuais, a criminalização continua, “ou seja, ‘o mal’ fora localizado nas populações negras, nas atividades provenientes de religiões de matrizes africanas que continuariam criminalizadas e perseguidas ao longo da história do nosso país” (MOTA, 2018, p. 29).

Nesse contexto, ao longo da história do Brasil, as religiões afro-brasileiras foram submetidas não apenas à marginalização social, mas também à repressão do Estado, por meio de seu aparato jurídico-político e policial. Embora atualmente assuma outras roupagens, o racismo religioso segue sendo reproduzindo pelos entes púbicos – notadamente pelo sistema de justiça –, como uma espécie de ciclo vicioso de repetição do passado. A criminalização das religiões de matriz africana teve início antes mesmo de o Brasil possuir uma ordem jurídica própria, quando ainda era regido pelas Ordenações do Reino de Portugal. (...). De fato, as religiões afro-brasileiras foram as únicas que tiveram objetos sagrados sistematicamente apreendidos ao longo da história brasileira e expostos em museus do crime, fato que evidencia a criminalização seletiva do exercício de um direito fundamental: a liberdade de crença (VAZ, 2021, n. p.)[5].

E, ainda:

os discursos médicos e jurídicos ajudaram a criminalizar as religiões de matriz africana, a capoeiragem, as batucagens, a vadiagem, o curandeirismo. Podemos ver no artigo 179 do código criminal de 1831, que defendia as práticas religiosas desde que não ofendessem a moral pública, moral pautada no cristianismo e nas consequências da colonialidade. Ou no artigo 157 do Código penal de 1890 que “proibia o espiritismo, a magia e seus sortilégios” (SERRA, 2011, p.16). O artigo citado dava margem para as interpretações policiais, que perseguiram aquilo que denominavam falso ou baixo espiritismo – leia-se: religiões de matriz africana. O caráter das discussões nesses períodos foi embasado por considerações de que essas religiões seriam expressões do primitivismo, da inferioridade e do atraso das populações negras. Era assunto de médico, sobretudo de psiquiatras, e de polícia (MOTA, 2018, p. 27-8).

Toda essa criminalização e perseguição são frutos de um sistema capitalista, produtor de uma ordem social eurocentrada, que está legitimada em diversas esferas. Assim, as/os fiéis da religião cristã estão mais protegidas/os da violência por motivações religiosas, por serem adeptos de uma fé hegemônica, que não sofre opressão histórica em virtude do racismo e da colonização como as religiões de matriz africana. Entretanto, antes de falarem em nome de Deus, nas periferias e nas favelas das grandes cidades urbanas deste país, esses corpos têm cor, são em maioria negros. Ainda que frequentar igrejas, sair “bem vestido” e carregar uma bíblia debaixo do braço, contrariando o estereótipo padrão ligado aos jovens negros favelados, “confundidos” com “bandidos” usando bermuda, boné e chinelo, garanta a essas pessoas algum status de respeitabilidade, elas continuam sendo alvo. Como diz Frantz Fanon (2008), “pele negra, máscaras brancas”. A máscara branca da religião cristã confere proteção limitada. Na dinâmica da “guerra”, são os corpos suspeitos, massivamente assassinados em um genocídio deflagrado. Silvio Almeida nos lembra que a metáfora da guerra é uma produção colonial e dos estados escravistas, que instauram uma nova configuração do terror nas dinâmicas humanas que a norma jurídica não alcança. É o que o filósofo Achille Mbembe (2018) chama de necropolítica, ou seja, uma política de morte nas tecnologias de controle social:

a peculiaridade do terror colonial é que ele não se dá diante de uma ameaça concreta ou de uma guerra declarada; a guerra tem regras; na guerra há limites. Mas e na ameaça da guerra? Qual o limite a ser observado em situações de emergência, em que sei que estou perto da guerra e que meu inimigo está próximo? Não seria um dever atacar primeiro para preservar a vida dos meus semelhantes e manter a “paz”? É nesse espaço de dúvida, paranoia, loucura que o modelo colonial de terror se impõe. (ALMEIDA, 2019, p. 119-120).

Qual o papel das instituições públicas na superação deste tipo de racismo?

