Revista Nós - Comunicação popular, publicação e resistência na Cidade de Deus

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 21h44min de 12 de abril de 2022 por Pablo das Oliveiras (discussão | contribs) (Revisão de parágrafos)
 Autoria: Pablo das Oliveiras

Apresentação

O presente ensaio visa apresentar a Revista Nós / RN como ação que se originou do contexto do movimento associativo na Cidade de Deus, Rio de Janeiro, tornando-se uma de suas mídias de mobilização no território, entre 1977 a 1980, como ação de comunicação e publicação de resistência popular. As edições da Revista e mais um suplemento especial formam o conjunto de 16 publicações, reproduzidas por mimeógrafo. A linha editorial da Revista orientou-se pelas pautas: saúde; educação; ecologia; arte, cultura; lazer e de forma geral colocou em foco o cenário, as questões e atuações sociais culturais e políticas do movimento associativo local. Neste contexto, busquei observar, descrever e considerar os processos que levaram à criação da Revista Nós; seu modo de produção, distribuição e venda, bem como, a atuação da equipe editorial em interface ao Conselho de Moradores da Cidade de Deus / COMOCIDE. Para este fim, recorri ao levantamento de memórias, as minhas e demais co-editoras/es, mapeando, de forma geral o percurso do movimento associativo no território, cujas narrativas dos acontecimentos, à época, são matizadas pela análise do acervo da Revista Nós, ao recorte espaço temporal de pesquisa, com vista à construção de sua narrativa hoje, em aproximação do contexto daqueles acontecimentos, atento em evitar anacronismos de abordagem.

O ensaio encontra-se desenvolvido em três partes: na primeira, “Convergências: Cultura, Arte e Política”, aponta aos fatores que concorreram para formação da Revista Nós e sua equipe, o contexto do país e da cidade com vista a sua atuação no movimento associativo local; na segunda, “Meu Nome, Cidade de Deus”, apresenta um panorama das múltiplas designações atribuídas e autodenominadas ao território, e nele a trajetória da equipe Revista Nós com suas práticas de jornalismo popular junto ao movimento comunitário; na terceira, “Revista Nós: O Marco Zero e os Desafios das Edições”, destaca os princípios conceituais, os modos de atuação das práticas da equipe e considerações sobre o fim da publicação da Revista Nós. Concluo apontando a importância do conjunto da RN como um acervo documental, sobre a história do movimento sócio político da Cidade de Deus, nos anos de sua publicação.

Convergências: Cultura, arte e política

Desde 1964, militares e civis consolidaram um governo de ditadura, submetendo a sociedade à censura; perseguição, tortura e morte daqueles que se opuseram ao estado de exceção. Neste contexto, também o campo da cultura concentrou discursos e modos de produção e resistência política pelo estado de direito. O “animador cultural”, sujeito de resistência atuava como “independente”, pelas rupturas com as instituições autoritárias e, como “alternativo” abria canais à comunicação pública; isto é: autônomos se comparados às instituições e contestadores em relação ao sistema (MATTOSO, 1982), de forma que assim passaram a ser reconhecidos, alternativos.

Nos Estados Unidos da América, na década de 1960, a chamada juventude hippie aderiu à contracultura, como forma de ser e estar no mundo; pacificamente, negando valores e regulamentos tradicionais da cultura estadunidense e inspirada pela bandeira “Paz e Amor”. No Brasil, a contracultura como comportamento social, de um segmento da juventude, ganha visibilidade com os Novos Baianos e os tropicalistas. Um dos marcos desse período, o Festival de Música da Record, de 1967, derrubou fronteiras entre gêneros musicais, ressignificando conceitos ao questionar e misturar “bom gosto” e “mal gosto", performando diversas categorias de arte (IDEM).

Nos anos de 1970, o desbunde, neologismo criado pelos militantes de esquerda para nomear, criticamente, o abandono da luta e a resistência contra a ditadura militar virou gíria, ganhou repercussão popular, até chegar ao dicionário Aurélio, como verbetes: Desbundar. 1. Perder o autodomínio, por efeito de droga. 2. P. ext. Perder as estribeiras. 3. Rasgar a fantasia. Desbunde. 1. Ato ou efeito de desbundar. 2. Deslumbramento; loucura (AURÉLIO, 1975, pág. 442). Os tropicalistas na produção musical e a Geração Mimeógrafo na literatura, por seus discursos de ruptura anti sistema, tornaram-se emblemáticos junto aos jovens, principalmente da classe média urbana, ao cantar e poetizar, indo dos protestos ao desbunde, em plena ditadura.

A Geração Mimeógrafo realizou uma produção poética experimental, em forma e conteúdo, cada poeta ou grupo, a seu modo, desprezou modelos literários, fez uso da fala coloquial, da irreverência e do humor debochado. Sem obter reconhecimento ou por evitar o circuito editorial, da época, os “novos” poetas produziram seus impressos por meios próprios: editando, publicando e distribuindo suas tiragens em quantidade possível, reproduzidas por mimeógrafo. Por esta atuação, romperam a relação vertical entre editora - livro e editor - autor, estabeleceram diálogo público e direto, por um circuito paralelo e independente conquistou e formou um público jovem e distinto do antigo leitor de poesia (HOLLANDA, 2007). O mimeógrafo como recurso de impressão empresta, com recorrência, seu nome para batismo desta geração, que no Rio de Janeiro, se notabilizou no eixo universitário, entre o Centro e a Zona Sul. No subúrbio e periferias, como a CDD, o que animava o segmento jovem eram os bailes funk, cujas origens remontam o Baile da Pesada, dos discotecários Ademir Lemos e Big Boy, no início dos anos 1970. Pelo clube Canecão (Zona Sul), a Black Music e seu ideário de valorização da cultura negra também chegaram ao público carioca.

