Usuário:Carmen Rosane Costa

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

GODOI, R. (2015). Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. 2015,243 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências  Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.(Resenha)

Referência [editar | editar código-fonte]

GODOI, R. (2015). Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. 2015,243 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências  Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Contextualização[editar | editar código-fonte]

Sobre "Rafael Godoi" e “Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos.

Rafael Godoi, Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU). Concluiu pós-doutorado no Departamento de Sociologia da USP; especialização em Investigação Etnográfica, Teoria Antropológica e Relações Interculturais na Universidade Autônoma de Barcelona; bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Áreas de interesse de pesquisa em sociologia da punição, sociologia do direito, sociologia urbana, teoria sociológica e métodos qualitativos de pesquisa. Em 2016 recebeu prêmio de reconhecimento como melhor tese de doutorado defendida em 2015 pelo PPGS-USP e posteriormente tornou-se um livro publicado pela editora Boitempo. Em 2020, iniciou graduação em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul, UNICSUL. 

Desde a iniciação científica Rafael Godoi pesquisa a prisão por fora dos muros, e não da ordem interna prisional, o qual ele chama de “translocalidade” do sistema prisional. A inquietação surgiu, em 2004, na qualidade de bolsista de iniciação científica – na pesquisa sobre “Cidade e trabalho: mobilidades ocupacionais e seus territórios”, coordenada pela Prof.ª Dr.ª Vera da Silva Telles e pelo Dr. Robert Cabanes, a partir dos atravessamentos observados em coletas de dados sobre a trajetória de vida dos moradores que residiam em determinados bairros da periferia de SP. O problema surgiu em vários relatos de moradores que tinham experiência carcerária, seja através do trabalho na prisão ou familiares encarcerados. Desta maneira a prisão aparece como questão de pesquisa pelo “circuito” do lado de fora, rompendo os muros carcerários. 

No Mestrado, Rafael pesquisou  os impactos da prisão na vida social, nos bairros e nas famílias; as formas de conexão, formais e informais, que articulam territórios de dentro  e de fora da prisão, denominado conceitualmente como “vasos comunicantes”. Através dessa concepção Rafael buscou compreender os “desdobramentos” que se dão na relação entre o lado de dentro e fora da prisão, isto é, procurou os meios empíricos de conexão que ocorrem nessas relações. Prosseguiu com a pesquisa no Doutorado. O trabalho de campo se concentrou em  três municípios do extremo oeste do estado, especificamente na região da Nova Alta Paulista,  bem como no interior de algumas penitenciárias da Região Metropolitana de São Paulo – nas  quais entrava na qualidade de agente da Pastoral Carcerária e desenvolvia atividades de  assistência religiosa, material e jurídica. Isso permitiu liberdade para conversar com os prisioneiros, percebendo  no intramuros da prisão a existência dos enigmas da lei naquele ambiente, produzindo um sistema estruturante e enigmático e de como o judiciário estrutura a relação da experiência carcerária. Rafael buscou então compreender a relação entre a prisão e a lei, a relação “enigmática” dos mecanismos da lei em relação aos mecanismos da disciplina e do governo de populações, como o sistema de justiça organiza o regime de processamento da população carcerária e que implica nos trâmites processuais, os mandos administrativos sobre as punições, retendo ou liberando quem permanece na prisão, visto que o preso punido, castigado, tem consequências sobre o processo que paralisa a obtenção de  benefícios. Há uma outra relação que atravessa a prisão. São os vasos comunicantes observados  nesse contexto, pois uma vez que o preso é punido, é a família que aciona a justiça para dar continuidade ao processo, o que configura parte da transferência da responsabilização para os presos e familiares a fim de provocar o andamento do processo junto à defensoria pública. 

“Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos”' divide-se nos capítulos intitulados respectivamente de “Apresentação”, “Pontos de  referência”, “Marcos gerais do dispositivo carcerário paulista”, “As leis do tempo”, “As disposições no espaço”, “As exigências da circulação” e “Conclusão”.

Resumo[editar | editar código-fonte]

 "Apresentação”(pp.19-24);“Marcos gerais do dispositivo carcerário paulista”(pp. 50-78).