O racismo religioso está presente na omissão das autoridades públicas em dar respostas à grande parte das cobranças feitas acerca dos casos de violência a terreiros, na morosidade em suas tratativas com a população negra e de axé do país e no desinteresse em fazer um debate amplo e qualificado para a construção de políticas públicas assertivas. Além de ocultarem que o protagonismo da barbárie, do racismo e da intolerância está, muitas vezes, em suas próprias mãos, seja por meio dos agentes de segurança pública, que não se furtam em invadir/ameaçar terreiros há décadas no país; do sistema judiciário, que ainda discute a permissão para a imolação de animais nas “casas de santo”, mas pouco faz para deter um genocídio da juventude negra em curso e, ainda é capaz de tentar tirar a guarda de crianças de suas mães, por escolherem iniciarem suas/seus filhos.

A ideia de que o grande algoz dos cultos afro-brasileiros é o “traficante” ou o pastor, que as manchetes dos jornais sugerem, é insuficiente para dar conta de um fenômeno tão complexo e extenso, com raízes tão profundas em nossa mentalidade e em nossa história. São muitos fatores e atores combinados que acendem juntos o fósforo quando um terreiro é criminosamente incendiado. Os reducionismos e os binarismos, propositalmente construídos, seja nas literaturas acadêmicas ou nos debates públicos, contribuem de forma inflamatória para promover racismo, violência e exclusão.

Não são raros os textos e autores que justificam o avanço do pentecostalismo no Brasil e a ofensiva aos terreiros, através da suposta falta de organização, de unidade e de homogeneidade das religiões de matriz africana ou, ainda, por uma falta de promoção de acolhimento às comunidades do seu entorno. Esses argumentos são frágeis e facilmente refutáveis, pois são oriundos de uma visão linear e uniforme do que é capacidade de organização política e do que é apoio e assistência coletiva. Além disso, também ignora que as forças de oposição são muito desiguais: como resistir, por exemplo, à violência de uma vertente religiosa que domina uma concessão pública de canal na televisão aberta?

Os terreiros, ainda que dispostos em uma diversidade múltipla, nunca estiveram dissociados da vida e dos contextos social e político, pelo contrário, grandes matriarcas de axé no século XX nos deram aulas da sua capacidade de mobilização/uso/entendimento de dispositivos políticos, conectando uma rede de apoio e de visibilidade calcada na influência assumida por personalidades próximas, como táticas de existência, sob pena de eliminação, inclusive, do candomblé, nessa sociedade. As Comunidades Tradicionais de Terreiro[6] mostraram-se, ao longo de décadas, não sem contradições, cisões e interferências, como territórios de acolhimento, de assistências psicoterapêutica e médica (ainda que sem as credenciais oficiais das instituições), de formação, de educação, de promoção de cultura e de saberes negados na escola, de elaboração de tecnologias criativas e elevação da autoestima, deteriorada pela lógica racista, desigual, meritocrática e colonial.

No ativismo levantado por diversas casas de axé, por figuras públicas e por coletivos ligados à temática encontramos denúncias não apenas a respeito do racismo e da intolerância religiosa sofridos, mas também um posicionamento frontal contra o feminicídio, o genocídio indígena, a transfobia, a LGBTfobia, o machismo, a desigualdade social e todo tipo de arbitrariedade, criticando e incitando o debate, inclusive, entre seus próprios pares. É possível citar novas e antigas campanhas e iniciativas, tais como: Liberte o Nosso Sagrado (2017); Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa (anualmente desde 2008); Manifesto de entidades do movimento negro e povos de terreiro “Fora Bolsonaro e Mourão” (2020); Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matriz Africana – Idafro (2019); Comissão de Combate à Intolerância Religiosa – CCIR (2008); a CPI da Intolerância Religiosa (2021); a aprovação da concessão da Medalha Pedro Ernesto, considerada a maior honraria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ao jogador de futebol José Paulo Bezerra Maciel Júnior, conhecido como Paulinho, campeão olímpico pela Seleção Brasileira nos jogos de Tóquio, no Japão, em 2021 - a homenagem ocorre após o atacante ter simulado uma flechada em homenagem ao orixá Oxóssi, do candomblé, durante a comemoração de um gol e por ele falar sobre Exu e outros orixás de forma recorrente em suas entrevistas, posicionamento que aqueceu o debate sobre intolerância religiosa no país; entre outras.  

