A vida e as lutas de Marielle Franco (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Lia de Mattos Rocha[1][2].

Apresentei uma primeira versão deste texto como Conferência Magistral na IV Convención Latinoamericana de Estudiantes de Sociología na Cidade do Panamá, em 09 de Outubro de 2018. Marielle Franco foi homenageada pelas Escuela de Sociología de la Universidad de Panamá (UP), Asociación de Estudiantes de Sociología (AES) e Red de Estudiantes de Sociología de Latinoamérica y el Caribe (RESLAC). Foi incrível ver então como tantos jovens latinoamericanos se identificaram com a vida e as lutas de Marielle, e como ela se tornou gigante.

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Conheci Marielle Franco há quase dez, quando ela já trabalhava na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, junto com o Deputado Estadual Marcelo Freixo do Partido Socialismo e Liberdade. Nós nos conhecemos por amigos em comum, que também atuam na área de Direitos Humanos. Como eu, Marielle era socióloga, e tinha muitos interesses acadêmicos, especialmente na área de sociologia urbana, estudos de segregação socioespacial e violência urbana. Por isso, em um dos meus primeiros cursos no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Marielle já estava presente, como ouvinte. Naquele momento ela estava aplicando para fazer seu mestrado, e por compartilharmos interesses comuns nos tornamos parceiras de pesquisa e reflexões, seja nos cursos e reuniões de pesquisa, seja no grupo de estudo que participamos com Claudia Trindade, Otto Faber e Juliana Farias. Mais do que colegas, nos tornamos muito amigas ao longo desses anos, e desde sua execução, em 14 de Março de 2018, tem sido muito difícil para todos nós que a conhecíamos viver esse luto e travar essa luta por justiça. Mas, como dizemos desde seu assassinato, Marielle era uma semente. Seu legado é uma inspiração para nós. Dizemos ainda “Lute como uma Marielle”. É o que temos tentado fazer desde então, e o que pretendo fazer aqui.

Após sua morte milhões de brasileiros e pessoas no mundo todo conheceram e passaram a amar Marielle Franco. Infelizmente, para muitos foi somente após a sua morte. Quem teve a sorte de conhecer Marielle viva sabe a força que ela transmitia no olhar e no sorriso, sempre aberto e caloroso. Apesar de ser para nós tão especial, Marielle na verdade era uma mulher como muitas outras, mãe de uma filha de 18 anos, trabalhadora, que lutou muito para ter sua formação universitária. Nascida em uma família de migrantes do Nordeste, Marielle foi criada na Favela da Maré, bairro do Rio de Janeiro onde moram atualmente 140 mil pessoas (Censo 2010). Como às vezes parecemos esquecer, as favelas cariocas são o local de moradia de um em cada cinco moradores da cidade do Rio de Janeiro (ainda segundo o Censo 2010). As favelas são espaços bastante heterogêneos, mas são vistas pela sociedade brasileira de forma generalizada como o lócus da pobreza, da desorganização social, do crime (ZALUAR, 1985; LEITE, 2000; MACHADO DA SILVA, 2002). Os moradores de favela são estigmatizados e criminalizados há mais de cem anos, desde o surgimento das primeiras favelas no final do século XIX (VALLADARES, 2005). A forte presença da população negra (que era muito numerosa no país à época[3] e ali encontrou abrigo após a Abolição da escravidão, e que ainda hoje é a maioria entre os favelados[4]) explica porque os moradores de favelas no Brasil sofrem com uma espécie de duplo estigma: o racismo e o preconceito por morarem em locais ocupados, por não terem a propriedade do terreno onde moram, por serem considerados invasores.

Mas as favelas são também lugar de resistência. Quando a Favela da Maré começou a ser ocupada mais intensamente – em meados de 1940 – já foi criada a primeira associação de moradores para melhoramentos do local. Assim, a história da Favela da Maré e de seus moradores é também uma história de luta e organização coletiva, o que se refletiu diretamente na trajetória de Marielle. Foram os próprios moradores que aterraram boa parte do terreno onde se localiza a favela, atualmente uma área de mais de 400 hectares (ou 4 milhões de metros quadrados), e também construíram ruas, colocaram eletricidade nas casas, entre outros melhoramentos.

