Ambulatório Dedé - Sua criação, sua gestão e o término das atividades
Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado. E se é verdade que a saúde é assegurada pela constituinte como um dos direitos sociais, a favela Santa Marta, localizada na Zona Sul do Bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil fez jus a esse direito. Na gestão da chapa azul, a associação de moradores elaborou um projeto para a saúde subir a favela. Criou-se assim, o ambulatório Dedé, localizado no alto da favela, com objetivo de atender as demandas de saúde. Seu prédio faz parte da Associação de Moradores, e o seu nome foi escolhido em homenagem ao morador José Manoel Machado (cujo apelido era Dedé), que faleceu em decorrência de um eletrocutamento (ao prestar ajuda a um morador).
Autora: Dorlene Meireles Mendonça
Entrevista feita com o médico responsável pelo ambulatório da favela[editar | editar código-fonte]
Conversei com o médico responsável - Doutor José Luis Magalhães Rios - que respondeu-me sobre a ideia da construção de um ambulatório dentro da favela:
"Um dos principais problemas dos moradores do morro, era a dificuldade de acesso aos serviços de Saúde, devido á baixa renda dos moradores, por um lado e, principalmente, pela precária oferta de serviços de saúde. Embora a Zona Sul fosse relativamente bem servida de hospitais e postos de saúde da rede pública, a qualidade do serviço sempre foi ruim e, principalmente, NÃO HAVIAM AÇÕES DE PREVENÇÃO na área da saúde. Nem para evitar doenças e nem para tratar as doenças crônicas, como a Hipertensão Arterial, e evitar as complicações, como derrames (AVCs), enfartes e mortes. No caso, eu estava me formando médico e ligado nesses problemas, e na comunidade: já participava do Grupo ECO. Surgiu então a ideia de criarmos um local para atendimento médico na própria favela. Mas, que não fosse só para atender, tratar as pessoas doentes. Precisava estar focado no trabalho preventivo, que chamamos de atenção primária: vacinar as crianças de todas as doenças possíveis, conseguir tratar os hipertensos, os diabéticos, etc. Por isso tudo, a gente se preocupou, desde o início, em formar agentes de saúde, da própria favela, que seriam as peças mais importantes nesse trabalho de prevenção e educação. No “meio do caminho” descobrimos muita gente com tuberculose, que era transmitida na própria favela e iniciamos uma ação focada na detecção dos casos e na conscientização dos doentes para levar o tratamento até o fim."
Com isso, surgem parceiras envolvidas no projeto de saúde para a Favela Santa Marta.
"A primeira grande parceria foi com o Colégio Santo Inácio, através da Associação dos Antigos Alunos – ASIA, que financiou a compra e reforma do barraco, bem como o seu equipamento. E também a remuneração da equipe de trabalho: no início um médico (eu) e duas Agentes da Saúde: Almira e Lourdes (se não me engano). A equipe tinha também uma psicóloga, a Gisele, que fazia atendimento aos moradores, grupos terapêuticos, e outras ações relacionadas com a saúde mental. A gente tinha decidido que o ambulatório deveria ser na parte alta do morro, de onde os moradores tinham mais dificuldade para ir e voltar dos hospitais etc. na rua. Principalmente estando doentes. (Não havia o plano inclinado). Surgiu um barraco antigo, grande, de um morador tradicional da favela, que havia falecido e a família estava vendendo (não lembro o nome), bem no alto do morro. Lá foi a 1ª sede. O barraco era de estuque, inclusive a laje. E foi apenas reformado para começarmos a funcionar. Anos mais tarde, quando a prefeitura iniciou a urbanização, aí conseguimos um convênio com a Secretaria de Desenvolvimento Social, que fez o projeto e construiu a sede do ambulatório, que está aí até hoje, debaixo da “laje Maicon Jackson”, que é de concreto. A parceria com a Prefeitura, também possibilitou criarmos um sistema de encaminhamento dos moradores para o Centro Municipal de Saúde da IV R.A., na R. Silveira Martins, que era o “encarregado” da área do Santa Marta. Com isso, os moradores encaminhados tinham prioridade de atendimento nas especialidades do posto, como dermatologia, ginecologia e