Por questões empresariais, o Baile da Pesada perdeu o espaço do Canecão para ganhar o subúrbio, indo ao encontro da população jovem, preta, mestiça e trabalhadores, que lotavam os clubes populares e escolas de samba, para curtir samba, pagode, batidão funk e na sequência destes ritmos, o Hip Hop. A organização do baile, pelos novos territórios, girava em torno de equipes de som, como Soul Grand Prix, Black Power e outras, então responsáveis pela música, segurança e as bebidas das festas, para cerca de um milhão de jovens, aos sábados e domingos. Às músicas em língua inglesa eram incorporadas letras em português com narrativas diretas sobre o cotidiano da favela e do favelado (VIANNA, 1987). Os bailes funk tornaram-se um fenômeno, todo fim de semana milhares de jovens se deslocavam entre bairros e regiões do Grande do Rio, perseguidos pelo espanto estético e moralista da mídia burguesa e pelo cassetete do aparato policial. A Revista Nós é fruto do histórico cenário do movimento associativo em Cidade de Deus que, doravante, serão indicadas por RN e CDD, numa intimidade respeitosa, como fazem os bons amigos.

Meu nome, Cidade de Deus...

A designação Conjunto Habitacional - C.H., pretendeu demarcar um modo de habitar para população favelada da Guanabara, na implantação do Plano de Habitação Popular, financiado pelo Banco Nacional de Habitação – BNH, entre 1962 e 1974, quando removeu 139.218 habitantes de favelas para blocos de casas e apartamentos na Cidade de Deus (Jacarepaguá), Vila Aliança (Bangu), Nova Holanda (Bonsucesso), Vila Kennedy (Senador Camará), Vila Esperança (Vigário Geral), entre outros (VALLADARES, 1978). O modelo C.H. foi concebido como lugar “ordenador” para o favelado removido e a área da favela extinta concedida à reordenação espacial, na lógica da especulação imobiliária. A política habitacional do BNH foi burocrática, autoritária e violenta do processo de remoção do favelado ao seu assentamento no novo território: o conjunto habitacional.

Em face da ausência de infraestrutura básica e das precárias condições ao desenvolvimento econômico local, coube aos favelados reconstruir as redes comunitárias, dentro e fora do território, a fim de solucionar as demandas não atendidas no projeto estrutural dos C.Hs. Sem constituir referência identitária de lugar nem de ethos aos moradores, o termo conjunto habitacional caiu em desuso. Refavela é o neologismo pelo qual Gilberto Gil descreve, musicalmente, o impacto do programa de remoções na vida da população favelada e a força de sua resistência cultural no asfalto, “quando se arranca de seu barraco”, “desce o morro e vem transar” a cidade, ”prum bloco do BNH”. A canção descreve de forma poética o éthos em construção em torno do “novo” território, em face da diáspora que o programa de remoção de favelas promoveu, também agregando os flagelados das históricas enchentes de 1966/67, no Rio de Janeiro. Comunidade, termo largamente usado entre moradores da CDD, nos anos de 1980, evoca sua etimologia, nas relações de empenho entre indivíduos comuns; coincide com os clamores por redemocratização e “Diretas Já!.

A ressonância popular deste termo agrega em si significações conforme contextos, exemplos: comunidade de baixa-renda, em referência à população assalariada, com moradias, infraestrutura e serviços públicos precarizados; uso do termo “comunidade” evocando sentidos de unidade social, aos ideais de luta por melhor qualidade de vida, recorrente nos processos de mobilização comunitária. Ambas as formas são modos eufêmicos em busca de substituir os significados em “favela”. Bairro Cidade de Deus, condição alcançada pelo Decreto n.º 3158, 23 de julho de 1981 (alterações: Decreto Nº 5.280, 23/08/1985), a partir do desmembrado da XVI Região Administrativa - RA (Jacarepaguá), para constituir a XXXIV RA Cidade de Deus. Na configuração de bairro, os indicativos “lote” e “quadra” alfanuméricos foram totalmente substituídos pelas nomenclaturas: avenida, rua, travessa e praça, com nomes próprios inspirados nos eventos e personagens bíblicos e numeração para cada imóvel.

Atualmente, os termos CDD e favela têm uso corrente no território, o termo favela pode ser compreendido em perspectivas às memórias de moradores que viveram a experiência da remoção e das enchentes (1966/1967), e noutras em que favela evoca lugar de pertencimento sócio afetivo, de resistência cultural e política, oposto à conotação pejorativa em expressão classista. A expressão CDD, originalmente criado pelos moradores, resulta como um “mínimo comum” da nomenclatura oficial do território, um diminutivo afetivo, um meme prenhe de ritmo, que desperta larga representações no imaginário das pessoas do território e fora dele; estigmas relacionados aos acontecimentos relacionados à chegada da cocaína na Cidade de Deus, tendo como marca o “acirramento das lutas pelo controle das bocas de fumo e pelo crescimento sem precedente da violência local.” (SILVA, 2019). Na CDD, tanto o embalo do noticiário midiático, os laços e as condições concretas como são construídas no território, os investimentos simbólicos, estéticos e éticos manifestados por aqueles que o habita, impregnam o território os habitantes com seu modo de existir (SANTOS, 1999). Na RN, edição nº 1 - Dezembro/1977, uma matéria, sem assinatura, aponta problemas de infraestrutura na Cidade de Deus, o termo “conjunto habitacional” não foi usado, porém uma variante sua, que neste texto segue grafada em itálico.

O Grupo Cultural Projeto [GCP] vem com uma equipe de jovens, se propondo a projetar e executar a urbanização das praças da CIDADE DE DEUS, de acordo com os hábitos e necessidade de aproximadamente 65.000 habitantes. Um conjunto residencial que já começa a ter características próprias de bairro (...).