E foi também a organização coletiva dos moradores da Maré que criou, em 1988, o Pré-Vestibular Comunitário da Maré. No Brasil, o ensino superior sempre foi visto como algo exclusivo para os filhos das classes médias e alta, e por isso os estudantes de escola pública não são “treinados” para serem bem sucedidos nesses testes. Assim, iniciativas como o Pré-Vestibular Comunitário da Maré pretendiam “treinar” os filhos da classe trabalhadora moradora da favela a passar no vestibular. Mas não apenas isso. O curso contava com professores ligados a partidos de esquerda e movimentos sociais, que faziam discussões políticas profundas e apresentavam aos jovens favelados explicações diferentes para as injustiças do mundo. Marielle foi aluna do Pré-Vestibular Comunitário da Maré em 1998, e essa experiência marcou sua vida. Após algumas tentativas Marielle foi aprovada na Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro, para cursar Ciências Sociais, com uma bolsa para estudantes pobres vindos da Maré. Assim começou a carreira acadêmica de Marielle, sempre ligada à sua origem favelada e suas preocupações sociais e políticas.

Quando Luyara nasceu Marielle tinha 19 anos, já tinha abandonado a escola e retomava os estudos para tentar entrar na universidade. Sua experiência universitária, portanto, não foi a mais comum para os jovens universitários. Ela já tinha 23 anos, era mãe de uma criança pequena, já trabalhava desde os 11 anos de idade e naquele momento era secretária do próprio Pré-Vestibular da Maré. Mas ainda assim a experiência no Pré-Vestibular Comunitário e depois na Universidade Católica abriram para Marielle um mundo novo, muito maior do que a Maré. Ela se filiou inicialmente ao Partido dos Trabalhadores e depois ao Partido Socialismo e Liberdade, partido pelo qual foi eleita vereadora em 2016, e passou a ter uma atuação política mais organizada.

Sua militância, mesmo antes da sua filiação a partidos políticos, sempre foi na área de Direitos Humanos. Para os moradores de favela, a luta por direitos humanos é uma luta fundamental, porque se trata da luta pela própria sobrevivência. Além da desigualdade econômica, os favelados enfrentam cotidianamente a luta pela vida, já que as favelas são territórios onde a violência do Estado Brasileiro contra os pobres e a classe trabalhadora é muito presente[5]. Assim, infelizmente, é comum que muitos moradores de favelas tenham perdido amigos e parentes seja para a violência dos traficantes, seja para a violência da polícia, seja durante o confronto entre as duas forças. Com Marielle não foi diferente: ainda adolescente ela perdeu uma amiga assassinada durante um desses confrontos entre policiais e traficantes na Maré. A dor e a indignação com essa morte foram fundamentais para levar Marielle para a vida política.

Em 2006 o PSOL lançou Marcelo Freixo como candidato a deputado estadual, com a bandeira dos Direitos Humanos. Marcelo, professor de História em escolas e no curso de pré-vestibular da Maré, era já um ativista nessa área, atuando inicialmente junto a presos e seus familiares e depois na assessoria a famílias cujos filhos e filhas foram assassinados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Marielle fez a campanha do Freixo na Maré e depois foi convidada por ele para compor seu gabinete e atuar na Comissão de Direitos Humanos, que ele passou a presidir. Na Comissão de Direitos Humanos Marielle trabalhou de forma incansável no acompanhamento de casos de chacinas e execuções policiais, prestando apoio jurídico e psicológico às famílias e cobrando das autoridades celeridade nas investigações. Nessa mesma posição atuou junto a familiares de policiais militares mortos em serviço, para que suas mortes fossem investigadas e suas famílias amparadas de acordo com a lei. É neste período que Marielle se destacou como uma militante dos Direitos Humanos.