pneumologia, além de podermos pedir alguns exames, como hemograma, fezes e urina, que eram feitos lá. Foi um grande avanço. Dessa parceria também surgiram as campanhas de vacinação “dentro” da Favela (antes era só da PONSA pra baixo) e o projeto de tuberculose. Depois de algum tempo, conseguimos formalizar um convênio, via prefeitura (Marcelo Alencar), pelo qual o CMS passou a fornecer remédios – os mesmos que tinham em sua farmácia - para o ambulatório. Aí, aumentou muito os resultados do nosso trabalho: antes dependíamos só de amostras grátis e/ou do morador ter o dinheiro para comprar o remédio e poder, assim, se tratar. Também conseguimos uma parceria com o Hospital da Lagoa, que passou a ser o principal Hospital para atender as emergências dos moradores do Santa Marta. Esse também foi um ganho muito grande. Depois, conseguimos uma parceria com o INSS (na época INPS) que permitiu aumentar a equipe. Conseguimos que o INSS assinasse um convênio com a ASIA, por meio do qual ele remuneraria os atendimentos do ambulatório, pela tabela do SUS. Com isso, conseguimos contratar mais médicos (chegamos a ser 5 ou 6) e mais agentes de saúde (chegaram a ser 7 ou 8). E aí o trabalho “bombou”, tanto em termos de qualidade, quantidade e condições de atendimento, quanto em termos ações preventivas e de controle de saúde dos moradores. Além de atividades extras, de reabilitação. Foi a época “áurea” do Ambulatório."
E o doutor responde as pessoas mobilizadas para a construção do ambulatório Dedé.
"A sede inicial foi construída em mutirão, do qual participavam membros do ECO e outros moradores. Um dos mais ativos foi o Polegar, marido da D. Sebastiana, mãe da Almira. O trabalho só não andou mais rápido porque, na mesma época, ainda rolava a construção da sede da Associação de Moradores, da qual membros do ECO eram os diretores e precisavam se “dividir” entre as duas obras. A 2ª sede do Ambulatório, construída no mesmo local, com a demolição do barraco original (que já estava quase desabando...) foi feita pela Secretaria de Obras, que mandava os engenheiros, mas contratou moradores para fazer o trabalho. Impossível lembrar os nomes. Lembro do Seu Fiinho (acho que é esse o nome) que era profissional em quebrar as pedras que tiveram que ser removidas do terreno. Ele era especialista nisso. Lembro que o Frango, marido da Suely também participou muito. Sem esquecer, é claro de Itamar, Josafá, Gilson, Fatinha, e outros da diretoria da Associação, que estavam sempre de frente. Eu também, é claro."
Vocês receberam algum tipo de apoio?
“Todo tipo de apoio: trabalho voluntário de muitos moradores e alguns voluntários da rua, envolvidos ou não em outras atividades na favela. Apoio das creches, especialmente Casa Santa Marta, que era nossa “retaguarda”. Apoio total da diretoria da Associação de Moradores da época, do Grupo ECO, do Santo Inácio e outras instituições já citadas. Recursos das instituições já citadas, como a Prefeitura e suas secretarias, o Hospital da Lagoa, o INSS, e de outras menores."
Como foi o processo da escolha do nome do ambulatório?
"O Dedé era um morador muito atuante e era um dos diretores da Associação na época. Entre as obras de melhoria que estavam acontecendo na comunidade naquela época, estava a eletrificação da favela. Ou melhor: mudança da rede, para levar luz da LIGHT diretamente a cada casa da favela. Houve um problema na rede de alta-tensão e o Dedé, junto com o Itamar, foram tentar resolver, enquanto a LIGHT não chegava. Só que houve um acidente e o Dedé foi eletrocutado na rede de alta tensão, ficou preso no fio e foi socorrido pelo Itamar. Só que ele caiu já em parada cardíaca. Fui chamado correndo e ficamos tentando ressuscitar o Dedé com massagem cardíaca e respiração boca a boca por quase meia hora, até chegar a ambulância e os médicos lá em cima. Mas, sem sucesso. Foi levado já morto para o Hospital. Por tudo que ele representava e por ser um morador que morreu trabalhando pelo bem da comunidade, resolvemos homenageá-lo, colocando o nome dele no ambulatório. Seu nome como era conhecido por todos na comunidade: Dedé."
Qual foi a data de criação do ambulatório?
