Fogo nos racistas - a pedagogia decolonial do rap (artigo)
Os pensamentos de Fanon, Quijano, bell hooks e Lélia Gonzalez implodem os saberes acadêmicos tradicionais. E ajudam a entender a potência pedagógica do rap – com Djonga, Racionais e Emicida – para a rebeldia libertária e cidadã.
Autoria: Angélica de Freitas e Silva
Artigo originalmente publicado no portal Outras Palavras[1] em 14 de outubro de 2022.
O artigo[editar | editar código-fonte]
A Faísca[editar | editar código-fonte]
Cada geração deve, a partir de relativa obscuridade,
descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la.
(Fanon, 1990, p. 166)
A frase “fogo nos racistas!” tornou-se um dos hinos da luta antirracista no Brasil. O verso icônico é o refrão do single Olho de Tigre, de 2017, escrito pelo rapper Djonga, de 28 anos. A canção entona versos afiados contra o racismo e o fascismo no Brasil, com ira lírica que informa a consciência do autor quanto a sua identidade singular de jovem favelado negro de pele retinta; do seu papel na coletividade; seu orgulho; e o chamado para a juventude negra contemporânea estar pronta para ruir o castelo dos brancos. Manifestações culturais como fogo nos racistas! informam a legitimidade dos pleitos de uma nação e têm poder revolucionário (Fanon, 1990, p. 167). Consequentemente, aniquilação e supressão culturais são alguns dos elementos constitutivos da presente configuração global de poder: colonialidade do poder (Quijano, 1992). Expressões culturais que resistem às supressões da hegemonia colonial são mecanismos fundamentais para engatilhar mudanças coletivas. Manifestações culturais anti-hegemônicas são historicamente perseguidas, reprimidas, e até criminalizadas por representarem ameaças políticas. Frente ao atual crescimento de movimentos ultraconservadores pelo mundo e especialmente no Sul Global, flores nascem no lixão.
Neste ensaio, publicado em três partes aqui no Outras Palavras, analiso o poder pedagógico decolonial de movimentos culturais anti-hegemônicos como o rap, propondo uma reflexão acerca de como movimentos culturais podem ser informativos e meios para as mudanças sociais. Nesta primeira parte, retomo vertentes do pensamento decolonial que abrem as fissuras para compreender o lugar e o papel pedagógico do rap. Na segunda parte, reflito sobre como o rap nacional pode ser uma arma milagrosa contra retrocessos ultraconservadores nas áreas social e política do país. Argumento que o rap ensina, politiza e viabiliza imaginários de mudança social porque traz sujeitos históricos à existência. Na terceira e última parte, analiso mais de perto o trabalho criativo de Djonga.
Opressões patriarcais, racistas e geopolíticas são emaranhadas de tal maneira que, para ruir as estruturas da colonialidade do poder é necessário que se identifiquem o sujeito colonial e o objeto da luta no espaço e no tempo. Identificação subjetiva para transformação coletiva é um processo de aprendizado desafiador, para além de essencialismos e generalizações. O poder da cultura de informar necessidades e meios para mudança é, entretanto, imparável.
Silenciador[editar | editar código-fonte]
Corra!
Amor, olha o que fizeram com nosso povo
Amor, esse é o sangue da nossa gente
Amor, olha a revolta do nosso povo
Eu vou, juro que hoje eu vou ser diferente
Éramos milhões, até que vieram vilões
O ataque nosso não bastou
Fui de bastão, eles tinham a pólvora
Vi meu povo se apavorar
E às vezes eu sinto que nada que eu tente fazer vai mudar
Autoestima é tipo confiança, só se quebra uma vez
Tô juntando os cacos, não Barcelos, nem Antibes
Sou antigo na arte de nascer das cinza
Tanto quanto um bom motorista é na arte de fazer baliza
Eu tô na arte de fazer…
Eles são a resposta pra fome
Eles são o revólver que aponta
Vocês são a resposta porque tanto Einstein no morro morre e não desponta
Vocês são o meu medo na noite
Vocês são mentira bem contada
Vocês são a porra do sistema que vê mãe sofrendo e faz virar piada, porra
Eu vi os menor pegando em arma, pois cês foram silenciadores
Eu vi meu pai chorando o desemprego, desespero
Pra que isso, mano?
Eu não quero vida de pizzaiolo, e sim ser dono da pizzaria
Querem que eu me contente com nada
Sem meu povo o tudo não existiria
Eu disse: “Óh como cê chega na minha terra”
Ele responde: “Quem disse que a terra é sua?”