Marielle trabalhou com Freixo de 2006 até 2016, quando ele se candidatou a prefeito e ela se candidatou a vereadora pela primeira vez. Sua campanha foi um marco na história política da cidade. Com a bandeira de ser uma mulher, negra e favelada militante dos direitos humanos ela conseguiu o apoio de outros moradores de favelas, de intelectuais, de parte do movimento negros, de mulheres, de jovens universitários que viam naquela mulher tão diferente dos outros candidatos uma oportunidade de fazer outra política, de fazer outro mundo possível. Com o lema “Eu sou porque nós somos”[6], a campanha de Marielle articulava ideias muito importantes para nós, como a união, a representatividade, a possibilidade de ter na política alguém que não era como os políticos tradicionais. Dos cinquenta e um vereadores eleitos em 2016, apenas seis eram mulheres e apenas um, além de Marielle, era negro. A mudança que queríamos ver na política estava expressa no corpo dela. Ela era diferente deles, mas era como nós: ela vinha das lutas, dos movimentos sociais, dos coletivos negros das universidades, vinha dos blocos de carnaval, vinha dos grupos de artistas do funk. Ela era porque nós todos éramos uma forma diferente de viver, de circular na cidade, de estar na política, de lutar. Marielle foi eleita com surpreendentes 46.502 votos, sendo a quinta mais votada na cidade e a segunda mulher com o maior número de votos. A noite em que foi eleita foi uma das mais felizes de nossas vidas.

Seu mandato foi marcado por uma atuação forte nos temas dos direitos das mulheres e da população favelada. Marielle Franco presidiu a Comissão de Defesa das Mulheres da Câmara do Rio de Janeiro, trazendo o tema para os debates legislativos. Sua atuação junto a bancada do PSOL também foi fundamental para que o partido pudesse denunciar diversos esquemas de corrupção existentes na cidade, ligados tanto à máfia que controla o sistema de transporte público quanto às empreiteiras e construtoras envolvidas na construção dos estádios para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Seus discursos na tribuna sempre tiveram muito impacto, mas como uma vereadora de um partido de oposição e minoritário, sempre foi muito difícil para Marielle aprovar leis. Dos dezesseis projetos de lei que apresentou enquanto foi vereadora sete foram aprovados, sendo que cinco foram aprovados somente depois de sua morte.

O período em que Marielle foi vereadora foi marcado por sua atuação corajosa e vibrante, mas a situação da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil se agravou muito quando comparada com 2016, quando foi eleita. A Intervenção Federal na Segurança do Rio de Janeiro, decretada pelo Presidente Michel Temer em 19 de fevereiro de 2018, representou o ápice de um processo de militarização da cidade que já vinha sendo implementado durante o Programa das Unidades de Polícia Pacificadora, mas que tem origens em nossa ditadura militar. Dentro desse processo de militarização as favelas cariocas são tratadas como “o inimigo” (LEITE, 2000; LEITE et al, 2018); por exemplo, a favela da Maré, onde Marielle nasceu e foi criada, foi ocupada por 14 meses pelo Exército, entre 2014 e 2015, e segundo o Exército Brasileiro ali foi travada “Uma guerra irregular, sem fronteiras, com inimigo difuso” (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2015).

Foi contra essa representação da favela e dos favelados como inimigos que Marielle se insurgiu. Por conta de toda a sua militância na área de Direitos Humanos Marielle se tornou um dos quatro vereadores relatores da Comissão da Câmara para acompanhamento da Intervenção Federal. Apesar de ter se colocado desde o início contrária à intervenção, por saber seu potencial letal contra a população favelada, sua morte foi usada pelo Presidente Michel Temer como justificativa para defender a continuidade da intervenção.

É evidente que Marielle seria contrária à intervenção federal. Sua dissertação de mestrado, de cuja banca de defesa fiz parte e que agora foi publicada pela Editora N-1 (FRANCO, 2018), discute as raízes sociais que legitimam a submissão dos moradores de favelas, por meio da análise do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O trabalho apresenta as resistências populares e as alternativas para se produzir uma outra segurança pública que considere a vida e a cidadania dessa enorme parcela de cidadãos brasileiros, da qual Marielle fazia parte e era representante. A dissertação colabora para o debate sobre a necessidade da desmilitarização da Polícia Militar e da abertura das instituições policiais para a participação da sociedade civil – que inclui, na perspectiva defendida por Marielle, fundamentalmente os moradores de favela, excluídos sistematicamente deste debate.

