Trança e Identidade - episódio 12 (programa)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Papo na Laje é um programa disponível em plataformas virtuais, como o Youtube, e na TV fechada (canal 6, Claro/NET) desenvolvido pelo Brasil de Fato em parceria com a TV Comunitária do Rio de Janeiro.

Autoria: Papo na Laje
As trancistas Gleice Renascimento e Milena Francisco conversam sobre cabelo e autoestima no programa Papo na Laje - Breno Rodrigues

No bate-papo descontraído com a apresentadora Juliana França, as jovens explicam que a trança é uma opção para quem gosta de praticidade sem abrir mão do estilo na correria do cotidiano. Na experiência da estudante Milena, o penteado fez parte de um processo de descobrimento que muitas jovens negras se identificam.

Análise discursiva[editar | editar código-fonte]

O Grupo de Análise do Discurso do Dicionário de Favelas Marielle Franco trabalhou a análise das principais formações discursivas identificadas nesse episódio, considerando o discurso como uma prática social e não como atividade meramente individual de quem o enuncia. Assim a estrutura social se manifesta, delimita e molda o discurso, como também é por ele modificada.

Pesquisadores: Patrícia Ferreira, Clara Polycarpo, Clara Bastos, Gabriel Nunes e Sonia Fleury.

Participantes: Gleice Nascimento e Milena Francisco.

Local e data: Nova Iguaçu, 2022.

Cabelo como fio do conhecimento[editar | editar código-fonte]

O desafio do autoconhecimento tem que ser enfrentado por todas as pessoas no seu processo de constituição como sujeitos, envolvendo autonomia, autoestima, reconhecimento social e capacidade de escolha e de ação. Trata-se de um processo bio-psico-social que muitas vezes se prolonga mais além da fase crítica, que é identificada com a adolescência e juventude.

O que tem de singular nesse processo para as mulheres negras é o desconhecimento de uma parte do seu corpo, do seu próprio cabelo, como resultado dos estereótipos, preconceitos e pressões sociais que impõem uma estética racista e um controle sobre seus corpos que resulta na ocultação do cabelo através de diferentes técnicas.

Ao romper com essa norma, iniciando a transição capilar,  é possível ouvir frases tão fortes como “eu me descobri negra”, e a surpresa de se defrontar com uma parte de si que era desconhecida, defrontar-se com uma imagem de si que nem sempre é facilmente aceita, até chegar a se achar bonita. O fio do cabelo é também o condutor da busca de uma identidade que encontra a ancestralidade, o cuidado entre as mulheres da família, o resgate de sonhos e da liberdade de experimentação.

Autoimagem[editar | editar código-fonte]

Como entender a vida a partir do cabelo? Esse é o ponto de partida da discussão que apresenta situações das meninas e mulheres negras e sua relação com seus cabelos.

As tranças aparecem como elemento fundamental desde cedo na vida dessas meninas. Utilizadas primeiramente em razão de economia de esforço para manutenção de penteados e cuidado com a higiene dos cabelos das filhas. O fazer e o cuidar dos cabelos, tornam-se momentos de atenção e afeto. Mais tarde, transformam-se em signos de identificação e resistência.

A constituição da autoimagem dessas crianças encontra diferentes elementos de conflitos. Desde a infância, as meninas se veem  diante de um bombardeio de referências nas quais os cabelos lisos são socialmente disseminados como belos, seja nos brinquedos,  na televisão, na publicidade e na vida cotidiana. Na adolescência, as críticas continuam e adolescente de tranças agora é designada ao gueto, associada de forma pejorativa a ícones afrodescendentes, como Bob Marley por exemplo. Algumas deixam de usar as tranças e voltam ao coque. Na vida adulta, o coque se torna um penteado obrigatório em alguns ambientes de trabalho - manter os cabelos presos é exigência.

Se, de um lado, há uma visão pejorativa da ancestralidade africana a partir do cabelo, do outro surge um forte elemento de resistência. Nesse universo, as tranças soltas libertam outra imagem, uma imagem de descoberta, resistência e de referência à ancestralidade.  E, o cabelo se constitui como um elemento de transformação dessa imagem.

Há um esforço social a partir da própria população negra de reparação da crítica da imagem dos cabelos de pessoas negras. São criados elementos de orgulho, aceitação e identificação a partir da aceitação dos cabelos naturais. Quem antes utilizava cabelos alisados ou relaxados, agora passa pela transição.  