Naquela noite eu te ensinei coisas sobre o amor
Durante o dia eu só tinha vivido o ódio
Deus me deu o frio e não me deu o cobertor
Perdão Senhor, mas na pista eu só vejo sódio
Se pá são a causa da seca e da cerca que nos separa
Depois nos acusam de tá dividindo demais
Já se apropriaram de tudo
Minha mente me diz: “get out, Gustavo, corra!”
Você sabe o mal que isso faz
Pra eles nota seis é muito
Pra nóis nota dez ainda é pouco
Pros meus qualquer grana é o mundo
Pros deles qualquer grana é troco
E eu tô errado antes de fazer, defasar é o prazer
De quem tá com o controle do game
– Não treme, não geme, se cala vadia
Aqui é a porra do senhor de engenho
Eu sou tudo, eu sou vídeo, eu sou foto, eu sou frame
Tem que se vender pra mim se tu quiser um Grammy
Sou a morte, o diabo, o capeta
A careta que te assombra quando fecha o olho
Enquanto eles gozam com o choro
Existirei pra fazer tu sorrir, amor
Sou seu colete à prova de balas
Seu ouvido à prova de falas
Eu vou tomar nosso mundo de volta!
(Djonga, “Corra!”, em O Menino Que Queria Ser Deus, 2018)
Colonialidade do poder perdura através dos tempos porque é autorreferenciada em suas próprias formas de legitimação para a dominação. De tempos em tempos, os mesmos mecanismos de dominação são moldados em diferentes aparências para a mesma antiquada hierarquização de corpos, lugares e conhecimentos, almejando a manutenção de opressões históricas. Por essa razão, não é surpreendente que, ao alvorecer da segunda década do século XXI, grupos nazifascistas crescem em número e zumbido pelo mundo. Aqueles que sofrem a experiência da colonização conseguem rapidamente identificar que os tais “movimentos de ultradireita” ou “ultraconservadores” são elementos constitutivos da presente configuração de poder: violentos, autoritários, capitalistas, militarizados, guardiões do conhecimento escolástico, empregador, cidadão de bem, modelo a ser seguido. Acima de tudo, o controle de imagens, representações e manifestações é estruturalmente necessário para o que Lélia González chamou de domesticação (Gonzalez et al., 2021). Dominação cultural é totalizante e tende a supersimplificar a existência1 através da supressão sistemática de crenças, ideias, imagens, símbolos e sabedorias que não conduzem à acumulação de capital e consequente dominação global. Não há dúvidas que o controle de imagens e representações tem intenção ideológica. A análise de expressões culturais na era colonial requer o reconhecimento do complexo quadro de opressões que manifestam.
O termo colonialidade do poder foi proposto por Aníbal Quijano em 1992 para descrever o padrão ou matriz de poder que consiste na perpetuação de um modo específico de hierarquização de corpos, lugares e saberes, naturalizando realidades opressoras como única forma de existir no mundo. Explica como a cultura, o comportamento e a violência europeus dão acesso ao poder (Quijano, 1992, p. 12). Isso significa que os não-poderosos poderiam, de alguma forma, mudar seu status social e econômico imitando o poder colonial, depois o poder imperial e, então, o poder financeiro. Tal força mimética está presente em muitas esferas da vida individual e comunitária, desde o autorreconhecimento de cada indivíduo e o reconhecimento da identidade social até a produção de um conhecimento legítimo e válido. A cultura europeia tornou-se um modelo cultural universal. O imaginário nas culturas não-europeias hoje dificilmente pode existir e, sobretudo, não se reproduz, fora das relações de dominação impostas pelos europeus.
A colonialidade do poder constitui três esferas sobrepostas de opressões diretas nas várias hierarquias criadas e sustentadas pelas ideologias do sistema-mundo moderno-colonial. A primeira esfera é a configuração do poder no capitalismo, que se tornou um sistema global e engaja aparatos políticos e militares para a manutenção dos lugares hegemônicos, consistindo na invasão e dominação de territórios, no roubo de bens, na imposição de instituições europeias em as colônias (religiosas, legais e burocráticas). É o aspecto político-econômico da colonialidade do poder (Quijano, 2000). A segunda esfera da colonialidade do poder é a colonialidade do ser, sobre a criação do sujeito colonial, em que 1) as hierarquizações de gênero intraeuropeias são transferidas para as colônias, fazendo da estrutura familiar e das relações políticas patriarcais europeias as formas predominantes de viver, ocupar o território e dividir o trabalho (Lugones, 2008; 2012); e está alinhado com 2) a hierarquização racial, na qual os povos são separados e governados por sua identidade racial, negando a humanidade do não-europeu, determinando uma organização social em que a subjetividade, a história, os costumes, a ontologia e a relação com o território dos colonizados são violados e aniquilados (Césaire, 1955; Fanon, 1990; 1967; Mariátegui, 1995; Maldonado-Torres, 2007). Esses são os aspectos ontológicos e subjetivos da colonialidade do poder. A terceira esfera da colonialidade do poder trata do aniquilamento do passado, da ancestralidade e da história dos povos dominados para a imposição de valores/categorias/percepções/perspectivas/saberes modernos, de modo que aceitar tais valores seria o único caminho existir e compreender o mundo de forma legítima, institucionalizada e universal (Castro-Gómez, 2010; Walsh, 2007; 2012; Mignolo, 2005; Grosfoguel, 2013). Isso configurou a dimensão epistemológica da colonialidade do poder, que Catherine Walsh (2007) e outros chamaram de colonialidade do saber.
