A infame atualidade de M8, um filme de Jeferson De

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Nos idos de 2021, uma amiga da faculdade compartilhou o trailer nas estórias do Instagram, foi como fiquei sabendo do filme. Gostei do que vi, mas o que também contou para o meu interesse foi o fato da minha amiga ser a mesma que um dia, já no final da graduação, me disse uma frase bem caricata de quem ela é, mas que eu nunca esqueci: Lucas, a gente tá na cabeça da besta, e pensando! Na internet, descobri que um livro tinha servido de base para a adaptação de Jeferson De, diretor de ‘M8’, mas também de ‘Bróder’. Comprei o livro, encontrei barato no sebo online. Chegou pelos Correios antes do filme, bem antes. Mas acabei esquecendo dele durante algum tempo e só fui lembrar quando a estreia do filme na Netflix apareceu no Twitter. Peguei pra ler assim que pude, mas mesmo fininha, a leitura só terminou depois do filme, e continuou sendo a desculpa pra escrever sobre o que aquele filme teve de tocante pra mim.

No filme, o autor do livro, Salomão Polakiewzcki, é homenageado com o nome de uma das personagens, o Sr. Salomão (Sal). Ele é um paciente particular da enfermeira Cida, mãe do protagonista Maurício, um jovem negro de periferia que acbou de ingressar no curso de medicina. Ao ingressar no curso de medicina, Maurício passa a ter pesadelos com as aulas de anatomia. “Aqui a morte se alegra de socorrer a vida” é o lema em latim pintado na parede do laboratório onde a turma de Maurício vai estudar a anatomia de cadáveres.

O prelo anuncia o que a gente encontra na hora e meia da película. Nele, Maurício se aproxima de um dos tanques com formol em que os cadáveres são preservados. O ambiente é escuro, como num sonho. Quando alcança a visão interna do tanque, descobre seu próprio corpo lá dentro, morto, feito os cadáveres que servem de estudo para ele e sua turma de faculdade. Então Maurício acorda ofegante do pesadelo, e percebe ser apenas mais um dia de aula de anatomia. Ao som de Rincon Sapiência, assistimos Maurício chegar atrasado ao prédio da faculdade, (“Meu verso é livre ninguém me cancela/Tipo Mandela saindo da cela”), errar atrás da sala (“Partiu para o baile, fugiu da balela/Batemos tambores, eles, panela”), até encontrá-la, parar diante da porta para vestir o jaleco, ajeitar a lapela com altivez (“Quente que nem o conhaque no copo/Sim, pro santo tamo derrubando/Aquele orgulho que já foi roubado/Na bola de meia vai recuperando”), e entrar na sala.


Na mesma sala onde se viu morto, Maurício ouve o professor de cabelo e barba brancos dizer para a turma que “Foi partindo dessa premissa que DaVinci…ele viu de perto as características dos músculos e dos órgãos vitais. E mais! Ele tentou, e conseguiu!, entender e dar explicações lógicas sobre os movimentos, as articulações e suas funções. E olha, gente, estamos falando do século XVI. Enquanto isso, aqui no Brasil, nossos índios ainda caminhavam semi-nus por essas terras sem males.” Na literatura de Polakiewzcki, Dr. Djalma, o professor, passa longe do tom eurocêntrico que, com uma única fala, Jeferson De imprimiu no personagem de Henri Pagnoncelli. Esta é uma das maneiras como o diretor faz a tensão racial característica ao nosso tempo ganhar forma por todos os lados. Outro exemplo desta construção narrativa é o momento em que Maurício excede o tom com a mãe e é advertido com um visceral “Cala a sua boca que eu sou uma mulher preta falando, não me interrompa!”

Tanto na narrativa do filme quanto na do livro, Maurício, interpretado pelo ator Juan Paiva nas telas, é um jovem negro favelado. Em ambas, a entrada na universidade é acompanhada do mesmo conflito com o novo ambiente: enquanto seus colegas de turma são quase todos brancos, a maioria dos cadáveres é de pessoas negras como ele. E o que se traduz, na tela, como os pesadelos de Maurício se vendo morto no tanque de formol, o livro apresenta a partir da consciência do protagonista:

Dentro do ônibus, Maurício tentava organizar seus sentimentos, perturbado ainda pelas vivências na Faculdade. Imaginara ter dificuldades na primeira atividade prática. Fora alertado pelos veteranos. Na verdade, outra coisa lhe ocorrera. O que o chocou e embaraçou foi constatar que ele e o cadáver que lhe coubera – o M-8 – tinham em comum: a pele escura. A rigor, quase todos os corpos ali inertes eram da sua mesma cor. Fora ingênuo por se surpreender – reconhecia. Uma mínima parte da população negra conseguia concorrer às vagas na Universidade – ele mesmo era o único de sua turma de primeiro ano – mas constituía o maior contingente de material para as mesas de dissecação (POLAK, 1996, p. 19).