Jornais, impressos e on-line, de grande circulação, têm dedicado algumas de suas páginas a fazer parte dessas denúncias por pressão da sociedade e do próprio “povo de santo” (expressão utilizada para designar os adeptos de religiões afro-brasileiras), ainda que diversos desses veículos continuem propagando ódio e preconceito às religiosidades de matriz africana em manchetes distorcidas. Basta lembrarmos do caso do chamado “serial killer do Distrito Federal”, Lázaro Barbosa, em 2021. Antes de o criminoso ser encontrado e assassinado, diversas reportagens associaram a sua facilidade para fugas a uma possível ligação com “bruxaria e rituais” e colocaram fotos de assentamentos religiosos com imagens de exu, como sendo oriundos da sua casa. Depois, sua esposa veio a público desmentir as informações, dizendo que Lázaro era cristão, inclusive, e que existiam imagens suas pregando dentro do espaço prisional, onde esteve tempos atrás. As investigações concluíram que as fotos divulgadas eram de um terreiro e foram usadas de forma indevida para tentar forjar uma ligação dele com as religiosidades de matriz africana, comumente associadas a rituais satânicos, que, por sua vez, são ligados a elementos negativos e a atos bárbaros.

Por trás de todas essas histórias, existe racismo, preconceito e projetos de poder proselitistas que criminalizam todo poder fora da Cristandade. Após a captura e a morte de Lázaro, concluíram que, por trás dos assassinatos cometidos por ele, não existam “rituais”, mas sim o coronelismo[7] presente em diversas regiões, notadamente rurais, do Brasil. Ele estava a serviço de grandes fazendeiros que ordenavam a morte e o estupro de várias pessoas para fazerem valer o que consideram ser a justiça. Até a verdade ser apurada, dezenas de terreiros foram ameaçados e invadidos na “caça” perpetrada para prendê-lo, acusados de acobertá-lo. Felizmente, uma grande e necessária mobilização de lideranças afro-religiosas da região Centro-Oeste tratou de desmentir o boato criminoso.

Para mim, o maior inimigo das expressões espirituais, culturais e ritualísticas das populações de terreiro, neste país, é um polvo com dezenas de tentáculos: o racismo. Certamente, o racismo não opera enquanto conceito abstrato. É operacionalizado por instituições, manuais, livros, conceitos, órgãos e pessoas. Ouço de muitas pessoas “evangélicas” a pergunta de como se pode combater o preconceito contra os negros dentro da própria igreja. Porque os atores são críticos, não uma massa ignorante. Ainda que nem todas(os) estejam abertas(os) ao diálogo, as pessoas estão pensando, estão avaliando os governos eleitos, até porque sua situação é cada dia mais vulnerável: estamos com índices crescentes de fome, de insegurança alimentar, as ruas estão lotadas de pessoas sem acesso à moradia. Não são só as igrejas evangélicas, portanto, que ainda debatem pouco a questão racial, mas também a universidade, o próprio terreiro, a sociedade em geral. E existe gente preta com consciência do debate racial fazendo crítica dentro e fora dos terreiros, dentro e fora da igreja.

Alivia-me quando o mestre Antônio Bispo dos Santos diz que

[...] trabalho com a imagem de quem venceu. Mesmo que queimem a escrita, não queimam a oralidade, mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados, mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade. Porque as nossas imagens também são ancestrais [...] E o que é contracolonizar? É reeditar as nossas trajetórias a partir das nossas matrizes. E quem é capaz de fazer isso? Nós mesmos! (SANTOS, 2018, n.p.).

O historiador Brian Levack (1988) observou uma ligação explícita entre o medo da rebelião e a crença culta na bruxaria organizada nos séculos XV-XVII na Europa. A bruxa, para essas sociedades, representou uma essência de rebeldia, pois, como adoradora do Diabo, ela também fez parte de uma conspiração política contra o Reino de Deus, praticando, assim, uma traição sem perdão. Quando apontamos um dedo para alguém, outros três se viram para nós. Quanto mais repressão, mais medo, mais reação, não necessariamente nessa ordem. Não só os ataques constantes em toda a história do Brasil geraram uma organização do povo de terreiro, em resistência à ofensiva, mas também o próprio crescimento do caráter político do terreiro e seu engajamento em lutas coletivas causou/causa uma maior opressão. Esses movimentos acontecem simultaneamente, de forma espiralar, do período colonial até os dias de hoje.

