Análises e propostas sobre a realidade do coronavírus nas favelas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

A equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta um compilado de textos, prontos e em processo de construção, sobre os efeitos do Novo Coronavírus nas favelas do Brasil. Vamos reunir pesquisas, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus na vida das favelas.

Autoria: Informações do verbete reproduzidas pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco a partir de outras fontes.

Artigos de opinião[editar | editar código-fonte]

Coronavírus e as desigualdades de raça e classe, por Dennis de Oliveira[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Alma Preta, no dia 17 de março de 2020.

A epidemia do coronavírus no mundo está evidenciando as desigualdades sociais, apesar de aparentemente o vírus contaminar todos e, neste primeiro momento, pessoas das classes média e alta que viajaram para o exterior. De fato, o que salta aos olhos da epidemia é o fato de ela ter tomado uma dimensão na cobertura jornalística muito maior que outras epidemias que ainda hoje vitimam mais pessoas, como a dengue e o sarampo.

A primeira vista, isto ocorre justamente por uma questão de classe: como o epicentro atual do coronavírus é a Europa e não o continente africano ou latino-americano, a visibilidade desta epidemia é muito maior. Uma lógica que também esteve presente quando a mídia hegemônica em todo o mundo, inclusive o Brasil, mobilizou os sentimentos de consternação no ataque de um grupo terrorista islâmico à Paris, na França, em 2015. O grupo Boko Haram praticou ataques terroristas até mais violentos em 2019 na Nigéria sem a mesma repercussão.

Mas o classismo e o racismo também estão neste caso do coronavírus. É importante este alerta porque há ideias entre algumas pessoas da periferia de que se trata de “doença de gente rica” e, portanto, não deveria ser objeto de preocupação da população da quebrada. Se não ficarmos atentos, pode-se em pouco tempo haver um deslocamento do epicentro da doença para a periferia e, por conta disso, sem a mesma visibilidade de agora.

Sobre algumas medidas de contenção do vírus, a ordem é sair pouco de casa, procurar trabalhar em home-office, transferir as atividades didáticas de escolas e universidades para a modalidade on-line, suspender viagens internacionais, entre outros. Nota-se que os atingidos por essas medidas protetivas são aqueles que não estão na maior parte do trabalho precarizado e informal. Se nas universidades as aulas foram suspensas e algumas adotaram o sistema de ensino à distância, como ficam os funcionários operacionais terceirizados? Evidente que eles continuarão trabalhando.

Há o caso relatado pelo colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, do empresário e sua esposa que contraíram o vírus em uma viagem, se colocaram em quarentena no apartamento deles porém obrigaram a empregada doméstica a continuar indo trabalhar desconsiderando o alto risco de ela se contaminar.

Com isto, em um primeiro momento, observa-se que tais medidas ao mesmo tempo que visam proteger um determinado segmento da sociedade, deixam o outro completamente desprotegido. Estes trabalhadores operacionais e precarizados se deslocam para suas casas de transporte coletivo, um ambiente potencialmente explosivo para uma contaminação massiva.

Essa situação se agrava por dois motivos conjunturais: o primeiro é a desregulamentação do trabalho imposta pela direita em todo o mundo e aplicada no Brasil com maior intensidade no ano passado. A lógica desta proposta é o ganho depende de quanto trabalha e não de quanto é necessário para sobreviver. Empregadas domésticas, faxineiras, trabalhadores de aplicativos, ambulantes, flanelinhas, motoboys, cicloboys, entre outros teriam que optar entre ficar sem dinheiro ou sair às ruas em busca de trabalho.

Ainda que estes trabalhadores contraiam o vírus e fiquem doentes, a tendência é que eles continuem trabalhando, pois no mercado informal não há nenhum tipo de proteção. Imagine este cenário de pessoas com o covid-19 nas ruas entregando comida, dirigindo Uber, motos, vendendo coisas, limpando casas... Imaginem estas pessoas andando nos trens, ônibus, metrôs lotados. O vírus vai para a periferia, mas volta com tudo pois estas pessoas atendem justamente estes que se julgariam protegidos. O risco é intensificar comportamentos de cunho fascista, racista, xenofóbico.

O segundo motivo é o desmonte do sistema público de saúde que está enfraquecido para o enfrentamento massivo desta epidemia. Este é o momento que mais se precisa do SUS e todo o seu arcabouço de atendimento, prevenção, medicina da família, entre outros. Além da estrutura dos laboratórios públicos de pesquisa das universidades e institutos como o Fiocruz, Manguinhos, FURP e das universidades públicas.

Só para lembrar: 47,3% dos trabalhadores negros estão no mercado informal, 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negros. Em outras palavras, estamos falando de situações que atingem a população negra na sua maioria.

Daí que é o momento ímpar para se retomar a pactuação político-social da Constituinte de 1988 e barrar as mudanças de cunho neoliberal que têm sido feitas desde o golpe de 2016. É necessário revogar a emenda constitucional do teto de gastos, fortalecer o SUS e os laboratórios públicos e centrar a política de Estado não no “equilíbrio fiscal para obter a confiança dos mercados”, mas na capacidade de atendimento social massivo para garantir o bem-estar de todos os cidadãos.

* Dennis de Oliveira é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), professor associado ao Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), coordenador científico do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) e coordenador do GT CLACSO - Epistemologias decoloniais, territorialidades e cultura.

 

Coronavírus: pelo direito de lavar as mãos nas favelas cariocas, por Gizele Martins[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado como artigo de opinião no Jornal Brasil de Fato, em 19 de março de 2020.

Parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde e pelos governantes brasileiros diante da pandemia do coronavírus (covid-19) não incluem a favela. No Rio de Janeiro, são inúmeras as favelas que nunca tiveram água, em outras a água vem duas ou três vezes na semana. Essa realidade é comum para quem mora do lado de cá. 

"Na falta da água, use álcool em gel", dizem as recomendações. Mas o álcool é artigo de luxo, que não é mais possível encontrar nas prateleiras dos supermercados e, quando se encontra, custa o triplo do preço.

Outra recomendação é evitar espaços aglomerados. Como? A favela é um grande aglomerado de casas, muitas sem janela, outras sem chance de ventilação alguma, com poucos cômodos, o que impossibilita seguir outra recomendação: manter a distância de um metro ou mais entre as pessoas. 

Mais uma recomendação é evitar transporte público, não ir para as ruas, ficar em casa. Mas somos nós os trabalhadores ditos informais, aqueles que não têm carteira assinada nem salário fixo.

Como implorar para que esse trabalhador, porteiro, faxineiro, ambulante, camelô, empregada doméstica, entregador, fique em casa, se a gente na favela come quando tem dinheiro, ou seja, quando trabalha?

Sem falar da atenção básica no que diz respeito à saúde pública, afinal, o Rio de Janeiro, desde o final do ano passado, vem passando por uma enorme crise na saúde. Tivemos muitos trabalhadores da saúde perdendo o emprego, outros que estão sem salários. Isso significa que temos menos profissionais para nos atender e mais postos de saúde e clínicas da família fechados. 

Fico pensando em como a favela vai escapar dessa.

Teremos que ter cuidados redobrados na forma de se comunicar e sempre pensar em alternativas e em soluções, que deveriam vir "de cima". Mas estamos aqui, nós favelados, pensando em como iremos vencer mais essa. 

Se você mora aí do outro lado do muro, olhe aqui para a favela também. Nós, que não temos atenção nenhuma do Estado, precisamos da solidariedade de cada um.

Olhe agora a cidade, veja que sem o favelado ela não funciona, pois somos nós que fazemos a economia funcionar com a nossa mão de obra. Sem nós, não tem cidade.

Então, por favor, governantes e sociedade, nos incluam nas políticas públicas, na atenção básica, nos projetos de lei, na informação, no saneamento básico.

Exijam que a gente não fique pelo menos sem água e sem energia nesse período de quarentena. Queremos ter o direito de lavar as mãos. 

*Gizele Martins é Moradora da Maré, jornalista, mestre em Comunicação, Educação e Cultura em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ) e integrante do Movimento de Favelas do Rio de Janeiro.

 

As periferias na pandemia, por Alexandre Magalhães[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado na Revista IFCH-UFRGS, em 27 de março de 2020.

A disseminação do novo coronavírus vem provocando inegáveis efeitos negativos mundo afora. Há um consenso na comunidade médica e sanitária internacional de que as autoridades públicas precisam correr contra o tempo e implementar medidas eficazes e de longo alcance para evitar uma tragédia maior do que a que se delineia no horizonte. Uma das ações principais, segundo apontam, é o isolamento TOTAL da população, o que dificultaria a possibilidade de contágio pelo contato. Qualquer flexibilização dessa medida pode ser tomada como uma posição, no mínimo, irresponsável, para não dizer criminosa.

Diante do avanço da covid-19 e das ações realizadas para contê-la, é possível afirmar, pelo menos no caso brasileiro, que suas implicações não vão ser as mesmas em todos os lugares e para todas as pessoas. Há diferenças de geração, classe, gênero e raça que demarcarão as possibilidades de cuidado e de acesso aos serviços médico-hospitalares, já que tanto aquelas possibilidades quanto o acesso a estes serviços são distribuídos desigualmente entre as classes e camadas sociais.

Uma preocupação surgida recentemente, e que passou a ocupar cada vez mais espaço na imprensa nacional, foi com o iminente espalhamento do vírus em favelas e periferias do país. Apesar dos esforços cotidianos dos habitantes destas localidades para melhorar suas condições de vida, seja através dos famosos mutirões, seja através da pressão que realizam sobre as autoridades públicas, muito ainda precisa ser feito para aprimorar as condições de habitabilidade, saneamento e de saúde destas populações.

 Se o isolamento total é a medida mais adequada, como realizá-la em locais superpovoados, constituídos por ruelas estreitas, com casas muito próximas umas das outras (o que dificulta saber onde uma começa e outra termina), muitas vezes sem ventilação adequada (algumas sequer tem janelas), habitações estas frequentemente ocupadas por várias famílias e pessoas e, se não bastasse, sem acesso adequado e regular à água e saneamento básico?

No caso particular da água, isso é ainda mais alarmante. Uma das ações recomendadas pelos médicos, sanitaristas e infectologistas como uma das formas mais eficazes de contenção do novo coronavírus é a lavagem frequente das mãos. Como lavar as mãos sem água? Para citar apenas um exemplo, os moradores do Morro Santana, comunidade de Porto Alegre, estão sem acesso regular à água desde novembro de 2019. NOVEMBRO DE 2019. Estas pessoas estão muito mais expostas do que outras.

 O que esta crise ajuda a revelar, ao menos no caso das nossas grandes cidades, é a dimensão das desigualdades urbanas que a atravessam e se acumulam ao longo de sua história. Camadas de desigualdades que vão se sobrepondo e tornando a vida das pessoas que moram em favelas e periferias ainda mais difícil de ser vivida. Diante da calamidade, estas desigualdades gritam. As pessoas que de alguma forma as encarnam também gritam. Algo precisa ser feito!

 O outro lado dessa tragédia que se anuncia é como garantir que estas pessoas fiquem em casa quando para boa parte delas a possibilidade de obtenção da renda que sustenta suas famílias depende da circulação pela cidade. Trabalhadoras domésticas, informais, camelôs, enfim, uma multidão de mulheres e homens que precisam se movimentar para conseguir o pão de cada dia. As notícias que chegam destas localidades apontam para uma queda considerável da renda destas pessoas. Algo precisa ser feito!

 Algo precisa ser feito. Mas é evidente que não qualquer coisa. É claro que o necessário e urgente melhoramento das habitações, da ampliação do acesso à água, ao saneamento e outros serviços não significa a defesa de políticas de remoção que os governantes insistem em reproduzir. Já há conhecimento e recursos técnicos suficientes para realizar estes investimentos nos próprios locais em que as pessoas moram.

 Do ponto de vista das condições econômicas, é preciso garantir às trabalhadoras e trabalhadores que habitam em favelas e periferias (e a todas e todos aqueles trabalham de maneira informal) uma renda mínima básica num valor suficiente para que possam suprir suas necessidades básicas. Além disso, as prefeituras e governos estaduais – com recursos federais – devem garantir e ampliar a distribuição de cestas básicas (incluindo produtos de higiene e limpeza), gás, internet e suspender a cobrança de contas de água, eletricidade e outras.

Para que todas estas iniciativas ganhem corpo, é necessário, como bem apontaram em artigo recente os pesquisadores da Fiocruz Sonia Fleury e Paulo Buss, a constituição de um “Plano de contingência em favelas e periferias”, em que fosse definido um conjunto de ações voltadas especificamente para estes territórios, algo que ainda não foi feito.

 Enquanto uma política de cuidado constituída pela administração pública não é instituída, os próprios moradores elaboram estratégias para encarar os possíveis efeitos perversos da covid-19 em suas vidas. Através de redes locais de solidariedade e ajuda mútua, e contando com a colaboração de organizações da sociedade civil e universidades públicas, os moradores produzem material de divulgação acerca das medidas que devem ser tomadas no dia a dia para evitar o contágio, correm atrás de doações de alimentos e itens de higiene e buscam produzir melhorias, ainda que limitadas, em seus lares.

Não tenhamos dúvidas: se o vírus se alastrar ainda mais, como já parece o caso, quem mais sofrerá serão os que moram em favelas, vilas e periferias deste país.

 Precisamos de alguma forma colaborar com a luta destas pessoas, ajudar na repercussão destas ações em curso e na pressão para que a administração pública implemente ações mais significativas de combate ao coronavirus nestes territórios.

E fazer isso a despeito de quem governa: enquanto finalizava este texto, recebi a notícia de que, depois do pronunciamento irresponsável do presidente da República no dia 24 de março, uma parte considerável do comércio em favelas cariocas foi reaberto e a circulação aumentada. Não podemos permitir que esse discurso e política de morte se aprofunde ainda mais!

 Em defesa da nossa vida e de todos que amamos, fique em casa!

Alexandre Magalhães é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e colaborador na equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

 

"Somos as pessoas que mais sofrerão com a pandemia", por Mônica Cunha[editar | editar código-fonte]

Texto de Mônica Cunha[1], originalmente publicado no Jornal Catarinas, em 28 de março de 2020.

Hoje, venho colocar para vocês um pouco dos anseios de uma parcela da população que sempre foi tratada como se não devesse ser ouvida nem vista. Falo como mulher negra que sou.

A população negra é maioria, quantitativamente, mas, quando se fala em acesso a direitos, deve ser tratada enquanto minoria. Neste sentido, pelo histórico racista de violações e negações de direitos, somos as pessoas que mais vão sofrer com a atual pandemia. Estamos em maior número nas favelas e cárceres Brasil afora. Infelizmente, seremos, também, os que mais morrerão por Covid-19.

O pronunciamento do Presidente na última quarta-feira traduziu, em novos contornos, o que há de mais perverso na política deste país.

Ao afirmar que a economia não poderia ser afetada pelos cuidados com a saúde, Bolsonaro escancara a sua necropolítica, tratando as mortes que virão como meros números numa fria tela de computador.

A Constituição fala que todos são iguais perante a lei, mas de que igualdade estamos falando? Podemos dizer que as pessoas das diferentes classes sociais estão expostas aos mesmos riscos? Não nos esqueçamos que trabalho braçal e doméstico, para ficarmos apenas nestes dois exemplos, não podem ser feitos via home office.

Os movimentos, grupos e núcleos de mulheres negras, há 30 anos, falam da nossa importância dentro dos núcleos familiares, exercendo o papel de pilar em todos os aspectos: sustento; saúde; cuidado; companheirismo; afeto.

A partir de todo este entendimento, nasce um grupo específico em 2013: mães e familiares de jovens que cumprem medidas socioeducativas, encarcerados ou mortos pelo braço armado deste Estado racista e genocida.

Essas mães e familiares se apoiam mutuamente, sofrem juntas e seguem em frente com o respaldo umas das outras. Neste momento de isolamento social, nos tornamos ainda mais vulneráveis emocionalmente, o que reflete na nossa saúde física, uma vez que muitas desenvolvemos (eu inclusive) hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas após as violações que sofremos.

Agora, esperamos que, finalmente, a opinião pública passe a enxergar, de uma vez por todas, a favela e seus moradores como seres humanos e parte integrante da sociedade. Queremos que a solidariedade, necessária no combate ao coronavírus, não acabe junto com ele. Lutamos para que esta crise humanitária nos permita ter mais humanidade, porque nós, mulheres negras, somos diversas, mas não dispersas, e faremos a nossa parte, como estamos fazendo durante a pandemia, para parir um novo país quando ela passar.

 

"As favelas não querem parabéns, ministro Mandetta", por Favela em Pauta[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado em 31 de março de 2020 no blog Favela em Pauta.

É necessário ter ouvidos atentos sempre que um político brasileiro menciona as favelas em discursos e coletivas de imprensa. Rocinha, Alemão, Heliópolis, Sol Nascente, Sussuarana. As favelas sempre atraíram políticos que não solucionaram problemas acumulados ao longo dos últimos 100 anos. Não foi diferente com Luiz Mandetta, o ministro da saúde no Brasil. 

Não foi diferente com Luiz Mandetta, o ministro da saúde no Brasil. Ultimamente, ele vem ganhando projeção pelo considerado jeito carismático de falar, a abordagem técnica dos assuntos e, por fim, parece estar nadando contra a corrente bolsonarista. Em uma das várias coletivas de imprensa, Mandetta elogiou as ações executadas por moradores de favelas em seus territórios. “Parabéns as comunidades do Rio de Janeiro. Parabéns as favelas, as comunidades e eu as conheço. Estudei aí. Estudei aí. Fiz ação voluntária tanto ali no Vidigal, quanto na Rocinha quando eu era acadêmico de medicina. Outro dia, fui lançar o programa de doenças sexualmente transmissíveis lá na Rocinha com jovens de comunidade. Parabéns Maré, parabéns pelo trabalho que vocês estão fazendo e o exemplo de dignidade, de comportamento, de inteligência. Da aula de sabedoria que vocês estão dando. Na dinâmica, Heliópolis em São Paulo, todas elas. Paraisópolis. Todas elas. Eu falo do Rio de Janeiro porque fiquei 10 anos naquela cidade”.
  Diante de uma releitura de “Vida Loka II, de Racionais MC’S – queremos te dizer: “How, how Mandetta. Acorda sangue bom, aqui é favela, tru. Não pokemón“. Parem de olhar para a favela como um filme de ficção, escutem o que temos a dizer. As favelas não querem parabéns, ministro Mandetta. As favelas querem ser tratadas com respeito e dignidade.

Nós não precisamos de parabéns porque os favelados aprenderam a se reinventar  desde a necessidade do surgimento deste solo sagrado, chamado favela. Foi assim na luta por moradia, aconteceu também na luta pela implantação da rede de abastecimento de água e energia elétrica que precariamente (não) funciona, além da luta por saneamento básico. Enquanto por 10 anos o ministro diz ter conhecido a favela durante seu estágio no curso de medicina, nossos pais, por mais de 100 anos, não tiveram acesso à educação e saúde de qualidade. Os postos médicos chegaram em algumas favelas, depois de muita luta e  anos de reivindicações. E ainda assim, até hoje, os governos insistem na estratégia de observar a favela sob a mira do fuzil.

Embora tenha muitos grupos de favelas mobilizados para combater o covid-19 nas favelas, os governantes deveriam ter vergonha de nos parabenizar pela necessidade de articulação diante de total incapacidade de ação dos órgãos oficiais. Já se passou um mês e o governo federal não apresentou nenhuma medida efetiva para as favelas brasileiras. Só se fala em isolamento social, mas desde sempre, o povo pobre e favelado foi forçado a prosseguir.

Parar nunca foi uma opção. O sentido de resistência para a favela, é seguir em frente. Se tem tiroteio na rua A, a gente segue pro trabalho pela rua B. O impacto do #COVID19NasFavelas transforma o conceito de resistência na favela. Se antes, para se manter vivo o sentido era estar em constante movimento, agora resistência significar parar, ficar em casa e se cuidar.

Subestimar a fome do povo é perigoso. A proposta da renda básica emergencial de R$ 600,00 durante três meses para trabalhadores informais, desempregados e outros vulneráveis não garante uma estabilidade se compararmos com o custo de vida por cada estado. Tem que aumentar isso aí, talkei? 

Pesquisa do Data Favela aponta recentemente que 84% dos moradores de favela acreditam que terão sua renda reduzida por conta da quarentena do coronavírus. Outros dados alarmantes apontados pela pesquisa é de que quase 9 entre 10 moradores de favela teriam dificuldades para comprar comida, caso fiquem obrigados a ficar em casa sem produzir renda. Isso pode explicar o fato de 54% estar preocupado com o risco de perder o emprego, durante a quarentena.

Se a lógica do Estado é não assumir a responsabilidade de garantir quarentena digna aos trabalhadores mais pobres, acusando adversários políticos de não se importarem com o emprego, em clara tentativa de interferir na opinião pública, volte algumas casas. É dever dos especialistas da área de saúde, como o ministro Mandetta, vacinar a parte destoante do governo para que enxerguem a necessidade urgente do isolamento e vista-se do cargo que ocupa para auxiliar ao povo. Distribuindo a renda que lhe é de direito para o enfrentamento da crise e, principalmente, garantindo que os testes para detecção do coronavírus cheguem nas unidades de saúde que realizam atendimento às favelas.

Os parabéns não são necessários, mas a coragem para agir e garantir os direitos da população mais pobre, sim.

 

Covid-19 escancara a injustiça da vida nas favelas e periferias, ONG Fase[editar | editar código-fonte]

"Mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas", afirma, em artigo, equipe da FASE no Rio de Janeiro[2], publicado em 31 de março de 2020 em seu site oficial.

Em menos de duas semanas, a população das favelas e periferias do Rio de Janeiro viu o governador Wilson Witzel (PSC) projetar-se na cena política nacional com algum grau de sensatez em relação à pandemia da Covid-19 se comparado com o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que, ao contrário do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), esteve presente em ato público, cumprimentou pessoas sem nenhum tipo de equipamento de proteção e disse que “não passa de uma gripezinha”.

É inegável a importância das medidas tomadas pelo governador ao colocar-se na dianteira e comunicar a população sobre os riscos à saúde decorrentes da Covid-19 e, posteriormente, tomar medidas jurídicas de limitação de circulação entre o interior do Estado e a região metropolitana. No entanto, quando olhamos as alterações feitas no orçamento público estadual, fica evidente, mais uma vez, o seu desprezo à população mais vulnerável, principalmente num momento de emergência sanitária, que é quem mais precisará de políticas sociais e de distribuição de renda.

Witzel contingenciou² recursos de várias áreas em meio à pandemia. Merece destaque o contingenciamento de R$7,6 bilhões feito no orçamento sob a justificativa da queda do preço do barril do petróleo e da necessidade de reorientar o orçamento para enfrentar a Covid-19. O Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social, por exemplo, também perdeu 29% do orçamento, que inclusive poderia ser utilizado para melhorias habitacionais nas favelas. O que chama atenção é que, exceto a área da saúde, a única que não foi contingenciada foi a área da Segurança Pública (Polícias Civil e Militar, Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e o Programa Polícia Presente). Essa escolha de onde se tira e de onde se deixa orçamento é mais um exemplo da política genocida deste governo.

Para a população de favela e periferia tais medidas já têm consequências diretas. Sendo uma população majoritariamente formada por pessoas negras, cujos vínculos formais de trabalho são raros e que a sobrevivência é garantida por meio da inserção em empregos do setor de serviços, precarizados, intermitentes e informais; as medidas de contenção da epidemia geraram um impacto brutal sobre a sua condição de subsistência. Um exemplo deveu-se no âmbito do direito ao transporte já que passou a ser necessário comprovar vínculo formal de trabalho para ingressar nos trens e ônibus intermunicipais. Houve uma sobreposição de violação de direitos, na medida em que as portas das estações de trens e de ônibus ficaram lotadas e grandes filas se formaram expondo ainda mais os trabalhadores ao risco de contágio. Outro impacto negativo foi a diminuição da renda familiar para os moradores destas áreas que, obrigados pelas determinações estadual e municipal a fazer quarentena, estão vivendo em situação de extrema necessidade.  A pandemia, portanto, tem deixado visível a faceta mais cruel de viver numa cidade tão desigual como Rio de Janeiro: quem fica com os piores efeitos da Covid-19 são os que já não tem acesso à direitos.

Sem saúde, água e “isolamento social”

Muito antes que a epidemia da Covid-19 chegasse às favelas e periferias a situação da precariedade dos serviços de saúde que atendem estes territórios já era uma realidade. A lógica neoliberal, que orienta a gestão dos serviços públicos, fez com que, ao longo dos últimos anos, a Empresa Pública Rio Saúde fosse sucateada e as Organizações Sociais de Saúde (OSS), que operam por meio de parceria público-privada, ganhassem seu lugar. A péssima qualidade do atendimento oferecido pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) não deixa dúvida.

Outro exemplo da negação do direito à saúde à população de favela e periferias deu-se em 2019, quando o prefeito Marcelo Crivella (PRB) diminuiu drasticamente as equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e dos Núcleos de Atenção à Saúde da Famílias (NASF), assim como atrasou os salários dos funcionários vinculados a estes equipamentos. Na ocasião ocorreu a paralisação dos profissionais da saúde, que, mesmo tendo mantido serviços mínimos em 30%, impactou diretamente a população negra e pobre, que tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como a única forma de acessar o direito a saúde. Ainda nessa linha, não podemos esquecer que no plano federal a PEC 95/2017 congelou os gastos públicos pelos próximos 20 anos. Deste modo, a lentidão e a inópia de respostas por parte das autoridades para com as populações pobres em relação a Covid-19 se somam a sensação de desamparo já conhecida pela população de favela e periférica.

No que se refere à imposição do distanciamento social e higienização das mãos como medida preventiva, a realidade da favela, periferia e de ocupações urbanas impõe desafios enormes. Casas de apenas um cômodo, sem ventilação, onde geralmente o compartilhamento do espaço é feito por muitas pessoas e pessoas idosas convivem com jovens, adultos e crianças. Portanto, o distanciamento social na favela é impraticável tanto do ponto de vista habitacional quanto do ponto de vista dos modos de vida que, diferente da classe média, expandem a casa além dos seus muros. Quanto a necessidade de “lavar as mãos” a pergunta sem resposta é a seguinte: com que água? O direito à água não uma realidade para muitos moradores de favelas e periferias! Não é à toa que nesses locais as casas têm mais de uma caixa d´água, resultado do abastecimento intermitente e precário que serve essas áreas. Ali, reservar água é uma questão de sobrevivência.

Alternativas que vêm de dentro

Diante do quadro de poucas ações governamentais para as populações de favela e periferia, os próprios moradores têm se mobilizado e criado alternativas de enfrentamento à proliferação da Covid-19. Essas ações se baseiam em algumas frentes como o compartilhamento e coleta de informações de prevenção e sintomas; recolhimento de doações para compra de alimentação e materiais de limpeza; medidas educativas sobre a importância do racionamento de água; monitoramento de pessoas que são consideradas do grupo de risco.

Nas favelas do Complexo do Alemão, por exemplo, estão sendo desenvolvidas ações de recolhimento de cestas básicas e doações de alimentos, álcool e gel, sabão; além de ações de conscientização dos moradores acerca da importância do distanciamento social e da lavagem das mãos. A ação é realizada por meio de carros de som e cartazes no território. Devido à ausência de recursos básicos de saneamento e saúde, esta favela tem sofrido com à falta d’água, o que levou os moradores a adotarem medidas de compartilhamento e racionamento da água. A solidariedade se destaca em tempos de caos.

De acordo com Raull Santiago, jornalista e morador do Complexo do Alemão, foi criado um “gabinete de crise na comunidade” que tem por objetivo conscientizar a população, buscar recursos para o enfrentamento à pandemia e pressionar para que os governantes atuem nas favelas e viabilizem condições básicas para a prevenção.

No Complexo da Maré, os moradores utilizam os rádios locais para divulgar informações de prevenção, inclusive o funk tem sido instrumento de conscientização. Moradores também estão gravando vídeos que alimentam uma campanha comunitária de informações sobre a Covid-19. Foi criado ainda um canal no WhatsApp para tirar dúvidas.

Em Manguinhos, o Fórum Social de Manguinhos e as Mães de Manguinhos lançaram campanha em suas redes sociais para recebimento de cestas básicas e kits de limpeza, como forma de colaboração com os moradores que se encontram desempregados e em situação de vulnerabilidade.

Em todas essas favelas os próprios moradores estão fazendo um monitoramento dos idosos e suas necessidades, para que os mesmos não precisem sair de casa. Voluntários e coletivos estão em constante contato com as unidades de saúde para atualização de informações e medidas que possam ser tomadas para a prevenção. E, apesar das dificuldades de acesso à internet que a população de favela enfrenta, as redes sociais tem sido um importante instrumento para disseminação de informações e combate às fakenews.

Na Baixada Fluminense destacamos a articulação “#CoronaNaBaixada” que reúne cerca de 100 lideranças e organizações da Baixada Fluminense para combater a proliferação da Covid-19 e apontar propostas para enfrentar a crise nesse momento. Em “Carta Manifesto”³ a iniciativa denuncia que ainda não há uma ação coordenada entre os municípios da Baixada e o governo do Estado, tanto que há municípios que ainda não estão seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades sanitárias. A articulação reivindica, por exemplo, a realização de testes em pacientes da Baixada com sintomas do novo coronavírus.

No momento, todos vivemos a sensação da incerteza sobre condições mínimas de subsistência. A diferença é que, para quem vive nas favelas e periferias, além da incerteza causada pela pandemia existe o medo de que em nome da Covid-19, tudo possa ser utilizado como justificativa para suspensão de direitos que, no limite, pode gerar mortes cujo fim não tem nenhuma relação com o vírus. As violências cometidas pelas forças de segurança, pela precariedade dos serviços de saúde e saneamento são questões que devem permanecer sendo monitoradas. 

Por fim, mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas. No momento em que existe uma disputa ideológica entre “salvar vidas” versus “salvar a economia” é fundamental defender princípios social democratas que orientaram a construção do estado de bem-estar social. Mesmo longe de ser uma realidade num país como o Brasil atual, acreditamos que a defesa de direitos é estratégica para disputar a gramática política atual.

 

Por que parte dos moradores das favelas não respeita o isolamento social?, por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino[editar | editar código-fonte]

Artigo de opinião originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato, em 07 de abril de 2020.

Circulação de pessoas em favelas expõe série de fatores sociais.; trabalho informal é imprescindível para famílias

Por que boa parte dos moradores/as das favelas continuam indo para as ruas e não respeitando o isolamento social? A branquitude, no seu lugar histórico de privilégio logo levanta respostas racistas e imediatistas para isso.

 

"Dessa vez o povo quer morrer, pois o que não falta é informação" (Postagem no Facebook)

 

“Pelo amor de Deus, por que essa galera da favela adora festa e continua fazendo churrasco? Não respeitam mesmo o isolamento, absurdo!” (Postagem no Facebook)

Queremos levantar algumas reflexões: a arquitetura urbana das favelas – e sempre respeitando as diferenças e especificidades de cada território favelado – foi construída para levar aos encontros e as trocas. Os becos e vielas representam concretamente como se dá a vida em coletividade, sendo ali que construímos nossas relações de resistências, solidariedade, afetos, conflitos, somos e vivemos no e para o coletivo. 

Logo, completamente diferente das relações sociais dos condomínios dos bairros da Zona Sul que apenas geram e potencializam o individualismo e o isolamento. A favela, por mais que o Capitalismo Racial Brasileiro tente cotidianamente exterminar, na realidade continua a existir e nossa sociabilidade é de forma coletivizada, comunitária e solidária. Portanto, completamente avessa ao distanciamento.

Sem condições decentes de vida

Uma outra falácia que é sempre difundida por esse Estado Genocida como argumentação para não garantir condições decentes de vida à população favelada e periférica é a hipótese de que a população destes territórios predominante pretos são fortes e imunes a tudo. Por isso, podem aguentar e sobreviver a qualquer advento de letalidade, desde a bala de fuzil saída dos helicópteros utilizados como plataforma de tiros até mesmo a uma pandemia mundial.

A contínua circulação de pessoas nas favelas e nas periferias mesmo sob decretos de quarentena expõe uma série de fatores sociais que não são tratados pelos grandes especialistas brancos que aparecem na mídia hegemônica.

Além da necessidade material da vida, as trabalhadoras e trabalhadores que vivem em favelas e periferias estão na informalidade e sem acesso algum a direitos sociais nem trabalhistas. Logo, para trazer sustento para sua famílias, o trabalho diário nas ruas é imprescindível. Já que esses postos de trabalho não permitem o home office e nem garantem uma remuneração contínua durante a quarentena.

Toda a mobilização e a ajuda que esses territórios estão recebendo partem dos próprios moradores! A histórica ausência de políticas sociais para essas regiões resultou em processos de ajuda mútua de forma autônoma entre os próprios residentes. E sem essa solidariedade entre os nossos, a situação estaria ainda mais difícil. Nesses momentos de crise social, o Nós por Nós é determinante pra manter a vida do nosso povo.

Vida precisa ser vivida na urgência

Há também outros fatores que não são considerados, como historicamente o Estado Capitalista retirou dessa população o direito de planejar a vida e perspectiva de pensar e sonhar um futuro. 

Afinal, nesses territórios os homicídios fazem parte do cotidiano das pessoas e a vida precisa ser vivida na urgência, como se estivéssemos sempre no último dia de existência. Já que o amanhã não sabemos se estaremos aqui, seja por conta da morte em decorrência de uma Operação Policial, da covid-19 ou pela fome.

Rápidas reflexões de faveladxs e periféricxs que conseguem ficar em quarentena, mas que não criminaliza seu irmão/ã favelada que não possui a possibilidade de fazer o isolamento social. Tentar compreender, continuar o diálogo e principalmente não acreditar que a educação da repressão resulta em uma mobilização real ao combate na covid-19. A morte já faz parte do nosso cotidiano. O desafio é como falar de vida, onde a morte já é uma dura regra.

*Fransérgio Goulart é historiador e Coordenador Executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.

**Giselle Florentino é economista e Coordenadora Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.

 

Falta água e presença do Estado: coronavírus aprofunda desigualdades estruturais nas periferias, por Débora Britto[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado no blog Marco Zero, em 06 de abril de 2020.

Uma das principais recomendações para prevenção ao coronavírus é lavar as mãos, mas para quem vive em locais em que água na torneira é o evento da semana, não é tão simples. Apesar de em Pernambuco a Companhia de Saneamento (Compesa) estar proibida de cortar a água de quem está inadimplente e ter anunciado medidas para minimizar o déficit estrutural de fornecimento em várias regiões, diversos bairros e comunidades relatam que continuam vivendo uma realidade de intenso racionamento.

A rotina de quem convive com a escassez de água, mesmo nas cidades, é frenética: corre para abrir torneiras, abre registro para encher caixa d`água, se houver, enche balde, mais um e outro, lava banheiro, enche todos os recipientes disponíveis, corre para fechar registro para “a água não ir embora”. Essa maratona é função, principalmente, das mulheres e são elas quem mais estão com medo do coronavírus.

Em Ouro Preto, bairro na periferia de Olinda, em meio à pandemia do coronavírus algumas comunidades passaram 15 dias sem água. Elisângela Maranhão, moradora do bairro e coordenadora de uma ONG em Peixinhos, outro bairro periférico da cidade, conta que a situação não mudou nada desde que as medidas da Compesa foram anunciadas. “Eu moro na Vila da Manchete e tem semana que a água vem uma vez, então você tem que aproveitar e encher tudo. Quando passa mais de 15 dias, a gente tem que comprar um carro pipa”, conta. 

Já em Peixinhos, um bairro com mais de 30 mil pessoas, há áreas em que a água chega de três em três dias, outras em que a regra é não saber quando a água vai chegar. “Era para ter pelo menos uma vez por semana. Está muito complicada a questão da Compesa. Além disso, as pessoas na comunidade estão sem trabalho, a maioria é de trabalho informal”, destaca Elisângela.

Em Passarinho, comunidade da periferia do Recife, o Grupo de Mulheres de Passarinho denuncia há meses a falta de água, que já virou uma marca da comunidade. O bairro é formado por famílias, em grande maioria, chefiadas por mulheres trabalhadoras domésticas. “Agora, com o coronavírus, piorou tudo. A maioria das mulheres é de empregadas domésticas, diaristas. Agora parou tudo, muitas estão em casa. A água continua a mesma coisa, hoje mesmo não chegou, já vamos para seis dias sem água. Como é que você vai limpar a casa, como vai manter a higiene sem água? Está cada vez pior”, denuncia Edcléia Santos, liderança comunitária.

Além disso, ela alerta que, diferente de outros bairros do Recife, na comunidade não há carros de som da Prefeitura avisando sobre o coronavírus. “As pessoas estão continuando a vida, no meio da rua, o comércio está todo aberto”.

Diversos grupos e coletivos comunitários têm se organizado para cobrar o fornecimento regular de água e também de doações para quem está em situação de maior vulnerabilidade. É o caso do Coletivo Força Tururu, grupo criado na comunidade do Tururu, na periferia de Paulista. Os integrantes começaram uma campanha online para alertar moradores e pressionar por medidas concretas. Eles também mobilizaram doações para distribuir cestas básicas.  “A situação para algumas áreas da comunidade está tranquila porque devido ao racionamento algumas casas já têm cisterna, mas em outras não. Em algumas casas e ruas tá faltando água ainda. Na comunidade temos caixa d’água e poço, mas na realidade do Tururu a caixa não enche e não existe tratamento”, relata Cidcleiton Luiz, integrante do Coletivo Tururu.

O relato evidencia como há desigualdades dentro da desigualdade e, para isso, a mobilização e cobrança por mudança precisa ser permanente. 

Mais pobres estão mais vulneráveis

Além da água, outros problemas estruturais colocam famílias que vivem em áreas periféricas, em geral muito adensadas, em situação de maior vulnerabilidade. Socorro Leite, coordenadora da ONG Habitat para Humanidade, que faz parte da Articulação Recife de Luta, lembra que no Recife, por exemplo, os bairros que sofrem com falta de água são regiões que historicamente mais sofrem com arboviroses, que são doenças causadas por vírus como o da dengue, do Zika vírus e febre chikungunya.

Daí surge outro problema que precisa ser pensado desde agora: com o racionamento de água, as pessoas precisam armazenar água, muitas vezes, de maneira inadequada, favorecendo a proliferação do mosquito transmissor de doenças. “A precariedade da infraestrutura afeta diretamente a saúde das pessoas”, alerta Socorro. “A questão da água é muito importante, para mim é prioridade. Se as comunidades dizem que não está chegando água na ponta, eu acredito e vejo que nada está se alterando. E aí tem a coisa das condições de moradia, muitas famílias já estavam em situação que não ajuda no isolamento social”, explica.

Pensando nisso, a Articulação Recife de Luta vem se mobilizando para denunciar também outros aspectos que têm colocado a população mais pobre e trabalhadora vulnerável ao coronavírus, como a exposição no transporte público. “As empresas de ônibus reduziram a frota e estão demitindo funcionários, mas os ônibus continuam lotados. Se você tem que sair para resolver alguma coisa, você é submetido a um transporte cheio, o que não ajuda na prevenção. Tem que ter algum tipo de mediação do governo do estado, estamos falando de uma concessão pública e eles têm que intervir para que o transporte não seja vetor de transmissão da doença”, exige Socorro. Em nota, a Articulação denunciou a situação e vem exigindo posições do governo estadual sobre essa e outras questões. 

Por liminar, Compesa está proibida de cortar água

Após posicionamento de organizações e movimentos da sociedade civil sobre a urgência da água, a Defensoria Pública do Estado entrou com representação e ganhou uma liminar que determina que a Compesa, assim como outras empresas de serviços essenciais, não cortem fornecimento a clientes inadimplentes. O defensor público Fernando Debli, que está à frente da mediação, explicou que, em função da emergência, a prioridade da ação foi garantir que nenhuma pessoa tenha a água cortada por falta de pagamento. 

O esquema de racionamento praticado pela Compesa em diversos bairros e comunidades, sendo que alguns recebem água na torneria de 10 em 10 dias, é mais difícil de resolver neste momento, ele explica. Isso porque a Compesa alega que há problemas estruturais para fazer chegar água nesses locais, o que exigiria mais estudos técnicos para pressionar a empresa. “Estamos atrás de entender a real abrangência desse problema. Acontece que é uma situação muito complicada porque exige aparato técnico especializado e profundo. O problema da água é muito generalizado, a principio a gente resolveu aceitar esses termos para que as coisas fossem feitas de imediato”, explicou.