O dicionário Aurélio registra: Habitação - 1. Ato ou efeito de habitar. 2. Lugar ou casa onde se habita; morada. 3. Jur. Direito real que tem uma pessoa e sua família de habitar gratuitamente casa alheia (AURÉLIO, p. 713) registra: Residência - 1. Morada habitual em lugar certo; domicílio (IDEM. 1223). É possível compreender por “habitacional” a noção transitória no ato de morar e “residencial” a noção de constância no ato de morar. Ressignificar a denominação do lugar, é uma forma de praticá-lo como próprio de si e dos seus (CERTEAU, 1994). Se aquele pretendido projeto de reurbanização das praças não se concretizou, os moradores com suas ações cotidianas, seus fazeres mais ordinários e também eventuais, imprimiram e imprimem pequenas e grandes mudanças no território, por tais práticas fazem do “lugar” o "espaço de residir e resistir (IDEM).

As nomeações de locais específicos em CDD é um exemplo de "fazer o lugar", bem como variadas são suas motivações: por memória da paisagem, como Laminha (Praça Marcada); por convívio sócio afetivo, como Praça da Loura, D. Zilá Digenari da Silva, que vendia café com pão aos trabalhadores, à época das primeiras remoções (Praça Demétrio); pelos usos e pertencimentos, como na Praça dos Garimpeiros, antigo local de ensaio do Bloco Carnavalesco Garimpeiros (Praça dos Profetas)pelo controle do território, como “13”, “15” e Karate notabilizadas pela presença das bocas de fumo, entre outros "batismos" locais. Aqui, citarei o percurso das moradias que tive na CDD: a primeira casa, R, Artur de Sá Earp, situada nas franjas do conjunto habitacional (1971); Praça das “17 Árvores” (lembro do plantio delas na Praça Marsena, em 1973); também morei na área do “15” (Rua Israel, 1978); depois nas Triagens do Barro Vermelho, atualmente rebatizada como Bariri (Rua Moisés, 1979) e por fim, no Beco da Rosa (Travessa Rubens, 1989/2000).

No percurso do movimento associativo veremos o cenário e o protagonismo do Conselho de Moradores da Cidade de Deus - COMOCIDE, a multiplicidades de grupos socioculturais criados no território. Na Revista Nós, ed. 7 Julho/78, pág. 5, Seu Benedito Malaquia da Hora, assina a “matéria” que registra o nascimento do Conselho de Moradores da Cidade de Deus.

Em 1968, em 13 de julho, em Assembleia Geral o Conselho de Moradores aprontava seu estatuto, primeiro passo marcado para trajetória legal. 09 de agosto seguinte foi reconhecido no Cartório de Registro Civil. (...) Entrava, assim, o Conselho de Moradores nos embates de lutas, desenvolvendo seu papel de defensor de todos os moradores da localidade. Enfrentando dificuldades, com poucas possibilidades mas sem desânimo e consciente de seu dever, tem vivido e realizado coisas proveitosas para comunidade (...). Mas, a luta não termina aí, temos pela frente a formação do nosso Quadro Social, a obtenção de uma sede para melhor comunicação com os associados e o povo.

Os primeiros quadros diretores do COMOCIDE formaram-se entre o segmento mais idoso da população local, moradores e moradoras que detinham e mobilizaram um patrimônio de saberes e práticas associativas comunitárias, anterior às remoções ou por aproximação desses, ao chegar na CDD. Patrimônio articulado em favor de melhores condições de moradia manteve, em perspectiva, as memórias da diáspora promovida pelas remoções compulsórias da favela. Dez anos depois (1977), acontece o encontro intergeracional entre membros do COMOCIDE e o GCP/RN. Dos jovens participantes do Grupo Cultural Projeto, houve aqueles que além dos laços de amizade também se ligaram ao movimento comunitário, entre esses: Lenilda Ferreira (21 anos), Wellington França (20 anos), Zélia Batista (18 anos) e eu, “Pablito” (18 anos), na condição de “Jovens Representantes da Comunidade”, cada um a seu tempo e maneira iniciou participação nas reuniões de diretoria do COMOCIDE. Pelo Conselho de Moradores foram mediadores junto aos jovens, “Seu” Paulo Caramez (33 anos), Coordenador Cultural, articulador das leituras e debates com os participantes, cedia o espaço de sua casa para reuniões e acompanhava as atividades do grupo, dentro e fora da comunidade nas atividades de lazer. “Seu” Benedito Malaquias da Hora (63 anos), Tesoureiro, um ponderado conselheiro de presença discreta. Com frequência abria sua casa aos finais de semanas, transformando-a no espaço de produção da RN. Não raro, ali permanecíamos por longas horas, também para leituras e debates. Muitas vezes, almoçamos e lanchamos na casa de 'Seu' Benedito, refeições providas por ele.

Atualmente, identifico dois eixos que orientaram o desenvolvimento do GCP, no período inicial de sua formação: um eixo voltado à manutenção do grupo, com seus muitos participantes interessados por atividades de arte, cultura e lazer e ações voltadas para este fim, como: exposição de arte, dança, encenação teatral e passeios culturais nas proximidades da região e pela cidade; noutro eixo, eram realizados encontros específicos com poucos participantes, focado em rodas de leituras e conversas, com vista à formação de quadros e participações na diretoria do COMOCIDE. Ao longo dos anos de 1970 e 1980, no cenário cultural da CDD atuaram grupos de diversos matizes, conforme registro no Blog Revista Nós da Cidade de Deus. O COMOCIDE não possuía sede própria, utilizava espaços cedidos pelas instituições locais, assim como os grupos formados ao longo daquele convívio comunitário. Nota-se neste convívio o valor atribuído a “parceria”, como um sistema estratégico que viabilizou a manutenção de atividades regulares e eventuais dos grupos, movimentando o associativismo comunitário; vale apontar que firmar parceria é uma estratégia que atravessa gerações na CDD, variando as bases e os modos conforme contexto de cada tempo. Naquele período, a solicitação e cessão de uso de espaço físico aconteciam junto às instituições estatais e comunitárias, das localizadas no eixo dos blocos de casas como nos blocos de apartamentos, respectivamente: CECOM/COHAB, Clube da CDD (atual CUFA), Igreja Pai Eterno e S. José, Colégio José de Alencar (atual Centro Vocacional Tecnológico), Igreja Episcopal / Anglicana, Escola de Samba Acadêmicos da Cidade de Deus (atual Mocidade Independente de Jacarepaguá), Escolas Municipais e Posto de Saúde Hamilton Land ou Centro Social Urbano - CSU, da Fundação Leão XIII - FLXIII e o Bloco Carnavalesco Coroado.