Na apresentação, Rafael Godoi aponta o objetivo do trabalho de tese sobre as prisões em São Paulo. Compara a abordagem como uma triangulação cujos vértices são a prisão; em  outro vértice, o conjunto de lugares, de extensões variadas e intersecções  múltiplas – o estado de São Paulo, suas regiões, sua capital, seus bairros; e no outro, a  contemporaneidade e sua história recente. 

A tese “Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos” através do que o pesquisador denomina por “deslocamentos” busca perquirir a compreensão sobre as prisões no espaço e no tempo. Rafael conceitua “deslocamentos” como mecanismos presentes na tessitura da tese e que se articulam ao longo dos diversos capítulos e seções da pesquisa. Os desdobramentos são empregados nos recursos  metodológicos e no escopo de objetos empíricos a serem observados.

A prisão como objeto de pesquisa não é tomada por Rafael Godoi apenas como uma instituição  de confinamento. Ele investigou também o funcionamento da “prisão em tempos (e lugares) de  governamentalidade neoliberal – quando (e onde) o desafio que ela se coloca é o de  administrar grandes agregados populacionais, mais do que disciplinar indivíduos” (p.20). Portanto, é o  encarceramento em massa o principal intuito perseguido em sua tese. Além dos mecanismos textuais e das estratégias metodológicas utilizadas pelos desdobramentos, Godoi lança os suportes teóricos pautados , como exemplos, autores como  “Foucault e os conceitos sobre o poder disciplinar e o poder governamental”, e Deleuze, uma vez que soberania, disciplina e governamentalidade não se sucedem  no decorrer da história, mas se articulam e se transformam no tempo e no espaço”.(pp.19-20)

“Marcos Gerais do Dispositivo Carcerário Paulista”. 

Onde tudo começa. Os desdobramentos que sucedem a partir desse capítulo revelam-se como uma denúncia sobre a realidade no que diz respeito ao sistema processual penal brasileiro. O circuito que perfaz o sistema inquisitorial tem como ponto de partida o inquérito pelo qual se determina todas as demais partes dos processos e que  mudará toda vida dos envolvidos pela “suspeita/acusação”. O primeiro agente é o policial civil que ao registrar a ocorrência e ,de acordo com a tipificação penal, ou o policial lavra um termo  circunstanciado, que substitui o auto de prisão em flagrante e o inquérito policial, e encaminhar o acusado/suspeito para o Juizado Especial Criminal, ou formaliza a prisão em flagrante. Instaurado inquérito, em casos determinados como sendo  prisão em flagrante, outros agentes do sistema de justiça entram no circuito, são os juízes, promotores e defensores. O inquérito policial, uma vez concluído, é encaminhado para o Ministério Público,  que pode ou não formalizar a denúncia, e encaminhar a um juiz criminal,  marcando assim o início da fase processual.  

Dado prosseguimento ao processo, outro sistema se configura, o  do sistema público de defesa, um dos objetivos que Rafael Godoi  persegue ao longo da pesquisa, visto que o encarceramento em massa está diretamente relacionado a essa fase processual, visto que o acusado/suspeito quando não dispõe de advogado, nomeia-se um pelo Estado. A precariedade da estrutura da defesa pública potencializa tensões no campo prisional, uma vez que mais de 90% dos presos paulistas dependem desses serviços públicos desempenhados pelos advogados e defensores públicos. Os Defensores são acionados por presos, familiares e por entidades  assistenciais que atuam na esfera penal, como a Pastoral Carcerária.

O autor revela que na maioria das vezes, a prisão temporária ao ser  confirmada pelo juiz, quase automaticamente, converte-se em prisão provisória sem prazo  definido. Nesta fase, após instaurado o inquérito, o acusado é encaminhado para um Centro de Detenção Provisória(CDP), gerido pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Rafael Godoi evidencia que nessa fase do circuito, o CDP é visto como sendo o espaço no sistema penitenciário que possibilita diversas negociações das mais variadas mercadorias políticas e que podem ser transacionadas. 

Configurando-se a condenação, o acusado é transferido para o Centro de Progressão Penitenciária para cumprimento  de pena. No CPP, a pena pode ser estabelecida para regime inicial semiaberto ou para uma penitenciária, quando é fechado, e o processo encaminhado a uma Vara de Execuções Criminais – em São Paulo,  comumente chamada de VEC. O preso condenado continua tendo direito a um advogado de defesa para atuar em seu processo de execução penal; porém, nesta fase da sua trajetória, é o advogado da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) que geralmente atua. A FUNAP possui poucos advogados para a alta demanda dos presos, como consequência, os prazos processuais são desrespeitados ficando por anos parados.