"Não lembro. Talvez 1983 ou 84. Deve ter um registro nos "arquivos" do ECO".
Qual a localização?
"Junto com o Grupo ECO, decidimos que o ambulatório deveria ser na parte alta do morro, de onde os moradores tinham mais dificuldade para ir e voltar dos hospitais etc. na rua. Principalmente estando doentes. (Não havia o plano inclinado). Funcionou onde hoje é a “laje Maicon Jackson”. Ela era o teto do ambulatório.”
Como o ambulatório foi recebido pelos moradores?
"Muito bem, sempre! Todos sempre tiveram muito carinho e muito respeito pelo trabalho do ambulatório, e de toda a equipe de saúde. Todos os moradores sempre perceberam que nosso trabalho era para melhorar a saúde dos moradores do morro e sabiam que podiam contar com a gente. Muitos, agradecidos, mandavam lanchinho para a equipe, participavam como voluntários de várias atividades desenvolvidas por nós. Lembro da D. Alda, de jaleco, passando algumas tardes no ambulatório para “ajudar”... sempre desejou ser “contratada” para a equipe, mas não foi possível."
Qual o quadro de sua equipe de trabalho?
"Não vou lembrar os nomes de todos os médicos. Alguns foram mudando com o tempo. E também os agentes. Os que me lembro: A Gisele, psicóloga. Médicos: Telma, Stella, Paulo,... Agentes: Almira, Lourdes, Dolores (Loia), Regina, Ivana,... Enfermeira: Cristina"
E quais foram os desafios encontrados?
"Muitos! Desde “começar do Zero”. Criar um projeto. Arrumar patrocínio. Pensar como fazer o trabalho preventivo. Organizar a equipe. “Aprender a ser médico” atendendo os moradores. Ir criando a rede de encaminhamentos. Salvar as vidas em situação crítica. Respeitar a morte, quando inevitável. Partilhar as angústias e dores dos moradores que não se conseguia uma solução. Conseguir adesão dos moradores para tratar as doenças crônicas e para adotarem medidas preventivas. Crescer o trabalho. Conseguir os convênios. Ampliar a equipe sem perder o foco e diluir os objetivos. Etc... Formar uma equipe dedicada e comprometida com o trabalho, talvez tenha sido o maior desafio “médico”. Os outros, sempre foram “tocados em conjunto” com o ECO, o que os tornava menos difíceis."
Quais foram as conquistas?
"Muitas! A gente costuma dizer que o Programa de “Médico de Família” que existe hoje foi inspirado no nosso trabalho... Quase 20 anos antes dele existir, nós fazíamos isso. E melhor! E com muito menos recursos. Ampla cobertura vacinal das crianças, pré-natal bem acompanhado das gestantes, desenvolvimento dos bebês monitorado pelos agentes de saúde, redução dos AVCs (derrames) entre os moradores, por melhor controle dos pacientes hipertensos, etc, etc. Já não tenho os números. Mas, a “falta que fez” o ambulatório quando acabou, deu a dimensão dessas conquistas."
Como ocorreu o processo do término das atividades?
"Sempre amei esse trabalho! Era como um filho para mim, que ajudei a criar e participei do seu crescimento. Só que a vida é exigente e, com o nascimento do meu 2º filho, precisei buscar trabalhos mais bem remunerados, para dar mais segurança à minha família. Então, precisei sair do trabalho no ambulatório. Preparei minha sucessão, escolhendo novo coordenador entre os médicos da equipe e fiquei como assessor / conselheiro, participando de conversas e reflexões sobre o andamento do trabalho sem a minha coordenação. Mas, como parei de atender e estar presente no dia a dia do trabalho, começaram a surgir algumas tensões entre o Grupo ECO e a equipe do ambulatório, sobre como conduzir o trabalho. Além disso, a questão da remuneração do INSS (já então SUS) começou a ser questionada. Enquanto era eu que “geria” esses recursos, a ASIA se sentia segura quanto a possíveis fraudes. Quando o comando passou para outro coordenador, a ASIA sentiu necessidade de controlar melhor esses recursos e “cobrar” mais detalhes de sua aplicação, inclusive quanto à remuneração da equipe e a produção / faturamento dos atendimentos feitos. O ECO, por sua vez, também se sentiu inseguro de “avalisar” a gestão dos recursos do SUS pela equipe do ambulatório, perante a ASIA, que era quem “respondia” legalmente frente ao INSS em caso de suspeita de má gestão). Sem a “garantia”/“Aval” do ECO, a ASIA decidiu rescindir o convênio com o INSS encerrando o repasse de verbas para manter o trabalho funcionando. Isso decretou o fim do trabalho e a dispersão da equipe. Para profunda tristeza minha, que tentei até o último momento, com todas as minhas forças, convencer o ECO a não deixar a ASIA acabar com o trabalho. Mas, eu já não era mais o médico do morro... e não tive sucesso nessa batalha. Perdido, frustrado, ferido, só me restou afastar-me do ECO e “cuidar da minha vida” noutra esfera."