Como resultado do acordo, ficou decidido que desde 14 de março, quando o governo do estado oficializou a situação de emergência sanitária, até o fim do decreto devido à pandemia de coronavírus não está permitido o corte de água e esgoto por falta de pagamento. Além disso, a Compesa também se comprometeu a isentar o pagamento de cerca de 120 mil residências da tarifa social, e enviar carros pipa nos locais onde não há rede de abastecimento.

Outro ponto definido é que a Compesa deveria apresentar à Defensoria um plano emergencial para execução de 43 obras estratégias “para viabilizar obras consideradas de pequeno e médio portes para otimizar a distribuição de água da Região Metropolitana do Recife, sem prejuízo da adoção de outras medidas, em conjunto com o governo do estado”.

De acordo com o defensor, este é o ponto mais complicado de resolver, mas que ele considera positivo. “Há um grande problema histórico e, de fato, é difícil que de um dia para o outro a Compesa consiga fornecer água para todo mundo. A princípio a gente se contentou com isso porque queremos ver a eficácia dessas medidas, mas estamos atentos para considerar novos fatos”, afirmou.

Segundo Debli, a Defensoria ainda está na fase de monitorar o cumprimento, ou não, dos termos do acordo. “A gente tem recebido bastante relatos de pessoas denunciando que Compesa e Celpe continuam cortando fornecimento de água e energia por falta de pagamento. A partir das denúncias vamos tomar atitude mais aprofundada quanto a isso”. 

Saiba como entrar em contato e realizar denúncias à Defensoria Pública de Pernambuco aqui

 

O vírus e o paradoxo da democracia, por coletivo Multinômade[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog UniNômade Brasil, em 08 de abril de 2020.

Diante das curvas ascendentes de infectados e mortos, a necropolítica assume a contradição entre economia e vida como condição para o seu jogo mortífero, enquanto a democracia aparece em toda a sua forma paradoxal. Para que o isolamento funcione é preciso fazer circular, para que a circulação não seja destruída pela pandemia, é preciso isolar e distanciar. A catástrofe seria justamente imaginar que a propagação do vírus impõe necessariamente uma lógica da contradição, naturalizando, assim, uma das piores marcas da sociedade brasileira: o grande e rotineiro sacrifício de vidas (precárias, pobres, negras) em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça. 

A preparação que não houve

O primeiro consenso que podemos extrair da pandemia do COVID-19 é o fracasso de todos os governos do mundo, com exceção de alguns pequenos países asiáticos, em antecipar e organizar uma resposta à altura do problema. Desde a repressão, no caso chinês, ao primeiro médico que alertou sobre o surgimento do novo vírus, passando pela indiferença e inércia dos países europeus, o apego à normalidade levou os governos à perda de um tempo precioso que custou e custará dezenas de milhares de vidas. Do outro lado do Atlântico (ou do Pacífico), a situação é pior. Nos casos de Trump (EUA), Lopez Obrador (México) e Bolsonaro (Brasil), a descrença se transformou em ação política, convertendo a postura antissistema em verdadeiro desdém organizado contra a sociedade. Diante de uma realidade que se impôs, o caso brasileiro é ainda mais grave, representando hoje o único país (com exceção da Bielorrússia), cuja autoridade máxima não só minimiza o problema, mas defende que as mortes devem fazer parte da rotina do país, custe o que custar.

Mas seria um erro nos concentrarmos apenas nessa manifestação abertamente mortífera. Precisamos colocar nossa reflexão na linha do tempo. No último ciclo político-econômico anterior ao bolsonarismo, no período que vai da crise global de 2008 até Junho de 2013, culminando na crise brasileira de 2015, o Brasil viveu sob a retórica do preparo. Era preciso preparar a aceleração do Brasil Maior com a construção de grandes barragens na Amazônia, grandes obras de infraestrutura ligadas ao extrativismo e grandes empréstimos e subsídios para uma suposta “indústria nacional”. Era preciso preparar os megaeventos esportivos com impactantes intervenções urbanas, com a construção de equipamentos esportivos, estádios caríssimos e microapartamentos para concentrar milhares de famílias removidas de suas casas.

Enquanto o Brasil ensaiava um salto que, na verdade, apontava para o atual abismo, as condições de vida passavam por uma mudança silenciosa: o aumento de tarifas do transporte chegando a 60% acima da inflação; o percentual de famílias endividadas atingindo 45% em 2014 (chegando a 61.2% em 2018); uma triplicação do número de trabalhadores terceirizados (12 milhões), uma quintuplicação do número de pessoas encarceradas (715 mil presos); os gastos das famílias representando 60% dos gastos totais em saúde do país, a rede hospitalar tornando-se 70% privada e apenas 50% das verbas para saneamento básico sendo aplicadas, com um índice inaceitável de apenas 48% de casas com coleta de esgoto.

Junho de 2013 foi o movimento que, de forma inesperada e avassaladora, suspendeu o moto-contínuo desta falsa preparação e colocou problemas concretos a todos os governos: “menos estádios e mais hospitais”, “escolas e hospitais padrão FIFA”, “saneamento sim, teleférico não”, “todos contra o aumento”, “mais livros, menos lacrimogêneo”, “fim da corrupção e mais saúde”, “democracia real já” etc. Como sabemos, o breve intervalo foi logo sufocado por repressões, capturas, crises políticas, econômicas e polarizações, adiando a possibilidade de que outro preparo pudesse confrontar os problemas coletivos e urgentes do Brasil.

Em 2020, com os olhos assustados pelo COVID-19, somos interpelados novamente pelas mesmas questões: como nos mobilizar em torno de um problema real e concreto? Como garantir condições básicas de vida? Como construir um novo pacto social e democrático no Brasil?

A nova mobilização social e uma necropolítica por cima de todos

Antes mesmo de haver clareza sobre quais medidas tomar para reduzir o impacto do COVID-19 no país, o fato novo que surgiu foi a rápida construção de uma mobilização real e transversal que ativou toda a sociedade. Inspirada nos exemplos que vinham da Itália, logo se formou uma rede de solidariedade para apoiar trabalhadores da saúde, reforçar a necessidade de ficar em casa, compartilhar informações corretas, evitar o desabastecimento nos supermercados e criar campanhas de arrecadação e distribuição de recursos e insumos básicos. Nas favelas e periferias, os coletivos de moradores e de comunicadores tornaram-se os protagonistas de campanhas de divulgação das recomendações sanitárias, mas também lembram que nada foi feito nos últimos anos para melhorar o acesso aos serviços básicos, como água e esgoto. Esses gestos estão criando algo impensado em uma sociedade tão fragmentada e já acostumada com a multiplicação de polêmicas e disputas vazias: as bases de uma nova cooperação social e de uma nova confiança horizontal foram lançadas, movidas pelo desafio real e inédito de enfrentar os dramas de uma pandemia.

Para o clã que nos governa, essa aliança é insuportável. Ela escapa à gestão da política que vinha sendo feita através das redes sociais, das redes de intriga e de mentiras, da produção contínua de bodes expiatórios e inimigos, da normalização pela ignorância e do fomento ao caos e à fragmentação social. Ao contrário, a nova mobilização força todo o país a pensar em novas políticas sociais, em medidas de valorização da vida, na importância dos bens comuns, na necessidade de compartilhar informações seguras, no papel da ciência e das universidades e na urgência de uma união de esforços para além do sectarismo. Este novo momento pode dar início a um mundo totalmente avesso ao barulho performático do populismo, caso a mobilização encontre ressonâncias democráticas e não autoritárias. O fato é que, diante da catástrofe, a coragem de falar a verdade voltou a assumir um sentido prático e relevante.

Não por acaso, preso em um mundo que já acabou, Bolsonaro tenta quebrar essa emergente confiança estimulando uma revolta contra as medidas implementadas nos estados e pelo seu próprio governo. Não podendo suportar um movimento que cresce por fora de seus currais digitais e círculos de fanatismo, o presidente canaliza a energia antissistêmica para a exposição da população à morte, buscando, ao mesmo tempo, multiplicar as ameaças constantes e as velhas rixas improdutivas. Contrapondo cinicamente economia e saúde, e confrontado com os limites de sua própria inépcia, assume a necropolítica (a mobilização da política para a morte) como a única forma de retomar as rédeas de uma realidade que já está em outro lugar.

A mudança que estamos assistindo também explicita os limites do comando econômico do país. Basta lembrar que, quando o vírus já passava para a fase de transmissão comunitária, o ministro da economia dizia que o isolamento era uma oportunidade para se pensar em… “reformas”. Após se dar conta do caráter incontornável da pandemia, o mesmo ministro afirmou que o Brasil deverá passar rápido pela crise para depois poder retomar… “as reformas”. Essa insistência explica, por um lado, a lentidão na concepção e na efetivação dos programas de apoio financeiro, só agora implementados, e mostra, por outro, uma falta de capacidade para o enfrentamento dos efeitos permanentes da pandemia no país e na globalização em geral.

Tudo leva a crer, portanto, que é a atual mobilização pela vida que cria uma ressonância positiva entre as dinâmicas de cooperação social e as decisões que são tomadas em nível institucional e nos diversos poderes, como demonstra o atual enfrentamento em torno do Ministério da Saúde. É essa mobilização que nos impede de entrar no jogo utilitário que tenta equacionar os vivos e os mortos a partir da falsa racionalidade dos balancetes econômicos e tabelas contábeis. No atual estágio da pandemia, está claro que essa lógica nada mais é do que uma lógica da cova rasa, uma política da morte contra a qual devemos, urgentemente, contrapor uma política da vida.

O paradoxo da democracia: medidas de isolamento e amplificação da circulação

Diante das curvas ascendentes de infectados e mortos, a necropolítica assume a contradição entre economia e vida como condição para o seu jogo mortífero, enquanto a democracia aparece em toda a sua forma paradoxal. Para que o isolamento funcione é preciso fazer circular, para que a circulação não seja destruída pela pandemia, é preciso isolar e distanciar. A catástrofe seria justamente imaginar que a propagação do vírus impõe necessariamente uma lógica da contradição e naturalizar, assim, uma das piores marcas da sociedade brasileira: o grande e rotineiro sacrifício de vidas (precárias, pobres, negras) em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça.

Por isso, paradoxalmente, enfrentar a pandemia e proteger vidas significa pensar outra lógica da circulação e de funcionamento da própria máquina, mobilizando:

(i) a circulação de riqueza, com políticas de renda garantida, apoio aos pequenos e microempreendedores, ampliação da assistência social, doações massivas por bancos e grandes empresas etc.;

(ii) a circulação de infraestrutura, com a distribuição de equipamentos de proteção, de kits de teste por todo o país, com a manutenção de um transporte público seguro, com o acesso de todos à água, à energia elétrica, aos produtos de limpeza, com uma logística para manter e ampliar os serviços essenciais, com a construção de hospitais de campanha e ampliação dos leitos de UTI etc.;

(iii) a circulação de tecnologia, com acesso de todos à internet, com a inclusão digital gratuita em favelas e periferias, com a fabricação de respiradores, equipamentos de proteção e kits de teste, com a mobilização dos laboratórios universitários, com o investimento massivo em ciência e tecnologia etc.;

(iv) a circulação de informação, com o combate à subnotificação, com a garantia de publicidade dos dados, com o compartilhamento de métodos de higienização e de protocolos para os infectados, com o combate as fake news, com a divulgação do debate científico, a liberação de artigos acadêmicos, a mobilização de redes de aprendizagens, produção, difusão e circulação de saberes territoriais, etc.;

(v) a circulação de proteção, com equipamento que possam aumentar a proteção de todos os trabalhadores que estão na linha de frente, enfermeiros, médicos, agentes públicos, trabalhadores da logística e do setor de entregas, comunicadores, lideranças comunitárias etc.;

(vi) a circulação de liberdades, com medidas de restrição e controle que sejam resultado da liberdade e da mobilização democrática, com o veto de imposições administrativas autoritárias, prisões ou leis marciais para a garantia da quarentena, com medidas responsáveis para o maior desencarceramento possível de presos provisórios, presos com doenças crônicas, idosos, gestantes e lactantes, com a substituição das medidas de internação de jovens por medidas a serem seguidas em meio aberto etc. (Cf. Recomendação n. 62 do CNJ);

(vii) a circulação de apoio psíquico, com a proliferação de diversas iniciativas comunitárias e institucionais de acolhimento do mal-estar e do sofrimento que partem da indissociação entre vida, saúde mental, realidade social e econômica, com o atendimento online gratuito para profissionais de saúde, com o reconhecimento de que é função de todo trabalhador da saúde a detecção do sofrimento psíquico em emergências humanitárias etc.;

(viii) a circulação da biodiversidade, com a promoção da diversidade biológica como forma de proteção contra a emergência dos novos vírus (cinturão vivo), o fortalecimento dos órgãos de fiscalização ambiental e monitoramento das unidades de conservação e dos territórios indígenas, o enfrentamento das queimadas na Amazônia, a construção de uma nova relação ética entre todos os viventes etc.

Todas essas iniciativas de circulação da cooperação social e institucional, além de comporem uma agenda urgente para o período do contágio, podem formar uma sólida linha de atuação pós-crise. O fortalecimento deste novo pacto social, ecológico e democrático, baseado na requalificação da circulação, deve permitir que a mobilização continue por outros meios, e através de outras medidas que serão necessárias. No nível global, é a oportunidade de pensarmos uma mundialização fundada na solidariedade e na cooperação internacional, em contraposição à crise dos blocos regionais e às tentações nacionalistas e reacionárias que, à direita ou à esquerda, sonham com uma arcaica desglobalização. No caso do decrépito governo brasileiro, é o que pode evitar uma rápida tentativa de reestabelecimento dos currais eleitorais fundados na mentira, a retomada de uma austeridade radical alheia à realidade, ou uma solução militarista “por cima”, lançada para enfrentar a inépcia do próprio presidente e a instabilidade trazida pela pandemia.

Que a experiência coletiva de uma mobilização solidária e transversal sirva, portanto, de vacina para essas armadilhas e componha o terreno concreto para uma democracia adequada ao mundo que emerge diante de nós.

 

Coronavírus e milícia: a morte favorece a quem?, por José Cláudio Souza Alves[editar | editar código-fonte]

Artigo de opinião originalmente publicado no blog ContraPoder, em 08 de abril de 2020.

Ele era meu amigo. Conhecíamo-nos desde 1986. Nos últimos anos a vida não tinha sido fácil para ele. O desemprego, a falta de grana e a aposentadoria que não saía o desesperava. Morava na casa que os pais haviam deixado. Mas em todo este tempo, nunca perdeu a generosidade que lhe era peculiar. Sofreu uma queda de bicicleta e teve um coágulo no cérebro. Ficou quase duas semanas no Hospital de Saracuruna (o Adão Pereira Nunes), em Duque de Caxias, junto com mais 49 pacientes, numa única e imensa enfermaria, cujas camas ficavam a um palmo, uma das outras e sem divisórias. Neste período, usou sua própria roupa e não lhe deram banho. Ao receber alta, voltou para casa. Passou, então, a ter um quadro de febre muito alta. Levado às pressas para um Posto de Saúde, faleceu. O laudo da causa mortis falava em insuficiência respiratória. Não fizeram o teste para coronavírus. Como havia suspeita de contaminação, não houve velório. Enterro com dois parentes e caixão lacrado. Os familiares que cuidaram dele ficaram de quarentena. Há uma grande probabilidade de ter contraído coronavírus no hospital. Logo, há uma probabilidade do caso ser uma subnotificação de coronavírus disfarçada de insuficiência respiratória. Independente da causa verdadeira da morte, a família teve que desembolsas R$ 2.800,00 pelo enterro, num caixão que parecia feito de MDF. A única funerária que detêm o monopólio dos enterros, numa cidade de um milhão de habitantes, acumula indícios de ser mais um dos negócios lucrativos da milícia, some-se a isto o controle que exercem sobre os serviços nos hospitais públicos. Da consulta ao enterro, passando pelos exames e o preço da urna funerária, a morte, indiferente à causa, em si mesma, torna-se uma manifestação de poder. A estrutura legal e formal de hospitais, cartórios, funerárias e cemitérios são perpassadas pelo poder miliciano, com seus representantes na Delegacia, no Batalhão, na Câmara de Vereadores e na Prefeitura. O coronavírus é a ajuda que recebem no momento, em meio à crise de uma economia em quarentena.

A morte sempre foi a manifestação derradeira de poder. Grupos de extermínio, ainda mais em sua fase miliciana, sempre souberam disto. Bolsonaro ao se eleger, enaltecendo torturadores e assassinos da ditadura militar, comprovou o efeito eleitoral disto. A dimensão da morte é tão eficiente, que nem precisa ter corpo, ou prova. Pelo contrário, o que venho chamando de chacinas invisíveis mostra que é possível aprofundar e ampliar o poder da morte pelo desaparecimento dos corpos. A princípio, haveria uma aparente contradição no uso desta expressão, já que chacina implica em algo visível, exposto, com o objetivo de demonstrar força no uso da violência. Neste sentido, invisível não seria um adjetivo aplicável. Contudo, chacinas invisíveis realizam a junção de duas práticas, ambas violentas. De um lado, o homicídio de muitas pessoas e do outro o desaparecimento destes corpos. Fica explícito, pela junção das duas dimensões, uma potencialização do ato violento. A visibilidade invisibilizada da chacina revela o alto poder de dano provocado à vida de inúmeras pessoas presenciada pelos habitantes do local onde ocorreram as mortes e a dissuasão de qualquer forma de registro, investigação ou aplicação da lei. Ao final, ocorre a potencialização da força e impunidade dos assassinos frente à impotência e aprofundamento do terror para os moradores daquela região.

Com o coronavírus, a morte apenas segue seu percurso de exaltação nacional. Os mais desprotegidos entregues ao sistema público de saúde, controlados por milicianos ou não, serão os mais atingidos. Invisibilizados, em chacinas ou em pandemias de casos não notificados, comporão o exército de cadáveres de reserva, fornecedores de ganhos para funerárias, cartórios e cemitérios, quando existir corpos, ou de mais poder territorial para milicianos, na ausência do que enterrar. Com ou sem corpo, a morte é ocultada, por atestados de óbitos sem a causa verdadeira, por cemitérios clandestinos ou não, pelas águas dos rios. Mas quanto mais ocultada, mais a morte se torna forte. A morte é para ser sentida, vivida, na dor da ausência, no sofrimento do desamparo, na solidão e no medo. A morte sem corpo é o paroxismo do desamparo dos que não podem fazer nada. Membros de uma comunidade soltam o cadáver de uma pessoa executada e dada como desaparecida, dos galhos imersos dentro de um rio no qual ele foi jogado, pelo simples fato de que ninguém ali se imagina na mesma situação dele, ou seja, sem direito a corpo, luto, caixão e enterro. A morte sem corpo, invisível, é o cúmulo do terrorismo do Estado, de onde vêm os novos, não tão novos assim, algozes, travestidos de benfeitores, a serem enaltecidos em redes sociais, palanques e eleições. A morte sem causa verdadeira, vírus transformado em insuficiência respiratória, junta no mesmo buraco os contaminados ou não. É o pico estratosférico da angústia de uma nação inteira desigual, desinformada, desalentada onde a morte fez sua morada, para permitir que capitães, milicianos e empresários seus apoiadores, destruam direitos dos trabalhadores, liquidem políticas sociais e movimentem a economia dos seus ganhos repartidos entre os que sempre lucraram com a invisibilidade programada dos mais pobres.

A cova, contudo, é berço. Cada cadáver, uma semente. Na morte, uma nova vida. O que germina não é a covardia e o medo. Estes são heranças de colonizadores, burgueses, ditadores, torturadores, milicianos e assassinos. O que brota é a esperança, tão monolítica quanto o passado. Os que nunca desistem jamais se renderão. Quanto mais a milícia e o vírus avançam, novas formas de resistência, imunidade, proteção e conhecimento surgirão. A guerra criminosa ou biológica não possui determinismos. Pois o humano, pelo seu conhecimento, adaptabilidade e resiliência sempre seguiu avançando. Claro que entramos numa nova fase de mortes globais, numa escalada capitalista que destrói a natureza, envenena alimentos, desmonta sistemas de saúde, amplia lucros legais/ilegais de Bancos/Financeiras/Empreiteiras/Agronegócio/Mineradoras/Estados/Máfias/Milícias/Cartéis e aprofunda a espoliação do trabalhador e da natureza. Entretanto, se a morte é mais ampla e a cova/berço é mais funda, maior será o dossel da floresta que hoje erguemos. Nela, amigo, sua morte não será em vão. Todos os que tombaram estarão segurando os braços dos que se erguem por um mundo sem donos, senhores nem carrascos.

 

Racismo e desigualdades: o que há de democrático na Covid-19?, por Emanuelle Goes[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no Portal Geledés, em 10 de abril de 2020.

“Quando a América branca pega um resfriado, a América negra pega pneumonia”, Steven Brown (Urban Institute).

A Covid-19 é democrática? Debates sobre a transmissão do vírus têm levantado essa discussão, que todas as pessoas independentes de raça, classe, gênero estão expostas ao coronavírus da mesma forma. Mas como é possível que em países e sociedades com desigualdades profundas as populações sejam atingidas de maneira igualitária? Ao desembarcar Brasil o novo coronavírus mostrou que não era bem assim, a “patroa” em quarentena transmitiu o vírus para a funcionária que não tinha sido informada de risco de contágio, a trabalhadora doméstica de 63 anos que morreu, sendo o primeiro registro de morte no País. O vírus ao atravessar a barreira racial mata.

Aprendo com Grada Kilomba (1) ao dizer que a divisão geográfica resultante dessa coreografia racista pode ser vista como uma fronteira entre o mundo de “superiores” e o mundo das/os “inferiores”, entre o “aceitável” e o “inaceitável” […] evitando a contaminação das primeiras (brancas) pelas segundas/os (negras). Mas, o inverso o coronavírus nos mostrou que pode e é aceitável.

O lugar onde o Estado não chega, o vírus irá chegar como acontece com todas as epidemias, este lugar tem raça/etnia e gênero, são as pessoas negras, as mulheres negras que ocupam esses territórios.

No Brasil ainda não temos dados desagregados por raça/cor para a Covid-19, mas basta olharmos para epidemias anteriores, a mais recente do zikavírus ou das doenças negligenciadas como tuberculose, hanseníase e sífilis. São as pessoas negras que vivem em situação de vulnerabilidade, seja no contexto de rua, de prisão ou nas moradias precárias. “Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita […]. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”, escreveu Maria Carolina de Jesus (2) em Diário de uma Favelada.

Neste lugar o racismo estrutural se faz presente. Bairros negros segregados, onde pessoas negras são alocadas em áreas marginalizadas, à margem, impedidas de terem contato com recursos e bens brancos. A guetificação foi criada para promover o controle político e a exploração econômica das pessoas negras. Nos Estados Unidos já podemos ver a segregação racial do novo coronavírus e a sua distribuição desproporcional, na última terça-feira (7) a população negra representava 33% dos casos em Michigan e 40% das mortes, apesar de serem apenas 14% da população do estado.

No Condado de Milwaukee, Wisconsin, onde as/os negras/os representam 26% da população, eles são quase metade dos 945 casos e 81% de suas 27 mortes, segundo um relatório da ProPublica. Em Illinois, os negros representaram 42% das mortes, mas apenas 14,6% da população do estado. Em Chicago, os dados são ainda mais graves: os negros representam 68% das mortes da cidade e mais de 50% dos casos, mas representam apenas 30% da população total da cidade.

O racismo é um determinante social da saúde, as condições de vida e morte das pessoas negras estão atravessadas por ele. A população negra acumula morbidades como hipertensão, diabetes, câncer, HIV/Aids e tuberculose, sendo o reflexo das condições desiguais às quais está submetida ao longo da vida. Nos serviços de saúde, negras e negros estão expostas ao racismo nas suas diversas formas, desde a iniciativa em procurar o serviço até no acesso ao teste, diagnóstico e tratamento, momento em que se instala o viés racial implícito que vai direcionar a tomada de decisão dos gestores, profissionais e trabalhadores da saúde.

O novo coronavírus não discrimina, mas para os médicos em saúde pública que estão na linha de frente em resposta à pandemia já pode ser visto o surgimento de viés racial e econômico, assim começa o artigo The Coronavirus Doesn’t Discriminate, But U.S. Health Care Showing Familiar Biases. Em uma análise inicial, o texto informa, “parece que é menos provável que os médicos encaminhem os afro-americanos para testes quando comparecem ao atendimento com sinais de infecção”. Em Memphis, um mapa de calor mostra onde o teste de coronavírus está ocorrendo, revelando que a maior parte da triagem está ocorrendo nos subúrbios predominantemente brancos e ricos, e não na maioria dos bairros negros e de baixa renda.

Deixar viver, deixar morrer, é desta forma que as sociedades estruturadas pelo racismo organizam as vidas de pessoas negras e brancas. O mundo tem essa estrutura, pois hierarquiza a humanidade, humanos (brancos/as) e subumanos (negros/as e indígenas).

A antinegritude é o fundamento da humanidade (4), e é essa humanidade que busca a salvação nos subumanos, ao tentar mais uma vez transformar a África em cobaias ou decidir onde vão realizar os testes para o tratamento do novo coronavírus. Estão todos no mesmo pacto histórico-político-ideológico de genocídio negro, vivemos em um mundo antinegro.

O racismo é um processo histórico que se renova e aprimora ao longo do tempo. O racismo define como as pessoas negras vão viver adoecer e morrer nos lembra Fernanda Lopes (5). A ONU recomenda que os países comprometidos com a equidade racial na saúde criem esforços para garantir esse compromisso, pois as discriminações tendem a adensar as taxas de mortalidade pelo novo coronavírus. Sabe-se que as pessoas presas, são majoritariamente, homens negros e mulheres negras, são esquecidos/as justamente por isso, não porque cometeram um crime e sim porque são negros/as, que o enfrentamento ao racismo e a garantia da equidade racial se tornem centro do debate da pandemia do sul ao norte global, porque o que vejo daqui é um genocídio negro em curso.

Referências

  1. Grada Kilomba. Memórias Da Plantação: Episódios De Racismo Quotidiano. Ed. Cobogo, 2019.
  2.  
  3. Carolina Maria de Jesus. Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada. 10ª ed. Editora Ática. 2014
  4. María Lugones. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, jan. 2015.
  5. João H. Costa Vargas. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1oSemestre de 2020 – n. 45, v. 18, p. 16 – 26.
  6. Fernanda Lopes. Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: Tópicos em Saúde da população negra no Brasil. In: Brasil. Ministério da Saúde. Seminário Nacional da Saúde da População Negra. Brasília, 2004.

(Outras referências estão lincadas no texto).

 

Se não é pra todos, não é legal!, por Fabiana da Silva, Jota Marques e Wesley Teixeira[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 09 de abril de 2020.

Necessidade de fechamento por coronavírus evidenciou que a escola não é uma ilha

A escola não é uma ilha, isolada do contexto em que está inserida. A n ecessidade do fechamento desse espaço, durante a pandemia da Covid-19, reforçou essa ideia. É vazio fazer a defesa do ensino a distância, neste momento, sem considerar as condições econômicas e sociais que rodeiam a escola.

Quando nos concentramos na realidade dos alunos das camadas mais vulneráveis da sociedade é que encontramos o problema: estudantes sem acesso à internet e nem equipamentos que permitam a eles a entrada e a efetivação do acesso à educação. O discurso do uso da tecnologia dentro da realidade do "não ter" (celular, acesso à internet, computador) é uma das maiores violências que esse processo vem promovendo na vida desses alunos.

A falta de preparo dos profissionais da educação no uso das ferramentas tecnológicas também é um ponto nessa discussão. O professor foi formado para utilizar equipamentos em uma sala de aula, junto a práticas pedagógicas construídas sob táticas do cotidiano e nas adaptações do currículo formal das unidades de educação. Esses docentes não são blogueiros dando dicas de educação. São profissionais com formações técnicas. Ademais, é importante salientar que o sistema de educação a distância é contrário justamente ao fortalecimento do vínculo educador-educando, fundamental para o processo de ensino-aprendizagem.

Defender a escola pública presencial é defender o direito de crianças e jovens periféricos ascenderem socialmente. Nos últimos 30 anos, muitas mulheres negras e pobres no Brasil encontravam na educação uma oportunidade de ascensão social, e por isso trabalharam duramente para oferecer o estudo formal aos filhos e filhas.

Nós, autores e autora deste texto, somos fruto desse esforço de mulheres que entenderam a importância do chão da escola enquanto espaço de transformação social. A educação é a ponte que separa o saco preto e a invisibilidade. A escola, nos moldes que conhecemos, tem falhas e está em constante transformação muito por conta da falta de investimento nos profissionais que atuam dentro dela, mas não é acabando com ela que vamos ver as mudanças que buscamos fazer.

A importância da universidade e da pesquisa

Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século 21 não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo." O trecho é do artigo “O fim da era do humanismo”, de Achille Mbembe, também autor de "Necropolítica".

Foi a partir da tendência de seguir o capitalismo ultraneoliberal, comandada por uma ultradireita, que a tecnologia foi utilizada para propagar fake news e ódio racial e de gênero. O crescimento nada sutil dessa prática, desde de 2016, ocorreu quando o mercado financeiro assumiu totalmente o controle da agenda do Poder Executivo e Legislativo. Esse grupo impôs o congelamento do que era visto como um "gasto" nas áreas sociais (em saúde, educação e assistência) através da emenda constitucional 95. Tirou direitos que protegem os trabalhadores e desmontou a estrutura da seguridade social com a reforma da Previdência, aprovada no ano passado.

Entretanto, a crise do coronavírus chegou para enfraquecer o discurso, de um dia para outro, daqueles que afirmavam que essas medidas de congelamento eram necessárias para o crescimento da economia. Esses atores sentiram o impacto de uma sociedade desprotegida, com lideranças despreparadas que continuam a reafirmar o dogma da economia, mesmo diante da morte. É natural que aqueles que só pensavam em armas e eram defensores da morte não queiram e nem consigam combater um vírus invisível.

É nesse momento que fica explícita a contradição daqueles que chamaram as universidades de balbúrdia. Cortaram uma parte considerável de um orçamento que já vivia sufocado havia anos e perseguiram ideologicamente os editais de fomento à pesquisa. A resposta das ruas, ainda em 2019, foi o “tsunami da educação”, que deixou nítido: quem se mete com a educação compra briga com aluno, professor, tia, primo, avô. Compra briga com o povo.

Em meio à pandemia, é a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que desenvolve um protótipo de ventilador pulmonar mecânico, de baixo custo, para ser reproduzido em massa. Assim como foi a UFBA (Universidade Federal da Bahia), em conjunto com a Fiocruz, que criou um canal de informação, “Tele Coronavirus”, para ajudar a divulgar informações e tirar dúvidas da população.

É nítido o valor de projetos universitários que buscam baratear materiais de proteção e higiene nesse momento de pandemia. Além de mostrar o papel fundamental de tantos pesquisadores e pesquisadoras pelo Brasil que buscam alternativas para conter o vírus, apesar de muitos deles terem tido as bolsas de pesquisas cortadas no último ano.

Covid-19 nas favelas

Nós atuamos em projetos sociais ligados à educação popular que já estavam nesta defesa, tanto na participação de grandes atos, quando no diálogo com o território. No momento de crise da Covid-19, nossa atuação não seria diferente. Buscamos responder coletivamente às necessidades das favelas e cobrar ao poder público que faça o mesmo. Com a suspensão das nossas atividades presenciais, nos fortalecemos em rede para pensar nos territórios vulneráveis onde atuamos, que neste momento enfrentam sérios problemas por conta da suspensão de serviços.

Hoje, sabemos que, para além de ofertamos atividades educativas, culturais e esportivas, nós precisamos canalizar nossas energias para ajudar nossos alunos e seus familiares com algo mais essencial em tempos de pandemia: comida e acesso à informação. Orientações precisas sobre a necessidade do cuidado em uma realidade em que encontramos moradias precárias, falta de saneamento básico e água tratada é o que diferencia a vida e a morte. Enquanto atuantes na transformação social de territórios em vulnerabilidade social, estamos envolvidos na luta por garantias de direitos básicos.

As favelas têm mais coisas em comum além da violência. Exemplo disto é a atuação de grupos como a Coletivo Marginal, que atua na Cidade de Deus há dois anos, e promove ações de educação popular, comunicação comunitária e política. A iniciativa é pensada e feita por jovens periféricos e tem como missão promover uma alternativa de educação pública, crítica e criativa, para o desenvolvimento sustentável de territórios populares na cidade do Rio de Janeiro. O trabalho é realizado a partir dos eixos da educação popular, do direito à cidade e da comunicação comunitária.

A missão do “Escola dentro da Escola”, por exemplo, é propor uma ocupação crítica e criativa de espaços formais da educação pública, a fim de fortalecer as relações entre os alunos, as famílias, o corpo docente, o equipamento público, o território e o conhecimento do direito à cidade.

Além da Marginal, que realiza ações de apoio humanitário na Cidade de Deus durante a crise do Covid-19, o Movimento de Educação Popular +Nos, que existe há seis anos no Rio de Janeiro, também promove ações de apoio e logística para que a ajuda chegue aos territórios favelados. Por conta da pandemia, as atividades nas 17 unidades do Pré-Vestibular Popular, como as turmas de teatro, o reforço escolar e o Curso + Nós na Defensoria, foram suspensas.

Na favela do Parque das Missões, a Associação Apadrinhe Um Sorriso faz, há 11 anos, um trabalho de educação popular que tem no seu escopo a transformação social por meio da educação, cultura e esporte. Entendemos que o nosso trabalho transforma o território, que enxerga, nas nossas ações, uma fonte de esperança. Por causa do Apadrinhe um Sorriso, hoje o Parque das Missões saiu do mapa da invisibilidade. Somos mais favela, pois a educação, cultura e esporte mostrou que a violência só acontece quando o Estado, em vez de garantir direitos, os tira.

Fabiana da Silva é pedagoga formada pela UERJ. Mulher negra e favelada, ela é idealizadora e coordenadora da ONG Apadrinhe um Sorriso, além de atuar como assessora da Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

Jota Marques é educador popular, conselheiro tutelar de Jacarepaguá e morador da Cidade de Deus. Nascido no interior do Paraná, atuou em diversos estados do Brasil, com experiência em instituições de base comunitária, sistemas socioeducativos e movimentos sociais. Na Cidade de Deus, fundou e coordena a Marginal, uma escola de educação popular, comunicação comunitária e política.

Wesley Teixeira é morador da Mangueirinha, na Baixada Fluminense, e articulador do Movimenta Caxias. Foi coordenador da União dos Estudantes de Duque de Caxias e atualmente coordena o Movimento de Educação Popular +Nós. É militante do coletivo RUA e do Movimento Negro Unificado, além de colaborar com a Voz da Baixada.

PerifaConnection

PerifaConnection é uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Nina da Hora, Salvino Oliveira e Jefferson Barbosa.

 

Crise tem cor e gênero, por Flávia Oliveira (O Globo)[editar | editar código-fonte]

Artigo de opinião originalmente publicado no Jornal O Globo, para assinantes, no dia 10 de abril de 2020.

"(...) A crise atual tem cor e gênero. É negra e feminina. A Covid-19 aportou no Brasil pelos corpos de maior renda e pele mais clara, retrato da elite de uma sociedade assentada no racismo e profundamente desigual. A doença, que em pouco mais de um mês alcançou quase 18 mil brasileiros e beira mil mortes, está se espalhando por periferias e favelas, habitadas predominantemente por famílias negras. Na cidade do Rio, dez comunidades são classificadas formalmente como bairros pela prefeitura; até anteontem, quatro delas (Rocinha, Vigário Geral, Manguinhos e Maré) registravam seis dos 73 óbitos confirmados.

A doença e a morte ameaçam os grupos populacionais que agregam variáveis de pobreza multidimensional. Faz tempo que organismos multilaterais elencam, além da falta de dinheiro, outras características que tornam uma família vulnerável: residências com mais de três moradores por cômodo, pouca ventilação, paredes e cobertura frágeis; falta de saneamento básico; baixa escolaridade; rede de proteção social insuficiente; dificuldade de acesso à internet.

São aspectos que, no Brasil, alcançam principalmente negros, mulheres, idosos pobres, nordestinos. (...)"

Leia o ARTIGO COMPLETO aqui!

 

Covid-19 e a População em Situação de Rua: da saúde à segurança pública?[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente públicado no site do IFCH-UFRGS, em 14 de abril de 2020.

Isole-se, distancie-se, lave as mãos, use álcool gel, #fiqueemcasa!” são algumas das principais orientações médicas para o combate ao coronavírus - Covid-19. Não há dúvida sobre a importância de tais recomendações, mas cabe perguntar: e para aqueles que não têm casa?

Há mais de uma década estamos engajados na pesquisa, na realização de projetos de extensão e na colaboração para a organização política da população em situação de rua em Porto Alegre. A população de rua abarca um número crescente de pessoas no país e é alvo de programas e políticas nacionais para sua atenção desde 2009, a partir da implementação da Política Nacional para População em Situação de Rua. O estudo antropológico junto a esta população vem mostrando que o incremento das políticas e a maior visibilidade dos corpos e modos de vida destas pessoas não conseguem reverter duas fortes perspectivas sobre o assunto: (1) àquela pautada pela visão de que a população de rua deve ser suprimida a partir simples da retirada das pessoas da rua; (2) àquela que subentende as pessoas em situação de rua como os sujeitos da “falta”. Em tempos de pandemia do Covid-19, os riscos associados a tais posturas implicam, de um lado, a produção de políticas de concentração compulsórias realizadas a partir de um modus operandi da segurança pública (hierarquizar, segregar e vigiar) e, de outro lado, a retirada da agência dos sujeitos, tornando a população de rua alvo de ações que acentuam os processos de repressão e exclusão social.

A pandemia do Covid-19 é um reflexo da desigualdade. Uma emergência sanitária que nos faz pensar sobre como são tratados historicamente os menos favorecidos. Não se enfrenta somente a emergência, mas sim a permanência de uma violência estrutural em que as formas de implementação das políticas estatais são um agente importante. Embora o Covid-19 se dissemine democraticamente, as taxas de mortalidade não são democráticas e diferentes populações estão sujeitas a maiores e menores riscos. Estar isolado no conforto de uma casa pode fazer diferença entre a vida e a morte. Ter acesso a serviços de saúde, a medicamentos e a uma alimentação saudável também são elementos diferenciadores. Possuir condições de acessar água e produtos de higiene corporal e doméstica são outros fatores nessa balança de riscos, bem como a presença de vínculos relacionais de proteção. A ameaça do Covid-19 não é apenas viral. A ameaça do Covid-19 é coproduzida pelas condições desiguais de vida da população brasileira. Se isso é verdade, as pessoas em situação de rua, por suas condições de vida, estão bastante suscetíveis ao vírus.

 Como a exposição é desigual e as suscetibilidades variam, as políticas importam. As experiências locais de recepção da pandemia evidenciam que a estruturação do sistema de saúde, o investimento em políticas científicas, a expansão da testagem e um aparato eficiente de gerenciamento de populações fazem diferença nos impactos contextuais da pandemia. Para populações com maiores riscos em função de suas condições de vida, as políticas fazem diferença decisiva entre a vida e a morte. No caso da população em situação de rua, a maior aposta contra a disseminação do vírus, a orientação: #fiqueemcasa, tem efeito nulo.

 Como diversos trabalhos na área da antropologia com as políticas públicas insistem, é preciso ir além das políticas globais para investir em estratégias de combate afinadas com a cultura e com condições de vidas locais; ao invés de meros “detalhes” contextuais, tais elementos estão no cerne das possibilidades de enfrentamento à pandemia. O “Plano de Contingenciamento da Pandemia do Corona Vírus (Covid-19) para a População em Situação de Rua de Porto Alegre” foi produzido por um coletivo de organizações da sociedade civil, profissionais do serviço público e representantes das pessoas em situação de rua. No dia 26 de março de 2020, este documento foi entregue aos representantes do Poder Público Municipal e tem dado suporte a algumas iniciativas somente porque foi construído em diálogo com a população de rua - atendendo às suas expectativas e indo ao encontro das suas condições de vida.