Nas carceragens os presos comumente acionam os advogados ,através de bilhetes- as pipas, com “ajuda” dos Agentes de Segurança Penitenciários(ASPs). Desta maneira o vaso comunicante entre advogados e presos é facilitado pelos ASPs.  

Aqui abro uma lacuna para explicar os “vasos comunicantes”. Os vasos comunicantes podem ser considerados toda forma, meio ou ocasião de contato  entre o lado de dentro e o fora da prisão. São considerados  vasos comunicantes as vias institucionalizadas, as vias da assistência religiosa, social ou judiciária; as previstas e  reguladas pela legislação penal, além das vias informais e ilegais. Pelos vasos comunicantes ocorrem múltiplas negociações, determinações, poderes e disputas que operam a  diferenciação do que entra e sai, dificultando ou facilitando acessos, registrando (ou não) as  passagens e estabelecendo destinações, por isso o governo estadual realizou inúmeros  investimentos para promover um maior controle sobre esse fluxo.  

Fechada a explicação sobre os “vasos comunicantes” retomo a questão sobre “circuito” prisional. 

Os presos na condição de provisórios não  submetidos a julgamento aguardam na carceragem de delegacias, sob responsabilidade da  Secretaria de Segurança Pública (SSP). As pesquisas de Rafael Godoi revelam que são nestas instituições as mais superlotadas e precárias do sistema e que oferecem piores condições de vida. Nelas, milhares de pessoas perdem meses presas esperando julgamento nas prisões brasileiras. Em maioria são inocentes, ou condenadas a penas mais leves e, não  raramente, quando condenados, já cumpriram, se não totalmente, boa parte da pena. Aí também encontram-se os já condenados que esperam por muito tempo a transferência, o “bonde”, para uma penitenciária. Supostamente as penitenciárias  sugerem condições um pouco melhores do que os CDPs,  principalmente, pelas escolas, cursos e oficinas de trabalho que algumas disponibilizam, ainda que de forma precária. 

Dentro do sistema penitenciário existem ainda os espaços alternativos para segmentos específicos de  presos, são os Centros de Ressocialização (CRs) unidades menores, voltadas para  presos considerados de baixa periculosidade e o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que vigora no Centro  de Readaptação Penitenciária (CRP) de Presidente Bernardes, destinados aos presos considerados problemáticos, indisciplinados, onde ficam  isolados em celas individuais e não desempenham nenhuma atividade  educativa ou profissional, ficam submetidos a rígidas restrições de visitação e comunicação. O CRP foi criado em reação à primeira megarrebelião do PCC e serviu de modelo  para os presídios federais.

Vale abrir outro parêntese para explicar a distinção entre "presídio e penitenciária" que está relacionada ao tipo de pena que o acusado recebe. Nos presídios os réus possuem processos sem transitado e julgado e as penitenciárias abrigam presos já condenados pela justiça. 

Por fim, no final do “circuito”, ao alcançar a liberdade seja via cumprimento  integral da pena, livramento condicional ou progressão para regime aberto, no Estado de São  Paulo, existem ainda outras unidades que fazem parte do sistema, são as Centrais de Atenção ao Egresso e Família (CAEFs). Somando-se ao sistema como um todo, esta fase também revela insuficiência da estrutura frente à demanda do fluxo penitenciário. 

Ao sistema penitenciário paulista, não podemos esquecer que há também  quatro unidades hospitalares, geridas pela Coordenadoria de Saúde (CS) da SAP.  

Outros dados relacionados a população carcerária, modelos arquitetônicos e gestão prisional refletidos por Rafael Godoi enriquecem ainda mais a pesquisa sobre o sistema prisional.   

Godoi demonstra que a população carcerária paulista, segundo o DEPEN (2014), em  dezembro de 2012, das 195.695 pessoas encarceradas , 97,5% estão alocados nas dependências da Secretaria de Administração Penitenciária- SAP; sendo 93,5% homens. De acordo com o grau de escolaridade, apenas 9,6% têm o Ensino  Médio completo e 1,1% chegou a cursar o Ensino Superior (completo ou não). Quanto à faixa etária, a população carcerária do estado de São Paulo é bastante  jovem e em relação à cor, embora os  dados sejam inconsistentes, como no caso da escolarização, a quantidade total de presos reportada  por cor de pele/etnia são em maioria afrodescendentes.