Nesse contexto, as ações comunitárias na CDD transcorreram num fluxo formado entre os eixos do bloco das casas e o eixo do bloco dos apartamentos. Destaco deste cenário o Gr. de Teatro Perspectiva, com a peça de estreia Natal de Nossa Gente (dezembro 1978) e lançamento do jornal O Amanhã (março 1979), tendo por “finalidade principal abrir uma frente de luta por uma frente de luta por uma sociedade digna e honesta para todos e de todos.” (O AMANHÃ, Editorial, nº 0 - Mar./1979); a implantação CINECLUBE 700 (1978) do Centro Interescolar Pedro Aleixo - CIMPA (atual E. M. Pedro Aleixo), por desenvolver “na sua escola um trabalho inédito em Cidade de Deus . produção de filmes didáticos em Super-8”, (RN. nº 9 - Dez./1978, p, 13); o programa comunitário implementado pelo corpo técnico do CSU e o Conselho Comunitário do Gabinal - Margarida, presidido por Seu Serafim Xavier. Sobre a origem do grupo GCP Wellington França registra ter surgido de uma conversa casual, na qual se desejava criar uma peça de teatro, em produção coletiva. A ideia se desdobrou nos encontros entre amigos no Centro Comunitário CECOM e depois no clube local. A criação da Revista Nós (1977), teve por objetivo primeiro arrecadar fundos para financiar o GCP; no entanto a publicação da Revista não perseguiu este objetivo, porém se construindo como jornalismo popular e “alternativo” na CDD. No Blog, Wellington aponta: “No entanto, a revista acaba assumindo os mesmos objetivos do grupo: estabelecer intercâmbio com setores culturais da Cidade de Deus e de outros bairros; estimular os valores artísticos e culturais locais; estudo e pesquisa dos mesmos”. Nesse processo, o GCP perdeu forças para mobilizar-se em torno de seus primeiros objetivos, mas permaneceu como referência nominal na capa da RN; à Revista passou a ser sua principal produção e articulada junto às ações do movimento comunitário. Na página 1 da RN. nº 5 - Abril/78, Wellington França assina a reportagem: “Grupo Cultural Projeto em Foco”, destacando as atividades e eventos, por localidades e/ou períodos em que foram promovidas pelo grupo, inclusive o lançamento da RN e finaliza a reportagem com a proposta:

(...) Para dar continuidade na sua participação ao desenvolvimento da Cidade de Deus, o Grupo Cultural Projeto vem propondo a toda comunidade (incluindo as Instituições Jurídicas), um intercâmbio, que pode ser melhor definido como troca de sugestões e ajuda material e jurídica. para esta última, um exemplo concreto está no fato de que em troca de nossos serviços, o Comocide nos credenciou oficialmente a representá-lo junto a juventude local (...).

Sobre a origem do Jornal O Amanhã, Adalton Pereira relata ter ocorrido: “na casa de Almir e Ivan [1979]. Então, a equipe, que se reunia lá, era o Almir e Ivan, o Wellington, o Seu Benedito Malaquias da Hora, que deu grandes contribuições também e eu, basicamente essas pessoas foram a base de produção do jornal. Pode ser que eu esteja esquecendo algum nome.” O espaço do CSU, no Conjunto Gabinal-Margarida, passou a sediar as atividades do Teatro Perspectiva / Jornal O Amanhã, entre outros grupos autônomos e parceiros no programa de ação comunitária CSU, atuantes no fortalecimento do movimento cultural local, como aponta Adalton Pereira:

"Lá existia uma equipe de profissionais, em especial assistentes sociais, com proposta de abrir as portas do Centro Social Urbano (...), não apenas oferecer o assistencialismo de estado da Fundação Leão XIII, mas de estimular o protagonismo comunitário. A partir daí, o Jornal Amanhã e outras instituições passaram a atuar bastante no CSU”.

No entanto, durante a implantação do programa CSU - Cidade de |Deus (1978), a equipe coordenadora preparou a base do trabalho institucional, através de contatos preliminares com as lideranças locais. Das discussões iniciais, o item sobre a formação de um Conselho Comunitário na CDD, mobilizado pelo CSU / FLXIII, foi percebido com estranhamento pelo COMOCIDE. A questão foi registrada em editorial da RN. nº 7 - Julho/78, por Paulo Caramez, entre os pontos tratados aponta existir entidades locais, legitimamente constituídas pelos moradores:

(...)1- O Conselho de Moradores da Cidade de Deus recebe com alegria a implantação do C.S.U. em Cidade de Deus e espera que este tenha vida longa e cumpra com eficiência seus objetivos. 2- A formação do Conselho Comunitário via C.S.U. a princípio, causou estranheza já que o mesmo existe (COMOCIDE), criado pelos próprios moradores e funcionando desde 1968 sem nenhum auxílio do estado, apoiado apenas nas forças dos próprios moradores (...)