A transição vira um momento marcante na vida dessas pessoas, principalmente no reconhecimento e aceitação da sua imagem. O ver-se no espelho, reconhecer-se e sustentar essa nova imagem aparecem como os desafios dessa transição, pois evoca as experiências de preconceito e não aceitação vividas desde a infância.

Entre o não dito, podemos lembrar que algumas pautas identitárias podem se colocar de forma radical e entender aquelas pessoas que alisam os cabelos como aquele que não se aceita como é. Nesse aspecto, é importante apoiar a liberdade de escolha de cada um poder usar seus cabelos como se sentir melhor.  

“Conhecer o cabelo e mudar sempre!” Com essa ideia as entrevistadas encerram o episódio falando da importância da experiência. Experienciar como forma de viver: “A vida é um experimento.”

No fio das tranças, se descobrir uma menina negra[editar | editar código-fonte]

Aqui, três trajetórias se encontram no caminho das tranças. Criança, menina e mulher vão se descobrindo a partir do cabelo - e a partir de como se dão as relações pessoais, familiares e até mesmo sexuais entremeadas na história do cabelo. Quando Milena Francisco rememora a infância do “coque” e da “praticidade”, rememora também que o cuidado com o cabelo, passado de avó para mãe, faz parte das estratégias afetivas entre as mulheres negras. Afinal, como aponta Gleice Nascimento, “como a casa de cinco mulheres pretas não atravessa a trança?”. Ainda assim, o cabelo crespo, sem cacho, associado à cor da pele, o cabelo de África, por muito tempo serviu como esconderijo. Durante a própria constituição do lugar da mulher negra no mundo diaspórico, as formas que o cabelo foi tomando dizem muito sobre as estratégias de resistência desses corpos.

Se as mãe negras optavam pela praticidade de um cabelo que poderia, no coque, durar cerca de uma semana, as meninas negras, já na adolescência, passam a descobrir o seu próprio cabelo ao experimentar outras formas de uso. E, neste processo, refletem sobre sua autoimagem de forma positiva ou negativa. Juliana França relembra do “cabelo nylon”, atravessado pela trança, que servia como demonstração de um amadurecimento, mas, por outro lado, de uma tentativa de aceitação social. A estética racista imposta nega às meninas negras o conhecimento sobre o próprio cabelo. Com isso, o momento de reconhecer-se como negra passa também, para muitas, como o momento da transição capilar.

Juliana França conta o quanto foi surpreendente e, neste caso, até mesmo assustador o momento em que realizou seu “corte químico” e teve contato direto com o seu cabelo natural. Para ela, foi difícil “sustentar’ a sua própria identidade diante da identidade do seu cabelo. Trançar-se foi uma forma de se reconectar consigo mesma. Neste sentido de descoberta, a trança também não pode voltar a ser um esconderijo, de objetificação ou estigmatização. É ela o pontapé para a aproximação com as suas referências ancestrais. É por isso que as tranças são tidas como essas ferramentas ancestrais que unem os fios das mulheres negras ao serem reconhecidas como alimento e caminho de suas próprias sobrevivências. A relação com as tranças as conecta à trajetória de todas as mulheres negras e passa a atravessar suas vidas por diferentes cruzamentos, seja como autocuidado, seja como forma de ganhar a vida, considerando trançar outras mulheres em sua profissão.

As trajetórias das duas entrevistadas se assemelham na constituição de uma linha do tempo da relação pessoal com as tranças. Num primeiro momento, a trança surge na infância de maneira funcional para suas mães, seja por ser um penteado de fácil manutenção (Gleice Nascimento), como também “para não pegar piolho” (Milena Francisco). Na adolescência, a trança reaparece desempenhando um papel de construção de identidade e de conexão com a ancestralidade africana, mesmo com a reprovação de seu círculo social. Já na fase adulta, após a superação das questões anteriores, as tranças passaram a atuar ainda no contexto das relações afetivas, chegando ao ponto de “não ser tão desejada” por estar com o cabelo crespo natural, influenciando a autoestima e tornando a trança quase que compulsória para as relações afetivas das mulheres pretas na atualidade.

Herança Ancestral - "Ancestralidade a partir de uma memória capilar"[editar | editar código-fonte]

A trança atravessa a vida das convidadas desde suas infâncias e a relação delas com as tranças propõe uma nova forma de autoconhecimento identitário para cada uma delas. Para além de uma forma de identidade racial, a trança recupera um passado histórico africano. Uma ligação ancestral com a cultura africana se faz presente a partir de um movimento de "pontapé inicial para ir atrás das próprias referências", como argumenta Gleice.  