Assim, o atentado político que vitimou a vereadora do PSOL Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes talvez seja a mais terrível expressão dessa pretensa guerra que vivemos no Brasil, que promete segurança mas traz em seu ventre mais morte, arbitrariedades e autoritarismo. Marielle foi executada, na noite do dia 14 de Março de 2018, com quatro tiros. As investigações até hoje não foram capazes de identificar quem matou ou quem mandou matá-la. Ao que tudo indica, Marielle foi executada como forma de silenciá-la e de parar sua luta, em defesa dos direitos dos moradores de favela, mulheres, negros e negras, LGBTs, ou seja, da classe trabalhadora tão explorada e violentada. Sabemos também que uma vereadora mulher, negra, lésbica, favelada, que falava alto e discutia com homens de igual para igual despertava o ódio de muitas pessoas. Ódio expresso, por exemplo, pelo então candidato a deputado estadual Rafael Amorim (posteriormente eleito como o mais votado do estado do Rio de Janeiro), que rasgou uma placa em homenagem à Marielle que estava numa praça pública do centro da cidade, e que divulgou com orgulho sua ação nas mídias sociais. Até hoje essa mulher corajosa desperta a raiva dos poderosos. Mas Marielle não desperta apenas ódio.

Sua morte despertou também muita revolta, tristeza, indignação e vontade de continuar sua luta. Milhares de pessoas foram às ruas exigir Justiça para Marielle e Anderson. Manifestações ocorreram no mundo todo. Marielle foi homenageada por diversas escolas, universidades, prefeituras, coletivos culturais. Nesta eleição tivemos quatro candidatas eleitas pelo Rio de Janeiro que se apresentaram como sementes de Marielle. Sua irmã, Anielle, e sua mulher, Monica, tornaram-se ativistas e percorrem o mundo denunciando seu assassinato, exigindo justiça e punição para seus algozes. E não estão sozinhas.

No momento em que escrevo este texto estamos às vésperas da posse do Presidente Jair Bolsonaro – cuja candidatura representa tudo aquilo contra o qual sempre lutamos. Sabemos que em seu governo não apenas os direitos humanos e as liberdades democráticas estarão seriamente em risco; a vida dos moradores de favelas, que nunca foi fácil, pode se tornar ainda pior.

Mas não iremos desistir. Não calarão Marielle Franco, não nos calarão. Iremos continuar gritando, denunciando sua morte e exigindo justiça. Justiça para ela e para tantos brasileiros e brasileiras, que são desrespeitados, violentados e massacrados, apenas porque existem.

Continuaremos lutando. Lutando como Marielle Franco.

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2018. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2018.

FRANCO, M. UPP - A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo: Editora N-1, 2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2018.

MACHADO DA SILVA, L. A. A continuidade do “problema da favela”. Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, p. 220-237, 2002.

MARIANI, D.; RONCOLATO, M.; ALMEIDA, R.; TONGLET, A. Censo de 1872: o retrato do Brasil da escravidão. In: Nexo Jornal de 27 de Junho de 2017. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2018.

MINISTÉRIO DA DEFESA. Ocupação das Forças Armadas no Complexo da Maré acaba hoje. Notícias. Brasília, 30 de Junho de 2015. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2018.

ZALUAR, A. A Máquina e a Revolta – As organizações populares e o significado da pobreza. Rio de São Paulo: Editora Brasiliense, 2002 [1985].

Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Publicado originalmente na revista Em Pauta.
  2. * Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ-UCAM (2009). Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais). Correspondência: Rua São Francisco Xavier, 524, 9º andar, bloco F, sala 9103, Maracanã – Rio de Janeiro – RJ. Email:
  3. Segundo o Censo de 1872, dos quase dez milhões de brasileiros que viviam no país aquele ano, 1,5 milhões eram africanos trazidos à força ao país e escravizados (MARIANI et al., 2017)
  4. Segundo o Censo de 2010, 66% dos lares localizados em áreas de favela no Rio de Janeiro são chefiados por homens e mulheres negros (IBGE, 2010).
  5. A Polícia Militar do Rio de Janeiro é especialmente violenta: Em 2017, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 5.144 pessoas morreram em decorrência de ações policiais, sendo que 1.127 desses casos ocorreram no Estado do Rio de Janeiro (cuja população de 16,72 milhões de habitantes representa 8% da população brasileira).
  6. Referência ao conceito Ubuntu, de origem africana.

Ver também[editar | editar código-fonte]