Sobre a estrutura física, os modelos arquitetônicos seguem certos padrões utilizados pelo sistema  carcerário paulista e que dispõe quanto à organização interna do espaço prisional. É na parte do raio da estrutura prisional que a  maior parte da experiência do preso se desenvolve. Nele estão as celas, a quadra para o futebol  e para o banho de sol, a barbearia, os tanques e varais para as roupas, aparelhos improvisados  de musculação, etc. Quando o preso não está em trânsito está no raio, dentro  ou fora da cela. Além do raio existem três outros espaços onde o preso cumpre sua pena. No castigo, no  seguro ou na enfermaria. Entre o trânsito e o raio há as celas de Regime de Observação – ROs – onde os recém-chegados, depois de  passarem pela inclusão e antes de serem integrados ao convívio, passam uma temporada confinados. 

Já o modelo de gestão da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) é a estrutura organizacional piramidal cujo poder é delegado de cima para baixo e fortemente hierarquizado. Nesse tipo de gestão os principais cargos distribuídos entre os  servidores públicos são de acordo com as relações de confiança, por nomeações pessoais. O governador  nomeia o secretário; o secretário nomeia coordenadores regionais; os coordenadores regionais nomeiam os diretores gerais das unidades; os diretores  gerais nomeiam diretores de segurança. A diretoria coordena o trabalho dos Agentes de Segurança Penitenciária (ASPs), dos Agentes de  Escolta e Vigilância Penitenciária (AEVPs) e dos funcionários técnicos e administrativos, divididos em diversos setores e funções, além dos presos que fazem a limpeza e manutenção cotidiana do espaço prisional. O quadro técnico demonstra insuficiência para atender a população carcerária de todo o estado, de modo que os  serviços de saúde são complementados em instituições públicas do lado de fora das muralhas. São os psicólogos e assistentes sociais, dentre outras funções que desempenham, os responsáveis pela realização dos  Exames Criminológicos, demandados por alguns juízes de execução, antes de decidirem sobre  a concessão de um benefício. 

Outro corpo de agentes estatais que se constitui como uma elite do funcionalismo penitenciário é o  Grupo de Intervenção Rápida (GIR), criado no começo dos anos 2000 como “tropa de  choque” dos agentes penitenciários.

Um outro corpo de agentes informais que o autor também aponta são as facções prisionais, que atuam dentro e fora do ambiente institucional. Estabelecem a “ética do proceder” tanto em relação ao condicionamento das práticas e políticas da administração penitenciária , quanto em relação à experiência que se desenvolve ao redor e através das prisões de São Paulo, demonstrando desta maneira que a prisão aparece não como fonte, mas como um dos componentes principais do circuito.

Apreciação crítica [editar | editar código-fonte]

A resenha sobre “Fluxos em Cadeia” buscou apresentar ,resumidamente, o “circuito” punitivo descritivo e analítico presente na pesquisa de Rafael Godoi relacionado ao funcionamento cotidiano das  prisões, tanto pelo lado de dentro como pelo lado de fora, lugar onde ocorrem a múltiplas relações fora do muro prisional, desde a dinâmica da execução penal e o particular regime  de processamento que organiza o fluxo de condenados pelos espaços de reclusão no estado de São Paulo. Fluxos em Cadeia demonstra como o sistema processual promove uma sequência de desdobramentos, conceituado pelo o autor como “deslocamentos” ,sobre o encarceramento em massa ,que envolvem a mobilização e articulação de uma variedade de agentes situados tanto dentro como fora da instituição, revelando assim, uma tessitura de relações conflituosas, além disso a obra denuncia um sistema falho que ,devido incapacidade diversas, impactam nas camadas populacionais  marginalizadas. 

Referências:[editar | editar código-fonte]

GODOI, R. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. 2015,243 f.  Tese (Doutorado) - Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências  Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-05082015-161338/publico/2015_RafaelGodoi_VOrig.pdf

Mapa do sistema prisional, Penitenciárias (sap.sp.gov.br) , Secretaria da Administração Penitenciária (sap.sp.gov.br). Disponíveis em: 

Secretaria da Administração Penitenciária (sap.sp.gov.br)