Observo, hoje, que o fluxo das ações comunitárias entre os “apês” e as “casas” redimensionaram a dinâmica do associativismo na CDD e dela à cidade; a nota destacada da RN ed. nº 11. 1979, p. 3, sobre um encontro articulado pelo Centro de Estudos da Zona Oeste - CEZO, com vista aos debates da conjuntura brasileira e às políticas de gestão do Rio de Janeiro, exemplifica a observação, vejamos:

(...) A Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro - FAMERJ, pretende este ano fazer um amplo levantamento dos problemas que afligem nossa cidade, baseado nos relatos das diversas associações de bairro. (...) No dia 21 de abril, às 19 horas, no Colégio José de Alencar, o Conselho de Moradores da Cidade de Deus - COMOCIDE - estará reunido com representantes da FAMERJ e convoca os moradores de nossa localidade. (...)

Também observo, que tanto o Grupo Cultural Projeto / Revista Nós como o Grupo de Teatro Perspectiva / Jornal O Amanhã se constituíram e atuaram em torno do movimento associativo da CDD, reivindicando direitos sociais e melhor qualidade de vida local, referenciado pelo mesmo modus operandi; triangulando atuação nas áreas de arte - cultura, mediados respectivamente, pela publicação artesanal da Revista e do Jornal, em ação de resistência contra o Estado de Direito e o restabelecimento do Estado Democrático de Direito. Essa afinidade constitutiva conduziu os dois grupos e seus membros a compartilharem o mesmo campo de ações sociopolíticas no território, mesmo quando afiliados em movimentos progressistas distintos, no decorrer dos anos.

Em 1979, após 10 anos de sua fundação, o COMOCIDE realizou, nas dependências do Colégio José de Alencar, uma eleição memorável, com voto secreto em urna oficial e presença de um representante da 13ª Zona Eleitoral - TRE. A RN registrou o acontecimento em reportagem, na ed. nº 12/Ano III - Agosto /79, p.4), onde lemos: No dia 19 de agosto, foi eleita a nova diretoria do COMOCID. Concorreram ao pleito 3 chapas (...) A Chapa Construção sagrou-se vitoriosa com ampla margem de vantagem, conforme demonstra o quadro abaixo:

Chapas  Votos

I - ORDEM E PROGRESSO 286

II - CONSTRUÇÃO 412

III - TRABALHO E RENOVAÇÃO 252

Nulos: 010     Em branco: 003     Total de Votos: 967                   

A Chapa II - Construção, articulada pelos membros do Jornal O Amanhã foi apoiada pelos membros da RN, como observa Adalton Pereira: “de forma natural porque possuíam posturas que buscavam formas de transformação (...) e de melhorar a vida da comunidade, então a aliança naquele momento era natural porque as propostas eram muito parecidas, se eu não posso dizer: iguais (...)”, Vale citar uma situação de crise na equipe da RN, fato que resultou no afastamento de Wellington França e Seu Benedito, momento este, em que receberam e aceitaram o convite de Almir Paulo para compor o Conselho Editorial do Jornal O Amanhã. Sobre a situação de ruptura com a RN, Wellington registra: “Logo em seguida reconstrói-se as relações de amizade entre todos os membros da REVISTA NÓS.” Esse registro de Wellington notifica uma restauração política àquela ruptura.

Do encontro intergeracional COMOCIDE - GCP/RN ao Jornal O Amanhã, que resultou no processo formador dos novos mobilizadores políticos sociais, e estes percebendo a realidade social em perspectiva a sua época, tornaram-se a primeira diretoria jovem eleita para o COMOCIDE, No ano 1979, período proto Diretas Já! esta ação na Cidade de Deus espelhou um anseio popular por mudanças das condições de infraestrutura e segurança na comunidade à redemocratização do Brasil, constituiu-se como uma nova geração na liderança do COMOCIDE, que passou a abordar as questões locais, saindo às rua, debatendo os problemas, ombro à ombro, com os moradores e buscando encaminhamento, com ênfase na: "importância da participação direta dos moradores na escolha de seus representantes, junto aos órgãos públicos e manifestavam o compromisso de tornar o Conselho de Moradores da Cidade de Deus (COMOCIDE) uma entidade realmente representativa dos anseios da Comunidade (...) promovendo as eleições de representantes de ruas, travessas e quadras, concedendo-lhes autonomia de ação para melhor exercerem suas funções (...) visando encontrar um caminho para nossos problemas comunitários." (REVISTA NÓS nº 12 - 1979, p. 4)

A íntegra desta reportagem, intitulada: COMOCIDE EM AÇÂO apresenta o conjunto de atuações da nova diretoria, junto à base da comunidade, na rua. Essa linha de ação marcou o perfil da trajetória do COMOCIDE, repercutindo no movimento comunitário da CDD, como Adalton Pereira descreve:

Percebo dois vieses, de um lado o estado dominante de ocupação de espaço e o domínio na ocupação de espaço resiste a mudança; de outro lado, um anseio de mudança, que era próprio daquela época de resistência à ditadura de resistência à opressão ao silêncio e à censura, com a proposta de transformar a relação da única instituição de representação, à, o Conselho de Moradores da Cidade de Deus (a associação foi fundada depois), de transformar a ação desse “Conselho” e representar os anseios dos jovens. Então, existia uma intolerância de parte a parte (...), percepções diferentes do regime de ditadura e necessidade diferente de sobrevivência dentro daquele regime, então as condutas e as posturas eram diferentes. Não digo que nenhum dos lados estava certo, digo que existiam embates, que depois foram amenizados dentro do próprio “Conselho”. Após a eleição, a chapa Construção foi vencedora com uma diretoria completamente nova. E algumas pessoas que tinha história, dentro do “Conselho”, permaneceram e buscaram forma de relacionamento com aqueles que estavam chegando, posso citar aqui Sr. João Batista; João de Pinho; Sr. Benedito Malaquias. Mas teve o Sr. Lourival que se afastou e depois fundou junto com o Nelson Gonçalves a Associação de Moradores, no ano de 1980.