 Entre as medidas sugeridas, constam à disposição de espaços públicos e materiais de higiene necessários para banhos e limpeza de mãos, roupas e utensílios; a ampliação de espaços de acolhimento como abrigos e albergues com remodelação de suas estruturas de modo a permitir o distanciamento social necessário para evitar a  disseminação do vírus; o investimento em programas de habitação que possibilitem a menor ocupação de abrigos e albergues; a atenção especializada de saúde para população de rua, a qual já conta com doenças preexistentes e muitas vezes negligenciadas pelo sistema de saúde; a testagem da população de rua em relação ao Covid-19 e a criação de espaços de quarentena para permanência dos atingidos pelo vírus, bem como de lugares protegidos para grupos de maior risco, como idosos, soropositivos, doentes e mulheres grávidas; a garantia de segurança alimentar e de uma renda mínima que possibilite a sobrevivência de pessoas que, em muitos casos, dependem da realização de pequenos serviços autônomos e eventuais, da venda de mercadorias em sinaleiras e do recolhimento de bens de caridade, escassos em tempos de isolamento social. 

 Todas essas sugestões vão além da orientação #fiqueemcasa, ao mesmo tempo em que ressaltam que o enfrentamento ao impacto do Covid-19 na população em situação de rua ultrapassa a produção de espaços especializados para segregação dessas pessoas nas cidades. Embora importantes, precisamos estar atentos ao fato de que não devem ser a única estratégia empreendida, pois isso significaria apenas maior segregação e exclusão social dessa população, correndo o risco de transformar uma questão de saúde pública em política de segurança pública. As pessoas em situação de rua não devem ser percebidas como riscos, mas sim como população em risco com a pandemia do Covid-19. Num cenário bastante desigual de distribuição de suscetibilidades, talvez a pandemia nos permita repensar os rumos de nossas políticas e formas de vida atuais. A absurda construção de uma polarização entre economia e vidas humanas que naturaliza o sacrifício de determinadas populações, expondo-as à morte em nome do perigo da fome, pode estar evidenciando que, no presente cenário, há muitas outras ameaças a combater, para além do coronavírus – Covid-19.

Patrice Schuch - Doutora em Antropologia Social, Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Em conjunto com o professor Ivaldo Gehlen, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFRGS, coordenou pesquisas censitárias na cidade de Porto Alegre sobre população de rua.  Também orienta vários estudos antropológicos sobre a população de rua, tendo desenvolvido projetos de pesquisa e de extensão realizados junto ao Movimento Nacional da População de Rua, ao Jornal Boca de Rua e à Escola Porto Alegre

Calvin Da Cas Furtado - Mestre em Políticas Públicas, atualmente doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UFRGS. Desenvolveu o documentário “A Vida é Sempre um Mistério”,  sobre população de rua,  e realiza pesquisa sobre violência, políticas públicas e população de rua. - 

Caroline Silveira Sarmento - Mestra em Antropologia Social, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UFRGS. É colaboradora do Jornal Boca de Rua e desenvolve pesquisas antropológicas sobre gênero, políticas públicas e violência.

 

Covid: há mais chance de letalidade entre negros, por Alma Preta[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, por Pedro Borges, do Alma Preta, em 15 de abril de 2020.

Proporção de óbitos já supera a de pessoas brancas – embora o vírus ainda não tenha entrado com força nas comunidades pobres. Informações de raça são ignoradas em mais de 300 casos de mortes e quase 2 mil casos de internações.

Dados do Ministério da Saúde mostram indicadores mais elevados de contaminação e morte pela Covid-19 entre os brancos. A pesquisa apresenta que 73,9% dos hospitalizados até o momento pertencem a esse segmento racial, enquanto 23,1% dos internados são negros.

Apesar de os brancos se manterem entre os que mais morrem pelo coronavírus, há uma diminuição do abismo quando comparados ao grupo racial negro. De acordo com os dados, 64,5% das vítimas de Covid-19 são brancas e 32,8% são negras. Ou seja, enquanto negros representam 1 em cada 4 pessoas internadas pela doença, quando falamos em letalidade, esse número diminui para 1 em cada 3 mortos, segundo o Ministério da Saúde.

Em entrevista ao Alma Preta, Cléber Firmino, médico e integrante do grupos de profissionais da saúde Negrex, acredita que ainda há uma presença majoritária de pessoas brancas infectadas, mas que o cenário tende a se modificar.

O início da pandemia no Brasil foi pelas classes sociais mais altas com menor número de pessoas negras. Acreditamos que o vírus ainda não tenha entrado com força nas comunidades mais pobres”, afirma.

A pesquisa mostra a existência de muitos casos de pessoas internadas e mortas pela Covid-19 sem a identificação do quesito raça/cor. Entre os óbitos, em 341 casos essa informação foi ignorada, bem como em 1.942 pessoas internadas.

A ausência de indicadores em muitos casos e a maior letalidade entre os negros quando internados exigem atenção, segundo Cléber Firmino.

Isso mostra a importância do Ministério da Saúde gerar dados e políticas públicas específicas. Sabemos que apenas estão sendo notificados casos que tenham sido hospitalizados, podendo haver uma subnotificação. Também fica apontado em vários estudos que negros têm menos acessos aos serviços de saúde”, completa.

O boletim do Ministério da Saúde indica 19.638 pessoas infectadas com a doença no Brasil e 1.056 casos de pessoas mortas em decorrência do coronavírus. As informações são das 14h do dia 10 de abril.

A divulgação dos indicadores de raça/cor são uma novidade nos boletins do Ministério da Saúde. A incorporação das informação é resultado de um pedido do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

No dia 8 de abril, a Coalizão Negra por Direitos, grupo que reúne mais de 150 entidades do movimento antirracista, também protocolaram pedidos no Ministério da Saúde e em secretarias estaduais de saúde para que os dados venham desmembrados pelos quesitos raça/cor.

De acordo com informações do Ministério da Saúde, quase 80% dos usuários do SUS no Brasil são negros.

O vírus pode ser fatal para quem tem diabetes, asma ou hipertensão. Estas são doenças crônicas pelas quais a população negra está mais vulnerável. De acordo com o relatório de Política Nacional de Saúde da População Negra lançado em 2017 pelo Ministério da Saúde, por exemplo, a hipertensão é mais alta entre os homens e tende ser mais complicada em negros, de ambos os sexos.

Por sua vez, a diabetes atinge com mais frequência os homens negros, 9% a mais que os brancos, e as mulheres negras, em torno de 50% a mais do que as brancas.

 

O SUS e a Atenção Primária à Saúde na rede de enfrentamento da pandemia, por Ligia Giovanella[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz), em 19 de abril de 2020.

A Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde considera necessário manter um debate qualificado e a difusão de informações e orientações adequadas com transparência para o controle da Covid-19. Nós, do comitê gestor da Rede de Pesquisa em APS da Abrasco, neste momento excepcional de muitas incertezas, temos dialogado, em encontros semanais virtuais, sobre estratégias de atuação da APS no SUS para o enfrentamento da Covid 19. Para discutir essas estratégias, foram constituídos grupos de trabalho que estão elaborando análises que foram apresentadas e discutidas no seminário.

Nós nos alinhamos à iniciativa da Abrasco, que divulgou em carta Sugestões para o fluxo de atendimento de pacientes sintomáticos respiratórios nas unidades de atenção primária, unidades de pronto atendimento e serviços ambulatoriais, preocupada com a proteção de profissionais de saúde e dos usuários, na busca de reduzir/prevenir o contágio.

O objetivo do seminário foi discutir a potencialidade da contribuição da APS no controle da epidemia, em especial, da Estratégia Saúde da Família, que ainda resiste, apesar das tentativas de desmantelamento, desde 2017 e do atual governo.

São tempos incertos que exigem reinventar processos de trabalho, estabelecer novos fluxos, fortalecer redes.

O Sistema Único de Saúde com seus princípios de universalidade, integralidade e equidade e a capilaridade de seus serviços pelo território nacional, tem potencial para lidar com esta pandemia. No entanto, o SUS cronicamente subfinanciado, nos últimos anos sofre um desfinanciamento agudo com a Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos públicos e já afetou de maneira direta a saúde, ocasionando redução de R$ 20 bilhões dos recursos da saúde no orçamento federal de 2020. E, mesmo hoje, frente à pandemia, os recursos federais não superam essas perdas. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), para o combate à Covid-19 foram alocados até 14 de abril R$ 18,9 bilhões: R$ 5,6 bilhões de recursos do Ministério da Saúde remanejados e R$ 13,3 bilhões de recursos novos. Destes, R$ 7,8 bilhões foram empenhados e apenas R$ 5 bilhões, liquidados: R$ 2 bilhões transferidos a estados e R$ 3 bilhões transferidos a municípios.  (R$ 13 bi novos para o SUS e R$ 15 bi liberados para os planos de saúde!)

O enfrentamento desta pandemia depende do fortalecimento do Sistema Único de Saúde em todos os seus componentes: de vigilância, de cuidado em todos os níveis, promoção, prevenção e pesquisa: de Mais SUS – Mais Estado – para Mais Saúde

Certamente,  a experiência internacional mostra que as medidas de isolamento social, associadas à testagem ampla com identificação de casos, à busca dos contatos e isolamento estrito de casos e contatos, testar, testar, testar e proteção adequada dos profissionais da saúde têm conseguido diminuir o contágio, prevenir o crescimento exponencial de casos e reduzir sofrimento e morte.

O modelo da APS brasileira com suas equipes de saúde da família e enfoque comunitário e territorial, com comprovados impactos positivos na saúde da população, tem um papel importante na rede assistencial de cuidados e pode contribuir para a abordagem comunitária necessária no enfrentamento de qualquer epidemia.

O enfrentamento desta pandemia depende do fortalecimento do Sistema Único de Saúde em todos os seus componentes: de vigilância, de cuidado em todos os níveis, promoção, prevenção e pesquisa: de Mais SUS – Mais Estado – para Mais Saúde

No controle de uma epidemia além da garantia do cuidado individual – que no caso da Covid-19, para reduzir mortes, torna necessário prover atenção oportuna com transporte sanitário exclusivo, leitos hospitalares e UTIs equipadas que permitam a intubação dos pacientes por longo tempo –, é necessária uma abordagem comunitária. E nossas equipes de APS conhecem seus territórios, sua população, suas vulnerabilidades e têm papel importante na abordagem comunitária. Urge ativar esses atributos comunitários da ESF, associar-se às iniciativas solidárias das organizações comunitárias, articular-se intersetorialmente para apoiar sua população em suas diversas vulnerabilidades e garantir a continuidade das ações de promoção, prevenção e cuidado criando novos processos de trabalho na vigilância em saúde, no apoio social e sanitário aos grupos vulneráveis, na continuidade da atenção rotineira para quem dela precisa.

O modelo da APS brasileira com suas equipes de saúde da família e enfoque comunitário e territorial, com comprovados impactos positivos na saúde da população, tem um papel importante na rede assistencial de cuidados e pode contribuir para a abordagem comunitária necessária no enfrentamento de qualquer epidemia

As apresentações e debates no seminário em síntese apontam para:

- A reorganização dos processos de trabalho depende de cada contexto, de cada UBS, de cada município. Não há um modelo único.

Temos mais perguntas do que respostas.

O seminário nos deixa algumas questões e pressupostos:

Separar os fluxos de atenção dos sintomáticos respiratórios e dos pacientes com outros problemas/necessidades: a linha de cuidado começa por telefone específico para atenção aos sintomáticos respiratórios com comunicação às equipes de casos de sua área para acompanhamento diário por telefone. Como organizar a atenção de sintomáticos respiratórios? Definir estabelecimentos específicos para o atendimento aos sintomáticos respiratórios que necessitam de cuidado presencial? Construir tendas no espaço exterior das UBS?  Separar fluxos no interior das UBS, sem produzir contágio, em geral é muito difícil. Separar equipes de profissionais que atendem sintomáticos respiratórios permite uso mais racional dos EPIs.

Reduzir ao mínimo o número de profissionais que entram em contato com casos suspeitos/sintomáticos respiratórios.

Reduzir atendimento presencial ao mínimo necessário: organização de teleconsulta, grupos usuários por whatsApp, por agente comunitário de saúde (ACS), grupos de condições e agravos acompanhados por médicos e enfermeiros a distância, teleapoio do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) etc.

Disponibilizar INTERNET PARA TODOS, profissionais de saúde e população. O poder público deve instalar wifi em cada bairro, em cada comunidade, articular com operadoras para ampliar a internet de todos os cidadãos que têm contas telefônicas pré ou pós pagas; no mínimo, articular para disponibilizar maior acesso (minutos, mensagens e internet) para todos os profissionais, incluindo todos os ACSs (vide exemplo de Portugal).

Testar, testar, testar: identificar casos e buscar contatos e apoiar o isolamento domiciliar. A experiência internacional de países que têm conseguido controlar a epidemia mostra que a testagem ampla ao identificar casos leves e assintomáticos possibilita o isolamento destes e seus contatos, reduzindo o contágio e o número de mortes. Mesmo ainda não dispondo de testes suficientes, devemos exigir que testes sejam disponibilizados com urgência.

Transporte oportuno e específico para Covid-19, com fluxos de referência e contrarreferência bem estabelecidos, associado à regulação de leitos, e evitando que casos suspeitos entrem em contato com muitas equipes profissionais.

Monitoramento a distância de casos em tratamento domiciliar pelas equipes de saúde: contatos telefônicos diários/de 12/12hs – a mudança de quadro para grave pode ser muito rápida.

Para finalizar gostaria de ressaltar os três grandes eixos de ação para as equipes de Saúde da Família em seus territórios, como apontado pela professora Maria Guadalupe Medina:

i) vigilância em saúde nos territórios, com apoio ao isolamento social e de casos e contatos, educação em saúde, notificação; acompanhamento cotidiano a distância dos casos em cuidado domiciliar;

 ii) apoio aos grupos vulneráveis por sua situação de saúde e ou social, articulado a iniciativas comunitárias, e articulação intersetorial;

iii) continuidade dos cuidados rotineiros da APS (como pré-natal, hipertensos, diabéticos, vacinação) com novas formas de cuidado cotidiano a distância (com disponibilidade de acesso à internet, whatsApp, telefone, teleconsulta…)

As escolhas de estratégias para o SUS e a APS hoje terão consequências para o SUS no futuro.

Uma boa atuação do SUS levará ao seu fortalecimento. O enfrentamento da pandemia tem revelado a distribuição desigual de serviços de saúde e exige a construção de redes assistenciais regionalizadas, bem como o fortalecimento da autoridade sanitária estadual, o que pode ser um legado positivo para o sistema. Mas podemos também caminhar para uma maior mercantilização e privatização, a depender das escolhas feitas. Por exemplo, podemos ampliar a capacidade instalada pública laboratorial ou financiar o setor privado. Na APS, a criação da Adaps [Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde] neste período também sugere uma opção pela privatização.

Podemos também sair desta pandemia com uma APS mais integral, mais fortalecida, se aprofundarmos seus atributos comunitários.

Incentive o isolamento social – fique em casa, lave as mãos, use máscara.

Lançamos um fascículo especial sobre o tema da APS no enfrentamento da Covid-19, que contempla artigos referentes a algumas das análises apresentadas, de nossa publicação APS em Revista, que tem como editor Allan Claudius Queiroz Barbosa, da Face UFMG.

Convido todos a se cadastrar na rede de pesquisa APS, para receberem o boletim semanal e participar de nossas atividades.

Assista a integra do seminário  Desafios da APS no SUS no enfrentamento da Covid-19

* Ligia Giovanella é Pesquisadora da Ensp/Fiocruz, co-coordenadora da Rede APS.

 

No Brasil, o endereço residencial define os impactos do coronavírus, por Jorge Abrahão[editar | editar código-fonte]

Artigo de opinião originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 29 de abril de 2020.

Em uma semana, houve aumento de 45% nas mortes nos 20 distritos mais pobres de São Paulo; nos 20 mais ricos, foi de 36%.

O que era uma previsão começa a se tornar realidade em nosso país. Mesmo com a precariedade no sistema de notificações, está cada vez mais clara a relação entre as mortes provocadas pelo novo coronavírus no Brasil e as desigualdades estruturantes da nossa sociedade.

Se na Europa a faixa etária e as condições de saúde de cada cidadão determinam a gravidade e a letalidade do vírus, por aqui o fator que se mostra preponderante é o endereço residencial. A desigualdade regional é avassaladora nos municípios brasileiros, principalmente nas grandes cidades —justamente as mais afetadas pela pandemia.

Na capital paulista, um dos indicadores mais gritantes do Mapa da Desigualdade realizado pela Rede Nossa São Paulo é o que aponta a idade média ao morrer em cada um dos 96 distritos da cidade. Em 2019, a diferença entre o melhor e o pior chegou a 23 anos —80,6 anos em Moema e 57,3 anos em Cidade Tiradentes, na mesma cidade e a 27 km de distância. A pandemia do novo coronavírus tende a, infelizmente, acentuar ainda mais essa diferença, e isso provavelmente será refletido na próxima edição do Mapa.

Em um levantamento extraordinário feito recentemente, a Nossa São Paulo mostrou que a distribuição de leitos de UTI vinculados ao SUS no município só confirma a exclusão vivida por cidadãos que moram nas periferias da cidade: apenas 3 subprefeituras (Sé, Pinheiros e Vila Mariana) —localizadas nas regiões mais ricas e centrais— concentram mais de 60% dos leitos em UTI do SUS no município. Enquanto isso, 20% da população (2.375.000 pessoas) vivem em 7 subprefeituras —localizadas nas periferias do município— em que não há um leito sequer.

As consequências dessa desigualdade multidimensional e cumulativa vêm se traduzindo, cada dia de forma mais latente, nos números relacionados à pandemia. Um levantamento realizado pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias aponta que a letalidade da Covid-19 nas periferias da capital paulista é cinco vezes maior do que a média nacional.

Na última segunda-feira (24), dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo divulgados pela Rede Brasil Atual mostram que, no período de uma semana, houve aumento de 45% nas mortes ocorridas nos 20 distritos mais pobres do município. Já nos 20 distritos mais ricos o aumento foi nove pontos percentuais menor: 36%. A média na cidade foi de 38%.

O distrito com maior número de mortes provocadas pela Covid-19 é a Brasilândia, com 81 óbitos. Não à toa, a região também aparece no Mapa da Desigualdade entre as piores em indicadores essenciais para a qualidade de vida da população: idade média ao morrer (60,01 anos); pré-natal insuficiente (25,20% das mães fizeram menos de 7 consultas); gravidez na adolescência (14,29%) e domicílios em favelas (29,60%, o segundo pior da cidade).

No restante do Brasil, a situação não é diferente. As marcas da desigualdade também se revelam nas estatísticas da pandemia. Manaus (AM) é um dos mais emblemáticos exemplos em nosso país. A cidade é a única em todo o estado —o maior do Brasil— que tem leitos de UTI. Mesmo sem considerar a subnotificação, o Amazonas tem a pior taxa de mortalidade do país: 45 óbitos por milhão de habitantes. E a pior taxa de incidência do vírus em todo o país - 521 casos por milhão de habitantes (dados de 20/4), cerca de 2,7 vezes a média nacional.

Todos esses indicadores combinados e somados mostram como as crises —sejam elas econômicas, ambientais ou sanitárias— geram maior impacto nas populações mais vulneráveis. As medidas emergenciais são vitais para conter a crise, mas elas só revelam o descaso acumulado em relação a direitos básicos como acesso à saúde, água, esgoto e habitação, que se evidenciam ainda mais em crise como a que vivemos.

Nesses momentos, fica evidente a necessidade de um pacto da sociedade que priorize investimentos para acesso a serviços e necessidades básicas da população, considerando as especificidades de cada região e de cada comunidade. Os municípios brasileiros precisam de políticas públicas —e de orçamento vinculados a elas— regionalizadas e que, de fato, priorizem à redução das desigualdades. Sem isso, permaneceremos extremamente vulneráveis a crises sanitárias, sociais, ambientais ou econômicas.

Jorge Abrahão é Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.

 

Nas periferias, cai o mito da “doença democrática”, por El País Brasil[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no blog Outras Palavras, em 06 de maio de 2020.

Em SP, os 300 mil habitantes da Vila Brasilândia convivem com a maior taxa de óbito por covid-19. O distanciamento é dificílimo. A perda de renda, dramática. Os hospitais próximos estão à beira do colapso. Há famílias inteiras contaminadas.

Por Felipe Betim, no El País Brasil.

“Ih, filho, minha vida tá embaçada”. Essas são as primeiras palavras de Ilma Paulino, de 47 anos, ao ser perguntada como a pandemia de coronavírus vem afetando sua rotina. Moradora de Vila Teresinha, subdistrito de Brasilândia, em São Paulo, ela vive com seus dois filhos —um deles com depressão— e precisa cuidar da irmã com epilepsia. Por causa das idas ao médico e dos cuidados diários, não pode ter trabalho fixo há dois anos. Assim, se mantém com o auxílio de um salário mínimo do INSS da irmã e os bicos como diarista, que rendiam cerca de 200 reais por semana. “Eu arranjava esses trabalhos, mas agora nem isso estou conseguindo. As pessoas estão com medo de receber gente em casa”, conta a mulher. Enquanto conversa com o EL PAÍS, recebe uma cesta básica do coletivo comunitário Preto Império, que atua em parceria com a rede de cursinhos pré-vestibular Uneafro e a agência de jornalismo Alma Preta. “Se não estivessem me ajudando, estaria perdida”, afirma a mulher, que solicitou a renda básica emergencial do Governo Federal, mas ainda não obteve resposta.

Em casa, Ilma mantém a rotina de lavar bem as mãos e manter tudo limpo. Seu irmão, que tem mais de 60 anos, e mora em outra rua, está entubado na UTI do Hospital Geral Vila Penteado. De acordo com a sobrinha, que repassa diariamente os boletins médicos, ele não vem respondendo aos tratamentos. “E eu vou levando minha vida, como Deus quer. Mas até onde vai, não sei”.

O relato de Ilma retrata algumas das dificuldades enfrentadas pelos moradores da periférica Brasilândia, localizado na zona norte de São Paulo e um dos mais populosos da capital paulista. São cerca de 300.000 habitantes divididos em 43 subdistritos. De acordo com os dados da prefeitura, comandada por Bruno Covas (PSDB), a Brasilândia concentra o maior número bruto de óbitos (confirmados ou suspeitos) por coronavírus. No boletim desta segunda-feira, 4 de maio, a região aparecia com 103 mortes confirmadas ou suspeitas. Esse número maior se deve principalmente ao maior número de habitantes. Outro fator que deixa a região ainda mais vulnerável é o atraso na inauguração do Hospital Municipal da Brasilândia, prometido pela prefeitura para maio. Mas, quando se analisa a taxa de óbitos, Brasilândia aparece com 36,5 mortes por 100.000 habitantes. Belém (zona leste), Pari (centro) e Artur Alvim (zona leste) aparecem no topo, com taxas superiores a 56 óbitos por 100.000 habitantes.

O EL PAÍS circulou de carro pela Brasilândia e conversou com algumas pessoas na manhã da última terça-feira, 28 de abril. Entre as 9h e 14h, pôde constatar que a maior parte das ruas tinha pouco movimento de carro e pessoas —algumas vias estavam completamente vazias—, enquanto que a maioria dos comércios —salvo mercados, mercearias e algumas oficinas e bares— se manteve fechada. As aglomerações são pontuais: elas acontecem em locais com obras públicas, em filas da Caixa Econômica Federal e das Lotéricas, e na distribuição de marmitas do programa Bom Prato, do Governo do Estado, no horário do almoço. Também cabe ressaltar que, entre os que circulavam pelas ruas ou utilizavam transporte público, grande parte usava máscara de proteção para tampar a boca e o nariz.

“Graças a Deus tenho minha família para me ajudar, eles estão dando muita força para mim”, conta Maria de Fátima Nunes, costureira aposentada de 62 anos. Ela vive com suas três filhas, três genros e oito netos. Todos têm evitado sair de casa nas últimas semanas. Além de sua aposentadoria de um salário mínimo, a família consegue manter o isolamento por causa das filhas, todas com emprego registrado, apesar do corte de 50% no salário. Por ter restrições alimentares, também conta com a doação de alimentos orgânicos entregue pela Preto Império. “Caso contrário, eu teria que estar na rua para buscar comida e tudo. Mas eu acabo ficando muito depressiva por estar isolada. Dá uma tristeza muito grande por causa da vontade de fazer as coisas e não poder”.

A conscientização de pessoas como Maria de Fátima e sua família é mais recente, de algumas semanas atrás, conforme o número de casos e mortes foi aumentando pelo bairro, segundo vários relatos. “Ainda assim, muitos colocam a máscara e, na hora de conversar, tira”, explica Elaine Reis, de 44 anos. Mesmo assim, ainda é possível ver, como nos outros bairros de São Paulo, pessoas conversando a pouca distância em bares e na porta de casa ou adolescentes empinando pipa.

Os relatos também são de que o movimento nas ruas aumenta nos finais de semana. Trabalhadora da área da saúde e moradora da região, Elaine argumenta que a informação sobre os riscos da covid-19 vêm circulando não só a partir dos meios de comunicação, mas também nas ruas. “Outro dia um carro de som passou anunciando, explicando, informando como todos deveriam agir. Mas não é todo mundo que está se cuidando, se preocupando se vai ter futuro. Ainda há muitas pessoas que não usam máscara para sair e não estão fazendo totalmente a quarentena”, explica. Elaine não se refere aos trabalhadores que não podem parar —”estes estão se cuidando mais”, garante—, mas sim àqueles que “agem como se estivessem de férias”.

Seu marido é motorista de aplicativo e viu o movimento cair. Fica a maior parte do tempo em isolamento junto com a filha, além de outros parentes que moram em casas coladas uma da outra. Cabe a Elaine, que está na linha de frente do combate ao coronavírus, sustentar a família. “Os gastos com comida, água e luz aumentaram. Também tivemos que gastar o dobro com uma internet mais rápida, porque a outra não estava dando conta com todo mundo em casa usando”, conta a mulher. “Por outro lado, nossa renda mensal diminuiu uns 60%. Tivemos que nos endividar, parcelar o cartão de crédito, que tem juros abusivos…”. Seu marido foi aprovado no programa de renda básica emergencial do Governo, mas, por questões burocráticas, ainda aguarda a liberação dos 600 reais pela Caixa.

Dimas Reis, de 32 anos, nascido e criado na Brasilândia e hoje coordenador do coletivo Preto Império, confirma que há pessoas, principalmente alguns jovens, que “estão desacreditando no que está acontecendo e não têm noção do impacto” da pandemia. “Pode acontecer como em uma casa aqui da esquina, onde a avó ficava isolada mas o neto saía toda hora. A avó acabou infectada, mas o neto continua bem”, relata. Porém, explica que todos os bairros da periferia de São Paulo apresentam “condições semelhantes de educação, alimentação e saneamento precário” e estão mais expostas ao coronavírus “por causa da ausência do Estado”. Os bairros periféricos, sobretudo nas zonas norte e leste, concentram a maioria das mortes por covid-19. Paralelamente, os hospitais das redes municipal e estadual, muitos deles localizados nas periferias, possuem taxa de ocupação de leitos UTI superior a 80% ―alguns já atingiram o 100%, como o centro de referência Emílio Ribas.

Trabalhadores na informalidade

Outro fator muito característico das periferias paulistanas e brasileiras é o do trabalho informal, recorda Dimas. “As pessoas precisam matar um leão por dia e tentar garantir a subsistência e muitas não conseguem se isolar. O isolamento é necessário, mas é extremamente impactante para as famílias. Elas ficam sem condições, sem perspectiva de manter seus planos, de pagar suas contas fixas, de comer…”, explica. Por conta dessa situação de vulnerabilidade, a Preto Império cadastrou, via agentes comunitários de saúde, cerca de 200 famílias de renda baixa. Até a última terça-feira já havia distribuído 300 cestas de alimentos como óleo, arroz, feijão e macarrão, além de fazer entregas semanais de 150 marmitas. “Fiquei impactado com um pai que veio a pé de outro bairro com o filho para pedir comida, mesmo sabendo que já estávamos entregando e buscando resolver. Ver isso e naquele dia não poder ajudar foi bem dolorido”, conta.

Outro dos beneficiados pelas doações da Preto Império está o pedreiro Ivanilson Ramos do Nascimento, de 47 anos. Ele vive com o pai, aposentado de 77 anos que recebe um salário mínimo mensal, seu irmão e dois sobrinhos. Assim como Ilma, não tem trabalho fixo desde 2013 e se sustenta com bicos. “Sou autônomo e tirava por mês uns 2.000 reais. Mas agora está faltando serviço, estou parado há quase dois meses”, explica.

Contudo, Ivanilson precisa interromper o isolamento social para fazer alguns trabalhos como pedreiro, pintor e eletricista que, segundo conta, ele não pode recusar. “Não existe para mim trabalhar de casa. Meu serviço é braçal, né? Se eu não vou lá pessoalmente resolver, eu fico sem nada. Mas, hoje, não consigo nem 400 reais por mês”, conta ele, que também solicitou a renda básica emergencial do Governo e aguarda resposta. “A casa é própria e isso ajuda, mas tem água e luz para pagar. Não estamos passando necessidade porque a gente se ajuda, mas estamos precisando. A situação de minha ex-esposa e meus filhos é mais tranquila. Ela trabalha com faxina e foi demitida, mas pelo menos está recebendo o segundo desemprego”.

“Acho que todo mundo em casa pegou”

Na casa de dois quartos e um banheiro onde vivem as sete pessoas da família da professora Michele Tamara Fernandes Teixeira, de 38 anos, somente o sogro e o marido dela não apresentaram algum sintoma associado ao coronavírus. Sua sogra foi a primeira a apresentar sinais como febre e cansaço. Ela acabou internada com o diagnóstico de infecção urinária no Pronto Socorro Municipal 21 de Junho, na região da Freguesia do Ó. “Ela nunca chegou a ser testada para a covid-19, nunca saberemos o que ela teve, mas está até hoje sem paladar”, diz a professora.

Como não havia confirmação da doença, e o diagnóstico era somente infecção urinária, a professora acompanhou a sogra ao longo dos cinco dias de internação. E foi justamente ali, dentro do hospital, que ela acredita ter sido infectada. “Não me deram uma máscara para usar dentro do hospital”, diz. “Nem para mim e nem para ela, que ficou em um quarto com mais sete pessoas, e ninguém usava máscara”. Poucos dias depois, Michele começou a ter diarreia e febre incessante. Procurou três hospitais particulares e somente no último foi realizado o teste para a covid-19 nela, depois que um raio-x mostrou manchas em seu pulmão. Ficou dois dias internada.

Quando voltou para a casa, foi a vez do filho passar outros dois dias no hospital com sintomas parecidos. Sem condições de se isolar em uma casa tão pequena para tanta gente, o efeito dominó na família seguiu, atingindo a filha mais nova e, na sequência, a mais velha, que chegou a ficar com falta de ar. Dos cinco membros da família que apresentaram sintomas, somente Michele e o filho conseguiram realizar o teste para a covid-19. E só o dela deu positivo. Para ela, tudo poderia ter sido evitado se a sogra, a primeira a adoecer, tivesse sido testada para que o restante da família pudesse se proteger do contágio. “Se tivessem feito um teste nela ou se tivessem me dado máscara no hospital onde ela ficou, nada disso teria acontecido”, diz Michele. “No fim, acho que todo mundo em casa pegou, mas no meu marido e no meu sogro foi assintomático”.

Hospital da Brasilândia ainda não funciona

Brasilândia conta 17 Unidades Básicas de Saúde, além de outros equipamentos municipais, mas o único grande centro para atendimentos complexos da região é o Hospital Geral Vila Penteado, administrado pelo Governo do Estado. Os moradores ainda aguardam pela inauguração do Hospital Municipal da Brasilândia. Em nota enviada ao EL PAÍS, a Secretaria Municipal da Saúde garante que a obra será entregue em maio. “O equipamento contará com 150 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 30 leitos de transição exclusivos para o tratamento de pessoas com o Novo Coronavírus. Quando pronto, será um hospital e maternidade com 305 leitos e beneficiará 2,2 milhões de pessoas da região”, explica. “Vale lembrar que a administração municipal retomou, a partir de 2017, diversas obras deixadas paradas pela gestão anterior em áreas como Saúde e Educação, o que ocasionou a revisão de prazos inicialmente previstos”, acrescenta.

A gestão municipal também diz que vem realizando ações comunitárias preventivas e se aliando a lideranças locais e associações de bairro para desinfectar as ruas, distribuir máscaras e passar informações através de carros de som. “As unidades de saúde têm atendido diariamente os usuários com sintomas de síndrome gripal. Sendo leve, são medicados e orientados para o isolamento domiciliar. Estes pacientes são monitorados diariamente e com retorno até o quinto dia. Se apresentarem piora nos sintomas, são encaminhados para hospitais de campanha, conforme critérios clínicos”.

Esta reportagem contou com a colaboração de Marina Rossi.

 

Vai existir o “novo normal” na periferia?, por Jéssica Moreira[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Mulheres da Periferias, em 12 de maio de 2020.

“O ‘novo normal’ será isso e aquilo”. A expressão está pipocando a toda hora na tela do meu celular. Ou, então, nas manchetes dos “modernos empresários”. Todo mundo tentando criar um novo futuro onde possa existir.

Todo mundo? Será?

O “novo normal” é o modo como uma parcela da sociedade tem falado sobre os hábitos que as sociedades que estão saindo do isolamento agora estão adquirindo. Ou, então, como alguns especialistas estão enxergando o mundo para em um futuro pós pandemia. Não podemos negar as inúmeras mudanças que estão por vir, é verdade. Mas será que elas serão benéficas para todos?

Em uma reportagem sobre educação na Alemanha, as mesas eram separadas por uma distância suficiente para evitar contágio, como recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS).

No Brasil, as salas chegam, muitas vezes, a comportar até 50 alunos. Alguns nem ouvem a professora, de tão cheias.

Segundo Censo da Educação Básica de 2019, o Brasil  possui quase 48 milhões de estudantes (47.874.246), nas redes pública e privada, sendo que a maioria (81%) dos estudantes da educação básica estão na rede pública. Vocês acham que teremos um “novo normal” nas salas de nossas periferias?

Empresários falam em novo normal do trabalho, o famoso “home office”. Falam até que isso será a “forma de trabalhar do futuro”.

Dados do IBGE mostram que o Brasil iniciou 2020 com 11,9 milhões de desempregados. Outro dado aponta que o país tem mais de 38 milhões de pessoas no trabalho informal. Milhares são mulheres.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) Contínua, do IBGE, o trabalho doméstico chegou a 6,3 milhões de pessoas. Minha mãe foi diarista a vida toda, parou quando a fibromialgia lhe atacou. Eu tenho certeza que tem a ver com o trabalho doméstico pesado de todo dia.

Mas é esse trabalho que sustenta diversas famílias. São 11 milhões de mães solo no país, sendo que 57% vivem em vulnerabilidade extrema. Não existirá novo normal para essas mulheres.

Não pode existir “novo normal” quando a estrutura de um país é construída a partir da desigualdade social, racial e territorial. Não me venham construir uma nova sociedade remendada.

Meu povo é o mais afetado pela Covid-19, pois, além de estarmos historicamente nas margens, nós, negros e negras, também estamos mais expostos às doenças crônicas como diabetes e pressão alta. Uma reportagem da Agência Pública mostra essa disparidade.

De 11 a 26 de abril, o número de pessoas negras que morreram em decorrência da Covid-19 subiu de 180 para 930. “Para cada morte em Moema, na zona sul, quatro morrem na Brasilândia, zona norte de SP”, aponta um trecho da matéria, que mostra a disparidade entre os bairros nobres e periféricos da capital de São Paulo. Na Brasilândia, 50% da população é negra.

Não temos acesso a serviços básicos de saneamento básico, pois sempre estivemos esquecidos nos rincões. Aqui, o normal é o desemprego, a fome e omissão do Estado, presente apenas nas mãos que matam, diariamente, nossos jovens negros.

Não me venham falar de novo normal.

Jéssica Moreira, 28, é escritora, jornalista e uma das fundadoras do Nós, mulheres da periferia.

 

O massacre que interrompeu a quarentena no Complexo do Alemão, por Jeniffer Mendonça[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Ponte, em 17 de maio de 2020.

Favela carioca pedia alimento e calma, mas recebeu tiros que deixaram 13 mortos; para especialista, operações avulsas e pontuais são usadas por grupos da polícia para subir valor de propinas

“Como a gente não vai se aglomerar se quando está no meio do tiroteio, no meio da guerra, a gente precisa aglomerar todo mundo no cômodo mais seguro da casa para poder se esconder e se proteger?”. O questionamento é da comunicadora e moradora do Complexo do Alemão Tiê Vasconcelos, 25 anos. Em plena pandemia, a comunidade da zona norte do Rio de Janeiro foi alvo de uma operação policial que deixou 13 mortos na sexta-feira (15/5).

A ação contou com presença da tropa mais letal do Rio, o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), e de policiais da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos). Para Tiê, foi a operação mais “pesada” na comunidade na pandemia por conta das mortes e do aparato policial. Embora tenham reduzido até o final de março por conta do novo coronavírus, as incursões policiais ainda são presentes. “Tinha caveirões circulando pelo morro o tempo inteiro, muita munição, muita granada”, descreve. “Mais uma vez a favela sangrando, mais uma vez mães gritando pela perda dos filhos”, lamenta.

A comunicadora conta que, com a falta de assistência do Estado, os próprios moradores precisaram se mobilizar para garantir que a população tivesse acesso a água, alimentação e higiene. “Quando [a pandemia] começou, muita gente, eu até, estava há mais de 20 dias sem água caindo na caixa d’água. Como adaptar esse método de prevenção para nossa realidade de favelado, sendo que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda lavar as mãos?”, questiona.

Com as operações, além de tentar se proteger dos tiros, os grupos ficam impossibilitados de entregar cestas básicas às famílias. “Enquanto a gente tá gritando, pedindo ajuda, pedindo doações, levando doações, fazendo um papel voluntário que deveria ser do governo e não nosso, essas ações [policiais] prejudicam a nossa tentativa de minimizar um pouco esse impacto do coronavírus”, critica Tiê. “Se pudesse ter revertido o valor que gastou [na operação] com cestas básicas nos ajudaria muito mais”.

Para a antropóloga da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jacqueline Muniz, essas operações policiais favorecem a disputa de territórios, onde a falta de acesso a direitos básicos, como água e luz, propicia que grupos armados explorem o fornecimento desses serviços. “Estamos falando de uma economia política do crime. A pandemia está afetando o bolso do crime e não é à toa onde acontece isso: não vai acontecer em Botafogo, por exemplo, num bairro elitizado, que não está sob controle de nenhum domínio armado”, pontua.

De acordo com Jacqueline, por um lado, as milícias, que costumam cobrar taxas de moradores nas áreas onde atuam, viram sua arrecadação diminuir por conta do fechamento de estabelecimentos comerciais dessa população com as medidas de isolamento. Por outro, as facções criminosas, que inclusive têm feito ameaças a quem desrespeitar a quarentena, temem que a proliferação do vírus afaste compradores de suas mercadorias.

Um dos meios de conseguir dinheiro por esses grupos de policiais, segundo ela, é a cobrança de propina pela liberação de criminosos que venham a ser presos. “Muitos desses tiroteios servem para aumentar o preço do alvará do funcionamento das firmas. Outros servem para tirar o traficante de estimação e colocar o miliciano. Então, é preciso que a gente veja qual é o rendimento que isso tem e a quem interessa uma operação dessas sem planejamento, sem gestão, sem preservação de vidas”, analisa a professora.

Segundo o jornal Extra, um dos mortos era Leonardo Serpa de Jesus, o Léo Marrinha, tido como um dos líderes do tráfico nas comunidades Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, na zona sul da cidade do Rio. Ele estava como “procurado” no site do Disque Denúncia, desde 2016, e era apontado como integrante da facção CV (Comando Vermelho). Outro que morreu na operação era Leandro Nascimento Furtado, o Diminho ou Oliver, indicado como chefe do tráfico em favelas do Alemão e também em uma do Complexo da Penha, o Parque Proletário.

No episódio 66 do PonteCast, o sociólogo José Cláudio Alves Souza explicou que as milícias e as facções dependem da estrutura das forças da segurança pública, a diferença é que os primeiros se elegem a cargos públicos e políticos. “É claro que vão ter acordos. Aqui no Rio de Janeiro, o TCP, Terceiro Comando Puro, é quem vai fazer negócio com milícia, alugar espaço para boca de fumo. E o CV é quem vai bater de frente”, declarou.