Em sua fala, a entrevistada Milena retoma a memória histórica dos negros escravizados para compreensão de que utilizar a trança não significa meramente fazer uso de um adereço puramente estético, mas sim retomar parte dessa herança ancestral de uma cultura que lutou há séculos e que continua lutando de diversas formas até os dias atuais.

A entrevistadora Juliana também retoma a memória histórica das tranças para ilustrar como o cuidado com o cabelo crespo constitui uma forma de estratégia afetiva que geralmente é passada de mãe para filha e que se manifesta de diversas formas, seja no cuidado dos cachos ou seja no próprio ato de trançar. Historicamente, a trança ainda proporciona a capacidade de armazenar alimentos como grãos e cereais, o que contribui para essa significância da trança como uma verdadeira estratégia de cuidado doméstico/familiar. Para Gleice, essa memória cultural da trança como estratégia afetiva ainda permanece, visto que seu trabalho como trancista proporciona a ela a possibilidade de continuar cuidando, alimentando e desfrutando desses valores.

A trança é uma forte constituição de identidade africana e utilizá-la constitui uma resistência histórico-cultural muito rica para a população negra brasileira. A utilização das tranças é uma forma de carregar a resistência da negritude brasileira. Essa pauta vai além da vida individual e particular de cada participante do episódio; ela retoma uma memória histórica que é fundamental à vida das mulheres negras no Brasil. Retomando as palavras da entrevistada Milena, a trança na vivência de uma mulher negra constitui um dos primeiros passos para "se descobrir uma menina negra".

Poder de escolha[editar | editar código-fonte]

Ao falar dos sonhos, Gleice coloca em perspectiva o poder de escolher e experimentar o que se deseja: desde o tipo de cabelo até a profissão, já que esse poder de escolha foi e é negado muitas vezes à população negra. Para ela, vida é experimentação e é isso que ela deseja para si e os seus: "Eu quero que as pessoas se deem chance de experimentar, se deem chance de fazer coisas diferentes para se descobrir. Porque não tem só preta cabeleireira, não tem só preta manicure, tem preta que vai fazer R.I...". Nesse sentido, o poder de escolha tem também a ver com poder subverter o estereótipo que se espera que você adote e assumir novas escolhas, espaços e posições.

Na fala de Milena, a própria possibilidade de sonhar já é um sonho, o que aponta a violenta realidade de muitos sujeitos no Brasil: enquanto para uma parte da população o sonhar é estimulado e considerado algo natural, para outra parcela - preta, pobre e favelada- o que se impõe enquanto realidade é a sobrevivência. Milena sonha para si e os seus a realidade de estar viva e poder ter perspectivas para o futuro. No fundo, os sonhos de Gleice e Milena dizem respeito a elementos básicos da experiência humana, quais sejam: experimentar a vida que se vive e escolher os próprios sonhos, tendo oportunidades concretas de realizá-los.

O episódio[editar | editar código-fonte]

Ficha Técnica[editar | editar código-fonte]

Direção Colegiada: Moysés Corrêa

Sistema Brasil de Fato RJ

Coordenação Geral: Rodrigo Marcelino

Coordenadora Editorial: Mariana Pitasse

Produção Executiva: Amanda dos Santos Costa

Direção e Roteiro: Dieymes Pechincha

Produtora de Conteúdo: Sintropia Produções

Direção de Fotografia: Chico Brun

Edição: Tuany Zanini

Som e Trilha Sonora: Chico Brun

Still: João Victor Portugal e Stefano Figalo

Programação visual: Giulia Santos e Juliana Braga

Pesquisa: Clivia Mesquita

Reportagem: Jéssica Rodrigues

Operador de Drone: Gabriel Moncada

Assistência de câmera: Nil Mendonça

Correção de cor: Chico Brum

Designer de som: Chico Brum

Produção de locação: Amanda dos Santos Costa

Motorista: Pedro Freitas - Trips Tour

Conselho Político: Breno Rodrigues, Caroline Barbosa Rufino, Otavio Cleverson Portilho, Dieymes Pechincha, Dulce Pandolfi, Fernando Veloso, Itamar Silva, Leonardo Nogueira, Nilza Valéria, Ricardo Pinheiro, Rodrigo Marcelino, Taiso Motta, Tayane Cardoso e Tuany Zanini

Associação Lima Barreto

Educação e Comunicação Captação de projetos: Fernando Veloso

Coordenação Administrativa: Aline Bernardino

Agradecimentos: Ana Victoria