Referências

ADICHIE, C. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo : Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. [Rio de Janeiro, s. n., 1886]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.ht

m. Acesso em: 10 fev. 2021.  

BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. [Rio de Janeiro, s. n.], 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 10 fev. 2021.  

BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). [Rio de Janeiro, s. n., 1934]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 10 fev. 2021.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.  

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2020. Brasília, DF: IPEA, 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relato

rio_institucional/200826_ri_atlas_da_violencia.pdf. Acesso em: 10 fev. 2021.

KILOMBA, G. Memorias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019a.

LEVACK, B. P. A caça às bruxas na Europa Moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

MOTA, E. G. Diálogos Sobre Religiões de Matrizes Africanas: Racismo Religioso e História. Revista Calundu, 2018.

MUNANGA, K. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006.

NOGUEIRA, S. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2020.

SANTOS, A. B. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015.

SODRÉ, M. Pensar Nagô. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

TINOCO, P.; GUIMARÃES, S. P. Por que Rio lidera ranking de intolerância contra religiões africanas. Veja Rio, São Paulo, ago. 2021. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/

intolerancia-religiosa. Acesso em: 20 ago. 2021.

VAZ, L. S. Racismo religioso no Brasil: um velho baú e suas novas vestes. Migalhas, [s. l.], jan. 2021. Olhares interseccionais. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil--um-velho-bau-e-suas-novas-vestes. Acesso em: 20 ju. 2021.

Ver também

Qual o papel das instituições públicas na superação do racismo religioso? (artigo)

Racismo, motor da violência (relatório)

Drogas e religião nas favelas

  1. Existe um documentário incrível contando a história da escritora, que faz o debate sobre representatividade nas histórias infantis, chamado “Anjo de Chocolate”, do cineasta Clementino Junior.
  2. Definição criada por Antônio Bispo (2015), por meio do termo Pindorama (Terra das Palmeiras), uma expressão tupi-guarani utilizada para designar todas as regiões e territórios, chamada América do Sul na contemporaneidade. O termo consiste em um exercício de descolonização da linguagem e do pensamento em sua perspectiva, em substituição de termos colonialistas como “índio”, “indígena”, “povos originários”, que trazem uma generalidade destituída de identidade, já que a negação do outro e de suas especificidades fez/faz parte do projeto racista colonial.
  3. Escrito por dois inquisidores dominicanos, Jacob Sprenger e Heinrich Kraemer, o Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas) foi uma obra escrita no século XV para orientar os casos de julgamento pelo crime de bruxaria na Europa. É um dos manuais de demonologia mais famosos da época, considerado um “marco”, pois nele há sustentação teórica que, nitidamente, defende que o gênero feminino é mais propenso a pactuar com o Diabo. Logo, nessa ótica, a bruxaria era praticada, majoritariamente, pelas mulheres.
  4. Segundo Sidnei Nogueira, no livro “Intolerância Religiosa”, uma CTTro é um espaço quilombola que mantém saberes ancestrais de origem africana que são parte da identidade nacional. Um espaço de existência, resistência e (re-)existência. Um espaço político. Território de deuses e de entidades espirituais pretas, por meio dos quais se busca a prática de uma religiosidade, a um só tempo terapêutica e sócio-histórico-cultural, que se volta para o continente africano, berço do mundo no Novo Mundo (NOGUEIRA, 2020, p. 24-25).
  5. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil--um-velho-bau-e-suas-novas-vestes. Acesso em: 20 jul. 2021.
  6. Na definição do professor Sidnei Nogueira: “Adotar-se-á o termo CTTro – Comunidade Tradicional de Terreiro – como uma denominação aglutinadora de todas as práticas afro-brasileiras também chamadas Religiões de Matriz Africana ou tradições afro-brasileiras, como Umbanda, Candomblé, Xambá, Nagô-egbá, Batuque, Tambor de Mina, Jurema e aparentados. Diante da perseguição, somos todos “macumbeiros” - no sentido negativo da palavra -, por isso é preciso que nos vejamos todos como irmãos e parte de uma cultura com gênese comum (NOGUEIRA, 2020, p. 138).
  7. Forma de atuação de uma elite, representada, principalmente, por proprietários rurais. Controla os meios de produção, detendo os poderes econômico, social e político de localidades no interior do país.