Jacqueline questiona o emprego dessas operações num contexto de pandemia quando as forças de segurança deveriam estar auxiliando as medidas de isolamento, inclusive preservando a vida de policiais. “O que estamos vendo é um barateamento da vida, não só do policial, como da população. E como esse policial é saído da periferia também, parece que há um desprezo à vida daqueles que moram nas comunidades populares, sejam eles policiais ou não”, prossegue. “O que vemos é um triplo risco: ou morre de Covid, ou morre no tiroteio ou morre porque perdeu o trabalho. Essa população fica com uma escolha impossível de morrer, morrer ou morrer”.

De acordo com ela, com o afastamento de cerca de 1300 policiais infectados ou com suspeita da doença, isso afeta a cobertura de policiamento de aproximadamente de 300 mil a 600 mil habitantes. “Uma coisa é a polícia do bem que está fazendo o policiamento que tem que fazer para apoiar a vigilância sanitária”, aponta. “Outra coisa é a polícia dos bens. Essa tem outros interesses e vê na pandemia uma janela de oportunidades para aferir lucro e aumentar a sua capacidade de dominação. E, evidentemente, a moeda para a ameaça é a violência, é a vida”, declara a antropóloga.

Para o pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Doriam Luis Borges de Melo, apesar do estado ter sido palco de outros massacres, como a Chacina do Pan, em 2007, em que uma operação da PM e a Força Nacional de Segurança resultou em 19 pessoas mortas e dezenas de outras feridas no Complexo do Alemão, a diferença é a legitimação institucional da letalidade policial por parte do governo, já que houve aumento de 92% de mortes em operações policiais do Rio em 2019.

“Por mais que a segurança pública sempre fosse de confronto, nunca se verbalizou essa ideia do extermínio”, explica. “O que já era legitimado ganha uma dimensão muito maior, como uma meta política, nesse governo Witzel e isso é muito perigoso se a gente ver ao longo desses 500 dias quantas pessoas foram mortas pela polícia”.

Outro lado

A reportagem questionou as secretarias das polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro a respeito da operação no Complexo do Alemão e das análises dos especialistas sobre a ação. As duas pastas não responderam até a publicação.

 

Coronavírus expõe extrema desigualdade social no Brasil, por Raimundo Bonfim[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na Revista Fórum, em 20 de maio de 2020.

Desde que o primeiro caso de coronavírus foi notificado oficialmente no Brasil, no dia 26 de fevereiro, temos assistido indignados à desumanidade e à crueldade de um governo a serviço dos poderosos, no enfrentamento dos desafios de combate às crises sanitária, econômica e social que foram agravadas com a chegada da pandemia no nosso país.

Para as finanças nacionais, que já caminhavam em marcha à ré, acompanhadas da vergonhosa marca de quase 13 milhões de desempregados, o coronavírus expôsuma politica econômica neoliberal que tem aumentado a cruel desigualdade social no Brasil.

Enquanto a pandemia do coronavírus assolava a China, no final do ano passado e início deste ano, passando pela Europa e Estados Unidos e, enquanto exemplos, principalmente vindos da China, já nos alertavam para o que teríamos que enfrentar, o presidente Bolsonaro tratava o problema como “gripezinha”.

Nem o erro de alguns países em terem resistido a orientar, logo no início, suas populações para a necessidade fundamental da quarentena – o que contribuiu para milhares de mortes – foi suficiente para o governo brasileiro se adiantar ao caos que vivemos hoje.

Nada disso foi capaz de despertar em Bolsonaro a necessidade da adoção de medidas urgentes voltadas, principalmente, para a população em situação de vulnerabilidade. Ao contrário do que orientaram as mais conceituadas autoridades científicas mundiais e brasileiras e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), como o isolamento social e até lockdown (isolamento ou confinamento total em determinada cidade ou região), dependendo do cenário do avanço da contaminação, o chefe de Estado brasileiro fez chacota com a situação dramática que o mundo estava vivendo.

Se já pagávamos um preço altíssimo por termos na presidência da República alguém que representa os interesses dos poderosos empresários, banqueiros, industriais e todo o bando de sugadores da Nação, agora, o sofrimento do povo brasileiro se multiplicou: até a última terça-feira (19) foram registradas 17.509 mortes provocadas pela Covid-19 e 262.545 casos confirmados da doença em todo o país.

Com esses números, o Brasil se torna o terceiro país no mundo com o maior número de casos confirmados da doença, atrás dos Estados Unidos e da Rússia. Essa tragédia anunciada – e que poderia ter sido mitigada -, escancara a extrema desigualdade social do Brasil: são 38,5 milhões de trabalhadores informais, 13,5 milhões na linha da extrema pobreza.

Na contramão da extrema pobreza, temos seis pessoas detendo a mesma riqueza que 100 milhões de pessoas, o que corresponde quase à metade da população do país, e os banqueiros insaciáveis cobrando juros escorchantes e seguindo à risca o lema “dinheiro acima de tudo e de todos”.

Só em 2019, o banco Santander lucrou 11,181 bilhões de reais, o Bradesco, 22,6 bilhões, e o Itaú, 26, 583 bilhões, só para citar os três maiores. Juntos faturaram 63 bilhões de reais, em um Brasil que ostenta a triste marca de 13 milhões de pessoas passando fome. Esse é o retrato fiel do capitalismo voraz e canibal adotado no nosso país.

Antes da chegada da pandemia no Brasil, os movimentos populares já alertavam as autoridades sobre o cenário desastroso que o coronavírus causaria quando adentrasse as favelas, os cortiços, as ocupações e as periferias do país, com perdas de milhares de vidas.

A Central de Movimentos Populares já chamava a atenção dos governos e cobrava a adoção de medidas urgentes de proteção à população em situação de vulnerabilidade, mas nenhuma medida eficaz foi adotada. Não foi preciso muito tempo para a comprovação do que diziam os movimentos populares.

Estudo recente feito pela prefeitura de São Paulo expõe, em número de mortes, a desigualdade social no Brasil: os 20 distritos da cidade de São Paulo que tiveram entre 50 e 150 mortes por Covid-19, entre confirmadas ou suspeitas, têm grande concentração de habitações precárias. Os bairros com maior número de mortes por coronavírus em São Paulo são os que concentram mais favelas, cortiços e conjuntos e núcleos habitacionais.

A transmissão do coronavírus acontece entre todas as classes sociais, mas entre a população que vive em moradias precárias e periferias o número de mortes é infinitamente maior do que os que moram em mansões luxuosas. E, quando adoecem e se faz necessário a realização de testes e leitos, mais uma vez a injustiça predomina. Aos mais pobres, na maioria das vezes, testes e leitos de UTI são negados.

A pandemia mostra que a maior transmissão e morte pela Covid-19 está ligada à questão social e racial: 62% dos negros tem mais chances de morrer do que os brancos em São Paulo. A pandemia é também uma questão social, pois os pobres moradores de favelas, cortiços e periferias são mais atingidos que os moradores de bairros nobres.

A pandemia tem endereço certo. Quem mora nas favelas. Dados do IBGE revelaram que, em 2010, 11,5 milhões de pessoas viviam em 6.329 favelas no Brasil, mas, se tivéssemos esses números atualizados, com certeza, seriam muito maiores.

Pesquisa mais recente da Fundação Getúlio Vargas, de 2019, apontou um déficit de 7,7 milhões de moradias no Brasil. E os dados negativos não param por aí. Em 2019, segundo o IBGE, metade da população (105 milhões de pessoas) sobrevivia com 438 reais por mês, 15 reais por dia.

Diante de tanta desigualdade, perdas humanas e do aumento de pessoas ingressando em situação de extrema pobreza, o descaso do governo Bolsonaro com a saúde só tem aumentado.  Não é preciso ir muito longe para demonstrar o quanto ele “dá de ombros” para o triste cenário em que vive a população.

A queda de dois ministros da Saúde em menos de um mês revela o quanto este governo é genocida e não tem a menor condição de continuar governando o país. Não porque não tenha alternativas, mas porque o foco não é e nunca foi o povo brasileiro, mas os poderosos que custearam sua eleição.

As constantes investidas de Bolsonaro em orientar as pessoas para o relaxamento da quarentena, a irresponsabilidade em incentivar e até participar de manifestações em seu favor e pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal explicitam e demonstram o seu autoritarismo e fascismo.

Quem o apoiou com cifras bilionárias nas eleições presidenciais agora cobra a fatura, mesmo que essa cobrança envolva milhares de vidas. Como resposta às milhares de famílias que perderam seus entes queridos, Bolsonaro responde com desprezo e descaso.

De um governo retrógrado, subserviente aos interesses dos Estados Unidos, que retrocedeu em todas as conquistas sociais que obtivermos nos governos Lula e Dilma, não poderíamos esperar outra coisa que não fosse o total abandono do povo à sua própria sorte.

Descaso com a Ciência, com a Educação, com a Saúde, com a Habitação, perdas de direitos trabalhistas conquistados em anos de luta pela classe trabalhadora: em todas as áreas houve retrocesso!

Desde sempre Bolsonaro concentrou toda sua preocupação em armar a população, ao invés de garantir uma renda básica para quem precisa, especialmente neste momento. Sua atenção sempre esteve voltada também para esconder os crimes e defender os seus interesses, de seus filhos e amigos milicianos.

Nesse cenário de destruição, temos que ter a compreensão de que a retomada de investimento em todos os setores e o desenvolvimento do país não virão com este governo, porque as opções de Bolsonaro envolvem o benefício tão somente da grande burguesia.

Cada vez mais o presidente Bolsonaro nos consolida na vexatória posição de 9º país mais desigual do mundo e o primeiro da América Latina. Para reverter essa triste situação, só com fora Bolsonoro e Mourão!

Precisamos fazer a reforma tributária urgentemente para garantir recursos para subsidiar políticas públicas importantes para o país no enfrentamento à pandemia.

Não é pouco o que conseguiríamos em recursos. Só com a taxação de altas rendas, lucros e dividendos em 15% da alíquota, teríamos 71 bilhões de reais; com taxação de grandes fortunas mais 35 bilhões; com taxação de grandes heranças – passando de 8% para 20% -, mais 11 bilhões de reais; com aumento da tabela do IR para grandes salários, teríamos 20,5 bilhões; com aumento da alíquota de 15% para 30% no sistema financeiro, 15 bilhões; e a cobrança de IPVA de aeronave e iates, mais 5 bilhões.

Só com estas mudanças somaríamos um total de 157, 5 bilhões de reais para investir em políticas públicas. Mas para implementar tais medidas é preciso um governo compromissado com o povo brasileiro e, definitivamente, não é o que temos! Por isso estamos na campanha Fora Bolsonaro.

Contra a corrente de todo retrocesso que o governo Bolsonaro representa, os movimentos sociais e populares estão unidos pela solidariedade em defesa da população que mais precisa. Desde o início do acirramento da crise, em abril, até agora, campanhas como “Movimentos Populares Contra a Covid-19”, que integra a rede de solidariedade “Vamos Precisar de Todo Mundo”, das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, já abriram 92 pontos de arrecadação e distribuição de alimentos e produtos de limpeza e higiene em todo o país. Foram distribuídas 64.129 cestas básicas, o que correspondem a quase 1.300 toneladas de alimentos.

As ações dos movimentos populares estão fazendo a diferença na vida da população em situação de vulnerabilidade, mas isso é insuficiente. O governo precisa assumir a responsabilidade que lhe cabe e garantir o bem-estar dessas pessoas.

De imediato, defendemos o pagamento do auxilio emergencial para todas as famílias em situação de alta vulnerabilidade, enquanto durar o estado de calamidade pública, para as 80 milhões de pessoas cadastradas que têm direito a recebê-lo, além de teste de Covid-19 para todas as pessoas que apresentarem sintomas, bem como fila única para terem acesso aos leitos. Saúde é direito e não mercadoria só para os ricos terem acesso. 

Em paralelo à promoção de campanhas de solidariedade, os movimentos sociais estão realizando ações pela conscientização da população em relação aos seus direitos e exigindo ações urgentes dos governos voltadas para a população que mais precisa.

É imoral e inaceitável que um país tão rico em recursos naturais, com uma minoria de bilionários, aceite de forma passiva conviver com tamanha desigualdade social. É urgente distribuir renda e riqueza de forma radical para que todos sobrevivam com dignidade humana.

PS: As revelações de que Flávio, filho de Jair Bolsonaro, recebeu informação privilegiada de ação da Polícia Federal que investigava eventuais crimes cometidos pelo motorista da família, Fabrício Queiroz, e que a operação foi adiada para favorecer Bolsonaro nas eleições de 2018, configuram os crimes de obstrução à justiça e fraude eleitoral. Com base nesses crimes e tantos outros, a CMP irá nos próximos dias subscrever um pedido de impeachment contra o presidente da República.

 

Pandemia na periferia: 'quem é por nós?', por CRISP-UFMG[editar | editar código-fonte]

Artigo de opinião originalmente publicado no site da Universidade Federal de Minas Gerais, em 21 de maio de 2020.

Comunidades pobres mostram resistência e capacidade de atuar de forma articulada no enfrentamento da crise, escrevem pesquisadoras do Crisp

“Vão precisar cremar o pessoal. Vi que estão fazendo isso lá na Itália, porque não tem mais lugar para enterrar todo mundo. Isso sempre foi coisa de rico, então o pobre agora vai ganhar uma cremação de brinde.” Quem fala é “seu Paraíba”, borracheiro que há décadas garante atendimento 24 horas em um bairro da periferia de Belo Horizonte.

Em sua garagem, do alto de seus 70 e poucos anos, “seu Paraíba” exerce com gentileza e habilidade o ofício que o fez um dos profissionais mais conhecidos da região. Na manhã de 27 de março, ele proferiu essa fala em meio a irônicas gargalhadas. O tema era o novo vírus, o medo, a morte e a sua fé de que “nada acontece se não tem que acontecer”. Reflexões de quem fala de um lugar muito específico e nada privilegiado: o de trabalhador da periferia.

Até então, o senso comum dizia que a Covid-19 era democrática, já que não distinguia ricos e pobres. Entretanto, a primeira vítima fatal no Rio de Janeiro foi uma doméstica, que trabalhava na zona sul da capital, mas residia na periferia. Ainda que o vírus não seja seletivo, as suas formas de transmissão, assim como o risco de adoecimento e morte, são potencializadas pela vulnerabilidade socioeconômica. Longe de evidenciar uma condição democrática, a pandemia escancarou, no Brasil, as desigualdades e o descaso do Estado.

À medida que se espalha pelo território nacional, a Covid-19 atinge cada vez mais as entranhas das cidades. Nesses territórios periféricos, a maioria dos residentes é pobre, negra e, além de sujeita à segregação espacial, está em posições de baixo prestígio social ou atrelada a relações de trabalho precárias, sem garantia de renda (como é o caso dos trabalhadores informais). Ficar em casa é a certeza da fome – fantasma que volta a assombrar o país. Sair para trabalhar aumenta o risco de infecção. Entre o certo e o duvidoso, não há opção senão arriscar.

Nas periferias reside a população mais vulnerável à perda dos rendimentos, o que é apontado pela terceira rodada da pesquisa Termômetro da crise: Covid-19, realizada pelo Instituto Olhar, a Netquest e o Crisp-UFMG. Entrevistados de famílias mais pobres (até cinco salários mínimos), que geralmente vivem às margens geográficas ou sociais, são maioria entre aqueles que perderam renda após o início da crise.

Ficar em casa é a certeza da fome – fantasma que volta a assombrar o país. Sair para trabalhar aumenta o risco de infecção. Entre o certo e o duvidoso, não há opção senão arriscar.

As dificuldades são muitas, e, em alguns momentos, a sobrevivência de quem reside na periferia parece ser impossível. Nesse ponto, entra em jogo a capacidade de resistir, de atuar de forma articulada e, em certa medida, de autorregulação ante a negligência do Estado, que manifesta toda sua indiferença com um simples “e daí?”.

Essa é a expressão da necropolítica, conceito desenvolvido pelo filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe, segundo o qual o auge da soberania estatal está na possibilidade de ditar quem deve viver e quem deve morrer, mesmo porque já não há planos e estratégias de saúde, saneamento, abastecimento, transferência de renda, enfim, de condições de humanidade na pandemia para a periferia. Assim, os moradores de bairros pobres e favelas do Brasil não têm outra alternativa a não ser reinventar modos de sobreviver, mobilizar e resgatar certa “ordem” no cotidiano movimentado pela privação econômica e pelas violências do Estado.

Em muitas frentes de pesquisa do Crisp-UFMG, principalmente no monitoramento e avaliação do programa Fica vivo!, temos observado iniciativas dessas comunidades para gerenciar crises ligadas à violência interpessoal e institucional. Na crise do coronavírus, temos percebido, por meio de pesquisas em andamento, que os mesmos mecanismos operam para minimizar os efeitos da pandemia.

O contraditório é notar que a força da periferia emerge da sua principal suscetibilidade, ou seja, de uma gestão pública que naturaliza a dor do óbito e que, na omissão, acaba por determinar quem vai morrer.

“Chefes de rua” se dispõem a acompanhar a saúde dos vizinhos; artesãos locais se juntam para confecção de máscaras; faixas e músicas com rimas e batidas de funk trazem orientações que alcançam toda a comunidade. A participação do tráfico no controle da circulação nas ruas, na suspensão dos bailes e, até mesmo, na proibição da presença de turistas nas favelas cariocas também pode ser considerada iniciativa local de autorregulação e controle da disseminação da Covid-19.

Contrariando estigmas, essas experiências confirmam que “quem vem de lá” agrega saberes e sociabilidades que se mostram eficientes em meio ao caos. Esses moradores reorganizam a suposta desorganização da área, na tentativa de torná-la mais protegida das ameaças do coronavírus e da pauperização dela decorrente. Porém, o contraditório é notar que a força da periferia emerge da sua principal suscetibilidade, ou seja, de uma gestão pública que naturaliza a dor do óbito e que, na omissão, acaba por determinar quem vai morrer. Muitos dos impactos da Covid-19 nas periferias não serão mensuráveis, assim como muitos homicídios que também se acumulam nesses territórios não são contabilizados. Tanto em relação aos crimes quanto à Covid-19, o Estado é, como sempre foi, violento no controle e leniente no cuidado.

Assim, se em meio à pandemia a periferia pergunta “quem é por nós?”, as vozes de lá respondem: “Nós, e somente nós!”. A mobilização nesses espaços tem força, é potente. Mas é insuficiente diante do tamanho do desafio. A periferia clama: “Obrigada, dispensamos o ‘vale cremação’! Queremos continuar vivos!”

Parece que o Estado não escuta. Sem políticas públicas imediatas voltadas para as áreas periféricas e mais pobres das grandes cidades, assistimos à maior tragédia humanitária do Brasil. Não há dúvida de que um dos legados do coronavírus será a atualização dos conceitos de extermínio, genocídio e necropolítica a patamares nunca antes imaginado.

Valéria Cristina de Oliveira, professora do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação, pesquisadora no Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp-UFMG) e no Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (Nupede) da UFMG

Daniely Roberta dos Reis Fleury, mestranda em Sociologia e pesquisadora no Crisp-UFMG. Diretora de Políticas de Ações Afirmativas da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis 

Ludmila Ribeiro, professora do Departamento de Sociologia da Fafich e pesquisadora no Crisp-UFMG

 

Escalada homicida, por Flávia Oliveira (O Globo)[editar | editar código-fonte]

Artigo de opinião publicado em O Globo (para assinantes), em 22 de maio de 2020.

Rio perde seus filhos para doença e para quem deveria protegê-los

Durou pouco, quase nada, o armistício na segurança pública do Rio de Janeiro em prol do enfrentamento à pandemia de Covid-19. Após a trégua extraoficial observada nas duas primeiras semanas de isolamento social, as mortes decorrentes da atuação policial retomaram a trajetória explosiva iniciada em 2018, com a intervenção federal liderada pelo general Braga Netto, hoje chefe da Casa Civil do Planalto, e intensificada no ano passado, primeiro de Wilson Witzel à frente do Palácio Guanabara. Levantamento do Observatório da Segurança RJ, projeto do CESeC, mostra que, de 15 de março (início das medidas de distanciamento) a 19 de maio, a polícia fluminense matou 69 pessoas, contra 72 no mesmo período de 2019. Se no primeiro mês da quarentena a letalidade policial caiu 82%, em abril e maio, o número de casos apavora.

Em abril, houve 30 homicídios em operações policiais, 11 a mais que um ano antes. Este mês, em 19 dias, a polícia matou 35, contra 30 em maio inteiro de 2019. A brutalidade das polícias Militar e Civil no Rio é crescente e nem a crise humanitária instaurada pelo coronavírus foi capaz de detê-la. Na segunda metade de março, o Observatório da Segurança contabilizou 26 operações na Região Metropolitana do Rio; em abril, 91; em maio, a dez dias do fim do mês, 82. Estão na conta as incursões que deram na chacina de 13 pessoas no Complexo do Alemão, na sexta-feira, 15; no assassinato de Iago César dos Reis Gonzaga, de 21 anos, segundo familiares, torturado e morto na Favela de Acari; na invasão de uma casa de família no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, que tirou a vida do menino João Pedro Matos Pinto, aos 14 anos. Ficou de fora a morte de João Vitor da Rocha, 18, alvejado numa operação na Cidade de Deus, anteontem à noite, horário incomum para incursões da Polícia Militar, realizadas normalmente nas primeiras horas da manhã.

“As operações e as mortes decorrentes de intervenção policial estão se intensificando. Os escândalos políticos e a pandemia estão desviando a atenção da sociedade para essa escalada de violência. Isso é grave”, diz Pablo Nunes, coordenador da Rede Observatórios de Segurança. Em 2018, incluindo os dez meses de intervenção federal, as forças de segurança mataram 1.534 pessoas; em 2019, foram 1.814 homicídios, recorde da série histórica iniciada em 1991. Em abril e maio deste ano, o número de vítimas fatais saltou 57% e 16%, respectivamente.

Neilton Pinto, pai do estudante João Pedro, partiu corações quando declarou que o assassinato do filho matou também toda a família. Tratou do trauma e do luto nunca contabilizado nas estatísticas oficiais. Um estudo em andamento no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tenta estimar as vítimas que sobrevivem à violência homicida no país. Somente em 2017, o assassinato de adolescentes negros de 12 a 18 anos, caso do menino de São Gonçalo, deixou 23 mil mortos em vida.

Tanto no Alemão quanto na Cidade de Deus, a escalada dos confrontos tem atravessado as ações de auxílio a famílias em vulnerabilidade, em razão da crise sanitária e econômica decorrente da pandemia. É a crueldade adicional da violência galopante. Na comunidade da Zona Norte, tanto a distribuição de cestas básicas quanto o recebimento de doações pelo Gabinete de Crise do Alemão foram interrompidos, prejudicando duas centenas de lares. Na Cidade de Deus, a entrada do blindado da polícia, seguida de tiroteio, interrompeu a entrega das cinco últimas cestas de alimentos do dia pelos voluntários da Frente CDD. Ontem também não teve expediente e 200 kits deixaram de ser entregues.

“Essa escalada é absurda e inoportuna. Precisa parar. A gente não pede que as ações da polícia terminem, mas que sejam feitas com inteligência, articulação e transparência”, defende a deputada estadual Mônica Francisco, vice-presidente da Comissão de Combate às Discriminações da Alerj, que convocou reunião de emergência para cobrar providências ao governador Witzel na tarde de quarta, com participação de representantes da Anistia Internacional Brasil e da Frente CDD.

O grupo ouviu de Witzel, governador eleito com a promessa de aplicar a lei do abate, que o poder do chefe do Executivo sobre as polícias é simbólico: “Para fins de homenagens, cerimônias, o chefe do Executivo é a maior autoridade. Mas isso é simbólico, porque o governador de um estado não dá a última palavra em operação nem pode fazê-lo”, declarou na audiência gravada.

A Defensoria Pública cobrou do Ministério Público investigação rigorosa da chacina no Alemão. A deputada estadual Renata Souza denunciou o assassinato de João Pedro às Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos. O aumento da violência policial no Estado do Rio ocorre num momento de fragilidade política do titular do Guanabara, em razão do rompimento com o grupo político do presidente Jair Bolsonaro. Witzel aboliu a Secretaria de Segurança Pública, aumentou o status do chefe de Polícia Civil e do comandante da PM e ficou sem escudo na relação com as duas áreas. Em pouco menos de um ano e meio de governo, despencaram as operações conjuntas, colateral indesejável segundo os especialistas na área. Em plena crise sanitária, a mais grave no planeta em um século, o Rio perde seus filhos para doença e para quem deveria protegê-los. É o fim.

 

A potência das cidades e das iniciativas locais, por Silvia Marina Pinheiro[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado no blog UniNômade, em 22 de maio de 2020.

O Brasil figura nas primeiras páginas dos principais jornais do mundo como a pior resposta ao COVID 19, mas ações de prefeitos, governadores, enfermeiros, médicos, escolas, universidades, centros de pesquisa e os “panelaços”, inclusive em favelas, como Vidigal, Rocinha e Paraisópolis, apontam para outro cenário. Ferramentas virtuais de financiamento são mais ágeis no atendimento de emergências do que linhas de financiamento que o governo promete e não entrega. Parcerias entre empresas e universidades para capacitação e produção de EPIs e respiradores devem permanecer após a pandemia, editais de Fundações apoiam projetos de distribuição de cestas básicas para população de rua e atraem centenas de novos voluntários, forças tarefas para produção de máscaras envolvem milhares de costureiras nas favelas e periferias de todo país[1]. Tecnologias científica e social são criadas e compartilhadas em rede, confirmando o impacto das iniciativas locais sobre as políticas transnacionais.

Redes de cidades como, Slow cities ou Cittaslow, Transition towns, Global cities free of slavery, enfatizam a autonomia das cidades atuando em redes transnacionais enquanto promotoras de transformações.  Favelas e hubs dos bairros da classe média conversam e formulam propostas de política pública com impacto sobre a desigualdade e qualidade de vida. Cidades respondem a crises econômicas e tragédias ambientais contrariando diretrizes do próprio Estado nacional. O Estado da California por exemplo, contrariou diretriz de política ambiental nacional, adotando sistema de comercialização de reduções de emissões com características particulares, participando de acordo regional sem que o Estado nacional o integre (Dickson, 2014)[3]. Em se tratando de um sistema político que admite a adoção de diferentes regulações entre entes da federação sobre um mesmo tema, esta não chega a ser uma novidade, mas no caso do Brasil sim, e é isso que se está assistindo.

Questão de legitimidade

Os movimentos sociais que estão pelas ruas hoje no combate ao Corona virus são de natureza híbrida, ou seja, fogem aos formatos conhecidos. Não são dos setores público, privado ou tipicamente do terceiro setor. Podem estar ligados a todos eles, assim como aos projetos de extensão das universidades, desde que seus propósitos não sejam alterados. A legitimidade desses grupos se firma na credibilidade junto ao público beneficiário , apoiadores, entendimento do local e de suas reais necessidades. A conquista da legitimidade não vem dos meios formais ou institucionais, mas do conhecimento que se origina da prática (knowledge experience), da transparência nas ações, compartilhamento das ideias, identidade clara e comunicação intensa com a comunidade beneficiária (Granados, 2019)[4].

O que tem em comum entre iniciativas como Ruas, Atados, Vivendas, Insolar, Vozes do Alemão, Conexão G, Cooperativa Maravilha e Arranjo da Penha[2]? Seriam a tal esquerda social, como chamou Daniel Aarão Reis em sua entrevista ao site marco zero? Certamente, elas não vêm dos grupos de esquerda, nem se originam de grandes ONGs como Viva Rio ou Afro Reggae ou de movimentos da direita. Não tem líderes salvadores da pátria, são os ‘invisíveis que todo mundo vê’, como destacou Altamir Tojal no artigo sobre renda básica publicado no site médium. Tem legitimidade para deslocar suas ações para outros territórios em parcerias com atores de ecossistemas variados, unidos pela vontade de mudar. 

O urgente olhar para o “local”

Para entender quem e o que são as pessoas e inciativas que não cabem nos formatos e estereótipos, é preciso um olhar atento para o “local”. Extrapolando a visão puramente geográfica, “local” são pessoas, culturas, identidades, agência, mobilidade e uma gama de atividades que se entrelaçam de forma pouco linear e meio caótica e em permanente transformação (Horlings et al. 2020; Broto, 2019). Estudos destacam a importância do “local” na co-criação de políticas que levam a resultados mais eficazes e sustentáveis no longo prazo (Coletti, 2020).

Guerras, tragédias e crises econômicas incandescem “o local”. É o momento do nascimento ou renascimento de práticas econômicas alternativas, empreendimentos sociais, cooperativismo, bancos éticos, redes de trocas e ocupações (Castells, 2012). Na Espanha e na Grécia pós crise econômica de 2008, a releitura sobre commons e communing foi retomada pela academia com novas tinturas entrando no discurso do ativismo. Praças ocupadas tornaram-se incubadoras de iniciativas em diversos setores. A praça Sintagma em Athenas deu espaço a farmácias e clínicas médicas sociais e centros de saúde para atendimento exclusivo de imigrantes.  A participação de voluntários de variadas formações, bancos de horas e gestão participativa eram as diretrizes das novas iniciativas. Alguns empreendimentos na área da saúde apresentaram viabilidade sendo incorporados às políticas públicas da saúde (Varvarouses & Kallis, 2016). No Brasil, existem exemplos de iniciativas na área da saúde que foram incorporados em políticas públicas municipais, como o Dr. Saúde que funciona em parceria com a prefeitura e São Paulo e o Saúde e Alegria atuando em parcerias com prefeituras de municípios na Amazônia[3].

Cidades, periferias, locais há muito que apresentam soluções para problemas sociais e ambientais. Sem líderes carismáticos, trabalhando em rede e com métodos de gestão participativa, não se adaptam as engrenagens enferrujadas dos partidos e não interessam aos movimentos retrógados e alheios a inovação.

 

Desigualdade urbana e redes de solidariedade: as periferias e favelas no enfrentamento à pandemia, no Estadão[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado noEstadão, em 25 de maio de 2020.

“O isolamento social na comunidade é uma falácia. Uma família vive em um, dois cômodos. Se uma pessoa pega, toda a família vai pegar”. Foi assim que Jabes Campos, coordenador da Rede Brasilândia Solidária, começou sua fala no 8º Encontro do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), que tratou da pandemia a partir da realidade de quem vive ou trabalha nas periferias, favelas e assentamentos precários. Suas palavras escancaram o duro cotidiano de milhões de brasileiros e brasileiras que residem nesses territórios. Em São Paulo, a Brasilândia é o bairro com maior número de óbitos (185 registrados); sendo que os 20 bairros onde mais morrem pessoas por Covid-19 são localizados nas regiões periféricas da cidade. Diante desta realidade, as recomendações oficiais de prevenção ao coronavírus parecem inapropriadas e se torna latente a necessidade de elaborar soluções mais adequadas ao modo de vida dessas populações.

A gravidade dos desafios no enfrentamento da pandemia nas periferias e assentamentos precários chama a atenção para três principais questões: (i) o histórico de ação e investimento governamental insuficiente nestas áreas, resultando em desigualdades urbanas e sociais significativas, (ii) a necessidade de pensar e implementar políticas públicas de forma integrada com  a sociedade civil local, dado o potencial organizativo e mobilizador das comunidades, que detêm legitimidade para atuação local e amplo conhecimento de seus territórios e de suas necessidades, e (iii) a urgência de incorporar o território como parte da estratégia de planejamento e implementação das políticas públicas, notoriamente, de resposta emergencial ao coronavírus.

Segundo o censo do IBGE, em 2010, 11,6 milhões de brasileiros/as viviam em assentamentos precários, correspondendo a 6% da população total do país. Dados mais recentes do IBGE  apontam que esta população pode ter aumentado em 60% na última década, visto que o número de domicílios localizados em aglomerados subnormais passou de 3,2 milhões para 5,1 milhões.

Residentes de periferias, assentamentos precários e favelas, historicamente, tiveram que arcar com múltiplas adversidades e carências cotidianas. O desenvolvimento urbano desigual lhes impôs custos: em geral, essas pessoas gastam muito mais tempo no transporte público, não contam com redes formais de abastecimento de água, coleta de esgoto e fornecimento de energia elétrica. Também vivem em condições mais precárias de habitabilidade, têm menor acesso a equipamentos públicos de educação, saúde, assistência social, cultura, esporte e lazer, além de terem menor ou nenhum acesso a serviços de telefonia e internet. Essa realidade tem efeito direto nas condições de saúde e na expectativa de longevidade dessa população, conforme aponta o Mapa da Desigualdade de 2019, desenvolvido pela Rede Nossa São Paulo.

Nessas áreas urbanas mais vulneráveis e periféricas, nas quais historicamente o investimento público é nulo ou insuficiente, há uma triste manutenção do status quo no contexto atual: “É uma continuidade de não saber lidar com esta população, que existe desde sempre”, diz Danilo Lima, do movimento Periferia Sem Corona. A despeito das conquistas alcançadas com a criação do Estatuto das Cidades e do (hoje extinto) Ministério das Cidades, vê-se que a lógica de produção excludente do espaço urbano, ao longo de décadas, associada à ausência de políticas de urbanização, apenas tem reiterado as desigualdades socioespaciais que caracterizam as cidades brasileiras, sobretudo nas regiões metropolitanas.

Esse cenário de desigualdade se acentua diante da necessidade de medidas emergenciais de combate à crise. Com a pandemia, estes homens e, sobretudo, estas mulheres passam agora a enfrentar, sem as adequadas condições, uma crise sanitária sem precedentes. É uma população que, de forma geral, sobrevive por meio do trabalho informal e que não tem condições sociais e econômicas de gerar poupança. Segundo o Data Favela, uma iniciativa do Instituto Locomotiva com a Central Única das Favelas (CUFA), estima-se que 86% dos moradores em assentamentos precários terão dificuldades de comprar itens básicos como comida e itens de higiene se ficarem sem renda por um mês e 72% não têm dinheiro guardado para enfrentar a crise pelo período de uma semana.

Diante disso e da escassa ação governamental nestas áreas, no combate ao coronavírus, residentes destes territórios têm se articulado para promover soluções coletivas de prevenção e enfrentamento à pandemia. “A base é a da solidariedade, é pobre ajudando pobre”, relata Ana Mirtes, moradora da Ilha de Deus, comunidade pesqueira de Recife. Sem a intenção de romantizar a proatividade e os laços de solidariedade existentes nesses locais, vemos que a atuação desses grupos é o que garante medidas mínimas de prevenção ao coronavírus e de apoio aos moradores. As estratégias criadas pelas comunidades são diversas e envolvem desde a compra colaborativa de testes de Covid-19, realização de campanhas de comunicação e prevenção (por meio do uso de megafones, carros de som, trio-elétricos e redes sociais), até o estabelecimento de parcerias com os agentes comunitários de saúde e profissionais da educação e assistência social. Além disso, têm se mobilizado para a distribuição de kits de higiene e cestas básicas, para  monitoramento dos casos suspeitos, para o encaminhamento à rede de saúde e para oportunidades de geração de renda.

Pedro Berto, estudante de Administração Pública na FGV-EAESP e ex-morador da Rocinha, fundou o Favela Sem Corona, uma iniciativa que viabilizou – por meio da oferta gratuita de testes de Covid-19 – um mapeamento das localidades dentro de algumas favelas cariocas onde existe maior incidência do vírus, além de atuar também em frentes de prevenção. Pedro também relata como a linguagem condiciona a interação e as capacidades de resposta à prevenção: “Não é coriza”, diz ele, “é nariz escorrendo”. “Não pode ser o termo hipertensão, mas se colocar problema de pressão alta [no formulário], a pessoa marca”.

O apoio de organizações atuantes no território, como Unidades Básicas de Saúde, escolas, associações de bairro e projetos comunitários, são fundamentais para a comunicação com a população e para a efetivação de ações concretas de resposta a crises e situações de emergência nos territórios. A Rede Brasilândia Solidária, por exemplo, tem articulado mais de 300 apoiadores. Dentre eles há moradores de Brasilândia, militantes de movimentos sociais, lideranças comunitárias, profissionais da saúde, assistência social, educação e cultura, acadêmicos/pesquisadores e representantes do poder Executivo e Legislativo local. Organizada em distintos “núcleos” ou frentes de atuação (saúde, comunicação, captação de recursos, trabalho e renda, cultura, educação, entre outros) a Rede tem atuado na distribuição de kits de higiene, de máscaras e de cestas básicas, na sensibilização da população no território, na viabilização de alternativas de complementação de renda por meio da produção de máscaras, na articulação e no encaminhamento da população às redes de atendimento das políticas setoriais, entre outras ações.

Assim como a Rede Brasilândia Solidária, outras boas práticas e iniciativas foram criadas a partir do conhecimento, reflexão e experiências de comunidades Brasil afora – e que podem ser replicadas em outros lugares. Algumas dessas ações foram mapeadas pelo Instituto Marielle Franco e estão disponíveis para consulta. Para evitar, por exemplo, aglomerações na distribuição de cestas básicas, projetos se organizam com líderes locais para fazer a distribuição dos alimentos de casa em casa, diminuindo o contato social. Em outra comunidade, moradores escrevem em cartazes, colados às portas, os alimentos e produtos de higiene que estão precisando com mais urgência, e os líderes locais distribuem a partir dessas demandas.

Apesar do aumento e da relevância dessas iniciativas, os recursos humanos e financeiros que as ações locais conseguem mobilizar são limitados e escassos e, dificilmente, conseguirão responder às inúmeras e urgentes demandas da população residente nesses territórios. Como ilustrado por Rebecca Abers e Marisa von Bülow, neste contexto de pandemia, provavelmente chegará o momento em que as doações, a solidariedade e a energia dos voluntários se depararão com limites. É, portanto, imprescindível e urgente que a mobilização social seja alavancada e complementada por transformações e melhorias da relação dessas comunidades com  o Estado.

Apesar dos esforços, há uma série de obstáculos para a atuação dessas redes em parceria com o Estado. A Rede Brasilândia Solidária aponta, por exemplo, que os editais para acessar recurso público para fazer marmitas ou máscaras ainda são muito burocráticos, e muitas organizações têm receio das formas de prestação de contas. A parceria com as UBSs para realização de testes também não foi viabilizada para que a iniciativa Favela sem Corona pudesse operar com parceiros públicos. “O desafio é que falta o poder público entender que as lideranças de movimentos sociais devem ser vistas como parceiras para a implementação de políticas públicas”, aponta Danilo.

Em suma, em tempos de pandemia, as administrações públicas deveriam considerar tanto a (i) urgência e a necessidade de promover respostas emergenciais nas periferias e favelas, que sejam multidimensionais e territorializadas, por meio de diferentes ações institucionais coordenadas e articuladas junto à sociedade civil organizada, quanto (ii) a urgência do investimento estatal nas periferias e assentamentos precários, retomando o debate sobre políticas de urbanização de assentamentos precários, na esteira de um desenvolvimento urbano mais justo, que promova o direito à cidade e articule temas urbano-ambientais de saneamento básico, mobilidade e provisão de habitação de interesse social integrada à cidade.

A aplicação de instrumentos urbanísticos voltados à concretização do direito à cidade, bem como a promoção de políticas de urbanização de assentamentos precários, têm se tornado temas cada vez mais ausentes do debate político atual, em que a pandemia apenas evidencia uma realidade que, há décadas, urge pela atuação intersetorial do Estado.

A aplicação de instrumentos urbanísticos voltados à concretização do direito à cidade, bem como a promoção de políticas de urbanização de assentamentos precários, têm se tornado temas cada vez mais ausentes do debate político atual, em que a pandemia apenas evidencia uma realidade que, há décadas, urge pela atuação intersetorial do Estado.

Este artigo foi produzido a partir dos debates do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV EAESP) coordenado pela professora Gabriela Lotta.

Morgana G. Martins Krieger – Doutora em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP e integrante do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia).

Mariana Costa Silveira – Doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, pesquisadora do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia) e técnica social da CDHU/Consórcio Morar Paulista.

Fernanda Lima-Silva – Pós-doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, integrante do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia) e pesquisadora do CEAPG – FGV EAESP.

Iana Alves de Lima – Doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, integrante do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia) e pesquisadora do CEPESP-FGV.

Silvia Ferrari Abud – Mestranda em Políticas Públicas pela UFABC, integrante do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia).