Reconhecer o passado e o presente colonial – a identificação de nossas realidades coloniais internas e sociais – é uma ação para a libertação. Essa ação foi nomeada pelo filósofo educacional brasileiro Paulo Freire como conscientização (Freire, 2000, p. 60). Para Freire, a conscientização é um passo para a libertação e se dá por meio do diálogo, “o encontro entre as pessoas, mediado pelo mundo, para nomear o mundo” (Freire 2000, 61). O processo dialógico deve visar a transformação da realidade. Nesse sentido, o encontro ético de pessoas tem que informar a derrubada de opressões e opressores. O diálogo se dá nas várias esferas da existência e interação social. As manifestações culturais informam e contextualizam o diálogo, conferindo legitimidade à mudança. No entanto, construções liberais de diálogo (incluindo expressões de arte, discurso, solidariedade e colaboração) que respondem aos desafios deste momento histórico são cúmplices de projetos políticos conservadores e visam a evitar rupturas sociais. Em Teaching to Transgress (Ensinando para Transgredir) (1994), bell hooks afirma que a violência epistêmica cria a aparente “revolução de valores”. hooks aponta que o diálogo é corrompido porque a cultura da dominação necessariamente promove o vício da mentira e da negação:
Essa mentira assume a forma presumivelmente inocente de muitos brancos (e até mesmo alguns negros) sugerindo que o racismo não existe mais e que as condições de igualdade social estão solidamente estabelecidas que permitiriam a qualquer negro que trabalha duro alcançar a autossuficiência econômica. Esqueça o fato de que o capitalismo requer a existência de uma subclasse de massa de trabalho excedente. A mentira toma a forma da mídia de massa criando o mito de que o movimento feminista transformou completamente a sociedade, tanto que a política de poder patriarcal se inverteu e que os homens, particularmente os brancos, assim como as pessoas negras emasculados, tornaram-se vítimas da dominação das mulheres. Assim, todos os homens (especialmente as pessoas negras) devem se unir (como nas audiências de Clarence Thomas) para apoiar e reafirmar a dominação patriarcal. Acrescente a isso as suposições amplamente difundidas de que pessoas negras, outras minorias e mulheres brancas estão tirando empregos de homens brancos, e que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem, e fica mais evidente que parte de nossa crise contemporânea é criada por falta de acesso significativo à verdade. Ou seja, os indivíduos não são apenas apresentados a inverdades, mas são contadas de uma maneira que permite uma comunicação mais eficaz. Quando esse consumo cultural coletivo e o apego à desinformação é combinado com as camadas de mentiras que os indivíduos fazem em suas vidas pessoais, nossa capacidade de enfrentar a realidade é severamente diminuída, assim como nossa vontade de intervir e mudar circunstâncias injustas (hooks, 1994, p. 29).
O diálogo freireano envolve atores em intercomunicação com abertura ética para a conscientização (Freire, 2000, p. 102). Dessa forma, o esforço de conscientização não pode ficar restrito àqueles com “formação técnica ou científica de especialistas pretendidos” (Freire, 2000, p. 132). A conscientização é, então, ação cultural como práxis para que os oprimidos abandonem o status de objetos para assumirem o status de sujeitos históricos. O diálogo, a palavra, permite que o indivíduo alienado, objetificado, torne-se sujeito e, portanto, capaz de transformar a realidade.
Assumir a subjetividade histórica é a re-humanização pela identificação do que é negado na constituição do ser-no-lugar. Para Fanon, tal negação é possibilitada pela negação da realidade nacional, pelas relações jurídicas introduzidas pela potência ocupante, pelo banimento dos indígenas e seus costumes para os bairros periféricos pela sociedade colonial, pela expropriação e pela escravização sistemática de homens e mulheres (Fanon, 1990, p. 190). Manifestações culturais acontecem concomitantemente à luta pela libertação. A identificação cultural é, portanto, o movimento de humanização vis a vis desumanização.