E o doutor José Luis Magalhães Rios, deixa um recado para os moradores da Favela Santa Marta:
"“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena” – Frase do poeta Luiz de Camões. Todo o trabalho que a gente desenvolveu e se dedicou nesses anos deixou muitas raízes. Fico feliz quando vou ao morro e encontro antigos pacientes meus, ou seus filhos, que ouviram dos pais que eu cuidava deles quando pequenos. E os vejo saudáveis hoje… Tudo que eu dediquei nesse trabalho, me enriqueceu e me fez aprender a ser um médico diferente, melhor que a maioria, pelos ensinamentos de humanidade que o Santa Marta me deu. A realidade hoje é outra. Mas, os desafios não são menores. São diferentes. Se a comunidade se mantiver unida, liderada pelo Grupo ECO ou por novas lideranças, em busca de conquistas que beneficiem a maioria dos moradores, tudo será muito mais fácil de conseguir, E todos serão mais felizes e terão uma vida mais “rica” em sentimentos e satisfação. Porém, se cada um olhar só para si e como fazer para se dar bem na vida, sem se importar para os outros, sem se envolver com a comunidade, muito pouco se conseguirá conquistar, muito menos a felicidade."
Considerações Finais[editar | editar código-fonte]
Como vimos, a história do ambulatório foi narrada por meio de perguntas, e com respostas do médico fundado. Vale lembrar, no quadro de atendimento incluía consultas médicas; serviços de atendimento de pequenos portes e enfermagem, assim como grupos de hipertensão, de diabéticos e puericultura, além de vacinação e projeto de prevenção e tratamento da tuberculose. Na ocasião, vários desafios foram impostos e também vencidos, pois era a luta pela construção de uma política pública que pudesse atender aos moradores.
As atividades do Ambulatório Dedé foram encerradas, e a laje do prédio em 1996, ganha o nome de Laje Michael Jackson (o cantor Michael Jackson gravou parte de um videoclipe). Atualmente, no seu espaço físico, funciona a Casa de Cultura Dedé - dirigida pela ONG Atitude Social.
Após muitos anos sem qualquer tipo de serviço direcionado a saúde, os moradores da Favela Santa Marta, no momento atual, contam com os serviços da Clínica da Família Santa Marta, que presta atendimento na Rua São Clemente, 312, Botafogo/ Rio de Janeiro. Segundo site da prefeitura do Rio de Janeiro, as Clínicas da Família fazem parte de um projeto criado em 2009, que permitiu a expansão da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no município. Entretanto, os serviços oferecidos pela Clínica da Família, ficará para o próximo verbete.
Que a saúde seja de fato, um direito de todos e todas, conforme previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Agradeço a José Luis Magalhães Rios (médico fundador do Ambulatório Dedé), a Maria Dolores Meireles (agente de saúde/Ambulatório Dedé) e a Itamar Silva (presidente do Grupo Eco).
Com eles, foi possível a produção do verbete - que não ficou só por conta de minha memória afetiva.
Obrigada!
Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]
http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/clinicas-da-familia
Siglas:
ASIA - Associação dos Antigos Alunos dos Padres Jesuítas
CMS - Centro Municipal de Saúde
INPS - Instituto Nacional de Previdência Social INSS - Instituto Nacional de Seguridade Social
LIGHT - Light Serviços de Eletricidade S.A
ONG - Organização Não-Governamental
PONSA - Pequena Obra Nossa Senhora Auxiliadora
RA - Região Administrativa
SUS - Sistema Único de Saúde