 

Pesquisa expõe a intenção de genocídio, por Maíra Mathias e Raquel Torres[editar | editar código-fonte]

Publicado 26/05/2020, no blog Outras Palavras.

Maior pesquisa sobre a covid-19 no país revela: para atingir “imunidade de rebanho” de que fala Bolsonaro, 120 mil morreriam, só na cidade de S.Paulo. Quase todos nas periferias. Leia também: porteira do ministério da Saúde aberta ao Centrão.

O VERDADEIRO 7×1

Saíram os primeiros resultados do aguardado levantamento nacional sobre a covid-19, coordenado pela Universidade Federal de Pelotas. Os pesquisadores testaram a presença de anticorpos em 25 mil moradores de 133 municípios espalhados em todas as regiões. Em um conjunto de 90 deles (incluindo 21 capitais), onde foi possível realizar mais de 200 testes, os resultados indicam que 1,4% da população já teve o novo coronavírus. Essas cidades concentram 25,6% dos brasileiros (54 milhões de pessoas), entre os quais 760 mil teriam sido infectadas. Na época dos testes, os resultados oficiais contavam 104,7 mil casos registrados no conjunto dessas 90 cidades. Ou seja: segundo o levantamento, nesses locais há sete vezes mais infectados do que o número oficial demonstra.

Isso não significa que 1,4% da população do país inteiro tenha sido contaminada, como ressaltam os pesquisadores no relatório: “Os resultados dessas 90 cidades não devem ser extrapolados para todo o país, nem usados para estimar o número absoluto de casos no Brasil, pois são cidades populosas, com circulação intensa de pessoas e que concentram serviços de saúde. A dinâmica da pandemia, portanto, pode ser distinta da observada em cidades pequenas ou em áreas rurais”. De todo modo, o levantamento escancara a subnotificação que já vinha sendo projetada em vários modelos epidemiológicos e mostra que “a contagem de casos de infecção por coronavírus no Brasil agora deve ser feita em milhões, e não mais em milhares”. Pesquisas populacionais, diz o texto, são a única forma de entender o que está debaixo do topo do iceberg. Só São Paulo deve ter 380 mil moradores com anticorpos, o que é mais do que o número de casos registrados no país inteiro atualmente.

É impressionante a diferença encontrada entre as regiões. Das 15 cidades com maior prevalência, 11 estão no Norte, evidenciando que, por lá, tanto a situação epidemiológica como a subnotificação são piores que no restante do país. No topo da lista está Breves, no Pará, que já teve quase 25% da população infectada (seriam 25 mil pessoas). Em Belém, essa taxa foi de 15,1%; em Manaus, 12,5%; em Fortaleza, 8,7%; em São Paulo, 3,1%; no Rio, 2,2%. No Sul, só Florianópolis teve prevalência maior que 0,5%. Já no Centro-Oeste, o número de testes realizados não foi suficiente para encontrar nenhum caso positivo, embora já haja casos e mortes notificados.

“Essas diferenças entre as cidades demonstram que existem várias epidemias num único país. Enquanto algumas cidades apresentam resultados altos, comparáveis aos de Nova York (EUA) e da Espanha, outras apresentam resultados baixos, comparáveis a outros países da América Latina, por exemplo”, escrevem os pesquisadores. É bom reiterar que os resultados se referem ao número de casos, e não ao de mortes – a subnotificação delas é um capítulo à parte. Aliás, observamos que as cidades com altas prevalências de infectados não são as que têm as mais altas taxas de mortes confirmadas até agora, o que é algo para se tentar entender.

Conhecer a prevalência do vírus – o que se faz muito bem com pesquisas amostrais como a da UFPel –  é importantíssimo para tomar decisões sobre políticas públicas, mas não é suficiente para conter os surtos. Isolar doentes e rastrear contatos tem se mostrado essencial nos países com boas respostas até o momento. Na verdade, o que se faz nas quarentenas é tentar isolar todos justamente diante da incapacidade de isolar só os contaminados. O diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, deu uma mensagem direta para o Brasil ontem ao falar disso. Explicou que as quarentenas não devem ser eternas, mas servem justamente para os países conseguirem parar a duras penas o avanço do vírus e ganharem tempo enquanto montam suas estratégias de testagem e rastreamento de contatos: “Sem essa capacidade, não há alternativa que não o confinamento. A transmissão não vai embora sozinha“.

Ir embora sozinha, até que ela vai… Mas ao custo de muitas vidas e só quando todo mundo se infectar – como quer Jair Bolsonaro. O que fica muito evidente na pesquisa da UFPel é que a maior parte das 90 cidades analisadas ainda está muito longe da ‘imunidade de rebanho’ defendida pelo presidente. Se São Paulo já tem mais de seis mil mortes com apenas 3,1% da população infectada, imaginem quantas mais serão necessárias para que o vírus atinja 70% em um curto prazo.

ESPERANDO O “LIMITE”

Mesmo na parte visível do iceberg, os números brasileiros não param de escancarar as falhas grosseiras do governo em relação à resposta. Já são três meses de covid-19 no país. Os casos conhecidos chegaram a 374.898. Ontem, foram mais 807 mortes, levando o total a 23,473 mil. Estamos há dois dias seguidos ultrapassando os Estados Unidos em relação ao número de mortes em 24 horas. 

Se é impossível salvar vidas sem atendimento médico, mesmo os pacientes que conseguem assistência têm um destino incerto. Nas UTIs brasileiras, morre-se muito: só um terço dos pacientes entubados se recupera. A informação é dada por um levantamento do Projeto UTIs Brasileiras, da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, feilto com coleta de dados em 13,6 mil leitos em 450 hospitais. A mortalidade de 66%, observada tanto nos hospitais públicos como nos particulares, é bem maior do que a de países como o Reino Unido (42%) e Holanda (44%). Os números isoladamente não permitem estabelecer os motivos. Mas, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, provavelmente tem a ver com precariedades nos serviços e com o uso indiscriminado de medicamentos que podem prejudicar desfechos, como a cloroquina.

MEDO DO BRASIL

Um minuto antes da meia noite de hoje, os Estados Unidos vão começar a barrar a entrada de pessoas que estiveram no Brasil nos últimos 14 dias. A data foi antecipada pela Casa Branca ‘sem explicações’. Mas quem olha para os números brasileiros entende a pressa. A decisão havia sido anunciada no domingo e, a princípio, começaria a valer a partir da próxima quinta. 

Por aqui, a notícia é claramente constrangedora para um governo que busca se alinhar a Donald Trump em tudo – e potencialmente negativa para a base bolsonarista que leva bandeiras dos EUA para suas manifestações. A ordem no Planalto é fugir de comentários a respeito e, quando for impossível, minimizar

Quem também está com medo do Brasil é o Uruguai, país menos afetado pela pandemia na América do Sul. Ontem, o presidente Luiz Lacalle anunciou o reforço de algumas medidas de controle sanitário na fronteira depois que Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, viu seus números piorarem, com duas mortes no fim de semana. O lado uruguaio da fronteira passará por 1,1 mil testes, teve a volta às aulas, marcado para acontecer 1º de junho, suspenso. E o governo uruguaio já determinou o aumento de leitos de UTI por lá. 

Questionado por uma apoiadora sobre a imagem negativa do Brasil no exterior, Bolsonaro respondeu ontem que “a imprensa mundial é de esquerda” e que “Trump sofre muito nos Estados Unidos também”. O presidente brasileiro foi criticado pelo colunista-chefe para assuntos internacionais do Financial Times, um jornal liberal. “O populismo de Jair Bolsonaro está levando o país para um desastre”, constatou Gideon Rachman. No domingo, o conservador The Telegraph alertou que Bolsonaro pode ficar conhecido como “o homem que quebrou o Brasil”.   

SEM IMPRENSA

“Escória! Lixos! Ratos! Ratazanas! Bolsonaro até 2050! Imprensa podre! Comunistas!”. Cresceu ontem a agressividade dos apoiadores do presidente em relação aos jornalistas que cobrem as aparições do presidente diante de sua claque no Palácio do Alvorada. Quem começou tudo, segundo o relato da Folha, foi o próprio presidente. “No dia que vocês tiverem compromisso com a verdade, eu falo com vocês de novo“, disse ele, pouco antes de os xingamentos do dia começaram. O problema maior é que foram retiradas as duas grades que separavam jornalistas e bolsonaristas no local, deixando um espaço entre eles. Agora, há apenas uma das grades e fita de contenção. Ontem, foi necessária a intervenção da Polícia Militar.

Com a falta de segurança, a Folha, o Globo, a Band e o site Metrópolesdecidiram suspender a cobertura jornalística na porta do Palácio. Nos últimos tempos, Bolsonaro já tinha deixado de responder às perguntas dos repórteres.

Em nota, a Associação Brasileira de Imprensa elogiou a decisão; o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e a Federação Nacional dos Jornalistas cobraram ações de proteção aos profissionais por parte do GSI e da Secom.

O ESCOLHIDO PELO CENTRÃO

O médico Marcelo Campos Oliveira deve ser nomeado nos próximos dias como secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde. A escolha partiu de dois partidos do Centrão – PP e PL – que cobiçam essa área responsável por liberar recursos para custeio de leitos em hospitais de todo o país. Durante a pandemia, a secretaria já autorizou R$ 911,4 milhões para o funcionamento, por 90 dias, de 6.344 de UTIs dedicadas à covid.

De acordo com a Folhao PL ainda tenta emplacar um nome para a Secretaria de Vigilância em Saúde. Wellington Roberto, líder do partido, teria predileção por “um aliado da Paraíba”. Já segundo o Estadão, a secretaria seria poupada pelo Planalto, a pedido de Eduardo Pazuello – ao menos por enquanto.

E o Centrão tem quadros que são pau para toda a obra… O advogado Tiago Pontes Queiroz trabalhou no Ministério da Saúde durante a gestão de Ricardo Barros (PP), no governo de Michel Temer. Agora, ele vai assumir a  Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional. O órgão tem verba autorizada de R$ 17,2 bilhões.

MAIS MILITARES

Outros 20 militares devem ser nomeados por Pazuello nos próximos dias, num total de mais ou menos 40 indicações feitas pelo general desde que pisou no Ministério da Saúde para tutelar Nelson Teich. A nova enxurrada de fardados deve  receber cargos na Secretaria-Executiva. Mas o ministro interino estaria estudando nomear um militar para o comando da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, área que analisa, por exemplo, evidências científicas sobre uso da cloroquina contra a covid-19. A SCTIE está sem comando desde a última sexta-feira (21).

FALANDO EM CLOROQUINA…

O Ministério da Saúde deu mais mostras de que, nessa gestão, sua última preocupação é com o bem-estar dos brasileiros. Ontem, a pasta confirmou que não vai fazer nenhuma alteração na nota técnica sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina. O questionamento, feito pela imprensa, veio depois do importante anúncio feito pela  Organização Mundial de Saúde que decidiu, por precaução, suspender seu teste com a hidroxicloroquina

O anúncio foi feito pelo diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, no começo da tarde e é consequência direta daquele grande estudo publicado pela Lancet que, depois de observar 96 mil pacientes com coronavírus, concluiu que quem tomou cloroquina e hidroxicloroquina não teve benefícios no tratamento da covid – e, pior: teve maior risco de arritmia cardíaca e morte do que quem não tomou

“Estamos muito tranquilos e serenos em relação a nossa orientação, a despeito de qualquer entidade internacional cancelar seus estudos com a medicação”, contrapôs Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde. Para ela, o estudo da Lancet não “entra no critério de um estudo metodologicamente aceitável para servir de referência para nenhum país” por não se tratar de um ensaio clínico, mas de uma pesquisa observacional. A secretária prefere jogar a cautela pela janela a ferir o que chama de “autonomia médica”. Além disso, afirmou que tem recebido “informações” de planos de saúde como Unimed e Prevent Sênior sobre a “eficácia” da cloroquina no tratamento da covid-19. 

Ao secretário-executivo do Ministério da Saúde falta até o verniz necessário para fingir que a pasta sabe o que está fazendo. Para o coronel Antônio Élcio Franco, o Brasil tem experiência na administração de cloroquina para “várias viroses” – o medicamento é usado para malária, doença causada não por um vírus, mas um protozoário… “Meu filho, por exemplo, pegou malária esse ano e tomou cloroquina. Eu participei de uma missão em Angola em 1996 e tomei a mefloquina que tem o mesmo princípio durante seis meses ininterruptos, diariamente”, disse à guisa de argumento na coletiva de imprensa. 

A propósito: está prometida para junho a divulgação dos resultados do estudo clínico randomizado feito pela Coalizão Covid-19 com 1,1 mil pacientes no Brasil. Em duas semanas, saem os resultados do estudo da Fiocruz feito em Manaus com 250 doentes. Ambos já estão avançados e não há por que interrompê-los depois do anúncio da OMS. Mas seguindo o princípio da precaução, a Fiocruz resolveu parar outro estudo, feito com pacientes que apresentam sintomas leves da covid-19 e são medicados com cloroquina.   

O IMPASSE DOS LEITOS

O Ministério da Saúde divulgou ontem novas orientações a respeito da construção de hospitais de campanha. Como dissemos na semana passada, quando a pasta apresentou as diretrizes para secretários estaduais e municipais de saúde, a orientação agora é que essas estruturas temporárias sejam a última opção do gestor, depois de readequação das unidades existentes e contratação de leitos no setor privado. 

Mas a solução do problema dos leitos vai muito além dessas regras – e o Ministério patina no levantamento de informações essenciais também para a calibragem da política de isolamento social. No início de abril, a pasta publicou uma portaria que obrigava hospitais a informarem sobre internações de pacientes com o novo coronavírus. A promessa era que, antes da Páscoa, os dados passassem a ser divulgados diariamente. Depois, foi renovada no começo de maio. Mas até hoje, nada. 

Ontem, G1 cobrou dos representantes do Ministério esses dados. Ouviu da secretária substituta de Atenção à Saúde uma explicação que leva à conclusão de que, quase dois meses depois da edição da portaria, o Ministério não conseguiu fazer valer a regra. Dos hospitais que têm leitos de UTI, apenas 611 de um universo de 1.322 enviaram informações ao governo. O descumprimento da regra pode acarretar multas que vão de R$ 75 mil a R$ 1,5 milhão. Mas, apesar da realidade brasileira, a pasta parece não ter pressa. 

Para complicar ainda mais, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) já tem um posicionamento sobre a requisição de leitos privados por gestores públicos para a formação de uma fila única em que todos os pacientes sejam atendidos enquanto houver vagas, independente de terem plano de saúde ou não. E ele é contrário à ideia. A agência reguladora colocou em primeiro lugar a saúde financeira das empresas para chegar a essa conclusão. De acordo com a nota técnica da diretoria de Desenvolvimento Social da ANS, os consumidores de planos seriam lesados caso precisassem de internação e precisassem enfrentar uma fila única. Isso poderia fazer com que deixassem de pagar os convênios o que, por sua vez, atingiria as empresas. Enquanto a agência projeta consequências no futuro, em várias cidades o presente já é sombrio. Essa nota técnica ainda precisa ser aprovada pela diretoria colegiada da agência.

E é hoje a votação no Senado dos projetos que preveem o uso compulsório de leitos privados pelo SUS. A sessão está marcada para as 16h.

PELO ARQUIVAMENTO

Aconteceu ontem a posse do novo titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Depois de quatro anos de excelentes serviços prestados, saiu a subprocuradora Deborah Duprat. No seu lugar, entrou Carlos Vilhena, indicado pelo procurador-geral Augusto Aras e aprovado por unanimidade no Conselho Superior do Ministério Público.  A cerimônia de transmissão do cargo acontecia normalmente. Eis que Jair Bolsonaro se colocou no meio do caminho.

O presidente acompanhava a solenidade do Palácio do Planalto. Quando lhe foi passada a palavra, já no fim da posse, Bolsonaro se convidou para ir à sede da PGR “apertar a mão” do novo subprocurador. Aras, que é responsável por apresentar (ou não) denúncia contra Bolsonaro no caso da interferência na Polícia Federal, aceitou. “Estaremos esperando vossa excelência com a alegria de sempre“, respondeu o procurador-geral. O encontro durou cerca de dez minutos e não foi acompanhado pela imprensa. 

A visita surpresa foi interpretada no Supremo Tribunal Federal como um novo ato de pressão do presidente sobre uma instituição que pode impor limites a sua atuação. Alguns ministros ouvidos pela Folha compararam o episódio à reunião surpresa pedida por Bolsonaro para Dias Toffoli, ocasião em que o presidente levou a tiracolo representantes de entidades empresariais que pressionaram pela reabertura econômica. 

“Na visão de ministros, o gesto ocorre no momento mais importante para definição do futuro de Aras, seja para seguir no cargo, seja para alçar voos mais altos e ser indicado, por exemplo, a uma vaga no STF. O entendimento é que a atuação do PGR no inquérito contra Bolsonaro será um divisor de águas na relação com o presidente. E apenas o arquivamento do inquérito deixaria Bolsonaro satisfeito com o desempenho de Aras à frente da instituição”, diz a reportagem. 

No final do dia, Jair Bolsonaro divulgou uma nota pública em que pede pelo arquivamento do inquérito. O texto foi escrito por sugestão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo. “É momento de todos se unirem. Para tanto, devemos atuar para termos uma verdadeira independência e harmonia entre as instituições da República, com respeito mútuo”, diz a nota. O presidente planeja ainda ligar para Toffoli e dar explicações sobre a fala de seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, que afirmou que, por ele, os ministros do Supremo iriam todos para a cadeia.

Enquanto isso, na PGR, alguns procuradores entendem que a gravação da reunião ministerial do dia 22 de abril fornece elementos para uma denúncia criminal contra Bolsonaro. Mas ninguém se arrisca a dar um palpite sobre qual será a decisão de Aras, considerado pelos colegas um “outsider” por, antes da nomeação, não ser muito conhecido nos altos círculos do MPF. Mas os procuradores também acreditam que o presidente acabará sendo denunciado ao Supremo. “Se o Aras não fizer nada, algum governador vai entrar com queixa-crime, por meio de uma ação penal privada ou algo do tipo”, afirmou ao Valor um membro da PGR.

NO TSE

Ontem, Luís Roberto Barroso tomou posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ministro do Supremo fez um discurso cheio de recados para o governo federal. Segundo ele, “o ataque destrutivo às instituições, a pretexto de salvá-las, depurá-las ou expurgá-las” já provocou “duas longas ditaduras” na história brasileira. “É preciso armar o povo com educação, cultura e ciência”, disse, em clara referência à sanha armamentista demonstrada pelo presidente no vídeo do dia 22 de abril. 

No TSE, estão oito ações que pedem a cassação dos mandatos e a inegibilidade de Bolsonaro e Hamilton Mourão. Duas delas, apresentadas por Guilherme Boulos e Marina Silva, devem ser pautadas por Barroso. Elas versam sobre um ataque hacker à página do Facebook “Mulheres Unidas contra Bolsonaro” que foi alterada por criminosos para “Mulheres com Bolsonaro #17” e notam que, após a ação,  então candidato compartilhou um print da página e agradeceu a consideração das “mulheres de todo o Brasil”. Para o ministro Og Fernandes, relator da ação, não há provas de que Bolsonaro participou da autoria ou sabia do ataque cibernético. As seis ações restantes também são relatadas por Fernandes, que ainda não liberou nenhum parecer. 

FORTE RESISTÊNCIA

Os ministros do STF só concederam 6% dos habeas corpusde presos que recorreram para sair da cadeira durante a pandemia, de acordo com um levantamento feito pela Folha. Foram tratados com rigor até mesmo casos em que foram apresentados atestados médicos comprovando riscos à saúde dos detentos. Isso mostra que o Supremo está deixando a análise desses pedidos para os juízes e tribunais de instâncias inferiores, contrariando as sugestões do Conselho Nacional de Justiça para conter os surtos nos presídios.

E por falar em STF, o teste do presidente Dias Toffoli para o novo coronavírus deu negativo. Vai ser refeito.

SOBRE AS OPERAÇÕES

Já falamos aqui sobre como as operações policiais em favelas no Rio não estão em quarentena, e sobre as mortes e o terror que têm sido provocados. Na sexta, o Ministério Público Federal pediu ao diretor-geral da Polícia Federal, Rolando Alexandre de Souza, que a polícia faça operações apenas em “casos de extrema urgência”, embora não esteja claro que tipo de caso configuraria essa exceção. A 7ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que cuida do controle externo da atividade policial, já tinha cobrado informações da PF sobre a operação em  que um adolescente de 14 anos foi morto na casa da família onde estava.

Por fim, o governador Wilson Witzel (que foi eleito prometendo ‘atirar na cabecinha’ de supostos ‘bandidos’), foi levado a selar um acordo com entidades de direitos humanos, definindo que as operações não vão poder ser realizadas durante a pandemia, ou “pelo menos terão que ser evitadas”, segundo o Globo.

A propósito: em Belém, um PM está sendo investigado por atirar contra crianças e adolescentes que furavam o lockdown na última sexta.

RUMOS ERRADOS

O governo brasileiro já pediu 20 vezes mais dinheiro para agências internacionais este ano do que em 2019. Já foram solicitados mais de US$ 4 bilhões (o equivalente, hoje a R$ 22,6 bilhões)  a instituições como o BID e o BIRD, enquanto até o ano passado essas tomadas eram pequenas e pontuais. O principal destino são medidas para mitigar a crise gerada pela pandemia e pelas quarentenas – 43% são para pagamento do auxílio emergencial. É que o governo prefere aumentar a dívida em dólares do que aumentar a feita no mercado doméstico. Dá pra prever um futuro bem catastrófico… Mas não para José Franco de Medeiros Morais, subsecretário de Dívida Pública do Tesouro: “Do ponto de vista da dívida, são empréstimos baratos”, garante.

Se a economia vai mal, definitivamente não se pode colocar a culpa só nas quarentenas. Abrir o comércio e os salões de beleza não ia trazer prosperidade nenhuma de volta com pessoas morrendo aos milhares. Ademais, para analistas ouvidos pelo Estadão, a postura catastrófica do governo brasileiro frente à pandemia tem afastado investidores, e não é coincidência que o real seja a moeda que mais se desvalorizou no mundo este ano. “Investidores gostariam de ver o governo no comando da situação. Temos visto o confronto entre o Executivo (federal) e governadores, assim como discussões com o Congresso sobre os estímulos, além de mudanças ministeriais que aumentam as dúvidas sobre a capacidade do governo de continuar com reformas estruturais”, diz Martin Castellano, chefe da seção de América Latina do Instituto de Finanças Internacionais. O economista Armando Castelar, do Ibre/FGV, é mais direto: investir no Brasil agora seria como “correr para um prédio em chamas”. 

Apesar disso, o vídeo da reunião ministerial agradou a alguns, pela manifesta vontade do governo em avançar em “reformas” prometidas na campanha: reduzir o tamanho do Estado, avançar nas privatizações, atrair capital privado. Mesmo em relação a isso, porém, ficou a dúvida sobre a real capacidade de cumprir com a agenda de maldades.

NAS FACULDADES

A combinação de famílias empobrecidas e aulas presenciais canceladas fez com que em abril deste ano a evasão no ensino superior privado subisse 32,5%, e a inadimplência, 70%, comparando com o mesmo período de 2019. Mesmo nos cursos a distância a taxa cresceu. E quem deve vai pagar essa conta são os professores: “Se continuar nesse ritmo de crescimento, 21% das instituições não vão conseguir pagar a folha de pagamento em junho”, diz ao Estadão o diretor-executivo do Semesp, que representa 708 instituições de ensino superior brasileiras. No limite, 30% das instituições podem fechar as portas até o fim do ano.

O setor pediu ao MEC que amplie o número de vagas para o Fies e para o ProUni para tentar conter o abandono de parte dos estudantes, mas ainda não há resposta. O que o Ministério já fez, sim, foi ampliar a oferta de educação a distância no ensino superior público.

UMA ONDA, VÁRIOS PICOS

A OMS acredita que países podem viver em breve novos picos de covid-19 antes de uma segunda onda. “Quando falamos sobre uma segunda onda, o que geralmente queremos dizer é que haverá uma primeira onda da doença por si só, e depois reaparecer meses depois. E isso pode ser uma realidade para muitos países dentro de alguns meses. Mas também precisamos estar cientes do fato de que a doença pode aumentar a qualquer momento. Não podemos fazer suposições de que, apenas porque a doença está em declínio, ela continuará em declínio e ainda temos alguns meses para nos preparar para uma segunda onda”, alertou Michael Ryan, secretário-executivo do organismo. O alerta foi para regiões que estão relaxando o isolamento: é preciso que mantenham suas medidas de vigilância do vírus para identificar novos surtos antes que eles se espalhem.

A reportagem da Wired resgata o caso da Coreia do Sul, que vivenciou (e, ao que tudo indica, controlou) um novo surto depois que tudo parecia estar bem. Tanto no começo da epidemia por lá como nesse segundo boom de casos, o cerne da estratégia é um regime de rastreamento de contatos que utiliza registros de cartão de crédito e de telefone celular, além de dados de localização GPS para rastrear movimentos anteriores de indivíduos infectados. “Do ponto de vista europeu, isso pode ser aceito como uma violação excessiva da liberdade pessoal, mas o governo sul-coreano preparou uma maneira de usar essas informações para investigações epidemiológicas após a crise de MERS em 2015”, diz Jaehun Jung, pesquisador da Universidade Gachon. Junto a isso, estão os já famosos testes abundantes e com rápida análise.

Um caso que tem intrigado especialistas é o japonês. O país desde o começo chocou por não adotar medidas usadas com sucesso em outros locais, como quarentenas, e por ser um dos países que menos testaram a população. Depois de um período com a situação aparentemente sob controle, houve uma subida brusca nos casos e o país enfim decretou estado de emergência. Ainda assim, com medidas tímidas: pedidos para evitar passeios desnecessários, trabalhar em casa e observar o distanciamento social. Mas, contra muitas das expectativas, a curva foi achatada em poucas semanas e o Japão, com 851 mortos e 16 mil casos conhecidos, já anuncia a reabertura. Ninguém sabe bem o porquê disso. De concreto, o que o governo fez desde cedo foi cancelar aulas e suspender eventos com aglomerações. Uma possível chave para o sucesso está nos rastreadores de contato, mas no Japão isso acontece de forma analógica, e não baseada em aplicativos. Há pesquisadores que apontam também a possibilidade de os hábitos culturais interferirem na transmissão.

 

Por que a fila única é a saída para salvar vidas?, por PerifaConnection[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo (assinantes), e republicado no site da ABRASCO, em 05 de junho de 2020.

Medida poderia garantir atendimento digno a pacientes de Covid-19 e romper barreiras da segmentação social e racial

Em março de 2020, o estado do Rio de Janeiro registrou a primeira morte por Covid-19. Cleonice Gonçalves , de 63 anos, era trabalhadora doméstica e contraiu o vírus da sua empregadora, que voltou da Itália e estava infectada, mas não liberou para ficar em casa.

Essa situação poderia ser lida como um presságio sobre quem era como pessoas que sofriam como conseqüências anteriores da pandemia. Entretanto, o poder público e a sociedade não entendem o recado da morte de Dona Cleonice e nem mais de 30 mil vidas perdidas , muitas sem possibilidade de atendimento digno devido ao colapso do sistema de saúde de vários estados.

Nos últimos meses, o reconhecimento de necessidades de SUS (Sistema de Saúde) utiliza leitos privados para expandir sua oferta e organizar uma fila de casos para casos graves de Covid-19. O princípio defendido é de que acesso a cuidados hospitalares durante uma pandemia deve ser universal e igualitário através do SUS, independente de capacidade de pagamento, condição socioeconômica e ética-racial dos cidadãs, como prevenção prévia.

Uma proposta parte do diagnóstico de que a desigualdade e o racismo estrutural estão presentes também no sistema de saúde, que deveriam ser e para todos. Na prática, permite uma segmentação da população entre clientes de planos e seguros de saúde, cerca de 22% da população brasileira, maioria branca, alta escolaridade e trabalho formal, e a parcela que usa o SUS, os 78% da população, dos quais 65% são negros. Menos de 45% do gasto em saúde do Estado, e apenas 40% dos hospitais no Brasil são púbicos. O subfinanciamento e a precarização com uma alteração constitucional 95, que retirou R $ 22,5 bilhões do SUS desde 2018, muito mais que R $ 8,1 bilhões de gastos sem enfrentamento no Covid-19 pelo governo federal.

A distribuição dos leitos de UTI (unidade de terapia intensiva) também deixa claro o tamanho do problema. Apenas 48% não estavam no SUS antes da pandemia, cerca de 0,9 leitos para cada 10.000 habitantes, enquanto que para clientes de planos uma média de idade de 3,4. Ou seja, quase quatro vezes maior. Em um sistema unificado, com média de 1,5 para todos, ou com um incremento de 66% na capacidade do SUS. Manter essa situação intocada durante uma pandemia É reconhecer que algumas vidas valem mais do que outras.

A distribuição dos leitos de UTI (unidade de terapia intensiva) também deixa claro o tamanho do problema. Apenas 48% estavam no SUS antes da pandemia, cerca de 0,9 leito para cada 10.000 habitantes, enquanto para clientes de planos a média era de 3,4. Ou seja, quase quatro vezes maior. Em um sistema unificado, seria de 1,5 para todos, o que significaria um incremento de 66% na capacidade do SUS. Manter essa situação intocada durante a pandemia é reconhecer que algumas vidas valem mais do que outras.

Não existem impedimentos técnicos e jurídicos para a utilização de leitos privados pelo SUS. A contratualização, realização de editais, remuneração de prestadores e incorporação de novos leitos nos sistemas de regulação de vagas estaduais é algo realizado corriqueiramente pelas secretarias de saúde. Caso o setor privado se recuse a ceder leitos ou aderir a editais, o que tem sido frequente, a requisição administrativa de bens e serviços pelo poder público em calamidades está prevista na Constituição, na lei orgânica da saúde e na lei de emergência sanitária. A indenização justa pode ser pactuada nas instâncias gestoras do SUS, estado a estado.

A fila única seria a forma equitativa de acesso a leitos clínicos e de UTI, como já é feito para os transplantes. Pacientes que necessitassem de internação, atendidos em qualquer serviço público ou privado, seriam encaminhados —pela regulação estadual— para leitos disponíveis, considerando as necessidades clínicas.

A medida também ajudaria a organizar a rede pública, incluindo leitos municipais, federais e militares não disponibilizados para gestão unificada. Em resumo, a proposta ampliaria escala e eficiência, reduziria a fragmentação da rede, racionalizaria a utilização dos recursos disponíveis. Essa medida reduziria, principalmente, as barreiras da segregação e salvaria incontáveis vidas.

Recomendações sobre a utilização dos leitos privados e a gestão coordenada da rede foram apresentadas pelo Senado, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Justiça, Confederação Nacional de Municípios e pelo Consórcio Nordeste. A proposta tem respaldo de especialistas e instituições como Fiocruz, USP, UFRJ, UFMG, UFPE e IPEA, além de uma centena de entidades da sociedade civil e movimentos sociais. Porém são poucas as experiências concretas. No Ministério da Saúde militarizado o assunto parece tabu. Estados como Espírito Santo, São Paulo, Tocantins e Maranhão e cidades como São Paulo e Curitiba apresentaram iniciativas louváveis, mas ainda tímidas.

No Rio de Janeiro foram R$ 845 milhões destinados a hospitais de campanha que não ficaram prontos. Com uma diária hipotética de R$ 2.500, acima dos R$ 1.600 pagos pelo Ministério da Saúde e dos R$ 2.100 acordados com prestadores em São Paulo, a contratação de todos os leitos de UTI privados do estado custaria R$ 210 milhões mensais. Isso teria evitado a fila de centenas de pessoas esperando atendimento que persiste há semanas, situação que se repete em diversos estados.

Apesar do conteúdo ético e da viabilidade, a proposta vem sendo questionada por setores empresariais e pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Os argumentos são que ela aumentaria a inadimplência dos clientes de planos e a insegurança jurídica, inviabilizaria o cumprimento de contratos e realização de outros tratamentos, além de trazer risco sistêmico e caos para as empresas. Alega-se que hospitais privados também chegariam a uma alta ocupação.

Entretanto, a própria ANS mostra em boletim que as receitas das empresas não foram afetadas pela pandemia, nem a inadimplência e a sinistralidade. O que diminuiu foram despesas e taxa de ocupação hospitalar: 51% com a Covid-19 e 47% com outros agravos. Mesmo assim, o lobby empresarial busca barrar a fila única, mascarar suas insuficientes contribuições e a falta de transparência sobre o que se passa nos leitos de UTI privados.

O caos é a manutenção da segregação socioeconômica e racial a despeito da calamidade e das necessidades coletivas. O risco sistêmico são pessoas morrendo sem serem atendidas. A ineficácia é que a mortalidade por Covid-19 de um homem negro e de baixa escolaridade seja quase quatro vezes maior que a de um branco com ensino superior, segundo dados da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

O colapso também é ético e moral quando se esgotam recursos do SUS e existem leitos privados ociosos. Que ao menos este debate nos ajude a desnaturalizar as desigualdades em saúde e desnudar as políticas e forças sociais que impedem que nosso sistema de saúde seja de fato único e para todos. Pois as vidas que já se foram não voltarão.

Anielle Franco é professora de jornalismo e inglês pela Universidade da Carolina do Norte (EUA), graduada em letras pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e diretora do Instituto Marielle Franco.

Bernadete Pérez, professora da UFPE, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e membro da Rede Solidária em Defesa da Vida de Pernambuco.

Fabiana Pinto é graduada em Saúde Coletiva no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), articuladora de Mulheres Negras Decidem e da campanha Leitos para Todos.

Leonardo Mattos é sanitarista, pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ e membro da campanha Leitos para Todos.

 

Sobre racismo estrutural no Brasil, por Alexandre Magalhães[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz), em 11 de junho de 2020.

Nas últimas semanas estamos acompanhando a repercussão mundial da onda de protestos em diferentes cidades dos EUA em decorrência do caso George Floyd, um homem negro asfixiado até a morte por um policial branco de Minneapolis enquanto seus colegas assistiam à cena macabra sem nada fazerem. Enquanto era morto, Floyd repetia uma frase que vem ecoando nos protestos e mundo afora: “não consigo respirar”.

No Rio de Janeiro, no dia 18 de maio, o adolescente João Pedro Mattos Pinto, de apenas 14 anos, foi morto dentro de casa durante uma operação conjunta realizada pelas polícias Federal e Civil na região do Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do estado.

No último dia 2 de junho, na cidade de Recife (Pernambuco), Miguel Otávio Santana da Silva, de apenas cinco anos, caiu do nono andar do prédio onde a sua mãe trabalhava e morreu momentos depois. Nesse instante, sua mãe estava passeando na rua com o cachorro da patroa, que supostamente teria ficado responsável pelos cuidados da criança.

No cenário da pandemia, os últimos dados têm demonstrado não somente que o novo coronavírus vem se espalhado por favelas, periferias e interiores, mas atingido principalmente a população negra. Hoje, no Brasil, a proporção de mortos entre pessoas negras é maior do que entre as brancas.

O que todos esses fatos têm em comum? Qual a linha que os conecta de alguma forma? O que eles dizem sobre nós, enquanto sociedade?

Historicamente, é possível afirmar que as pessoas negras são os alvos preferenciais das polícias, assim como são as que se encontram mais expostas a infecções e contaminações de todos os tipos. São também a maioria entre os desempregados, subempregados e no trabalho informal.

As denúncias e notícias relacionadas tanto aos casos de violência policial quanto aos cuidados que dizem respeito aos impactos do novo coronavírus, bem como a morte do menino Otávio nos revelam algo acerca do racismo estrutural, institucionalizado e culturalmente enraizado que organiza as relações sociais no Brasil.

Revelam também como a escravidão ressoa ainda hoje em múltiplos domínios, desde relações interpessoais até medidas governamentais mais amplas (como aquelas relacionadas à ação da polícia e de combate à pandemia). O racismo estrutural e institucionalizado regula práticas, estabelece relações, conforma subjetividades e produz as condições de vida e morte de uns e outros.

No caso da violência policial, considerando os dados oficiais do primeiro semestre de 2019 no estado do Rio de Janeiro, 80% dos mortos pela polícia eram negros, em sua maioria homens, jovens e moradores de favelas. Em pesquisa realizada na PUC-Rio, segundo os dados oficiais consultados, chegou-se à conclusão de que pessoas negras de baixa escolaridade morrem quatro vezes mais pela covid-19 do que pessoas brancas com ensino superior. Mesmo quando se leva em consideração a mesma escolaridade, negros e negras apresentam uma proporção de mortes 37% maior em relação aos brancos. Atualmente, em plena subida da curva de contágio, pessoas negras correspondem a 57% dos mortos pelo novo coronavirus enquanto os brancos 41% (segundo dados do Ministério da Saúde).

O racismo estrutural e institucionalizado regula práticas, estabelece relações, conforma subjetividades e produz as condições de vida e morte de uns e outros

Estamos aqui lidando com uma exposição contínua dos corpos negros à morte. De um lado, no caso da ação policial, para que a maquinaria de guerra funcione (com a justificativa da chamada “guerra às drogas”) é fundamental a construção de uma alteridade radical, territorializada e racializada. No cenário das grandes cidades brasileiras, esse Outro da cidade, a imagem do medo, localiza-se no corpo favelado (em sua maioria negro). Um corpo que precisa ser supliciado e, no limite, exterminado para que uma determinada ordem (violenta e desigual) se reproduza. 

De outro lado, é visível que os impactos do novo coronavírus não são os mesmos em todos os lugares e para todas as pessoas. Diferenças de geração, classe, gênero, raça e lugar de moradia demarcam as possibilidades de cuidado e de acesso aos serviços médico-hospitalares (e também assistenciais), já que tanto aquelas possibilidades quanto o acesso a estes serviços são distribuídos desigualmente tendo em vista recortes raciais e de classe.

É notório também, de acordo com inúmeros levantamentos, que a população negra é aquela que habita áreas com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com maior número de pessoas morando em um mesmo domicílio, onde o saneamento básico é precário e o acesso a serviços de saúde limitado.

Em relação a estes últimos, segundo pesquisa do Ipea, 67% das pessoas negras dependem do Sistema Único de Saúde, o mesmo sistema que vem sofrendo com desfinanciamento e sucateamento cada vez mais acelerados nos últimos tempos. Ou seja, o desfinaciamento e o sucateamento atingem diretamente a população negra e por isso podem ser considerados uma das manifestações institucionais do racismo estrutural e da violência estatal direcionada a esta população. Além disso, essa população é a que mais sofre com o desemprego, especialmente as mulheres negras, nesse momento da pandemia.

Reconstruir muito brevemente o cenário de vida da população negra no Brasil nos aponta para a consideração de uma experiência que se dá no limite da existência, de uma vida constantemente exposta, vulnerável, asfixiada e sufocada

Diante de um cenário como esse, como garantir que pessoas negras, em geral moradoras de favelas e periferias, fiquem em casa quando para boa parte delas a possibilidade de obtenção da renda que sustenta suas famílias depende da circulação pela cidade? Elas representam uma multidão de trabalhadoras domésticas, informais, camelôs que precisam se movimentar para conseguir o pão de cada dia.

Quando observamos os casos de violência policial, a incidência da Covid-19 entre as pessoas negras e o trabalho precarizado em meio à pandemia podemos ter uma ideia de como operam os mecanismos de precarização e de exposição das vidas negras em uma sociedade extremamente desigual, hierárquica, racista e violenta. Enquanto alguns conseguem se cuidar e evitar o contágio, outros precisam sair de suas casas na periferia, levar seus filhos (que não têm onde ficar) para trabalhar nas áreas nobres. E correr o risco de ver o seu filho, por negligência, morrer ao cair do 9° de um prédio de luxo. Ou se sentir a salvo do avanço do coronavírus dentro de casa numa comunidade, mas não das balas das armas dos fuzis das polícias.

Essa configuração nos traz novamente para a frase símbolo dos protestos nos EUA: “não consigo respirar”. Reconstruir muito brevemente o cenário de vida da população negra no Brasil nos aponta para a consideração de uma experiência que se dá no limite da existência, de uma vida constantemente exposta, vulnerável, asfixiada e sufocada. Sufocada literalmente nas mãos da polícia, mas também em função das precárias condições de moradia, de acesso à trabalho, à saúde, assistência social e também pelo não reconhecimento de sua humanidade. Tratados como quase humanas ou simplesmente como não humanas (em geral são animalizados, o que historicamente justifica a ação violenta por parte do Estado), as pessoas negras insistem em (r)existir (existir, reexistir, resistir), tomando um último fôlego e gritando: vidas negras importam!

*Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS e Pesquisador do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

 

Favelas brasileiras como zonas de sacrifício no combate ao novo coronavírus, por Gilson Macedo e Cláudio Oliveira[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no jornal Brasil de Fato, em 11 de junho de 2020. 

pandemia do novo coronavírus (covid-19) provocou uma profusão de debates acerca da relação ser humano-ambiente, modos de produção de riquezas, desigualdades na distribuição e, também, sobre o papel dos Estados em meio à emergência sanitária, que possui reflexos diretos na economia e na empregabilidade, dentre outros aspectos. Porém, ainda que a pandemia seja global, não atinge a todos da mesma forma.

Inicialmente, a covid-19 atingiu países mais desenvolvidos, com maiores recursos para testagens em massa e cuidados médico-hospitalares.

Ao chegar aos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, o vírus – de fácil propagação aérea – provocou abalos graves nas estruturas de saúde, como é o caso do Brasil.

Sem testes suficientes, sem muitas possibilidades na corrida internacional por insumos, o Brasil se vê, atualmente, em um blackout estatístico, testando em baixa quantidade, com um número crescente de mortos e sem muito estímulo ao distanciamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

No Rio de Janeiro - as 174 mortes por covid-19 de moradores de favelas da cidade, segundo dados reunidos pelo portal voz das comunidades até 20 de maio, ultrapassavam o número de óbitos por covid de 15 estados brasileiros registrados até aquela mesma data.

A Rocinha, com 46, e o complexo da maré, com 23, têm as piores situações. Se for levada em consideração a proporção de mortes para cada 100 mil habitantes, as favelas do Rio teriam 46,6. O estado com maior proporção de mortes por 100 mil habitantes é o Amazonas, com 36. No Rio de Janeiro, 1.393.314 pessoas vivem em assentamentos subnormais em cerca de 700 comunidades.

Em síntese: o vírus não é democrático porque contamina ricos e pobres: a covid-19 circula mais fácil em comunidades, onde as habitações são compartilhadas por duas ou mais pessoas por cômodo, por exemplo; contamina bem mais em periferias que não possuem saneamento básico nem oferta de água tratada regularmente; mata mais nas favelas que não contam com assistência médica hospitalar adequada, que não possui atenção básica de saúde com oferta de vacinação periódica; a covid-19 mata mais nas periferias.

A saída, parece-nos, é apostar nas vidas humanas e não as arriscar. Em termos práticos, como etapas para a superação da crise de covid-19 nas favelas, é necessária a adoção de um plano amplo de garantia de acesso à água, ao saneamento básico e aos serviços básicos de limpeza pública (desinfecção de vias públicas); os governos municipais e estaduais deverão garantir à população de baixa renda de cestas básicas, kits de higiene pessoal e doméstica, além do acesso universal à saúde básica e a instalação de hospitais de campanha, fortalecendo e ampliando ações no âmbito da rede pública de saúde.

Despejos e remoções devem ser cessados imediatamente (judicial e administrativamente), uma vez que há exigência de isolamento social e as residências são imprescindíveis nesse contexto, afinal, não há como fazer quarentena quando não se tem casa; nesse mesmo sentido, a população em situação de rua deve contar com um plano de habitação provisória com todos os materiais suficientes para higiene, sendo obrigação do Poder Público a sua promoção, em respeito à dignidade humana, podendo o Poder Público requisitar imóveis vazios para cumprir essa finalidade enquanto durar a emergência.

Em suma, são necessárias medidas enérgicas, rápidas e de ampla incidência para que essa tragédia não seja ainda maior. Vidas não são passíveis de recuperação, como é a economia. Reafirmar e defender que territórios marginalizados, como as favelas, tenham voz e direitos assegurados, reivindicando maior incidência de atuação pública é lutar pelo direito à cidade.

Reafirmar e defender que territórios marginalizados tenham voz e direitos assegurados é lutar pelo direito à cidade.

*Gilson Santiago Macedo Júnior é advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Pós-graduando em Direito Ambiental e Urbanístico pela UniAmérica. Conselheiro da Regional Nordeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. E-mail: gilsonsantiagomjr@gmail.com.

**Cláudio Oliveira de Carvalho faz estágio de pós-doutorado em Sociologia Urbana pela Universidade Federal da Bahia. Doutor em Desenvolvimento Regional e Urbano pela Universidade Salvador. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos. Professor Adjunto de Direito Ambiental, Urbanístico e Agrário da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: ccarvalho@uesb.edu.br.

 

Jovens da periferia no centro da cena política, por Helena Abramo[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Teoria e Debate, em 12 de junho de 2020.

Possivelmente esses jovens reagem aos ataques à democracia, aos desatinos no enfrentamento da pandemia, às políticas de morte do governo, porque estão no centro das contradições mais agudas do momento.

Uma parte significativa do debate político nas últimas semanas tem girado em torno das manifestações de rua contra o avanço do fascismo: a manifestação do dia 30 de maio convocada pelas torcidas de futebol, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a grande mobilização que ocorreu em várias cidades do país no domingo seguinte, 7 de junho, puxada novamente pelas torcidas organizadas e por movimentos de perfil popular como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

A polêmica se deu principalmente sobre a necessidade e oportunidade de fazer manifestações de rua nesse momento tão crítico, pela tensão política extremada (pelo risco de dar pretexto para a convocação de uma intervenção militar) e pelo perigo de propagação do coronavírus pela aglomeração nas ruas; e, agora, pela surpresa quanto ao perfil dos protagonistas, diferente daqueles que normalmente lideram e integram as manifestações de oposição (partidos de esquerda, centrais sindicais, movimentos sociais com redes e lideranças socialmente reconhecidas).

Neste artigo eu gostaria de contribuir com o segundo ponto do debate, que está em curso nesses dias, sobre quem são os protagonistas desses atos e como isso afeta ou pode afetar outros atores do campo da oposição.

As notícias sobre as manifestações do dia 7 de junho chamam a atenção para o fato de que foram compostas majoritariamente por jovens das periferias, negros, trabalhadores de aplicativos, ativistas de coletivos de resistência e luta democrática, ampliando, mas na mesma configuração social, o espectro dos que participaram dos atos do domingo anterior, integrantes de torcidas organizadas. Os comentários feitos saúdam, com certo tom de surpresa e admiração, a “entrada em cena” da juventude dos setores populares na luta pela democracia, louvando também sua coragem e disposição, contrapondo-a à “imobilidade” dos atores institucionalizados da oposição1.

É bem-vinda essa surpresa positiva com o perfil dos que saíram às ruas. É muito bom que as pessoas estejam descobrindo que os jovens da periferia são atores importantes da sociedade brasileira; que eles têm consciência política, que se organizam e se manifestam. É muito importante que se reconheça que muitos desses jovens têm uma visão crítica da sociedade, uma posição contrária ao governo atual, contra a violência policial e outras violências que se abatem cotidianamente sobre seus corpos, como o racismo e o sexismo, assumindo agora uma posição claramente antifascista.

Mas isso não é de hoje; faz muito tempo que os jovens das periferias das grandes cidades do país se organizam, se manifestam e lutam contra essas violências. Isso não deveria ser surpresa, a não ser para quem incorporou certas análises apressadas que concluíram que a periferia se tornou, em bloco, conservadora, presa da propaganda bolsonarista e da ação das igrejas evangélicas. Ou que a juventude, beneficiada por políticas de inclusão, desenvolveu apenas aspirações de classe média e passou a defender valores neoliberais, como o mérito e o espírito empreendedor. Então, quero acrescentar uma pergunta a essa reflexão: Estamos reconhecendo sua presença, enxergando a singularidade dos seus corpos nas manifestações, mas estamos ouvindo sua voz? Estamos enxergando também as bandeiras que eles carregam?

A tentativa de compreender as bases do avanço da direita, desde 2013, ensejou a realização de importantes pesquisas e reflexões que mostraram a disseminação de valores e pensamentos desse espectro na população brasileira, inclusive nos setores populares. Muitas dessas pesquisas ressaltaram o papel de organizações religiosas (como algumas igrejas evangélicas neopentecostais) e redes de opinião articuladas a partir de influenciadores digitais que disseminam tais valores e posicionamentos, descortinando um mundo até então desconhecido para partidos e organizações de esquerda. Contudo, muito da reflexão que se fez a partir desses desvelamentos se transformaram apressadamente em assertivas generalizadoras de que “as periferias” tinham se tornado conservadoras, seu imaginário irremediavelmente preso aos símbolos e valores da direita, base irrefletida do bolsonarismo.

A compreensão desses elementos é muito importante para o entendimento da atual conjuntura, mas não pode ofuscar a existência de outras realidades, ideias, valores e visões de mundo, tão fortes e pujantes quanto aquelas, e que sinalizam na direção contrária, a da afirmação da diversidade, da solidariedade, da necessidade de lutar e resistir contra as desigualdades e violências que pontuam desde sempre o cotidiano dessas populações, e que se articulam contra o racismo e contra a repressão policial.

Então, é importante que esses jovens se façam visíveis no centro da cena política. E também que se reconheça que eles têm formas de se organizar, de expressar sua visão de mundo e se manifestar, um modo de fazer política, de convocar para a luta, diferente daqueles reconhecidos pelos partidos de esquerda ou pelos movimentos sociais mais consolidados. Isso também não é de hoje. Há tempos esses mesmos partidos e movimentos identificam o distanciamento e se perguntam como podem estabelecer conexões, fazer pontes, “voltar às bases”, para incorporar esses atores em suas estruturas ou frentes de mobilização.

Sem nenhuma condição de realizar uma análise dessas relações, gostaria apenas de fazer um alerta: evitar colocar esses atores em um campo oposto ao da esquerda e da tradição dos movimentos sociais, porque isso não é verdadeiro. Seus integrantes partilham experiências e repertórios com os movimentos sociais, com os partidos de esquerda e ao mesmo tempo com associações e organizações comunitárias de variados tipos, entre elas organizações religiosas dos mais diferentes matizes, inclusive as evangélicas neopentecostais, tanto quanto as de matriz africana.

Esses jovens se formam e formam seus pensamentos e valores, na escola pública, que frequentam, agora, pelo menos até o ensino médio e, em parcela significativa, até a faculdade, passando pelos cursinhos populares. Formam seus valores, pensamentos e vínculos, evidentemente, na família, nas igrejas e na “comunidade”, o que envolve tanto as relações de vizinhança quanto a “cultura de rua” e associações comunitárias, de autoajuda e prática solidária. Também se relacionam com as entidades assistenciais e ONGs que desenvolvem trabalhos de suporte para sua formação e inclusão social; com as pastorais juvenis de diferentes igrejas; e ainda com os movimentos por moradia, saúde, educação, pelo uso do espaço público, presentes nas periferias (não, eles nunca deixaram de existir). Aprendem a se organizar e se manifestar coletivamente nos grupos por afinidades, como as torcidas de futebol, as rodas de capoeira e outras práticas de autodefesa, os grupos culturais, o hip-hop, os inúmeros coletivos culturais, os saraus, os slams, os cineclubes; e também nos movimentos estudantis, secundarista principalmente, que também demonstram um novo perfil social e formas de manifestação, com as revoltas das catracas e as ocupações das escolas...

Os temas, os valores, as formas de organização e as bandeiras da esquerda não são estranhos a esses atores juvenis das periferias. O contrário é que, infelizmente, parece ser verdade. Apesar de ver, porque há mais de uma década eles nos mostram, muitos de nós não enxergam que eles formam coletivos com pautas e modos de organização e expressão muito potentes, embora diferentes daquelas consolidadas no campo dos partidos e movimentos de esquerda2. Não é à toa que eles se mantêm críticos e com distanciamento com relação a essas instituições, não por discordarem de suas pautas, mas porque as suas pautas e modos de ser e fazer continuam não sendo incorporados pelos partidos e movimentos; muitas vezes são até, mesmo, desqualificados, minimizados ou no máximo ironicamente tolerados. Isso também não é de hoje. Há muito tempo existe essa tensão.

Então por que a sensação, real, de novidade, de que essa presença nesses últimos acontecimentos coloca um fator novo na cena política do país? A novidade não é o posicionamento político, radicalmente crítico, a expressão pública de denúncias e de demandas politicamente posicionadas, nem mesmo a disposição de luta desses jovens das periferias; mas sim o fato de eles serem os principais protagonistas de manifestações nas avenidas centrais da cidade e com toda a mídia noticiando, de um modo relativamente positivo. Tanto a mídia conservadora como a alternativa reconheceram o protagonismo desses jovens na luta por democracia, reconhecendo-os como atores políticos, com uma luta organizada e com bandeiras explícitas, e não como indivíduos desorganizados, sem bandeiras e sem lideranças, massa de manobra de interesses escusos, ou pior, vândalos que fazem as manifestações políticas transformarem-se em desordem.

E esse é um fato político importante, que exige mesmo muita reflexão.

Por que foram eles os principais protagonistas? Em grande medida porque partidos de esquerda e centrais sindicais não estavam presentes, pelo menos não como convocadores e organizadores, por receio da pandemia e das possíveis repercussões aventadas de endurecimento da repressão; não quero entrar na polêmica sobre a oportunidade ou não das manifestações nesse momento e não creio que avançaremos muito se ficarmos fazendo um debate sobre coragem ou covardia.

Acho mais importante pensar que talvez, além da coragem, esses jovens predominantemente negros da periferia, dos diferentes lugares que ocupam na nossa sociedade, assumiram esse papel central nas manifestações, na reação ao avanço do fascismo, aos ataques à democracia, aos desatinos no enfrentamento da pandemia, a todas as políticas de morte desse governo, porque talvez eles estejam no centro das contradições mais agudas do momento que estamos vivendo.

São eles que, desde sempre, sofrem a violência da desigualdade, que oblitera as possibilidades de inclusão; que desde o golpe têm sentido ameaçados os sonhos recentemente fortalecidos de inclusão educacional e que, na pandemia, estão reconhecendo a face mais perversa da desigualdade quando ela se atualiza pela dificuldade de acompanhar aulas e atividades educacionais pela internet porque, apesar da maioria estar conectada, o acesso e a qualidade dessa conexão ainda é profundamente mal distribuída.

São eles que, desde sempre, suportam as jornadas e cargas mais pesadas dos trabalhos desqualificados e precários, e que, agora na pandemia, se expõem às mais desumanas exploração e desproteção, como, por exemplo, os trabalhadores de aplicativos, revelando as falácias da ilusão de se engajarem como “empreendedores em uma economia moderna que preserva a liberdade e autonomia”.

São eles que sofrem cotidianamente o preconceito e a violência nos espaços públicos, tanto nas atividades de trabalho como de lazer, onde são tratados como vândalos e desviantes antes de qualquer prova, nas ruas, nos transportes públicos, nos estabelecimentos comerciais, nos shoppings e nos estádios.

São eles que sofrem desde o berço a violência avassaladora do racismo, traduzido em toda a sorte de interdições, preconceitos e aniquilamentos, simbólicos e físicos, e que transforma os jovens negros das periferias nas vítimas de um verdadeiro genocídio em nosso país, recebendo o impacto mais cruel da desumanização, como lembra Felipe Freitas, nos explicando a tese de Fanon3. Desumanização que também se agrava com a pandemia, e com a irresponsabilidade do governo de enfrentá-la, de muitas maneiras: pelo número de vítimas da covid-19 nas periferias, em função das condições de vida e moradia, que impõem dificuldades de isolamento não previstas nas orientações de prevenção oficiais, e principalmente, porque, como trabalhadores precários e sem proteção, e sem um programa de renda efetivo, não podem deixar de trabalhar e circular nos transportes públicos lotados das grandes cidades; pelo recrudescimento da violência policial que, sempre presente, cresce na mesma medida que a instalação do “autoritarismo furtivo” (apud André Singer4) em nosso país.

A crueldade que reside no descaso com a vida das crianças, dos jovens e das mulheres negras, é desvelada pela pandemia quando expõe o contraste entre, de um lado, as medidas protetivas e a importância da solidariedade e, de outro, a postura das elites e da classe média branca que não se importam minimamente em propiciá-las aos trabalhadores e prestadores de serviços com quem se relacionam.

Nesse sentido, embalados talvez pelos acontecimentos nos Estados Unidos, o estopim desse sentimento de indignação veio também pelos dramáticos casos recentes resultantes dessa violência cotidiana, que vitimaram Miguel, 5 anos, João Pedro, 14 anos, João Vitor, 18 anos,  e Rodrigo Cerqueira, 19 anos, entre tantos outros, numa lista tão extensa que é impossível enumerar. Mas como tantas outras pessoas já escreveram, esses são casos simbólicos da necropolítica atual e, apesar de serem mais alguns entre milhares de acontecimentos que se acumulam há tempo demais no país, eles detonaram uma percepção coletiva do absurdo  do racismo, um sentimento de “basta!”, do que não é mais possível tolerar, e que foi um dos principais motes para a saída dessas pessoas às ruas no último domingo, apesar de todos os riscos.

Além de saudar a postura dos jovens presentes, combativa, radical e acolher a crítica que eles fazem aos partidos, de agradecer pelo adensamento das fileiras que se dispõem a lutar pela democracia, precisamos ouvir o que eles estão dizendo e reivindicando. Temos de incorporar as suas pautas e demandas, temos de incorporar nas nossas agendas as questões que emergem do modo como eles são tratados cotidianamente no trabalho, nas instituições e no espaço público, submetidos à violência da desigualdade, do racismo e da polícia. Temos de dizer junto com eles que não é mais possível suportar a política de morte que o governo Bolsonaro leva ao paroxismo.

Vidas negras importam e têm sido dizimadas pelas instituições oficiais e extraoficiais, têm sido desconsideradas, desprotegidas, desamparadas, desumanizadas. E essa bandeira, essa luta cotidiana, também não é de agora, é de muito tempo. Há muito tempo tem sido empunhada, por diversas organizações, coletivos e movimentos, amalgamada na denúncia do genocídio da juventude negra. Mas essa bandeira continua não entrando com centralidade nos documentos e programas das frentes democráticas, e nem mesmo dos partidos de esquerda5. Se queremos mudar nossa relação e nos conectar de outro modo com esses jovens, com os atores da periferia, temos de ajudar a carregar suas bandeiras, incorporar à luta em defesa da democracia  e contra o fascismo, a pauta  antirracista, pelo fim da violência policial contra os jovens negros, pelo fim da exploração dos seus corpos jovens na exaustão de trabalhos sem direitos

Helena Wendel Abramo é socióloga, com dedicação a pesquisas e políticas de juventude, desde 1990. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

 

As periferias não conseguem respirar, por Raimundo Bonfim[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no jornal Brasil 247, em 17 de junho de 2020.

A pandemia do novo coronavírus atinge a todos, mas de forma muito mais grave a população que reside nas periferias e favelas. No país, milhões de pessoas moram de forma precária nas periferias, cortiços, ocupações e, sobretudo, nas favelas.

A pandemia do novo coronavírus atinge a todos, mas de forma muito mais grave a população que reside nas periferias e favelas. No país, milhões de pessoas moram de forma precária nas periferias, cortiços, ocupações e, sobretudo, nas favelas.As condições de vida da população que residem nessas comunidades já não eram favoráveis, mas com o advento da coronavirus passaram a ser ainda mais dramáticas, pois o contágio avança como um tsunâmi pra cima da população mais empobrecida.

Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2010, o Brasil contava com 11,4 milhões de pessoas morando em 6.324 favelas, espalhadas em 322 municípios brasileiros. São assentamentos precários, sem saneamento básico, com pouco ou nenhum sem acesso à água encanada, que garanta condições mínimas para prevenção e proteção contra a covid-19.Mapa divulgado pela prefeitura de São Paulo mostra que os 20 distritos com mais mortes suspeitas e confirmadas pela covid-19 são os que concentram o maior número de favelas, cortiços e conjuntos ou núcleos habitacionais. Tendo o Estado abandonado as periferias, deixando seus moradores sem acesso à direitos básicos indispensáveis à sobrevivência, como saúde, água, saneamento, moradia digna e renda. 

A omissão governamental predomina nas comunidades periféricas e a propagação em massa do vírus, tem levado à contaminação de milhares de pessoas que vivem em condições precárias e em ambientes absolutamente insalubres.Tamanha desigualdade social é resultado da falência do sistema capitalista em escala global, transformando as cidades em mercadoria, imperando os interesses do rentismo e da especulação imobiliária.  Sem atitudes firmes e concretas dos governos corremos o risco de levar à morte milhares de pessoas e ao consequente aumento da fome, miséria e desemprego. Percebe-se que ocorre nas periferias e favelas a menor adesão ao isolamento social, provavelmente por influência do discurso do presidente Bolsonaro, que tem estimulado o fim da medida. 

Outro fator que explica a baixa adesão é elevado índice de desempregados ou  de trabalhadores informais, que saem de suas casas à procura de renda.Se de um lado o isolamento social recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) tem sido a maneira mais eficaz para  diminuir, ou mesmo, evitar o aumento dos números de contaminações eo colapso do sistema de saúde, por outro, existe a preocupação de como estabelecer medidas para conter a disseminação do vírus nas comunidades mais pobres, onde moradores e vizinhos estão muito mais próximos uns dos outros, como é o caso das favelas, em que por vezes 4, 5 e até 8 pessoas  convivem num único cômodo.Pesquisa recente do Instituto Data/Locomotiva realizada em 269 favelas do país aponta que 80% dos moradores têm medo que falte comida para seus filhos, mas, mesmo assim, 71%, se opõem ao fim do isolamento. 

O levantamento revela ainda que 8 em cada 10 moradores tiveram queda de renda após o isolamento, apenas 13% têm mantimentos em casa suficiente para pelo menos dois dias e menos da metade para uma semana.Em 2 de abril, a CMP (Central de Movimentos Populares) lançou a Campanha Movimentos Contra a Covi-19. Desde então, entidades e grupos vulneráveis ligados à CMP organizaram 92 pontos de arrecadação e distribuição de alimentos e produtos de higiene e limpeza em todo o país. Já arrecadamos e distribuímos 99 mil cestas básicas, o que corresponde a duas mil toneladas de alimentos. 

Contudo, temos consciência de que nossa ação, embora seja muito importante, não é suficiente para a resolução do enorme problema social presente nas periferias e favelas.Para além do rápido pagamento do auxílio emergencial, defendemos ações urgentes de todos os níveis de governos (municipal, estadual e federal) para o enfrentamento dessa crise sanitária, econômica e social em curso, especialmente para proteger o emprego, a renda, a pequena e a média empresa.Sabemos que há muitas ações que dependem de vontade política, criatividade e articulação. Nesse sentido, os governos poderiam distribuir máscaras para a população de favelas, ocupações e cortiços, integrar ação de agentes comunitários e agentes da saúde para fazerem o mapeamento das pessoas em situação de maior risco (hipertensos, cardiopatas, diabéticos, em tratamentos oncológicos), entre outros.Abrir UBSs (Unidade Básica de Saúde) mais próximas às favelas, por 24 horas e disponibilizar linhas de microcrédito especial para os microempreendedores das favelas.

 O Estado tem a obrigação com toda a população, mas é preciso proteger de forma prioritária as pessoas mais vulneráveis moradoras das periferias e favelas.Somado à desigualdade social, a população moradora das periferias é a principal vítima do racismo estrutural, cultural e institucional, expresso na extrema violência praticada pelo braço armado do Estado: as polícias. Além do capitalismo, o racismo é fator direto da causa da desigualdade social e violência.  

Os assassinatos em massa de negros desarmados e inocentes, por parte de policiais brancos nos EUA, em outros países do mundo e, aqui no Brasil, em plena pandemia do novo coronavírus é algo que precisa de uma basta.Os casos mais recentes dos assassinatos de George Floyd no EUA, o de João Pedro e a morte do menino Miguel, infelizmente, são exemplos da morte de milhares de vítimas, abatidas todos os dias,  nas periferias e favelas do Brasil, um verdadeiro genocídio da população negra. 

Em 2017, os homicídios entre jovens negros eram quase três vezes maiores do que brancos e chegou a 185 por 100 mil, aponta estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).  Seja sufocado pela ausência de renda, condições precárias de habitação; - situação agravada com a pandemia do coronavírus - ou seja,  pelo racismo e violência policial, o povo das periferias do Brasil, assim como George Floyd, não consegue respirar.Mesmo compreendendo a importância do isolamento social como forma de evitar a propagação da covid-19, não resta outro caminho a não ser sair às ruas em luta contra o fascismo, o racismo , por melhores condições de vida e pelo afastamento do governo genocida de Bolsonaro.

 

“Você sabe que no morro não vai água na tornera” – COVID-19 nas favelas e o desafio de fazer chover, por Pâmela Carvalho[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no blog Maré de Notícias, em 17 de junho de 2020.

Em 1985 a sambista Elaine Machado cantava um morro onde “não vai água na tornera”. Em 2020 percebemos que esta realidade ainda não se modificou totalmente. Em meio a pandemia de um vírus inédito na contemporaneidade, moradores de favelas e periferias têm de conviver com a ausência de direitos básicos como água, esgoto e alimentação. 

Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) 2019, divulgada em maio de 2020 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), há  18,3 milhões de brasileiros que não recebem água encanada todos os dias em suas residências. Nas favelas e periferias essa realidade se coloca de forma ainda mais latente. A ausência de serviços e direitos básicos é crônica. 

O Conjunto de Favelas da Maré, mesmo tendo apenas um morro, também sofre com falta de água. Esta questão se apresenta ao lado de outras como vulnerabilidade econômica e financeira, e falta de investimentos em saúde e educação. Quando Elaine Machado canta “você sabe que no morro não vai água na tornera”,  são abertas duas questões importantes: a ausência de serviços básicos em morros e favelas e o fato de isto ser um dado conhecido por muitos. Inclusive por quem deveria garantir o pleno funcionamento destas frentes: o Estado. Outro trecho de “Pingueira”, traz uma mais uma face desta relação:

“Quando chove lá no morro

Tudo é festa, tudo é alegria

Tem samba tem batucada

Partido alto noite e dia

Todos cantam em verso e prosa

Rimando com filosofia”

A chuva, a água, a abundância, trazem festa, alegria, filosofia. Também trazem justiça social. Num sentido poético, entendo a “água  na tornera” como a representação de  direitos que não são plenamente garantidos em favelas. Quando o samba nos conta que não há água na torneira, ele de forma simbólica, nos diz que há uma série de direitos que não são assegurados em morros, favelas e periferias. 

Então, já que “não vai água na tornera”, por aqui estamos fazendo chover. Estamos buscando nossos direitos. Estamos vivendo o “nós por nós” em seu sentido mais visceral. Se a “água-direito” não vem de lá, ela vem de cá. Assim, organizações da sociedade civil  de favelas e moradores organizados tem “feito chover” em meio a uma pandemia. Tem lutado pela garantia de direitos e serviços essenciais.

Escrevo este artigo nos intervalos entre a distribuição de álcool em gel e cestas básicas e a recepção de doações para a Campanha Maré diz não ao Coronavírus da Redes da Maré. Mas não estamos sozinhos nesse “fazer chover” em tempos de escassez. Juntos Pelo Alemão, Frente de Mobilização da Maré, Escola sem Muros/Grupo ECO, Associação de Moradores do Morro Santa Marta, Manguinhos Solidário Contra o Coronavírus, Rolê dos Favelados, Casa Amarela Providência, Frente CDD, Morro dos Macacos pede socorro, Rocinha Resiste, Todos pelo Santo Amaro, Avante Serrinha, Suporte para Santa Cruz em tempos de COVID-19, Apadrinhe um sorriso, Movimenta Caxias e Mães da Favela são algumas das iniciativas que na ausência de ações do poder público, tem buscado a garantia de direitos em favelas e periferias em tempos de COVID.

É responsabilidade do Estado assegurar direitos à sua população. Queremos a garantia de nossos direitos. Queremos que “caia água na tornera”. Lutamos por isso. Mas enquanto ela não vem, não podemos morrer de sede. Então, enquanto a água não jorra em nossas torneiras, fazemos chover.

Pâmela Carvalho é educadora, historiadora, gestora cultural, comunicadora, pesquisadora ativista das relações raciais e de gênero e dos direitos de populações de favelas. É Mestra em Educação pela UFRJ. É coordenadora do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” da Redes de Desenvolvimento da Maré. É moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré.

 

Como a pandemia expõe a crise de moradia no Brasil, por Juliana Domingos de Lima[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal, em 29 de junho de 2020.

Reintegrações não foram suspensas e moradores de áreas precárias ficam mais vulneráveis à covid-19. Situação habitacional dos mais pobres evidenciada pela crise sanitária pede solução multifacetada, segundo pesquisadora

Cerca de 900 famílias foram removidas de um terreno em Guaianases, na zona leste de São Paulo, em uma reintegração de posse cumprida pela Polícia Militar em 16 de junho. A execução da ordem judicial partiu de uma solicitação do proprietário.

Segundo a Prefeitura de São Paulo, 4.000 unidades de moradia popular vinculadas ao programa Minha Casa Minha Vida estão previstas para ser construídas no terreno e aguardam liberação de recursos por parte do governo federal.

Em 16 de junho, quando foi executada a reintegração, a capital paulista somava mais de 105 mil casos confirmados e 5.772 óbitos por covid-19. A prefeitura afirma em nota que uma equipe de assistência social visitou a ocupação no início de junho para oferecer acolhimento às famílias e não houve adesão. No dia da reintegração, famílias instaladas no terreno afirmavam não ter para onde ir.

200.755 é o número de famílias cadastradas na fila de espera por moradia na cidade de São Paulo, segundo a prefeitura

As remoções na pandemia
Desde o início da crise sanitária, entidades e pesquisadores reivindicam a suspensão de reintegrações de posse, despejos e remoções forçadas para evitar o agravamento da exposição ao coronavírus. A suspensão chegou a ser incluída em projetos de lei federais, mas até o momento não foi aprovada, em geral por falta de avanço na tramitação.

O argumento é que as condições de moradia da população mais pobre já se caracterizam pelo adensamento e pela coabitação, que colocam pessoas com diferentes graus de vulnerabilidade ao vírus em um mesmo espaço reduzido e dificultam o isolamento. Nesse contexto, a remoção de famílias inteiras amplia a cadeia de contágio pelo vírus.

Ao Nexo, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Karina Leitão afirmou que “definitivamente não é o momento de realizar reintegrações”. Ela destacou que a suspensão desse tipo de ação se tornou uma pauta importante no mundo todo durante a pandemia.

Segundo dados levantados pelo Observatório de Remoções, projeto desenvolvido por laboratórios de pesquisa da USP e da Universidade Federal do ABC, mais de 1.900 famílias foram atingidas em pelo menos dez remoções ocorridas em todo o estado de São Paulo desde março de 2020, início da pandemia de coronavírus.

As ocupações irregulares são apenas um dos sintomas da demanda da população mais pobre por moradia nas cidades brasileiras. A forma como o novo coronavírus tem se disseminado no território urbano evidencia as desigualdades – entre elas, a desigualdade de acesso a habitação adequada. Moradores de cortiços e comunidades e a população sem teto e de rua estão entre os mais afetados pela covid-19.

O impacto da covid-19 em assentamentos precários
Há no Brasil pelo menos 5,1 milhões de moradias em condições precárias, segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em maio.

Elas integram o que o IBGE classifica como “aglomerados subnormais”, áreas caracterizadas, na definição do instituto, por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. Uma porcentagem de 7,8% dos domicílios brasileiros se encontram nessas áreas.

A estimativa de aglomerados subnormais foi feita de forma preliminar para auxiliar a coleta de dados do Censo Demográfico, adiada para 2021 devido à pandemia. A divulgação do levantamento foi antecipada a fim de auxiliar no combate ao vírus.

Ainda com base no mapeamento, quase todos os estados com os maiores índices de contágio pelo novo coronavírus no país também apresentam as maiores proporções de moradias precárias, segundo destacou uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

As condições precárias de habitação não se restringem às periferias urbanas. Em São Paulo, áreas pobres de bairros centrais que concentram cortiços, pensões e ocupações verticais possuem algumas das maiores taxas de mortes por covid-19 da cidade, superiores a 80 por 100 mil habitantes, segundo uma reportagem feita pelo canal GloboNews no fim de maio.

As disputas históricas em torno do tema
Ainda que o congestionamento habitacional (a grande quantidade de unidades por área) dificulte o isolamento dentro de casa, a professora Karina Leitão defende que assentamentos como favelas não devem ser vistos como propagadores do vírus. Para ela, quando se discute o impacto da covid-19 nessas áreas, o foco deve incidir sobre a pobreza e a precariedade.

“A forma de morar das classes populares não é a causa do problema”, afirmou. “Pelo contrário, num sistema desigual, ela é a solução. A densidade só é um problema associada ao trabalho precarizado, à falta de acesso a serviços públicos de qualidade, como saúde e transporte.”

A professora chama atenção para o histórico das políticas sanitaristas no Brasil, que classifica como “remocionistas e culpabilizadoras” dos mais pobres. Elas pressupunham a mesma inversão na qual se corre o risco de cair agora: atribuir a propagação de doenças à forma de morar dos mais pobres, e não às múltiplas fragilidades a que os moradores estão submetidos por conta da pobreza.

A forma de morar dos que não conseguem acessar o mercado formal de moradia no Brasil tem se caracterizado predominantemente pela autoconstrução – a produção de unidades pelos próprios moradores. Leitão explica que “na falta de solução estatal, renda e acesso ao mercado popular de habitação, essa tem sido a forma hegemônica de produção do espaço no país”.

O problema habitacional hoje
O alto custo da terra nas áreas mais bem localizadas e dotadas de infraestrutura das cidades tornou a moradia inacessível às classes mais pobres no Brasil.

Ao longo do século 20 e no início dos 2000, houve investimento público em programas habitacionais em geral voltados à construção de conjuntos de grande porte no país. O mais recente deles, o programa federal Minha Casa Minha Vida, vem tendo seu orçamento reduzido desde a recessão iniciada em 2014.

À plataforma Ecoa, do UOL, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik disse que, apesar das críticas feitas ao programa, ele tem sido, por anos, a única política habitacional em vigor no país. A ausência de alternativas propostas pelo Estado, somada à crise econômica, vem agravando o problema habitacional. Segundo Rolnik, o crescimento expressivo da população de rua, assim como uma superocupação de áreas autoconstruídas, como as comunidades, são reflexos disso.

Esse agravamento, porém, não deve ser suprido apenas com a construção em massa de novas unidades.

“A ideia de deficit habitacional maquia as reais necessidades habitacionais no país”, disse a professora Karina Leitão ao Nexo. “Garantir o direito à moradia hoje no Brasil pressupõe atender a uma realidade complexa e diversa. Pressupõe uma política pública permanente e respeitosa com os esforços empreendidos por moradores para a construção de seus bairros, suas cidades”.

Leitão explica que o valor expresso pelo deficit não corresponde à quantidade de moradias que precisam ser construídas para suprir a demanda da população.

Ele se baseia no já referido mapeamento de aglomerados subnormais do IBGE – ou seja, inclui pessoas que já moram em comunidades, em ocupações ou que comprometem uma parte muito grande de sua renda com o aluguel.

Para esses casos, políticas de adequação, como reformas e provisão de infraestrutura, e de aluguel social seriam soluções melhores do que a produção em massa de unidades habitacionais, que, por sua vez, historicamente tem resultado na baixa qualidade da moradia popular.

 

 

Pesquisadoras, estudantes e lideranças enfrentam Covid-19 nas favelas, por ENSP-Fiocruz[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no site oficial da ENSP, em 14 de de julho de 2020.

Em meio ao abandono de muitos anos, as favelas enfrentam um embate maior agora, contra a provável contaminação acelerada de uma parte da população, pelo coronavírus. Como executar as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) de distanciamento social, passar álcool gel, lavar bem as mãos com sabão, com falta de água, em becos apertados, com escassez de recursos e sem saneamento básico?

As favelas e periferias, vítimas da falta de políticas públicas, lutam de todas as maneiras pelo direito de sobreviver ao vírus e ao tiro. Em meio a uma pandemia, atualmente são os corpos pobres e negros que mais tombam por Covid-19, se não chegar antes o braço armado do Estado. Felizmente, temos uma rede de solidariedade para mostrar que uma parte da sociedade brasileira é justa e pensa coletivamente.

Pesquisadores, comunicadores, agentes de saúde, lideranças comunitárias e coletivos se unem com o objetivo de minimizar os efeitos de uma pandemia em locais que o poder público avaliza como apartados da cidade: sem direitos básicos, entretanto com o dever de carregar o país nas costas. Desses lugares saem geralmente os trabalhadores mais explorados, os que estão na informalidade e os desempregados. Os que fazem parte da estatística da necropolítica e que são mortos por vírus, balas, desmoronamentos, enchentes e outras doenças evitáveis.

Para refletir sobre essas vidas negligenciadas e sobre o aprofundamento das desigualdades na pandemia, a RESP-AL cria a série Pandemia nas favelas e periferias: um prognóstico político e se propõe a dialogar com profissionais de diversas áreas, lideranças e ativistas que tecem análises sobre passado e presente do Rio de Janeiro, enquanto tentam evitar que o futuro seja um poço sem fundo. 

Neste primeiro capítulo da série, fizemos uma longa matéria de estreia. Para isto, conversamos com a arquiteta social Tainá de Paula; as pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/FIOCRUZ), Silvana Granado e Jussara Angelo, e as lideranças comunitárias Fábio Monteiro e Jorge Nadais. Além disso, entrevistamos as pesquisadoras da Fiocruz Sonia Fleury e Mariana Nogueira.

Distanciamento social, moradias populares e água

As péssimas condições de vida na maioria das favelas podem acelerar a disseminação do coronavírus, segundo a arquiteta social, Tainá de Paula, levando a uma preocupação com a circulação de pessoas e a garantia do isolamento social. “Outra medida essencial seria o acesso universal à água,  garantia maior de higienização em meio à pandemia”, afirmou.

Em um ambiente de carências, a população que vive nas favelas conta muitas vezes apenas com seu esforço e a solidariedade de amigos e ativistas. Em favelas como Alemão e Cidade de Deus no Rio de Janeiro, e Paraisópolis, em São Paulo, essas populações montaram seus gabinetes de crise e criaram uma estrutura para suprir os direitos básicos que lhes são negados, como alimentação, água e informação. 

Segundo Tainá, os moradores podem fazer o distanciamento  social e garantir as condições de higiene de suas residências, “mas é fundamental que eles fiscalizem as ações do poder público na garantia do conjunto de espaços públicos, no caso de condomínios, vilas e favelas”, enfatizou. Para ela, as ações de mutirão de limpeza e sanitização são fundamentais para o controle da curva de crescimento do contágio por coronavírus.

Ainda em relação à higiene das residências e a garantia da salubridade dos imóveis, para Tainá é necessário que haja ventilação em todos os cômodos, principalmente naqueles em que há moradores contaminados ou com suspeita de contaminação. Para isso, torna-se fundamental disponibilizar pontos de água separados para a higiene dos alimentos e das mãos, assim como a boa limpeza das áreas úmidas com água sanitária e outros produtos de limpeza.

Lembrando que antes de enfrentar a pandemia, a cidade do Rio de Janeiro conviveu com a crise da água, agora esquecida por uma crise sanitária maior e mais letal. Cientistas, jornalistas e campanhas publicitárias indicam lavar as mãos com sabão, mas a maior parte das favelas e periferias do Rio de Janeiro não possui abastecimento de água suficiente. Acrescente-se que há dúvidas se a questão do tratamento da água foi efetivamente solucionado. A Fiocruz realizou estudo em esgoto do Estado do Rio e detectou o vírus Sars-CoV-2. A possibilidade de contágio é pequena, mas fica o alerta sobre o pouco cuidado que os governantes têm com o tratamento e o fornecimento de água para população.  

“Há um grande debate a ser feito sobre habitação de interesse social no Brasil”

De acordo com Tainá, é urgente reforçar a importância do poder público e principalmente das concessionárias fornecedoras de água potável no combate à covid-19, a fim de evitar a interrupção de fornecimento de água para assentamentos precários e áreas periféricas.

Além da água, outro problema grave da população de menor poder aquisitivo é habitação. Recentemente, houve a experiência do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), com alguns imóveis pequenos, inviáveis para famílias grandes; todavia, é necessário reforçar que antes pelo menos havia algum projeto para atender outro direito fundamental do indivíduo, como consta no Artigo 6º da Constituição, o da moradia. 