A partir de 1980, o COMOCIDE persegue as pautas das questões de saúde e habitação, mobilizando grande número de moradores da CDD e instituições governamentais desses setores. A RN registrou em reportagem dois grandes eventos: a comemoração pública do 1º de maio, destacando a importância de mais áreas de lazer local, para uma população com cerca de 60 mil habitantes, num evento que agregou aproximadamente 3 mil moradores, na principal via de ligação do bairro:

“O Departamento Cultural do COMOCID, junto aos grupos locais elaboraram e organizaram durante todo mês de abril os preparativos necessários para a realização da festa: contatos diversos e Ofícios aos órgãos competentes” (RN. ed. nº 15. p. 05 - Dezembro/1980).

A partir deste evento, o feriado de 1º de maio continuou a ser comemorado na rua, por iniciativa dos moradores. Em setembro de 1980, RN publicou em Edição Suplementar o “Nº Especial - Íntegra do Relatório de Saúde na Cidade de Deus, por ocasião da realização do Encontro Popular pela Saúde, pela FAMERJ; FAFERJ; COMOCIDE, tendo Zélia Batista como uma das articuladoras da Comissão de Saúde atuando junto a Unidade Médica Hamilton Land e o Sindicato dos Médicos. Na RN. ed. nº 15. p. 05 - Dezembro/1980, registrou que:

“Cerca de 5 mil pessoas compareceram ao ENCONTRO, participaram mais de 60 Associações de Moradores e que entregaram, cada uma, documento reivindicatório contendo todos problemas de seu bairro.”

As 16 edições da RN e o Nº especial de Set. de 1980, com a Íntegra do Relatório de Saúde da Cidade de Deus formam um acervo com registros de eventos cotidianos e extraordinários no movimento sociocultural e político na CDD; registros realizados num processo participativo, atributo de sua construção como mídia de comunicação popular.

Revista Nós: O marco zero e os desafios das edições seguintes

A RN inaugural, nº 0 resultou do trabalho em parceria, de Lenilda Ferreira, 22 anos, estudante secundarista, fotógrafa, com emprego de recepcionista numa Clínica particular e Wellington França, 20 anos, estudante secundarista, poeta, trabalhando como Mensageiro, no Centro do Rio. Esta edição da Revista possui o formato de apostila: Capa, três páginas de miolo numeradas e impressão em lado único das folhas, grampeada na parte superior à esquerda e reprodução por mimeógrafo. Uma edição singular ao conjunto das 15 edições seguintes, modificadas que foram para o formato A5 (meio-ofício). Wellington França relata, por correspondência eletrônica, a primeira tiragem do número inaugural da Revista:

“Eu estava contratado como Mensageiro da UEB - União de Empresas Brasileira, (...). O Centro de Documentação era chefiado por uma jovem senhora, que ao saber sobre a Revista Nós demonstrou interesse em ajudar. Autorizou acesso ao departamento de reprografia, onde me era permitido produzir pequenas quantidades de cópias, por dia.”

Este relato possibilita entrever, um dos modos, que viabilizou a equipe publicar a RN; isto é: ao construir relações de confiança, cooperação e parceria possível, mediante apresentação de sua proposta e/ou produto, a Revista em si. Sem um projeto editorial e gráfico formalmente elaborado a priori, a RN se constituiu edição por edição. Wellington França, registra os objetivos pretendidos pela RN:

“Estabelecer intercâmbio com setores culturais da Cidade de Deus e de outros bairros; estimular os valores artísticos e culturais locais; estudo e pesquisa. Domínio de todo processo de produção: definição de pauta; redação das matérias; diagramação; ilustração; arte final e distribuição(...) METODOLOGIA: Produção fundamentada em conteúdo jornalístico; ação de caráter coletivo, a partir do protagonismo de moradores da CDD; ação de caráter civil, não institucional ligado a grupos de mídia, religião, partido político e instância governamental.” (Blog Revista Nós CDD)

Na edição nº 0, o conteúdo da revista consiste de duas notas originalmente redigidas sobre a CDD e os demais textos e poemas, reprodução compiladas. A capa deste número é mais reveladora, apresenta o nome da Revista e uma ilustração sugestiva: de O Pensador (Auguste Rodin) e o planeta. Porém, o maior destaque desta capa está no registro manuscrito, que diz: “A proposta da revista é o trabalho em sua totalidade”. Esse apontamento sintetiza a postura da equipe na produção da Revista, à medida que a tomou como produto - processo, e ambas atuando de forma colaborativa, como agente e mídia de um jornalismo popular, de resistência, antenadas aos espaços de pesquisas, com autonomia editorial mas alinhados às perspectivas de demandas do movimento comunitário, dentro e fora da CDD. O trabalho das partes na construção da "totalidade" constitui a revista e colaborou à formação social e política de seus membros, sem escalonar funções de poder funcional. Neste ponto, sinalizo um tema ainda por investigar, à ausência de pauta editorialmente na Revista sobre questões de gênero, seja na perspectiva do feminismo ou da comunidade gay, termo da época. Essa ausência não representou, diretamente, negação ou restrição de convívio e participação de pessoas gay na Revista, visto que eu sendo gay, estive presente nos fóruns de discussões e decisões da Revista e no COMOCIDE, embora minha presença causasse surpresa a militantes e observadores do movimento associativo comunitário, dentro e fora da território. A RN nº 1, publicada em dezembro de 1977, por sua vez, inaugurou a formatação A5 (meio-ofício); dobrada e grampeada ao meio, padrão mantido ao longo das edições seguintes; embora constituída pelo mesmo modus operandi da Geração Mimeógrafo, a proposta estética da RN se caracteriza como comunicação popular e publicação de resistência na CDD. Abrindo a página 2 da RN nº 1, o leitor é convidado a conhecer o princípio que inspirou o nome da Revista. Vejamos a singela e atual afirmativa desse editorial, sem assinatura:

Prezado leitor

Em qualquer ponto do mundo, onde se encontrar gente como nós, se verá surgir trabalhos como este que hão de ser sempre “uma aresta de luz numa era conturbada como a nossa”. Atualmente, quando se diz em fazer alguma coisa pensa-se isoladamente, e os resultados que surgem são tomados exclusiva e egoisticamente por uns poucos em detrimentos de outros, que também tiveram uma participação. É claro, está se falando em tese. Existem exceções; nós somos uma. Pois, na medida em que um grupo se propõe a realizar um trabalho que diz respeito a um todo, tem que pensar como um todo. O “Eu” deixa de existir quando surge “NÓS”

A Revista, no formato meio-ofício, passou por alterações das dimensões de páginas, aos blocos de textos e ilustrações à dinâmica de leituras, mudanças que demandaram nova diagramação; mudanças operadas de forma intuitiva, por experimentações: Título em caixa alta (maiúscula) sublinhado ou destacado com linha de box; bloco contínuo de texto e/ou em dupla coluna; ilustrações folha impressa em dois lado da página; capa e contracapa ilustradas. À época, Lenilda e eu dividimos a tarefa “diagramadores”, Lenilda na datilografia de todas as “matérias” e eu responsável por ilustrar, paginar e montar o “boneco” da Revista. Sem conhecimento de área e livre de modelos para seguir, todos nós da equipe editorial experimentamos, por ensaios e erros, cada etapa de produção da Revista. Noutra medida, fomos desafiados à produção de textos, a fim de compor as “matérias”, desafio que se constituiu em exercício do olhar crítico, ético e estético frente às questões em foco, à cada pauta, escrevendo sobre situações da CDD e fora dela. Empiricamente, ensaiamos redações de textos, sem os focos da redação jornalística.

Ainda na edição nº 1 foi introduzido a seção de palavras cruzadas e o serviço de propagandas do comércio local (texto e desenho), a fim de arrecadar fundos para o custeio de materiais básicos de produção da Revista: papel, tinta para mimeógrafo e grampos. O serviço de propaganda era oferecido aos comerciantes próximos e os valores eram combinados conforme uma ou mais edições do “anúncio”. Assim, o acordo era fechado e, a cada edição publicada, o comerciante recebia a Revista com a propaganda do seu comércio. Dessa forma o “contrato de boca” se cumpria, também reafirmando a “parceria” como um valor comunitário em vigência. Na edição nº 2 - Janeiro 1978, a Revista agregou à pauta a Seção Mirim, com desenhos e poemas de crianças das escolas da CDD, dos círculos de amigos e familiares. Os trabalhos na Seção Mirim eram legendados com as indicações: nome, idade, moradia ou escola das crianças. Na edição nº 3 - Fevereiro/1978, a fotografia foi usada como elemento de ilustração de capa e miolo da Revista; uma experiência com resultado final precário e sem continuidade, devido ao uso de cópias reduzidas (xerox) das fotos, na composição do “boneco” para impressão da tiragem. Na pág. 4 foi publicada a primeira HQ da Revista: BINGO, por Wellington França (ainda pelos pseudônimos: Wellington Guarany ou Rino Lector). O uso de pseudônimos numa mesma edição (Pablito/Paulo Roberto e Paulo Caramez/Oluap) pode ser considerado uma artimanha dos participantes da Revista, num jogo de revelar - esconder identidades ou como retratou “Seu” Lourival*: "Uma cachaça com vários rótulos”, referindo-se aos participantes do Grupo Cultural Projeto / Revista Nós e o Grupo de Teatro Perspectiva / Jornal O Amanhã, “sempre as mesmas pessoas atuando em várias frentes na comunidade”. A Seção de Poesia foi inaugurada na RN, a partir da ed. nº 4 - Março/1978, com a publicação do Poema “Pedra em Trova”, de Camila Batista, Seção que se manteve nas edições seguintes, com publicações de autores da CDD, em substituição à transcrição de autores consagrados. Ainda nesta edição, surge uma nova HQ, assinada por Pablito, sob a legenda “Humor” e nas edições nº 13, 14 e 15 de 1980, essa HQ introduziu os personagens: Adão e Eva, satirizando situações de uma família na CDD.

Nas reuniões de pauta, os temas em destaque no movimento comunitário eram discutidos e alinhados aos assuntos sugeridos e aos materiais recolhidos para as seções existentes. A produção da matriz da Revista (o boneco) era artesanal, montada por recorte e colagem, diagramação dos textos datilografados, em bloco único ou coluna dupla; produção de desenhos, usos de elementos ilustrativos e seriação de páginas. Após o “boneco” pronto a Revista recebia reprodução por copiadora xerox ou mimeógrafo elétrico, conforme disponibilidades de acesso aos equipamentos. Inicialmente, a editoria da Revista pretendeu manter a periodicidade mensal, como se apresenta no ano de 1978 (ver Quadro Sinótico). Tal intenção não se consolidou, devido a logística do trabalho demandado, o empirismo organizacional da equipe e a dependência dos equipamentos de reprodução, tornando a periodicidade de publicação da Revista ao limite do tempo possível, fato que foi pautado em editoriais e também observado nos registros de datações na capa da Revista:

“DEZEMBRO DE 1977 - Nº 1”

“REVISTA MENSAL DO GRUPO CULTURAL PROJETO: Abril / 78 - Nº 5”

“PUBLICAÇÃO PERIÓDICA DO GRUPO CULTURAL PROJETO: Ano 2 - nº 9 - Dez./78 - COLABORE C/ QUANTO PUDER”

“REVISTA NÓS - Nº 13/ANO III - Set. a Nov. /79 - CUSTO OPERACIONAL Cr$ 5,00”

A tiragem das edições da Revista variava conforme condições, principalmente, disponibilidade de papel e do modal de reprodução, xerox ou mimeógrafo. Sua distribuição foi concentrada na CDD, pelo circuito do movimento social no território, em Jacarepaguá e, ocasionalmente, pela cidade, em eventos de militância (FAMERJ, SINDICAL). A modalidade de distribuição variou ao longo do período de circulação da Revista, por venda, valor colaborativo e doação do exemplar, como observado na descrição destacada acima e no Quadro Sinótico, adiante.