O livro de Pollak é de 1996, mesmo ano em que eu nasci, o que certamente tem a ver com a minha impressão de que muita coisa aconteceu nesse meio tempo. Mas a passagem dos vinte e oito anos que separam o livro do filme é mesmo fácil de ser percebida. Na adaptação para o cinema, os funcionários da limpeza da universidade, Sá (Ailton Graça) e Sinvaldo (Alan Rocha), não repetem a denegação da cor apresentada por Aníbal e Joaquim, versão literária desses mesmos personagens.

Aníbal, mais claro que o companheiro, rotulava-o como negro e, a si, como moreno. Seguro de tal distinção, poupava-se das frequentes observações desrespeitosas que ouvia, evidência do preconceito que a sociedade hipocritamente não admitia. Joaquim não tinha como negar sua cor negra e nem aspirava a isto. Nascera e se habituara naquela estrutura perversa. Assim, conduzia sua vida sem questionamentos, além do mais, reforçado por uma Igreja ainda acomodada. Tinha carinho por Maurício, gostaria que seu filho, da mesma idade dele, pudesse chegar a identica posição universitária, mas preponderara a ordem natural das coisas. Ele se tornara um operário braçal, a mesma profissão do homem que recebera a marca de M-8 (POLLAK, 1996, p. 33).

Além da autoria das obras, essa diferença entre as personagens nos remetem a algumas transformações sociais ocorridas no Brasil ao longo das últimas décadas. Jefferson De é conhecido por tematizar a questão racial em seus filmes, como no documentário de curta-metragem Carolina, sobre a escritora Carolina Maria de Jesus, e no mais recente Doutor Gama, sobre Luiz Gama. Carolina é um filme de 2003, quando aos 7 anos eu tentava entender um falecimento precoce na família e não fazia a menor ideia de que uma lei tornava obrigatório o ensino de história e cultura afrobrasileiras, enquanto o atual critério de autodeclaração tinha sido adotado pelo Censo em 2001.

Em 2007, quando virei amigo de um outro Lucas, a porcentagem de negros e brancos na população brasileira se invertia, e o Brasil passava a ser oficialmente um país de população majoritariamente negra. Quando a gente se conheceu, Lucas achou a maior coincidência do mundo a gente ter além do mesmo nome, os mesmos 10 anos de idade. Morando no mesmo lugar, dividimos boa parte das descobertas daquele início de adolescência, que hoje fazem da cicatriz de uma briga entre a gente uma boa lembrança. Naquela mesma década em que eu me irritava com a péssima mania do Lucas de abandonar o futebol para correr atrás de pipa voada, as legislações sobre cotas raciais ganharam corpo até a aprovação da Lei de Cotas, em 2012, dois anos antes de eu mesmo ingressar como cotista na UFRJ. Cerca de dez anos depois, estudantes negros e negras somos a maioria nas universidades federais do país, e a personagem de Maurício, que era um bolsista na literatura de Pollack, nas lentes do cineasta virou um cotista.A distância temporal entre as duas obras é perceptível ainda no desfecho do livro: uma denúncia do sensacionalismo televiso que talvez fizesse pouco sentido para um filme de 2020. É assim que, depois de aparentemente solucionado o conflito de Maurício com o cadáver M-8, o autor Pollack mantém o caráter trágico de sua ficção, mudando o foco para esta denúncia. Maurício consegue o velório a fim de restituir alguma dignidade ao cadáver, mas o ato de empatia acaba esvaziado pela cobertura sensacionalista dos canais de televisão.

Naquela relação de uso que se estabelecera entre as diversas partes, levou vantagem a televisão. Montou o programa a seu modo, privilegiando a figura mais importante do acontecimento – o cadáver – visando a alcançar seu claro objetivo de obter elevada audiência. E foi um sucesso! (POLLAK, 1996, p. 79).

Enquanto isso, a alternativa de Jeferson De para a conclusão revela uma infame permanência entre a literatura e a adaptação cinematográfica. No filme, o enterro de M8 também acontece visando lhe restituir alguma dignidade, mas com a camada a mais de sentido criada pelos movimentos que têm buscado transformar em luta a dor do luto: Maurício encontra na rua as mães que protestam contra o desaparecimento dos filhos negros, colocando em cena o protagonismo do Estado brasileiro na violência policial. Ao mesmo tempo, esta camada a mais de sentido só existe porque a realidade que fez com que Pollack (1996) criasse seu livro é a mesma que, mais de duas décadas depois, permitiu a Jeferson De tomá-lo de empréstimo. No contraste com o cadáver anônimo, os dois Maurícios, o de Pollak e o de Jerferson De, mostram que ingressar no ensino superior não é só mais um passo na vida de um jovem negro, mas também uma pequena ruptura nesta infame continuidade da história do Brasil, onde, há sete anos, eu, Lucas, saía de uma aula da faculdade para ir ao enterro de outro jovem negro Lucas nascido em 1996.