Entretanto, o Brasil, especialmente a cidade do Rio de Janeiro, já foi o habitat de construções populares que viraram referências arquitetônicas e artísticas, como o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho. Localizado em Benfica e construído na década de 1940, o projeto do arquiteto Affonso Eduardo Reidy  é reconhecido como um ícone da habitação popular no mundo.

 “Existe um grande debate a ser feito sobre habitação de interesse social no Brasil. O MCMV foi um programa de sustentabilidade econômica, não um programa de moradia digna”, destacou Tainá. Para ela, mesmo havendo a transferência de terra e propriedade, a homogeneidade dos tipos de unidade e a localização dos imóveis foram verdadeiros entraves ao debate da boa arquitetura e do direito à cidade. O modelo de desenvolvimentismo do Brasil, que foi replicado pelos governos petistas, não rompe com problemáticas históricas do mercado da construção civil: processos licitatórios, ausência do controle do preço da terra, descolamento com o debate de qualidade urbana e moradia.

Para Tainá, é preciso discutir dois grandes temas quando o mote é moradia: o estoque construído, como qualificar as unidades construídas e identificar o que não deveria  existir (risco, insalubridade etc.); e a tipologia da moradia brasileira – conjuntos habitacionais, hotéis populares, vilas residenciais e a produção de mais modos de habitar.

Criada em uma das favelas da Praça Seca, na zona Oeste do Rio de Janeiro, Tainá de Paula é arquiteta e urbanista, feminista interseccional e mãe.

Especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz e Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisou a requalificação de áreas subutilizadas da cidade e a ocupação desigual de territórios.

Tainá é assessora técnica do Movimento de Trabalhadores Sem Terra do Rio de Janeiro e coordena o projeto Brasil Cidades.

(Continua...)

LEIA O ARTIGO COMPLETO, JUNTO ÀS CONTRIBUIÇÕES DE PESQUISADORES(AS) E ESTUDANTES(AS) E LIDERANÇAS NO ENFRENTAMENTO AO CORONAVÍRUS.

 

CEP cancelado, por Mônica Francisco[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado noLe Monde Diplomatique Brasil, em 27 de julho de 2020.

Monitoramento de aplicativo escancara política de morte pelo coronavírus em localidades pobres do Rio de Janeiro <article> O aplicativo Covid por CEP, criado pelo urbanista Thales Mesentier, foi colocado no ar este mês. A ideia é ajudar no combate à pandemia a partir de dados georreferenciados, oferecendo visualização espacial dos casos da doença na cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o código de endereçamento postal. É possível realizar a busca por CEP específico ou navegar pela cidade clicando nos círculos do mapa, que tem cores correspondentes ao número de casos, indicando ainda se houve óbito na localidade.

De acordo com o aplicativo, os dados mostram uma maior concentração dos casos de Covid-19 nas regiões mais ricas da cidade. Porém, em contrapartida, nas regiões mais pobres, sobretudo na Zona Oeste, a taxa de letalidade pelo vírus é muito maior que a média do estado, uma das maiores do país.

Ainda segundo o aplicativo, em toda a capital, os endereços com maior número de mortes em decorrência da infecção por coronavírus são a Rua do Amparo, em Rio das Pedras; Rua São Miguel, na Tijuca; a Estrada dos Caboclos, em Campo Grande; e a Rua Nilópolis, em Realengo. Não podemos nos esquecer que toda a população do Morro do Borel utiliza como código postal o endereço situado na Rua São Miguel, número 500 e que, portanto, os dados devem refletir a realidade da comunidade moradora da favela. A ferramenta mostra que o CEP 20530-420, que corresponde à região, já teve 83 casos, sendo 75 recuperados, 8 óbitos e nenhum caso ativo até o momento.

Os dados do CoronaZap, um sistema de monitoramento colocado em prática por moradores do Borel por meio do WhatsApp, revelam que foram registrados 16 casos na comunidade, sendo 2 confirmados e 14 suspeitos, no período de março a abril deste ano. É evidente que o número tende a ser muito maior, devido à falta de testes. Ainda assim, os números divulgados não foram contabilizados pelo poder público de maneira particular para o território, isto é, havendo um agrupamento dos casos para o bairro da Tijuca. A falta de uma política de notificação específica e transparente de casos em favelas, aliada à ausência do Estado com políticas públicas plenas para minimizar os impactos da doença nesses territórios, interferem diretamente no comportamento dos moradores em relação às medidas de proteção e segurança contra a Covid-19.

É impossível não se estarrecer com esses dados. É evidente que a pandemia realçou as profundas desigualdades do país, mas poucas coisas denunciam a prática da política de morte quanto o cruzamento dos dados do Covid por CEP, com os dados apresentados pela Rede de Observatórios da Segurança.

Muito se tem falado sobre necropolítica e em como Achille Mbembe avança, nos componentes racial e colonial, a análise da biopolítica de Foucault, para quem o biopoder funciona a partir da divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Para o filósofo camaronês, em nosso mundo contemporâneo, as armas são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar formas únicas e novas de existência social nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de mortos vivos.

A política sanitária adotada pelo poder público nos territórios de favelas e periferias – onde saneamento básico, água potável, atendimento de saúde, entre outros serviços, são precários – evidencia o “deixar morrer” necropolítico, resultando em altos índices de letalidade da infecção por coronavírus em favelas e bairros da Zona Norte e Zona Oeste, longe dos hospitais de campanha montados no Centro e na Zona Sul da cidade, bem como da ampla cobertura da rede privada de saúde e do acesso a testes para diagnóstico da Covid-19.

Da mesma maneira, o aumento do uso da força letal por parte das polícias do Rio de Janeiro em relação ao ano anterior, especialmente em abril e maio, em meio à pandemia e algumas vezes, inclusive, durante ações humanitárias, concretiza a face do “fazer morrer” fruto da política de controle dos corpos por meio da morte.

Vale lembrar que a escalada de mortes decorrentes de intervenção de agente  do Estado, durante operações policiais, somente decresceram em junho por imposição judicial em virtude da decisão liminar no bojo da ADPF 635 – Favelas pela Vida, que proibiu ações injustificadas enquanto durar a pandemia.

A maior parte das vítimas fatais da Covid-19 é negra, pobre, de origem periférica ou favelada – estudo liderado pela PUC-Rio mostra que pretos e pardos com baixo índice de escolaridade morrem quatro vezes mais. Já uma análise da Agência Pública aponta que de cada três negros internados por Covid-19 um morre, a proporção entre brancos é 4,4 internados. Isso diz muito a respeito da situação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro, e do enorme desafio em transformar cotidianamente luto em luta para mudar essa realidade de extrema desigualdade social.

Mônica Francisco é presidente da Comissão de Trabalho Legislação Social e Seguridade Social e vice-presidente da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional da Alerj.

 

 

Enquanto governantes retiram direitos, favelas se organizam contra coronavírus, por Gizele Martins[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo (para assinantes), em 06 de agosto de 2020.

No Brasil o número de mortos pelo novo coronavírus (Covid-19) vem chegando a 100 mil. O governo, no lugar de resguardar as vidas e seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), se comporta de forma irresponsável desde o início da pandemia. Não investiu na saúde pública; não priorizou atenção básica aos bairros empobrecidos como abastecimento de água e energia; nem mesmo produziu campanha de comunicação sobre os riscos da doença.

Nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, habitado por uma maioria de população negra e outros oriundos do Nordeste do país, tudo tem piorado: muitos perdendo emprego, outros sem alimentos, sem apoio para pagamento de aluguel, gás, energia, internet, água, atendimento médico, apoio psicológico e vários outros problemas que estão surgindo no decorrer destes últimos meses.

Diante de tal situação, inúmeros coletivos locais se organizaram e se mobilizaram desde o início da pandemia para salvar as suas próprias vidas. Formaram campanhas de comunicação e conscientização sobre os riscos de contaminação da Covid-19; organizaram cadastro de famílias para que começassem a receber cestas básicas e materiais de higiene; além das pressões pela garantia de direitos feitas aos órgãos públicos por meio de notas públicas, propostas de projetos de leis, reuniões.

LEIA O ARTIGO COMPLETO AQUI.

 

As favelas que a pandemia criou, por Leandro Barbosa, do Projeto Solos[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente no blog Outras Palavras, em 17 de agosto de 2020.

Michele Rodrigues da Silva cruza a comunidade Viva a Vida, no Jardim Julieta, Zona Norte de São Paulo, com uma carcaça de fogão nos ombros. Sua intenção é conseguir vendê-lo para um ferro velho próximo à ocupação, onde ela e outras 650 famílias ergueram suas casas de madeira em meio à pandemia do novo coronavírus.

“Vou ver se consigo um dinheiro extra para fortalecer o barraco”, grita Michele. Antes, ela morava em Guarulhos, com seus três filhos, em uma casa alugada. Trabalhava como costureira, mas perdeu o emprego. Chegou a vender todo o seu material de trabalho — cinco máquinas de costura —, mas o dinheiro acabou e teve que sair da casa.

Assim como ela, inúmeros moradores da comunidade relatam o mesmo drama, em uma frase corriqueira nas vielas do lugar: “sem trabalho, como é que paga aluguel?”.

De acordo com o Fiquem Sabendo, uma agência de dados independente e especializada em Lei de Acesso à Informação (LAI), entre março e maio deste ano, foram protocoladas no Tribunal de justiça de SP 4.018 ações de despejo por falta de pagamento de aluguel, situação que Antônia de Souza sentiu na pele. “Fiquei desempregada, com dois filhos, e tive que entregar a casa. Eu vivia com o pai do meu filho pequeno, de dois anos. A gente acabou separando e eu vim embora pra cá. A crise fez a gente vir embora pra cá”, contou Antonia, que também passou a morar na Viva a Vida.

Cerca de 20 km do Jardim Julieta, na Rua Miguel Casagrande com a Avenida Otaviano Alves de Lima, próximo à ponte da Freguesia do Ó, outra ocupação também se levantou em meio à pandemia: a Favela da Fé, onde vivem 14 famílias. Embora seja muito menor em relação a Viva Vida, os dramas do desemprego e da impossibilidade de pagar o aluguel também permeiam a rotina das pessoas que vivem lá.

Beatriz Quintino é uma das moradoras que tentam construir o sonho da casa própria, ao lado do marido e dos filhos. “Tudo o que a gente quer é uma moradia. Eu trabalho como vendedora no sinal. Sofri um acidente e quando tive alta, não deu pra voltar a trabalhar, por causa da pandemia. E eu não tive como pagar o aluguel. E a gente tá aqui vivendo do jeito que dá, com doações e com o auxílio [emergencial]”, contou.

De acordo com o Observatório de Remoções, O Brasil não aprovou nenhuma legislação suspendendo os despejos e as remoções. “O projeto de lei nº 1179/2020, relativo ao regime jurídico emergencial durante a pandemia, previa a suspensão de despejos por não pagamento de aluguel de imóvel urbano concedidos em caráter liminar, ou seja, decisões em menos de 15 dias sem ouvir o locatário. Mesmo tratando-se de uma medida bastante limitada, não foi mantida. Ao sancionar o texto que veio a ser a Lei nº 14.010/2020, o presidente Jair Bolsonaro vetou a medida”.

As múltiplas violências do despejo

Um levantamento feito pelo Observatório de Remoções indica que ao menos 2 mil famílias foram atingidas por despejos e incêndios,  situação corriqueira em ocupações e favelas em SP, durante a pandemia. “Diante da gravidade destas remoções e das repercussões irreversíveis que provocam na vida dos atingidos, é urgente a sensibilização do Poder Judiciário, bem como dos demais órgãos do sistema de Justiça, pela suspensão de todas as remoções. Movimentos de moradia e entidades de defesa seguem reivindicando ao Tribunal de Justiça do Estado ações efetivas para a suspensão de despejos e remoções coletivas”, afirma a organização.

A  arquiteta urbanista Larissa Viana, mestre e doutora em Habitação pela USP, explica que a política habitacional de todo país não é produzida de modo a sanar, ou mesmo mitigar, o problema habitacional existente, uma vez que as soluções apresentadas se baseiam na produção de unidades habitacionais em lugares distantes e alheios da realidade de vida das pessoas. “Temos um número enorme de edifícios ociosos, sem cumprir função social da propriedade, prevista na Constituição Federal de 1988, enquanto pessoas não têm onde morar. Não há mais necessidade de construir nada se esses edifícios abandonados cumprissem sua função social. A política pública de habitação precisa contemplar a realidade que está muito além da produção de novas unidades habitacionais, e investir, também, nas ocupações como forma assegurada e digna de se viver”, pontua.

Larissa explica que o despejo por si só é um ato violento, por vezes marcado pelo uso da força policial, onde o poder público encontra local para os objetos dentro das casas derrubadas, mas não para as pessoas. “Algumas notícias, em dias de reintegração de posse, anunciam que caminhão e depósito foram disponibilizados pelo poder público para levar os pertences das pessoas. E as pessoas para onde vão? Isso já é um absurdo e uma infração à Constituição Federal em épocas de não pandemia, em um momento de pandemia como o que estamos vivendo, de extrema insegurança e vulnerabilidade coletiva de saúde pública, social, econômica e política, a luta, mais do que nunca, é por despejo zero”.  

A vice-presidente da associação de moradores da comunidade Viva a Vida, Bianca Fernanda Ayres Rosa, conta que a luta para organizar e garantir a dignidade das pessoas é diária. “Viver na iminência de um despejo é angustiante. A gente não tá aqui mexendo só com estacas. A gente tá lidando com pessoas, com sonhos. E o sonho de todo mundo é sair do aluguel. Nós não temos condições físicas, financeiras e muito menos psicológica para sair daqui [da ocupação]”, afirmou. “Às vezes, é tudo bem difícil. A gente precisa contar com a boa vontade do poder público. Olha a quantidade de lixo espalhada na comunidade. Já pedimos para a prefeitura retirar, são meses de lixo acumulado. Sabe o que eu ouvi? ‘Não se preocupe com o lixo. No dia que a gente for derrubar os barracos, a gente aproveita e tira o lixo também”, afirmou.

Outro lado

A Secretaria Municipal de Habitação (SMADS) informou que a maioria dos pedidos de reintegração de posse é para áreas particulares. O órgão ainda disse que não atua em remoções em SP e que só participa de reintegrações quando há mandado judicial, com exceção das áreas de risco. “O grupo de mediação de conflitos atua na promoção e facilitação do diálogo entre as partes envolvidas em conflitos relacionados a imóveis ocupados por população de baixa renda com possibilidade de reintegração de posse, priorizando a construção de solução consensual que permita às famílias envolvidas permanecer na área, de maneira segura e com respeito aos direitos do proprietário, ou a saída voluntária dos ocupantes”, disse em nota. 

A pasta informou que esteve na Favela da Fé e que “foram agendadas a inserção e atualização das famílias no Cadastro Único, que dá acesso a benefícios de transferência de renda”.

Quanto à comunidade Viva a Vida, o órgão disse que “considerando a situação das famílias da ocupação do Jardim Julieta, ocorrida durante o  período de pandemia que a cidade atravessa, com aumento do desemprego e vulnerabilidade das famílias, a Prefeitura de São Paulo, por meio de uma comissão de secretários, atendeu os representantes da ocupação. Foram realizadas duas reuniões onde foi negociada prorrogação do prazo por 6 meses, condicionada à desocupação pacífica da área neste período”. 

A SMADS explicou que a área ocupada no Jardim Julieta faz parte de um projeto habitacional da Prefeitura de São Paulo, onde pretende-se construir “1.580 unidades habitacionais para atendimento de algumas comunidades do entorno e famílias removidas de áreas de risco, todas cadastradas, que aguardam por suas moradias”. 

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana, informou que já foram iniciadas as ações de limpeza no Jardim Julieta. “Até o momento, foram retiradas cerca de 15,2 mil toneladas de resíduos domiciliares, poda de árvore, terra e entulho”.

 

"A periferia está deprimida e a superação pode ser explosiva", por Tiaraju Pablo[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na Carta Capital, em 22 de janeiro de 2021.

Nascido e criado na Vila União, no extremo da Zona Leste de São Paulo, o sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea só saiu de lá em 2016, depois de 35 anos, já como doutor em sociologia, para fazer pós-doc na França.

Quando voltou, dois anos depois, foi morar na Vila Esperança, não muito distante de onde vivia. “É um bairro conhecido pelos seus carnavais”, diz sobre a nova morada com o conhecimento de causa de quem foi mestre de bateria, organizou rodas de samba e participa de escolas de samba há 25 anos em paralelo a carreira acadêmica. Mas hoje, com a pandemia, avalia um quadro difícil e desolador na periferia.

“Antes da chegada do novo coronavírus ao Brasil nós estávamos imersos em meio a quatro crises”, diz. As crises que menciona é a política, com a escalada autoritária e descrédito das eleições; a econômica, com aumento de desempregados e da informalidade; a sanitária, com desmonte das políticas públicas voltadas à saúde e a social. com o somatóri disso tudo.

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Feijão, arroz e medo: o dia a dia em favelas de quem não recebe mais auxílio emergencial, por Carlos Madeiro (UOL)[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente no Portal UOL, no dia 24 de fevereiro de 2021.

Eram 12h35 de ontem quando a dona de casa Maria Edileide da Silva, 47, serviu o almoço para ela e sua filha de 13 anos em uma apertada cozinha. No prato de ambas, apenas feijão e arroz.

"Carne só compro quando sobra dinheiro. É raro agora", conta a moradora de uma pequena casa localizada em um beco estreito do Vale do Reginaldo, área da periferia de Maceió.

Ela é uma das "órfãs" do auxílio emergencial pago pelo governo em 2020 —mas que pode ser renovado hoje em votação no Congresso.

Em meio à pandemia, moradores de bairros pobres na capital alagoana relatam que temem mais a fome do que serem contaminados na segunda onda de covid-19.

"Com o dinheiro que recebia [do auxílio], conseguia comer bem todo dia! Mas hoje, com o preço da carne, está difícil. Compro, de vez em quando, R$ 15, R$ 20 de carne com osso. Dá só para passar uns dias", cita ela, que vive apenas com o valor da pensão do pai de sua filha e está com Bolsa Família bloqueado.

Bolsa Família tem de sustentar

Com o fim do pagamento do auxílio emergencial, pessoas de baixa renda voltaram a viver do valor Bolsa Família —que em fevereiro foi de R$ 186,83 em média, bem abaixo do valor de R$ 600 e R$ 1.200 das primeiras parcelas do benefício emergencial.

Segundo dados do Cadastro Único, do Ministério da Cidadania, o país tinha em dezembro 13.923.660 famílias em situação de extrema pobreza (maior número desde 2014) e 2.764.930 em pobreza. Dessas, apenas 14.264.964 receberam Bolsa Família em fevereiro.

O Ministério da Cidadania não informa, desde 2019, o número da fila de espera para ingresso no programa.

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em julho, 30,2 milhões de domicílios (ou 44,1% do total) foram beneficiados com o auxílio emergencial e foi a única renda para 4,4 milhões de famílias. <header> Ajuda para sobreviver </header> No mesmo beco do Vale do Reginaldo, Maria de Lourdes Morais, 62, mora com o filho de 22 anos e conta que hoje sobrevive com ajuda dos outros quatro filhos. "O gás foi eles que me deram", diz.

Na comunidade, um botijão custa em torno de R$ 90, um real a mais do que o valor que recebe do Bolsa Família. "Com o auxílio, eu admito que comi bem; como nunca, aliás. Não gastei com coisas para a casa, apenas comprei muita comida para ficar forte e não ter problema com esse vírus. Já pensou se ele me pega sem eu estar alimentada? Melhor saúde que um bem novo", conta.

"Eu adoro essa TV [de tubo] da sala. Não ia gastar R$ 1.000 com uma televisão nova para comer mal, ficar fraca e doente." Maria de Lourdes Morais, moradora de área pobre em Maceió, gastou dinheiro para se alimentar bem. <header> 'Bife de olho' no fogão a lenha </header> Na parte norte de Maceió, a favela Vila Emater 2 também tem um cenário de dificuldade extrema em um momento em que a pandemia dá sinais de crescimento em Alagoas.

"Hoje o almoço é feijão, arroz e bife de olho [ovo]", brinca José Orlando dos Santos, 60. No barraco em que mora com a mulher, Maria Margarida da Silva, 55, a cozinha é preparada em um fogão a lenha.

"Mas o preço do ovo está subindo demais. Comprava a bandeja [com 30] por R$ 10 no ano passado. Agora está R$ 16. Daqui a pouco nem ovo mais." José Orlando dos Santos, que cozinha a lenha.

Ele conta que, na primeira onda da doença, conseguiu se isolar com o auxílio emergencial recebido. Evitou ir até o Mercado da Produção, no centro da cidade, onde atua com carreteiro.

"Agora, estou tendo de ir todo dia com meu carro de mão, mas quase nunca consigo nada, ninguém contrata. Hoje mesmo não rendeu nem um real. O mercado está vazio, as pessoas estão com medo dessa doença. Eu também tenho [medo], mas não tenho opção, preciso tentar ganhar mais algo [que os R$ 89 do Bolsa Família] para não passar fome", afirma ele, que gasta R$ 6,70 diariamente de ônibus. <header> Sem renda, fim do isolamento </header> Sem auxílio, todos os entrevistados da Vila Emater contaram ao UOL que precisaram voltar a trabalhar e tentam melhorar a renda do Bolsa Família.

Maria Aparecida dos Santos, 50, cata material reciclável nas ruas de Maceió e diz que não pode parar neste momento. Ontem, quando a reportagem a encontrou na porta de seu barraco, ela chegava em casa com a sacola cheia —cerca de 3 kg de material reciclável.

"Eu junto tudo e, quando tem muito, eu vendo. O caminhão vem aqui e paga 80 centavos [por quilo]. Vendo quando tenho uns 100 kg, ganho R$ 80. Ajuda muito", explica a mulher, que recebe R$ 89 por mês do Bolsa Família.

"Hoje vou almoçar feijão, arroz e macarrão." Maria Aparecida dos Santos, catadora de recicláveis.

Com seis filhos morando em um mesmo barraco, Maria Rosineide dos Santos, 35, também faz malabarismo para sobreviver com os R$ 422 que recebe mensalmente do Bolsa Família. O valor, diz, é insuficiente para segurança alimentar da casa —onde moram oito pessoas, uma delas que precisa de remédio controlado.

"É muito pouco o que ganho para o preço caro das coisas hoje. Subiu demais. Tenho de me virar para dar um peixe, ou ovo, ou salame para os meninos não ficarem sem a mistura."' Maria Rosineide dos Santos, mãe que se preocupa com a alimentação dos seis filhos

Ela conta que aguarda a aprovação de um novo auxílio para conseguir terminar de colocar as telhas da casa, feita de madeira.

"Eu ainda tenho um retroativo para receber porque demorei a ter o auxílio aprovado. Se sair, e tiver de novo o auxílio, eu vou comprar as telhas que faltam porque já já vem o período de chuva", afirma. <header> Comércio em baixa, inflação alta </header> Sem auxílio, o comércio na favela sentiu o impacto. "Caíram demais as vendas, bote aí uns 40% a menos neste mês", revela José Terto, dono de uma pequena mercearia no local. Assim como os moradores do entorno, ele também reclama do aumento no preço dos produtos que revende.

"Hoje um cliente que vem aqui com R$ 10 só mela a bolsa, não leva quase nada. Está tudo muito caro." José Terto, dono de mercearia

O principal item de que ele reclama da alta é a carne. "Há uma semana, comprei um pacote de 5 kg de charque por R$ 155. No sábado passado, comprei esse mesmo pacote por R$ 174. Como pode aumentar R$ 19 em uma semana? Não tem como!"

Carne aqui, pelo visto, vai ser só quando morder a língua.

Um dos pontos citados pelo vendedor encontra respaldo nos números.

Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que publica o índice de inflação por faixa de renda, entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2021, a inflação das famílias mais pobres (cujo rendimento mensal é menor que R$ 1.650,50) ficou em 6,2% —enquanto que entre as mais ricas (com rendimento domiciliar superior a R$ 16.509,66) foi de apenas 2,9%. Isso pode ser explicado por conta das altas em preços de valores do gás de cozinha, carne e aluguel.

Terto trabalha na mercearia com o filho, não tem funcionários. Ele afirma que, sem um novo auxílio ou reajuste do Bolsa Família, será difícil reverter a queda nas vendas.

"Quando tinha o auxílio, minhas vendas foram pelo menos 20% maiores que a média. As pessoas aqui compravam muito mais carne, mas hoje é raro." <header> Falta do essencial </header> Na Vila Emater, não há atendimento médico por um programa de saúde da família. O posto de saúde que funcionava em uma casa alugada foi fechado no início do ano passado.

Os moradores contam que uma equipe médica enviada por um vereador foi a única com quem se consultaram durante a pandemia. A creche que existia no local também foi fechada por conta do difícil acesso ao local. Uma nova, mais distante, foi erguida numa área abaixo da comunidade.

A líder comunitária Vânia Gomes diz que a situação só não está pior no local por conta da Cooperativa dos Catadores da Vila Emater, que tem 33 pessoas e é responsável pela coleta de lixo reciclável em Maceió.

"São 33 famílias sustentadas por esse serviço. Com ela, não passamos fome, mas no entorno há uma dificuldade maior —embora muitos atuem indiretamente e tendo alguma renda da cooperativa. Precisamos demais do retorno do auxílio", diz.

Ela afirma que, graças ao auxílio, muitos moradores da comunidade puderam ficar em casa e se protegeram da pandemia sem passarem fome.

"Mas hoje está um cenário de muita dificuldade sem o auxílio, porque o covid-19 chegou com força e muitos precisam da renda para sobreviver. Só o Bolsa Família não dá." Vânia Gomes, líder comunitária.

 

Favelas do Rio registram mais mortes por Covid-19 que muitos países, por Maurício Thuswoll[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em 01 de março de 2021, na Carta Capital.

Espaços historicamente tratados com negligência pelos governantes, as favelas não viram sua situação melhorar com a pandemia. Aos problemas de sempre, como violência policial, ausência do Estado e precariedade­ dos serviços públicos, vieram a se somar o surto de Covid-19 e as suas consequências. Nos últimos meses, pouco se falou, porém, sobre as comunidades. Se a subnotificação de mortes está clara em todo o Brasil, no que diz respeito às favelas a pouca clareza dos dados oficiais compõe o retrato do abandono.

Nesse contexto, uma iniciativa tem contribuído para jogar luz sobre o que de fato acontece com as camadas mais pobres da população urbana. Com o auxílio de uma rede de entidades locais, a Comunidades Catalisadoras (ComCat) passou a coletar dados  in loco e organizou o Painel Unificador da Covid-19 do Rio de Janeiro, renovado a cada duas semanas e disponível para consulta pública na internet.

Os dados são calamitosos: com 3.285 óbitos registrados até o fechamento desta edição, as favelas cariocas somam mais mortos do que 162 países. Não somente nações ricas, como Dinamarca (2.338 mortos) ou Austrália (909), mas vizinhos como Paraguai (3.065) e Venezuela (1.316).

(...)

LEIA O ARTIGO COMPLETO AQUI.

 

A fome voltou nas favelas brasileiras, por Sindicato Popular[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na Revista Fórum, e republicado no blog do CEBES, em 15 de março de 2021.

Quando Lula assumiu em 2003 seu discurso de posse denunciava a fome, a extrema desigualdade em um país tão rico: “Num país que conta com tantas terras férteis e com tanta gente que quer trabalhar, não deveria haver razão alguma para se falar em fome. No entanto, milhões de brasileiros, no campo e na cidade, nas zonas rurais mais desamparadas e nas periferias urbanas, estão, neste momento, sem ter o que comer. Sobrevivem milagrosamente abaixo da linha da pobreza, quando não morrem de miséria, mendigando um pedaço de pão.”

O presidente sentenciou em seu pronunciamento que enquanto houvesse um brasileiro passando fome, isso era motivo de sobra “para nos cobrirmos de vergonha” e por isso Lula definiu como uma das prioridades de seu governo um programa de segurança alimentar que levou o nome de “Fome Zero“.

O restante da história vocês já sabem: valorização do salário mínimo, geração de postos de trabalho formal, políticas públicas como o bolsa família, investimento do Estado no desenvolvimento do país. O Brasil chegou à 6a economia do mundo e saiu do mapa da Fome. De 2003 a 2013  o Brasil reduziu em 82% a fome, a desnutrição e a subalimentação.

Golpe, Bolsonaro e Pandemia levou brasileiros pobres a passar fome de novo
Ao longo dos últimos 5 anos, 10,3 milhões pessoas voltaram a passar fome no Brasil segundo dados do IBGE. O desemprego, o achatamento da massa salarial, a desindustrialização ampliaram o número de famintos no Brasil. A pandemia e a falta de política para socorrer os mais vulneráveis agravou a situação.

É o que demonstram os dados levantados pela última pesquisa do Instituto Data-Favela- Locomotiva- Pesquisa e Estratégia e a Central Única das Favelas (Cufa).

A pesquisa foi realizada em 76 favelas em todas as unidades da federação, no período de 9 a 11 de fevereiro de 2021 com 2.087 pessoas maiores de 16 anos.

Entre os entrevistados 68% passou ao menos um dia sem nenhum recurso para comprar alimentos. A média de refeições diárias também caiu de 2, 4 em agosto de 2020 para 1,9 em fevereiro de 2021.

Os dados da pesquisa mostram que 93% dos moradores de favela não tem nenhuma poupança e 71% das famílias estão sobrevivendo com menos da metade da renda, que obtinham antes da pandemia.

De acordo com Renato Meirelles, Fundador do Data Favela, e presidente do Instituto Locomotiva que monitorou a situação das favelas ao longo de 2020 os dados atuais são ainda mais preocupantes do que os do início da pandemia e houve piora em todos eles: “O principal impacto é na geração de renda. Como tem um grupo grande de trabalhadores informais, e o auxílio emergencial demorou para chegar na favela, o impacto na renda foi gigantesco, e isso trouxe a fome. A fome é consequência da ausência de renda”, destaca Meirelles.

Alto risco de contágio, maior número de mortes e solidariedade

A demora do novo auxílio emergencial (cancelado em dezembro de 2020) quando o Brasil bate recorde de mortes passando a marca de 2 mil óbitos por dia, tem ampliado o contágio e as mortes entre os mais pobres.

O Brasil é o pais com maior mortalidade materna devido a covid-19 em todo o mundo e quando se trata de vírus e desigualdade o número de contágio nas favelas é o dobro dos bairros nobres.

Os trabalhadores das favelas são obrigados a se expor mais para conseguir um prato de comida e isso agrava ainda mais as condições sanitárias dos moradores das comunidades. De acordo com a pesquisa Data-Favela: 32% procuram seguir as medidas de prevenção contra a covid-19; 33% estão procurando seguir, mas nem sempre conseguem; 30% não conseguem seguir; 5% não estão tentando seguir. Os dados mostram a urgência da aprovação do auxílio emergencial para conter a fome e o contágio da covid-19.

Sem auxílio emergencial são as ações solidárias entre os próprios moradores da favela e de sindicatos e movimentos sociais que estão fazendo a diferença entre a fome e o prato de comida, entre a vida e a morte.

Dados do Data-Favela mostram que 90% dos moradores da favela receberam algum tipo de doação durante a pandemia e 80% das famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas caso não tivessem recebido doações. Nesta quinta-feira o Fórum Sindical entrevista o presidente da CUFA, Preto Zezé, para falarmos sobre a última pesquisa do Data-Favela e das ações de solidariedade. A importância das doações na vida dos moradores de favela é fundamental.

 

Quando a favela fala, é melhor ouvir, por Celso Athayde, Preto Zezé e Edu Lyra[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo (assinantes), em 21 de março de 2021.

A devastação da segunda onda da pandemia levou as duas maiores organizações não governamentais focadas em ações sociais nas favelas a juntar esforços. Se a sensação de horror é geral, a desventura tem no pobre o seu alvo preferencial.

Ele está na rua, trabalhando no sacrifício, no risco de ser infectado, porque não pode abrir mão de tentar garantir seu sustento e o de sua família. E se está em casa, na comunidade, não tem as condições necessárias para observar as regras básicas de proteção contra o coronavírus. Lavar as mãos com sabonete e manter distanciamento social não é só para quem quer —é para quem pode.

Muitos não podem. Nós —os 11,4 milhões de pretos, pobres e pardos espalhados nas 7.000 favelas do Brasil— somos maiores que uma Suíça, com seus 8,5 milhões de habitantes. É uma comparação que seria absurda não fosse o fato de que o contraste abissal entre as nossas quebradas e as estações de esqui poderia sensibilizar a sociedade para a triste desigualdade da qual somos todos vítimas. Todos, sim, porque ninguém estará seguro se vierem, quando vierem, o caos social e suas consequências nefastas. Não é ameaça —é alerta.

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A Maré e o vírus: o dia a dia no complexo de favelas carioca em meio à pandemia, por Henrique Gomes[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em 24 de março de 2021, na Carta Capital.

Desde a minha adolescência eu transito por toda a Maré: através da minha relação com a música, conheci pessoas e lugares de todo o complexo, onde moro até hoje. Esse conhecimento profundo do território que construí ao longo dos anos foi fundamental para a minha entrada na Redes da Maré, uma ONG que há mais de 20 anos atua em áreas como educação, arte, cultura, segurança pública e desenvolvimento comunitário dentro da Maré.

Hoje estou como mobilizador e articulador comunitário, e sempre tive forte ligação com a rua e com as pessoas. Com a pandemia de Covid-19, fui obrigado, como muitos, a reorganizar minha rotina de trabalho e, desde setembro de 2020, atuo na “linha de de frente” em um centro de testagem direcionado aos moradores da Maré. Coordenamos o programa “Isolamento Seguro”, em parceria com a Fiocruz, que consiste em dar suporte ao morador diagnosticado com Covid-19, para que o mesmo permaneça em sua própria casa, oferecendo insumos de limpeza e de higiene pessoal e alimentação pronta (em quentinhas individuais) durante o período de isolamento e doença.

Pensar em isolamento social como medida de proteção não é simples no Complexo da Maré. É preciso levar em conta o contexto cultural e social específico e evitar produzir imaginários estereotipados e universalizantes sobre a favela.

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Dificuldades no acesso à internet: expressões do racismo estrutural, por Paulo Victor Melo e Tâmara Terso[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil, em 24 de março de 2021.

Pandemia escancarou múltiplos impactos da ausência de conexão à internet por negros/as, quilombolas, indígenas e moradores de áreas rurais e periféricas. Leia o quarto artigo da série especial Mídia e pandemia: a democracia sob ataque.

Caiana dos Crioulos. Território quilombola localizado na zona rural do município de Alagoa Grande, no agreste da Paraíba. Considerada um dos patrimônios culturais do estado, com forte presença de manifestações populares como o samba de coco e a ciranda, Caiana está a apenas 122 km da capital João Pessoa, mas “bem distante das capitais” quando o assunto é acesso à internet.

Edinalva Rita, que preside a Associação do Quilombo de Caiana, menciona alguns impactos das dificuldades no acesso à internet, especialmente entre crianças e jovens. “Apenas sete jovens da comunidade se inscreveram este ano no Enem e mesmo assim não conseguem estudar, porque o sinal de telefone não pega. Nossa preocupação é como nossos jovens vão disputar uma vaga no Enem e como vão participar da seleção de um emprego se não conseguem ter acesso às informações igual aos jovens da cidade”, questiona.

O fato que preocupa a líder quilombola, vale ressaltar, é um dos principais motivos para o índice recorde de abstenção no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) realizado nos dias 17 e 24 de janeiro de 2021: num contexto de crescimento das contaminações e mortes pela covid-19, 51,5% dos inscritos optaram em resistir à orientação negacionista do Governo Federal e, assim, não foram fazer as provas.

Nesta edição do Enem, foram contabilizados mais de 5,79 milhões de inscritos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Destes, 60% eram negros; 60%, mulheres; e houve ainda um crescimento de 450% na inscrição de pessoas transexuais. Portanto, os dados de abstenção revelam que a única porta de entrada nas universidades públicas para milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade foi trancada na pandemia.

No centro político do país, a situação não é diferente. A indígena Nubiã Tupinambá, nascida na Bahia e atualmente vivendo no Distrito Federal, conhece as dificuldades no acesso à internet por uma dupla perspectiva: como doutoranda em Linguística na Universidade de Brasília e como mãe de Poti Porã, estudante de ensino fundamental no Centro Educacional Stella dos Cherubins, em Planaltina.

“Eu, como mãe, vejo que a ausência do professor não auxilia no aprendizado das crianças. Minha filha não conseguia interagir com as aulas e não conseguia tirar as dúvidas”, relata Nubiã, sobre as atividades on-line. “Diferente de minha filha, que tem a maioria das aulas gravada, eu já perdi aulas inteiras ao vivo por falta de conexão, principalmente em dias de chuva e quando tinha queda de energia”, complementa ela.

No caminho entre Alagoa Grande e Planaltina, está Alfavaca, povoado na zona rural de Juazeiro, cidade do sertão da Bahia. Lá, onde mora a agricultora Lilian Clara, a realidade é semelhante quando o assunto é desigualdade no acesso à internet.

Mãe de duas crianças, Lilian frisa que a maior dificuldade na pandemia tem sido a manutenção do estudo de seus meninos. “A internet, eu pego emprestada do vizinho, e não é muito boa. Ou eles têm que ir pra casa da avó acessar. E, como o único celular que eu tenho está ruim, às vezes nós temos dificuldades para acessar e mandar as atividades. Tem sido um pouco estressante para entregar as atividades em dia, porque não temos uma internet boa”, descreve.

As dificuldades que sentem as mães de crianças e adolescentes, como Nubiã e Lilian, são também percebidas pelas trabalhadoras da educação. “O acesso à internet aqui não é muito bom. Poucos têm wi-fi em casa e a rede 3G não funciona em todos os locais. Muitos alunos estudam com celulares emprestados por familiares, vizinhos, ou precisam esperar os pais voltarem do trabalho para acessar as propostas de atividades”, pontuou, em entrevista à revista Nova Escola, Danielle Ferreira, coordenadora pedagógica da Escola Virgínia Garcia Bessa, localizada no quilombo de Castainho, em Garanhuns, Pernambuco.

Em Caiana dos Crioulos, entretanto, nem mesmo essas alternativas de empréstimo de telefone ou de uso compartilhado da internet foram possíveis. Frente à precariedade não apenas da internet, mas também da atuação do Estado na manutenção de estradas, por exemplo, a saída encontrada pela escola da comunidade foi reduzir o processo educacional à realização de atividades semanais em formato impresso.

“São 187 alunos na escola fundamental e apenas uns 5% da comunidade têm internet, que ainda é ruim. Imagina essa quantidade de alunos sem sinal de internet para desenvolver os trabalhos on-line? Então o diretor da escola vem no começo da semana, entrega as atividades e, com oito dias, as devolvemos. E tem mais: a nossa estrada aqui, que dá acesso à cidade, também é muito complicada. Se der uma chuva, às vezes a escola não consegue entregar ou a gente não consegue devolver as atividades”, conta Edinalva.

Quando as filas da Caixa não foram por acaso

Principalmente em maio e junho de 2020, quando as famílias mais vulnerabilizadas começaram a ter direito ao auxílio emergencial – uma garantia de renda mínima complementar a outros programas sociais e criada para minimizar os efeitos da pandemia –, milhares de mulheres e homens, em sua maioria negras e negros, aglomeraram-se nas portas das agências da Caixa Econômica Federal em busca de informações sobre “um dinheiro que viram falar na televisão” e “um aplicativo que tinham que baixar no celular”, expressões que eram comumente ouvidas.

Em artigo publicado na Revista Raça, o militante da questão racial e atual diretor da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, escreveu que as filas da Caixa não eram um erro, mas uma expressão do projeto racista de Brasil, já que ali estavam “contidos todos os elementos que deram causa e perduram na relação entre o Estado brasileiro e a população de origem negra e pobre no país: a discriminação, o descaso, o desrespeito e a insensibilidade”.

Os dados dão razão à avaliação de Zulu. Uma nota técnica divulgada em maio de 2020 pelo Projeto Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade apontou justamente as dificuldades das populações mais vulnerabilizadas no acesso ao aplicativo do governo federal de solicitação do auxílio emergencial, tanto por quem simplesmente não tinha acesso à rede quanto por quem até dispunha de internet, mas não sabia utilizar.