A equipe tratava o processo de produção da RN com mesma responsabilidade afirmava nas lutas comunitária, como declara Lenilda Ferreira, cofundadora da RN:

Na Revista Nós, eu diagramava as matérias, também me arriscava a redigir alguns textos, com pouco êxito (talvez por conta da minha ingenuidade política). A Revista Nós era entregue aos moradores de mão em mão pelo grupo, às vezes, gratuitamente e em outros casos, mediante contribuições em pagamento de publicidade. Nós acreditávamos no que fazíamos e procurávamos desenvolver a melhor capa e o melhor conteúdo, discutindo sempre as matérias como se profissionais fôssemos. Com poucos recursos financeiros, mas muita excitação pelo que redigimos nossa poesia, nossa arte, enfim, todas as nossas manifestações culturais, conseguimos atingir um público bom, com a certeza que a Revista Nós tinha importância direta nas manifestações culturais, nas reivindicações dos moradores. Sem dúvida era um meio de comunicação direta e participativa dos moradores da Cidade de Deus. O espaço da Revista Nós também era um espaço para nos manifestarmos.

QUADRO: Revista Nós: Periodicidade das edições e evolução quantitativa de páginas em relação às pautas editoriais.

Edição/Período Nº Pág Edição/Periodo Nº Pág Edição/Período Nº Pág.
RN. nº 0 - Set./1977 04 RN. nº 6 - Mai.-Jun./1978 08 RN. nº  12- Ago./1979 10
RN. nº 1 - Dez./1977 06 RN. nº  7 - Jul./1978 06 RN. nº  13- Set.-Nov./1979 10
RN. nº 2 - Jan./1978 06 RN. nº  8 - Extraviada -- RN. nº  14- Mai./1980 12
RN. nº 3 - Fev./1978 06 RN. nº  9- Dez./1979 08 RN. nº  15- Dez./1980 10

RN. Nº Suplementar - Set/1980 Documento de Saúde da Cidade de Deus - Nº Pág.06

15 edições Revista Nós e 01 Edição Suplementar: TOTAL GERAL 16 edições.

FONTE: Dados organizados pelo autor

A partir da década de 1980, foram intensas as mudanças de abordagens e encaminhamentos às demandas do movimento comunitário em Cidade de Deus, dentre elas a dinâmica de reuniões da diretoria do COMOCIDE, que se tornaram proporcionais à sua presença nas ruas. Noutra direção, o segmento das Organizações Não governamentais - ONGs ganharam relevo no cenário da organização social, como descrito por Ruth Cardoso (1996, p. 08), "na década de 80 foram as ONGs que, articulando recursos e experiências na base da sociedade, ganharam visibilidade enquanto novo espaço de participação cidadã", servindo como espaço de mediações entre as diversas instâncias de poder institucionais (administrativo, jurídico e econômico) e a sociedade civil.

Considerações finais

A Revista Nós desde sua criação tornou-se uma mídia de comunicação popular e publicação de resistência, realizada por jovens moradores e atuantes do movimento comunitário da Cidade de Deus, de modo tal foi construindo uma práxis de registros dos acontecimentos comunitários, no período em que se manteve em circulação, que hoje, o conjunto da RN forma um acervo documental, como fonte da história daquele contexto do movimento sócio político da Cidade de Deus e, por extensão, do Rio de Janeiro. A última edição da RN nº 15 - Dezembro/1980 traz na página 17 uma Nota o encontro da equipe a se realizar em: “10 de janeiro de 1981”, para discussão da pauta do pretendido do nº 16. Nesse período os membros da equipe da RN e do Jornal o Amanhã já respondiam institucionalmente como diretoria recém-eleita do COMOCIDE. A pretendida edição não se realizou, deixando uma questão: Quais situações contribuíram para a não publicação, daquela que seria o próximo “número” da RN? Sem precipitar uma resposta, recupero o ponto apresentado anteriormente, sobre o encontro intergeracional, dos membros da RN, do Jornal O Amanhã e o COMOCIDE, as trocas de saberes, produção de conhecimentos e práticas sociais, culturais e políticas junto aos grupos locais e da cidade, do processo de formação e o contexto sucessório à direção do Conselho de Moradores da Cidade de Deus.

Após o fim da circulação da Revista Nós, eu reelaborei de muitas formas as experiências adquiridas no seu conselho editorial à sua diagramação; na prática da escrita à de e impressão gráfica e encadernação, aos usos deste conhecimento à produção de diário de bordo, revistas, livretos artesanais, “livro-objeto”, livro de poesia e literatura infantil, dentro e fora da sala de aula. Como arte-educador, aquelas experiências se recriam na confecção de material didático ao projeto pedagógico, no fazer educativo com estudantes em turmas, na produção de jornal escolar; revista HQ; coletânea de desenhos e livro com história de alunas e alunos. E neste ensaio, reafirmo a importância da Revista Nós e do COMOCIDE entre os elementos fundantes em minha formação sociopolítica e professor fazedor de arte.

Referências

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