O processo de consciência histórica subjetiva é uma atividade constante de aprendizagem. O desafio reside no fato de que esse conhecimento a ser aprendido faz parte da sistemática imposição colonial de epistemologias eurocêntricas. Nesse sentido, a grande maioria das pessoas não se vê representada no discurso dominante, mas como outros, vivendo compulsoriamente para se conformar com a norma. Como a colonialidade do poder é poder em si mesma e meio de acesso ao poder, os povos colonizados vivenciam a vida como uma ‘tentativa sem fim’ de conformidade com as hierarquizações impostas. No livro Black Looks (Olhares Negros) (2014), bell hooks reflete sobre pessoas negras como espectadoras de um sistema que define e controla imagens e representações às quais indivíduos e grupos marginalizados têm acesso:
Peço que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, perguntando-nos vigilantemente com quem nos identificamos, de quem é a imagem que amamos. E se nós, negros, aprendemos a valorizar imagens odiosas de nós mesmos, então que processo de olhar nos permite combater a sedução das imagens que ameaçam desumanizar e colonizar. Claramente, é esse modo de ver que possibilita uma integridade do ser que pode subverter o poder da imagem colonizadora. É somente quando mudamos coletivamente a maneira como olhamos para nós mesmos e para o mundo que podemos mudar a maneira como somos vistos. Nesse processo, buscamos criar um mundo onde todos possam olhar para a negritude, e para as pessoas negras, com novos olhos (grifo nosso em negrito) (hooks 2014, p. 6).
Como propôs Freire, a educação possibilita a superação da desumanização do oprimido e do opressor. A educação para a libertação é possível porque a desumanização, embora seja um fato histórico concreto, não é um destino dado, mas o resultado de uma ordem injusta que engendra violência nos opressores, que desumaniza os oprimidos. O encontro subjetivo com o saber, ou seja, a conversão do alienado objetificado em sujeito histórico, exige que as pessoas ajam e reflitam sobre a realidade a ser transformada. Tal movimento ocorre em locais escolares e não escolares, concomitantemente.
Os espaços escolares são marcados pela imposição de saberes coloniais hierarquicamente determinados pela estrutura de poder que os legitima, privilegiando determinados saberes em detrimento de outros, de acordo com seu lugar de enunciação e seu interesse político-econômico. Oculta-se o sujeito que [fala] produz conhecimento, dando a falsa ideia de que qualquer produção científica é feita de forma imparcial, deslocalizada, acarretando sua aplicação universal. Se o sujeito que produz conhecimento está oculto, ele é percebido como “neutro”, sugerindo que a pessoa por trás da ciência não é homem, nem mulher, nem indivíduo não-binário; não é preto, nem branco, nem indígena; não é alemão, nem malauiano, nem norte-americano, nem indiano; não é rico nem pobre; não é de zona rural nem de zona urbana; e não importa como essa pessoa teve acesso à produção de conhecimento institucional. É o aluno/pesquisador/autor/escritor/cientista analisando um objeto distante. O eurocentrismo é a naturalização de um paradigma universal da centralização de fatos históricos eurocêntricos, cultura, política, institucionalização, estética e todas as formas de existência. A imposição da filosofia moderna e das ciências tinha a pretensão de universalidade, sobrepujando todas as formas de produção de conhecimento que não aplicassem os padrões eurocêntricos. Como mencionado anteriormente, a colonialidade do saber é a dimensão epistêmica da colonialidade do poder. De acordo com Catherine Walsh, “a colonialidade do saber não apenas estabeleceu o eurocentrismo como uma perspectiva única de conhecimento, mas, ao mesmo tempo, descartou completamente a produção intelectual indígena e afro como ‘conhecimento’ e, consequentemente, [descartou] sua capacidade intelectual” (Walsh, 2007, p. 104).
Há uma conversa crescente dentro da academia sobre como o conhecimento institucional tem sido ativamente opressivo historicamente. O movimento de descolonização do currículo traz perspectivas não apenas sobre o currículo, mas principalmente sobre como a comunidade diversa de aprendizes se veria no processo de aprendizagem (Bhambra; Gebrial; Nişancıolu, 2018). Isso envolve tudo o que forma cada sujeito como aprendiz ativo no mundo, tudo o que estabelece um diálogo com o aprendiz. Cultura e comunidade são elementos centrais no processo dialógico de conscientização.
A sala de aula é o espaço mais radical de possibilidades dentro da academia porque é formada por não escolásticos em interação com escolásticos. Pode ser um espaço de diálogo que envolve dinamicamente subjetividades que informam necessidades de aprendizagem. O modelo bancário de educação exige práticas pedagógicas de ensino e aprendizagem que se reduzem à entrega do currículo – o rol exaustivo dos conteúdos programáticos. Os conteúdos escolhidos a dedo a serem ensinados são problemáticos não apenas pelo viés eurocêntrico predominante, mas principalmente porque são “educação para o mercado”. O título acadêmico é um meio para a estabilidade material. Sem o título, sem as doutrinas eurocêntricas, diminui-se a possibilidade de ascensão na hierarquia social via melhoria das condições materiais. A divisão do trabalho assombra o colonizado e se disfarça de liberdade ao mesmo tempo em que controla o tipo de conhecimento que se deve ter, sem questionar criticamente quem está se beneficiando de toda aquela educação formal. Enquanto o encontro em sala de aula possibilita a conexão das subjetividades com outros elementos da aprendizagem objetiva, há barreiras a serem superadas para que o diálogo possibilite a conscientização. A lacuna entre a experiência subjetiva e o conteúdo objetivo é a dificuldade de fazer conexões entre aprendiz e aprendizado, é uma dificuldade de relacionar pertencimento e ser. A identificação da experiência subjetiva com o conteúdo objetivo se dá de forma multidimensional. A expressão cultural e a identidade ajudam a preencher a lacuna de identificação, que traz o sujeito à existência através dos sentidos, experiências, realidade corporal e consciência histórica.
Os locais de diálogo estão em constante transformação dentro da escola e fora dela. A libertação das narrativas violentas do sistema-mundo militarizado capitalista patriarcal eurocêntrico começa com a compreensão da própria identidade cultural como uma questão de “tornar-se” bem como “ser” (Hall, 2019). As manifestações culturais desempenham um papel crucial no processo dialógico de conscientização para a libertação. Nesse sentido, os movimentos literários e artísticos contêm um poder pedagógico de estabelecer a identificação e, consequentemente, o diálogo, o que politiza aqueles que se relacionam. Tal poder desencadeia mudanças. O poder revolucionário da cultura é legítimo e capaz de desmantelar a casa do mestre2. O potencial subversivo e transgressor das manifestações culturais para possibilitar a consciência subjetiva das rupturas coletivas deve ser observado em tempos de obscurantismo e retrocessos sociais. Informa onde e quando a revolução já está acontecendo. Como Fanon afirma em Os Condenados da Terra, a cultura não é “colocada em câmara fria durante o conflito” (Fanon, 1990, p. 196). No capítulo “Da Cultura Nacional”, Fanon aborda a potência da cultura para a derrubada do poder colonial como um gatilho, a faísca necessária para a transformação, uma chama que começa a iluminar a possibilidade de mudança.
Bem antes da fase política ou de luta do movimento nacional, um espectador atento pode assim sentir e ver a manifestação de um novo vigor e sentem o conflito que se aproxima. Ele notará formas inusitadas de expressão e temas que são frescos e imbuídos de um poder que não é mais o da invocação, mas da reunião do povo, uma convocação para um propósito preciso. Tudo coopera para despertar a sensibilidade do nativo e tornar irreal e inaceitável a atitude contemplativa ou a aceitação da derrota. O nativo reconstrói suas percepções porque renova o propósito e o dinamismo dos artesãos, da dança e da música e da literatura e da tradição oral. Seu mundo vem a perder seu caráter amaldiçoado. As condições necessárias para o inevitável conflito são reunidas (grifos nossos em negrito) (Fanon, 1990, p. 196).
Movimentos literários e artísticos anti-hegemônicos contra-atacam os esforços coloniais para forçar sujeitos históricos em objetos coloniais. Ao aplicar outras epistemologias e metodologias, os movimentos culturais anti-hegemônicos estabelecem um diálogo, no sentido freiriano, com os oprimidos. Pensar a arte para a conscientização é um processo social que primeiro possibilita a humanização, depois a consciência e a identificação do inimigo, e então ilumina a possibilidade de derrubada radical das configurações coloniais.
Referências[editar | editar código-fonte]
1 Fanon em Os Condenados da Terra explica como a colonização tende a simplificar demais a existência para que ela seja cognoscível e controlada (Fanon, 1990, p. 190).
2 Referência ao texto de Audre Lorde As ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre (1979).
- ↑ “Fogo nos racistas!”: a pedagogia decolonial do rap - Outras Palavras