Num país em que o racismo é fator estruturante das relações sociais, políticas e econômicas, citar a expressão populações mais vulnerabilizadas significa falar no conhecido encontro entre os critérios de raça e classe. E, no tocante ao acesso à internet, não é de outro modo: apenas 33% das pessoas das classes D/E já utilizaram computador de mesa, notebook ou tablet, enquanto esses números são bem maiores nas classes C (62%), B (88%) e A (93%). A desigualdade se observa também no componente racial: somente 48% dos indígenas e 55% das pessoas pretas já utilizaram computador pelo menos uma vez na vida. Entre as pessoas brancas, o índice é de 63%.

O tipo de dispositivo para acessar a rede é outro indicador da desigualdade: 75% de indígenas e 65% dos pretos e pretas utilizam a internet exclusivamente pelo celular, numa proporção superior à das pessoas brancas (51%). Quando acrescida a perspectiva de classe social, essa desigualdade se agrava ainda mais, já que 85% das pessoas das classes D/E têm apenas o celular como meio de uso da internet, uma diferença abissal para as demais: 61% na classe C, 26% na classe B e 11% na classe A.

Os dados acima, da pesquisa TIC Domicílios divulgada em 2020, que analisa o uso das tecnologias de informação e comunicação nas casas brasileiras, dão pistas sobre a profundidade dos problemas enfrentados por indígenas, pessoas negras e pobres do país para acesso a uma política pública que, por opção do Governo Federal, centralizou as informações em um aplicativo conectado à internet.

Segundo Carolina Requena, uma das integrantes do projeto Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade, a “centralização da implementação e execução da Renda Básica Emergencial na Caixa Econômica excluiu do processo o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que possui relativo sucesso no amparo a populações mais carentes sem acesso à internet ou celular. Ao ficar de fora [o Suas], foram dispensados os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), serviço de ponta dos municípios. As filas da Caixa acontecem porque as pessoas, ao terem dificuldade com o aplicativo, recorrem às agências e acabam se tornando um foco de aglomeração”.

Em depoimento ao Jornal da USP, a pesquisadora lembrou também que mais de 7 milhões de brasileiros elegíveis para receber o auxílio não tinham como acessar tecnologias como os aplicativos, “pois vivem em domicílios sem acesso à internet, reflexo da desigualdade social mais que evidente neste momento e que não deve ser ignorada pelo governo”.

Alguns desses brasileiros e brasileiras citados por Requena moram no quilombo Caiana dos Crioulos, na Paraíba, e precisaram sair de suas casas – logo, se expor ao vírus – em busca de ajuda para acessar o aplicativo do Governo Federal. “As famílias aqui não perderam o auxílio emergencial porque foram até a cidade, procuraram estabelecimentos que tivessem internet e pessoas que soubessem usá-la para conseguir fazer o seu cadastro. Ninguém perdeu, mas porque precisamos uns apoiar os outros”, narra Edinalva Rita, demonstrando que, em resposta à negligência institucional, os quilombos resistem com organização e solidariedade.

Decerto os quilombolas da Paraíba não foram os únicos que, por força da necessidade, se deslocaram até centros urbanos para ter a possibilidade de acessar o auxílio emergencial, já que o exposto por Edinalva é, infelizmente, o comum dentre os povos e comunidades tradicionais. Um levantamento realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) revelou parte do cenário: a partir da aplicação de questionários em 29 comunidades quilombolas de 11 estados brasileiros, verificou-se que o acesso limitado à rede por franquia de dados ou modalidade pré-paga e baixa qualidade do sinal são a tônica.

De acordo com integrantes da Conaq e do Intervozes que sistematizaram os dados do estudo, “computadores também não fazem parte do cotidiano de muitas comunidades quilombolas, exceto nas localidades onde há unidades nas associações de moradores ou nas escolas. Algumas dessas instituições de ensino localizadas nas comunidades foram citadas na pesquisa como centros de informação, já que os computadores podem ser compartilhados com muitas famílias que não dispõem de acesso domiciliar”.

Negar o acesso à internet é parte da necropolítica institucional

Para Givânia da Silva, que é quilombola e doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília, há uma série de nuances na relação internet e povos tradicionais, “porque há os que não têm internet, os que têm acesso a uma internet ruim, os que têm aparelhos com pouca capacidade e os que têm pouco conhecimento em lidar com esses aparelhos, e todos esses problemas se materializam na baixa aprendizagem e no pouco rendimento dos estudantes quilombolas”.

Pesquisadora de educação quilombola e políticas públicas, Givânia chama a atenção para o fato da pandemia não ter criado qualquer desigualdade, mas descortinado o racismo e a negação de direitos que os quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais enfrentam todos os dias.

“Serviu para escancarar um problema estrutural que já estava aí. Você não tem acesso à água potável na pandemia porque já não tinha antes. Você não tem a terra regularizada na pandemia porque já não tinha antes. A pandemia potencializou um quadro gerado estruturalmente pelo racismo. A questão é como os quilombos já estavam quando a pandemia chegou. Então, na educação, que foi quase toda agora on-line, também foi assim. Se os quilombos já estavam bem atrás na fila de uma educação de qualidade, foram empurrados ainda mais para trás”, enfatiza.

Essas desigualdades de ordem estrutural que a pesquisadora enumera são amplificadas por um governo que – no discurso e na ação – atua contra os povos e comunidades tradicionais.

No discurso, impossível esquecer falas como: “eu odeio povos indígenas, odeio esse termo”, dita pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub; “a escravidão foi benéfica para os descendentes”, feita pelo presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo; ou declarações do próprio presidente da República, que, quando ainda candidato, afirmou que quilombola se pesava em “arrobas” e que, em seu governo, “não teria um centímetro de terra demarcado para reserva indígena ou quilombola”.

Na ação prática, não parece mera coincidência, portanto, que a maior quantidade de vetos de Jair Bolsonaro desde o início de seu mandato presidencial tenha sido justamente ao Projeto de Lei 1142/2020, que dispõe sobre medidas de enfrentamento à covid-19 entre povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.

Em uma única canetada, na noite de 7 de julho de 2020, foram determinados 22 vetos, dentre eles, ao “provimento de pontos de internet nas aldeias ou comunidades, a fim de viabilizar o acesso à informação e de evitar o deslocamento de indígenas para os centros urbanos”. Aproximadamente um mês e meio depois, em 18 de agosto, o Congresso derrubou 16 dos 22 vetos no texto final do projeto (sancionado como Lei 14021/2020), incluindo o relativo à internet. Porém, até fevereiro de 2021, aproximadamente um ano após o início da pandemia no Brasil, não se verificava qualquer sinal de efetivação da lei.

Em outubro de 2020, diversas organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes e a Conaq, participaram de uma audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para denunciar as graves violações à liberdade de expressão no Brasil durante a pandemia, entre elas a falta de acesso à internet e as violações ao direito à informação que impactam a vida de indígenas, quilombolas, mulheres, população negra, crianças e adolescentes, moradores de favelas e periferias e população LGBTQI+, entre outros grupos que têm sido privados do direito de acessar informações confiáveis.

No entendimento de Givânia, os vetos do presidente ao PL e a ausência de iniciativas que concretizem o acesso à internet pelos grupos vulnerabilizados são parte daquilo que o filósofo e cientista social camaronês Achille Mbembe qualifica como necropolítica [i]. “O governo Bolsonaro, e o Estado brasileiro de um modo geral, tem a sua ação institucional ou para matar a população negra ou para deixar morrer. No caso da pandemia, estamos sendo deixados morrer, por meio da negação de direitos fundamentais, constitucionais, por decisão exclusiva do presidente da República”, acentua ela.

Propostas para atenuar as desigualdades

Buscando minimizar os efeitos das desigualdades no acesso à internet em territórios tradicionais, o Intervozes e a Conaq apresentaram, em maio de 2020, uma proposta de emenda sugerindo o uso do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação (SGDC) ou outra tecnologia semelhante para garantir a conexão de comunidades indígenas, quilombolas e distritos que não sejam sedes de municípios.

emenda propõe a modificação do Projeto de Lei 2388/2020, de autoria da senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), ainda em tramitação no Senado. A emenda leva em consideração que a problemática do acesso à internet no Brasil é uma questão coletiva e não de dificuldades individualizadas. Por isso, estabelece o uso de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) na oferta gratuita do serviço de conexão em comunidades indígenas, quilombolas e distritos que não sejam sede de município, por meio do programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac).

Outra proposta com objetivo semelhante é o Projeto de Lei 4383/2020, apresentado pela bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados. Ainda aguardando decisão da Mesa da Casa para ser colocado em pauta, o PL dispõe sobre o fornecimento de banda larga e de dispositivos tecnológicos necessários ao acesso à educação para comunidades quilombolas e indígenas. De acordo com o texto, as despesas da contratação de acesso à internet poderão ser ressarcidas com desconto proporcional à contribuição anual das prestadoras de serviços de telecomunicações ao Fust.

Nota

[i] Grosso modo, necropolítica pode ser conceituada como a determinação institucional do Estado sobre quais corpos têm direito à vida e quais corpos são “matáveis”, a partir da implementação de mecanismos técnicos de eliminação daqueles considerados “inimigos”. Para melhor compreensão do conceito, ver MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª edição. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

Paulo Victor Melo é jornalista e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Tâmara Terso é jornalista e doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Ambos são integrantes do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

Vírus da necropolítica: o sucesso do projeto no país onde mais se morre por coronavírus, por Dudu Ribeiro[editar | editar código-fonte]

Publicado em 24 de março no blog da Rede de Observatórios de Segurança.

O Brasil atravessa o pior momento desde o início da pandemia. Ultrapassamos a marca de 3 mil mortes por covid por dia, somos o país que mais registra mortes pela doença no mundo com um lento ritmo de vacinação, pessoas estão morrendo aguardando leitos de UTI, caminhamos para o esvaziamento de estoque de medicamentos e acabamos de passar pela quarta troca de ministro da Saúde. No momento de publicação deste texto,  25 estados brasileiros têm taxa de ocupação de UTI superior a 80%. Na Bahia, um toque de recolher está em curso como medida contra o coronavírus, no entanto, em muitos casos, a violência está sendo empregada para controlar o fluxo de pessoas nos bairros periféricos.

O que está acontecendo no Brasil de Bolsonaro é definido como genocídio por inúmeros setores. No entanto, o presidente alimenta uma realidade paralela, onde o governo dele desempenha um bom trabalho no combate a pandemia, onde nunca se posicionou contra a vacina e onde o Brasil “está na vanguarda” do mundo, palavras do próprio. Para essa conversa, vamos explorar quatro pontos sobre a necropolítica que nos ajudem a entender um pouco mais o cenário. 

Desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, o termo necropolítica significa o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer como condição da soberania do Estado. Segundo o autor, “deixar morrer” tem como base o biopoder,  forma de governar a vida no sentido de criar corpos economicamente ativos, e suas tecnologias de controlar populações, mas que não é aceitável a todos os corpos. Esse parâmetro para o risco de morte permanente é definido pela raça. Porém, outros elementos fundamentais para a necropolítica (menos explorados) são nítidos, gritantes, saltam os olhos,  na atual conjuntura. 

O primeiro, é a crítica ao capitalismo global. Senhoras e senhores liberais: não dá pra falar de necropolítica apenas para condenar ação violenta da PM e fingir empatia. É sobre vocês também que nós estamos falando. O exemplo que aqui trago desse cenário de pandemia é o veto dos países ocidentais à suspensão temporária das patentes de vacinas e medicamentos para avançar o controle da pandemia no mundo, proposta por Índia e África do Sul, e que o governo brasileiro votou contra! (agora dependemos em parte do fornecimento de vacinas produzidas na Índia).

Outra ideia é a da violência de Estado como reguladora das possibilidades de vivência e sobrevivência no capitalismo. É impressionante a constante e atualizada atuação das forças policiais no cenário da pandemia. Seja através do controle violento do fluxo de pessoas, muitas delas com condições restritas de ficar em casa, sem garantia ao menos de sua alimentação, sem auxílio emergencial. É o caso do ambulante detido em uma estação de metrô em Salvador e levado para a delegacia de forma violenta, por não ter conseguido pegar o último transporte para casa. Seja também pela diferenciada atuação da polícia historicamente definida pelo CEP, onde as aglomerações de gente branca e rica, que nada tem a ver com sobrevivência, são dispersadas com “por favor”, “com licença”, “desculpa incomodar”. 

No último fim de semana foram registrados 16 homícidios em Salvador. Os números correspondem a outros momentos do monitoramento da Rede de Observatórios no ano de 2020, onde ficar em casa, também não é sinônimo de segurança.


O terceiro ponto, que talvez seja o mais explorado no tema da necropolítica, é o racismo. A distribuição racial da morte está visível na pandemia. As pessoas que mais morrem e as que são menos vacinadas são negras. A fome avança em amplos setores da sociedade. O impacto sobre as mães negras solos é absolutamente desproporcional em todos os âmbitos, o desemprego, a falta de perspectivas, o sofrimento psíquico. Estes são apenas alguns dos efeitos da necropolítica. Campanhas de organizações da sociedade civil, como a conduzida pela Coalizão Negra por Direitos e outros parceiros, visam atender o mínimo de condições para a família, no caso a alimentação, ao mesmo tempo que se fortalecem a  como organização coletiva e solidária. No entanto, essas ações de solidariedade não têm condições e nem pretensões de substituir a política pública. Estamos assumindo o papel do Estado, que nesse momento investe na austeridade, na manutenção do teto de gastos e no aprofundamento da crise sanitária e social. 

O último tema que trago para o debate é a colonialidade como continuidade. Ou seja, os efeitos da colonização do passado que reverberam até hoje. Se ligarmos os pontos anteriormente citados fica fácil de entender. Segundo Mbembe, “a colonização enquanto tal não foi apenas uma tecnologia, nem um simples dispositivo. (…) Ela foi também um complexo, uma pirâmide de certezas, umas mais ilusórias do que as outras: a potência do falso. (…) Habituada a vencer sem ter razão, ela exigia dos colonizados não apenas que eles mudassem suas razões de viver, mas também que mudassem de razão – seres em falha perpétua”. 

Uma série de exemplos desse modus operandi, ainda que fora do tempo do colonialismo, permanece nos remanescentes da colonialidade e estão sendo aplicados durante a nossa maior crise sanitária da história. A potência do falso é um componente real e determinante do momento político brasileiro. A gestão da pandemia é a pirâmide de certezas que faz avançar a promessa de nossa eliminação e nos impor uma razão própria, por isso, não há contemporização, pedido de desculpas, recuos: é parte do projeto. A exemplo dos seus efeitos, temos a pesquisa do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), onde 46% dos entrevistados concordam com pelo menos uma das fake news sobre as vacinas contra a Covid-19. Enquanto os “fiéis” vão morrer na fila dos hospitais, o “pastor”-mega empresário vai se vacinar em Miami. O incentivo de utilização e a compra com dinheiro público de medicamentos sem eficácia comprovada, que sua venda cresceu 557%, tem causado impactos colaterais na saúde das pessoas, casos de hepatite e outras doenças. 

Esse texto não é apenas um breve quadro com informações já consolidadas, dados científicos, reflexões compartilhadas, é também uma proposta para revelar como, ainda que setores ligados a poderosos grupos econômicos tenham resolvido se posicionar frente ao negacionismo e a produção de mortes no Brasil hoje, estão eles conectados diretamente à necropolítica, à potência do falso, aos sentidos da colonialidade que amplia a precarização da vida. É também uma sinalização para as nossas e os nossos das armadilhas do caminhar, inclusive com a instrumentalização de conceitos libertadores na origem, pelos algozes. Mas Esú cuida dessas encruzilhadas. 

Laroyê.

Dudu Ribeiro é historiador, coordenador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia.

 

Fome, pandemia e a ONU em ponto morto, por Michael Fakhri, Hilal Elver e Olivier De Schutter[editar | editar código-fonte]

Publicado no blog Outras Palavras, em 1º de abril de 2021.

Três especialistas alertam: em momento em que 265 milhões de pessoas estão ameaçadas pela carestia, entidade organiza Cúpula dos Sistemas Alimentares sem espaço para discussões cruciais, como a soberania alimentar e a Agroecologia

Os sistemas alimentares globais têm falhado com a maioria das pessoas há muito tempo, e a pandemia de covid-19 agravou a situação. 265 milhões de pessoas estão ameaçadas pela fome, um aumento de 50% em relação ao ano passado; 700 milhões sofrem de fome crônica; e mais 2 bilhões de desnutrição, com a obesidade e outras doenças relacionadas à dieta aumentando em todas as regiões do mundo.

Todos concordam que precisamos de soluções e de ações urgentes. A convocação da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU deste ano pelo Secretário-Geral António Guterres foi, portanto, bem-vinda. No entanto, à medida que avançamos para momentos críticos no caminho para a Cúpula, continuamos com a profunda preocupação de que esta “cúpula dos povos” irá falhar com as pessoas que afirma servir.

Depois de mais de um ano de deliberações, os participantes da Cúpula se reunirão neste mês de outubro em Nova York para apresentar “princípios para orientar governos e outras partes interessadas que buscam alavancar seus sistemas alimentares” para apoiar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Seremos informados de que os resultados foram endossados pelos grupos da sociedade civil que participaram e que foram coletadas propostas de “soluções” por dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo. E se outras soluções não existirem, seremos informados de que isso ocorre porque seus proponentes se recusaram a vir à mesa para dialogar.

Mas vir à mesa para discutir “soluções” não é tão simples quanto parece. E se a mesa já estiver posta, os lugares previamente estabelecidos sem negociação e o cardápio muito limitado? E se a conversa real estiver realmente acontecendo em uma mesa diferente?

Essas preocupações continuam tão urgentes quanto eram no dia 1.

Primeiro, a Cúpula inicialmente ignorou os órgãos que já realizavam o árduo trabalho de governar os sistemas alimentares globais. O Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) da ONU já conta com a estrutura que os organizadores da Cúpula vêm reconstruindo às pressas: um espaço para discutir o futuro dos sistemas alimentares, um compromisso integral com o direito à alimentação, mecanismos para envolver a sociedade civil e o setor privado em seus próprios termos e um painel de especialistas que fornece, de maneira regular, relatórios de ponta. Em outras palavras, todos já estão à mesa. A Cúpula flagrantemente – e talvez deliberadamente – desviou a atenção dos governos do CSA.

Em segundo lugar, as regras de engajamento da Cúpula foram determinadas por um pequeno conjunto de atores. O setor privado, organizações que atendem ao setor privado (notadamente o Fórum Econômico Mundial), cientistas e economistas iniciaram o processo. A mesa estava posta com suas perspectivas, conhecimentos, interesses e preconceitos. Investidores e empresários que trabalham em parceria com cientistas definiram a agenda, e governos e atores da sociedade civil foram convidados a trabalhar dentro desses parâmetros. Inevitavelmente, isso significou um foco no que o pequeno grupo via como soluções escalonáveis, amigáveis ao investimento e “revolucionárias” – o arroz com feijão de Davos1. Lendo nas entrelinhas, isso significa sistemas agrícolas controlados por inteligência artificial (IA), edição de genes e outras soluções de alta tecnologia voltadas para a agricultura em grande escala.

Como resultado, as ideias que deveriam ter sido o ponto de partida para uma “cúpula dos povos” foram efetivamente excluídas. Por mais de uma década, agricultores/as, pescadores/as, pastores/as e trabalhadores/as do setor de alimentos vêm exigindo uma transformação do sistema alimentar enraizada na soberania alimentar e na agroecologia. Essa visão baseia-se no redesenho, na diversificação e na realocação dos sistemas agrícolas. Requer que as premissas econômicas sejam questionadas, os direitos humanos sejam protegidos e o poder seja reequilibrado.

Algumas concessões foram feitas no caminho para a Cúpula. Mas essas mudanças foram tardias ou cosméticas demais para impactar significativamente o processo. Somente em novembro o CSA foi adicionado ao Comitê Consultivo da Cúpula. E apenas neste mês o escritório de Direito à Alimentação da FAO foi convidado a participar (com um mandato limitado). Presumivelmente, haverá mais mudanças nas margens: os direitos humanos serão mencionados em termos gerais, a agroecologia será incluída como uma das muitas soluções.

Mas isso não será suficiente para tornar os resultados da Cúpula legítimos para aqueles de nós – dentro e fora do processo – que permanecem céticos. Tendo todos atuado como Relatores Especiais da ONU sobre o Direito à Alimentação, testemunhamos em primeira mão a importância de melhorar a responsabilidade e a democracia nos sistemas alimentares e o valor do conhecimento local e tradicional das pessoas. É profundamente preocupante que tenhamos passado um ano persuadindo os responsáveis pela convocação de que os direitos humanos são importantes para esta Cúpula de Sistemas Alimentares do Secretário-Geral da ONU. Também é altamente problemático que as questões de poder, participação e responsabilidade (ou seja, como e por quem os resultados serão entregues) permaneçam sem solução.

Aqueles de nós que compareceram à mesa da Cúpula o fizeram na esperança de poder mudar fundamentalmente seu curso. Com a aproximação do final do jogo, ainda esperamos que isso seja possível. Mas uma mudança radical é necessária:

● O direito à alimentação deve estar no centro de todos os aspectos da Cúpula, com atenção para responsabilizar aqueles com poder;

● A agroecologia deve ser reconhecida como um paradigma (se não o paradigma) para a transformação dos sistemas alimentares, ao lado de recomendações viáveis para apoiar a transição agroecológica;

● O CSA deve ser designado como a casa dos resultados da Cúpula e o local onde são discutidos e implementados, usando seus mecanismos de participação inclusiva.

Em outras palavras, para fazer desta uma cúpula dos povos, a mesa precisa ser reposta com urgência.

 

Um ano depois, crise da covid-19 prova que a pandemia afeta mais negros, por Ana Luíza Matos de Oliveira[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente no Jornal Brasil de Fato, em 02 de abril de 2021.

Para além do impacto da crise sobre a população negra, chama atenção a falta de respostas do poder público

“Neste quadro de estrutural desigualdade, a chegada de uma crise econômica como advento de uma crise de saúde pública – que, em seu conjunto, tem sido chamada de “coronacrise” – exacerba as características de exclusão da sociedade brasileira: se em momentos de “bonança” negros e negras se encontram em um patamar mais vulnerável em termos de garantias de emprego, renda e acesso aos direitos sociais, em momentos de crise – sem que medidas eficazes sejam tomadas – negros e negras também se veem mais prejudicados.”

A cor/raça dos trabalhadores mais afetados na coronacrise, março de 2020.

Na década de 90, na luta de combate ao racismo   e contra os mecanismos de exclusão da população negra advindos do neoliberalismo e da globalização em curso naquele momento no Brasil e no mundo, surgiu a CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras.

É construída a partir de uma articulação das organizações participantes do I Encontro Nacional de Entidades Negras – ENEN, realizado na cidade de São Paulo em   novembro do ano de 1991.

A CONEN, fundada em 1991, consolidou-se como uma instância nacional e num espaço de construção da unidade na ação das centenas de entidades negras, presentes em todo o território nacional, que acompanham a sua orientação, respeitando a visão política de cada uma delas, as diferenças regionais e a realidade de vida da população negra onde estão localizadas. É marcante a presença da CONEN no cenário nacional e internacional da luta de combate ao racismo, no Brasil e no mundo.

O momento político atual e os números da pandemia em março de 2021

A CONEN comemora seus 30 anos de existência diante de uma conjuntura de retrocessos e retirada de direitos implementados por um projeto ultraneoliberal de um governo de extrema-direita, marcado por ataques à democracia e à destruição de direitos; aumento das desigualdades, da violência, do desemprego, da carestia dos alimentos, da fome e da pobreza.

Um governo genocida e negacionista da ciência, que frente a uma crise sanitária, a covid-19, brinca e joga com a vida e a morte da população brasileira e empurra o Brasil para o maior colapso sanitário e hospitalar de sua história. A triste realidade é que nesse mês de março, diante da dificuldade da população de manter-se em isolamento social, a circulação no país de novas variantes mais contagiosas e a falta de vacinas para imunizar os brasileiros, haja uma explosão de casos e mortes, com os óbitos próximos de ultrapassar a barreira dos 4.000 por dia e o número de mais de 300.000 mortes acumuladas em um ano.

Salvar vidas e garantir direitos para a população negra

Para aprofundarmos esse debate na CONEN, nos movimentos negros e de mulheres negras, nos partidos do campo democrático e popular, centrais sindicais, na Convergência Negra e nas Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, novamente solicitamos a contribuição da Ana Luiza Matos de Oliveira, uma companheira antirracista que tem contribuído com a formação e formulação política da CONEN no Estado de São Paulo.

Ana Luiza, um ano depois atualiza um texto divulgado pela CONEN em março de 2020, agora com um maior destaque sobre os impactos da covid-19 na vida das mulheres negras. A esse respeito recomenda-se também ler a pesquisa Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia realizada pela Gênero e Número e a SOF-Sempreviva Organização Feminista, em http://mulheresnapandemia.sof.org.br/

O texto seguinte e essa pesquisa demonstram que nem a situação estrutural, nem a pandemia são democráticas, seja do ponto de vista social, étnico e de gênero.

Salvar vidas e garantir direitos para a população negra

Tomar vacina

Defender o SUS

Lutar para o Fora Bolsonaro

Executiva Nacional da CONEN - Coordenação Nacional de Entidades Negras.

Março de 2021


A ampliação das desigualdades raciais com a covid-19

Ana Luíza Matos de Oliveira

No início de 2020, quando do princípio da pandemia de covid-19, escrevemos um texto sobre a cor/raça das brasileiras e brasileiros que possivelmente seriam os mais afetados pela crise a ser enfrentada, em termos sanitários e socioeconômicos.

Em torno de um ano depois, percebemos que a forma como o Brasil enfrenta a crise da covid-19 prova, mais uma vez, que o país não é uma “democracia racial” e que os negros foram e estão sendo os mais afetados pela crise.

Para além do impacto que a crise em si trouxe para a população negra, chama a atenção a falta de respostas do poder público quanto às desigualdades raciais durante a pandemia: assim como para a questão de gênero, para a questão racial não houve políticas específicas capazes de mitigar os impactos da crise.

Assim, em um país profundamente marcado pelo patriarcado, em que as inserções de trabalhadores e trabalhadoras negros e negras também são marcadas pelo gênero, as mulheres negras foram “duplamente” penalizadas.

Indicadores socioeconômicos básicos

Para iniciar, gráficos retirados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2020 ilustram a desigualdade no mercado de trabalho quanto à raça ainda antes da pandemia.

Uma divisão da sociedade brasileira em décimos de renda, como no gráfico 1, mostra que entre os 10% mais pobres, 21,9% são brancos e 77,0% são negros. Já no décimo mais rico, a proporção se inverte: 70,6% são brancos e 27,2% são negros neste grupo. Ou seja, os negros estão mais representados na fatia mais pobre da sociedade que na fatia mais rica.

Gráfico 1.jpeg

Os dados do IBGE também mostram maior presença branca na administração pública e informação/financeiras, dois grupos de atividades conhecidos por melhor remuneração e condições de trabalho.

Os negros (pretos e pardos) se fazem muito mais presentes, segundo dados de 2019, na agropecuária, na construção, no comércio, no transporte, alojamento/alimentação e nos serviços domésticos (onde em torno de 4 milhões de pretos e pardos estão empregados, contra cerca de 2 milhões de brancos).

Os setores onde há maioria negra estão entre os mais impactados com a coronacrise – comércio e serviços, entre eles o trabalho doméstico remunerado. E, sem cair na odiosa demonização dos funcionários públicos, é importante pontuar que os da administração pública tem sua renda relativamente mais protegida neste momento de crise.

O gráfico 2, da mesma publicação, compara os rendimentos médios reais do trabalho principal de trabalhadores brasileiros por sexo e cor/raça. Percebe-se, como comentávamos, a persistência das desigualdades de renda quanto a estes dois quesitos.

Gráfico 2.jpeg

O gráfico 3 mostra que a desigualdade racial persiste quando aumentamos a escolaridade. Pior: ela se amplia quanto maior a desigualdade. Em outras palavras, um trabalhador branco sem instrução/com ensino fundamental incompleto tem rendimento-hora maior que o de um trabalhador negro com a mesma escolaridade, porém esse diferencial de raça é ainda maior se comparamos trabalhadores com ensino superior completo.

Se no primeiro caso o trabalhador branco tem rendimento 1,29 vezes maior que o de um negro, no último caso o trabalhador branco tem rendimento 1,44 vezes maior que o de um negro. Este fenômeno mostra também que, apesar de ser importantíssimo ampliar a escolaridade da população negra, somente ampliar a escolaridade não resolve as desigualdades no mercado de trabalho.

Gráfico 3.jpeg

O gráfico 4 desta publicação mostra as diferentes taxas de desocupação para os anos de 2019, 2016 e 2013 por sexo e cor/raça. Os desocupados, categoria já em situação de vulnerabilidade, foram duramente atingidos pela coronacrise e, entre eles, há maior participação de negros e negras.

Gráfico 4.jpeg

Já dados quanto à informalidade mostram que os negros são também maioria, como mostra o gráfico 5. Assim, a partir do momento em que se iniciou o isolamento social no país, esta categoria específica foi uma das mais afetadas em termos de renda e em termos de exposição ao vírus também: enquanto algumas categorias puderam realizar home office, esta possibilidade é mais remota para trabalhadores informais.

Gráfico 5.jpeg

Ainda sobre vulnerabilidades prévias à pandemia, chama a atenção a grande porcentagem de população preta e parda que reside em domicílios com inadequações domiciliares (Gráfico 6). Sobre este aspecto, vale lembrar que ao longo de 2020 vilas e favelas foram locais de rápida disseminação do covid-19 devido às precárias condições de moradia, somadas ao fato de que muitos dos que ali vivem tem inserções precárias no mercado de trabalho e ficam mais vulneráveis em momentos de crise. 72% dos moradores de favelas se declara negro. Ainda, muitas destas deficiências em infraestrutura social, informalidade e baixa renda se conjugam com a maior prevalência de comorbidades, o que faz da população negra mais vulnerável à covid-19.

Gráfico 6.jpeg

Para finalizar a apresentação dos principais dados do SIS IBGE 2020 quanto à raça/cor, o gráfico 7 trata da distribuição da população por raça/cor, gênero e região quanto à escolaridade. Percebe-se uma diferença entre a escolaridade da população branca e da população preta e parda.

Gráfico 7.jpeg

Ao falar do sistema previdenciário, em especial do Regime Geral de Previdência Social, é importante destacar que negros são maioria nos postos de trabalho sem contribuição à previdência social, o que se reflete no acesso ao sistema quando da velhice ou no caso de algum problema no meio da vida laboral. Essa é mais uma fragilidade que se expressa no mercado de trabalho e tem impactos nas trajetórias dos negros e negras, deixando-os mais vulneráveis nesse contexto de crise.

 

Empresários negras e negros e os impactos da coronacrise

Sobre donos de empresas, na publicação anterior mostramos que em 2014 havia mais empresas cujos donos eram negros que brancos. No entanto, ao segmentar as empresas entre empregadores e conta-própria, os negros são maioria entre os conta-própria e os brancos maioria entre os empregadores. Já entre os Microempreendedores Individuais (MEIs), 46% se declarou branca, 42% parda, 9% preta, 2% amarela e 1% indígena em 2015.

Sobre os impactos já observados da pandemia nos empresários negros, pesquisa do Sebrae e FGV realizada de 29 de maio a 2 de junho mostra que os empreendedores negros foram mais impactados pela pandemia do coronavírus, entre os donos de pequenos negócios no país.

De acordo a pesquisa, os empreendimentos mantidos por negros sofreram mais impacto porque não conseguiram funcionar, principalmente por atenderem (45%) somente de forma presencial. Ao contrário dos 40% dos empreendedores brancos que conseguiram continuar com os negócios com o auxílio de ferramentas digitais, 32% dos negros fizeram uso desse tipo de recurso.

Em relação ao uso de redes sociais, enquanto 48% dos empreendedores brancos já vendiam com auxílio da Internet antes da pandemia, o percentual era de 45% entre os negros. Ainda, dos empreendedores negros que vendem pela Internet, a maior parte utiliza o Whatsapp (88%), enquanto entre os brancos utilizam sites próprios e Facebook.

A pesquisa também mostra que era, neste período, maior a proporção de negros com empréstimos (69%). Entre os negros que têm dívidas, dois em cada três estão em atraso (relação maior que a dos brancos). Negros e brancos pediram empréstimo em bancos em proporção semelhante, mas os negros tiveram maior recusa (61%), enquanto para os brancos foi de 55%. O valor solicitado pelos negros (R$ 28 mil) é 26% mais baixo do que o solicitado pelos brancos (R$ 37 mil).

Já outra pesquisa do Sebrae e FGV, realizada entre os dias 25 e 30 de junho, mostra que o recorte de gênero e raça/cor é muito importante para entender os impactos da pandemia entre empresários.

A pesquisa mostra que enquanto 36% das empreendedoras negras estão com a atividade interrompida temporariamente, essa proporção cai para 29% entre as empresárias brancas e 24% entre os homens brancos (entre os homens negros, essa proporção é de 30%), o que é em parte explicado pelo fato de seus negócios operarem somente de forma presencial (27%). Entre as brancas essa proporção cai para 21%, entre brancos 20% e entre negros 25%.

A pesquisa também mostra que 58% das empreendedoras negras que pediram empréstimo não conseguiram obter crédito. Esse percentual só é mais baixo que a proporção de homens negros (64%), que tiveram o pedido recusado.

Já quando analisamos as razões apresentadas pelas instituições financeiras para a recusa, as mulheres negras apresentaram a maior proporção de CPF negativados (25%), contra 24% dos negros, 17% de brancas e 15% de brancos.

O estudo também mostrou que as mulheres negras à frente de uma empresa têm a maior proporção de negócios que utilizou redução de jornada/salários (29%).

Por fim, a pesquisa monstra que a proporção dos negócios que tomou a decisão definitiva de fechar é maior entre as empreendedoras negras (5%), contra 4% no caso das mulheres brancas e homens brancos e 3% no caso dos homens negros.

Trabalhadores domésticos e o impacto da coronacrise

A categoria de trabalhadoras domésticas é uma das mais vulneráveis à crise, seja pelo elitismo dos que que não conseguem realizar seu trabalho doméstico mesmo infectados com o vírus e as colocam em risco (o que levou a que uma das primeiras mortes por covid-19 no Brasil fosse de uma trabalhadora doméstica), seja porque muitas perderam a renda. Dados de 2018 mostram que as mulheres negras são a maioria dos trabalhadores deste setor (Tabela 1).

Tabela 1 – Trabalhadores domésticos de 18 anos ou mais de idade, segundo posse de carteira de trabalho, sexo e raça/cor – Brasil (2018)

 

 

Com carteira

Sem carteira

Total

Homens

Negros

119.980

180.706

300.686

Brancos

82.340

95.724

178.064

Total

202.320

276.430

478.750

Mulheres

Negros

1.071.496

2.787.614

3.859.110

Brancos

571.970

1.272.360

1.844.330

Total

1.643.466

4.059.974

5.703.440

Fonte: Adaptado de Pinheiro, Tokarski e Vasconcelos (2020)

De fato, a categoria foi fortemente afetada pela crise, não só pela doença em si, mas também pelos impactos econômicos da coronacrise.

Populações extremamente vulneráveis: quilombolas, população de rua e população carcerária

Quanto a quilombolas, vale apontar que esta população sofre de extrema vulnerabilidade em critérios socioeconômicos. Os quilombos foram fortemente impactados não só pelo vírus em si, mas pela crise econômica gerada pela pandemia, com a informalidade, a falta de infraestrutura social e o baixo acesso a informação sobre como acessar benefícios emergenciais.

Segundo o site quilombosemcovid19.org, 4.962 quilombolas foram confirmados com a covid-19 e 210 faleceram devido à doença até 02/03/2021, com grande concentração das mortes tendo ocorrido no Norte do país. Felizmente, por pressão do movimento negro e quilombola, os quilombolas foram incluídos como população prioritária na vacinação.

Quanto à população de rua, claramente vulnerável por estar exposta e ter fragilidades de saúde, há poucos dados em escala nacional. Uma publicação do Ministério da Saúde de 2014 aponta que 72,8% das crianças e adolescentes em situação de rua são negros. Já pesquisa de 2008 do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostra que 67% das pessoas em situação de rua são negras.

Neste documento, alerta-se que apenas 47% da população de rua estava no Cadastro Único de Programas Sociais. Já estimativas de março de 2020 informam que a população de rua no Brasil excedia os 220 mil. Se faltam estatísticas confiáveis sobre a quantidade de pessoas em situação de rua no Brasil, faltam também dados nacionais sobre infecções e óbitos por coronavírus desta população específica. Felizmente, moradores de rua também foram incluídos na população prioritária para a vacinação contra o coronavírus.

Por fim, no sistema carcerário, duramente atingido pelo vírus (o que levou o IDDD a pleitear a redução da população carcerária face à pandemia), a grande maioria é de negros e negras: entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos.

Até 2 de fevereiro de 2021, segundo boletim do CNJ, foram registrados 253 óbitos por covid-19 (112 entre servidores e 141 entre pessoas presas) e 62.351 casos confirmados (15.450 entre servidores e 46.901 entre pessoas presas) em todo o país. Foram realizados, até o momento, 62.459 testes em servidores e 245.465 em pessoas presas. Infelizmente, nas últimas semanas, os números de óbitos e casos confirmados estão aumentando mais aceleradamente.

Perda de renda e o impacto do Auxílio Emergencial

Fares, Oliveira, Cardoso e Nassif-Pires (2021) investigam os impactos do Auxílio Emergencial (AE) por gênero e dimensões raciais, utilizando dados da Pesquisa Domiciliar Brasileira covid-19-19 (PNAD-COVID). Usam os dados coletados em junho e setembro para comparar a renda do trabalho usual anterior à pandemia com a renda do trabalho real do mês anterior informada em junho e setembro. Os resultados se encontram no quadro 1.

Quadro 1.jpeg

À esquerda do Quadro 1, percebe-se a renda familiar per capita absoluta do trabalho anterior à pandemia, em maio, em agosto e em agosto com a adição de AE por gênero e raça do chefe da família. Todos os grupos sofreram perda de renda do trabalho e puderam recuperar parcialmente essa perda entre maio e agosto. Exceto para famílias chefiadas por homens brancos, o AE mais do que compensou a perda de renda do trabalho.

No lado direito da Quadro 1 são representados os mesmos valores, mas em relação aos domicílios chefiados por mulheres negras e pardas. Antes da pandemia, a renda do trabalho per capita de famílias chefiadas por homens brancos era quase 2,5 vezes maior do que a de famílias chefiadas por mulheres negras.

Também pode-se ver que todos os grupos ganharam relativamente às famílias chefiadas por mulheres negras e pardas em maio e em agosto, indicando que as mulheres pretas e pardas sofreram um impacto maior da perda de renda do trabalho em maio e estão experimentando uma recuperação mais lenta do que qualquer outro grupo.

A renda do trabalho de famílias chefiadas por homens brancos, homens negros, e mulheres brancas, respectivamente, chegou a ser 2,55, 1,41 e 1,88 vezes maior que a das famílias chefiadas por pretas e pardas em agosto. O AE, no entanto, é responsável por aproximar a renda das famílias chefiadas por mulheres negras da de todas as outras.

As dúvidas em torno à continuidade do AE e as mudanças quanto a seus valores e formatos representam uma enorme perda para as famílias chefiadas por negros (em especial mulheres negras), tanto em termos absolutos quanto relativos.

Considerações finais

As políticas sociais que poderiam dar apoio a esta população estão gravemente subfinanciadas, em especial a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95/2016. Assim, o Brasil chega à coronacrise com menos instrumentos para rebater os efeitos da crise, com o SUS subfinanciado (Guidolin, 2019) e com a população mais vulnerável. É importante frisar que as reformas econômicas adotadas desde 2016 a partir do arcabouço da austeridade fizeram o país gastar menos com os mais vulneráveis – e aqui no texto fica claro qual é a cor/raça destes.

 

Um antivírus contra a fome, por Renata Souza[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em O Globo, em 11 de abril de 2021.

 

A ONU já declarou que a fome não ocorre no século 21 por falta de alimentos, mas pela deliberada negação destes a quem precisa. Gerado pela desigualdade, o vírus da miséria esvazia estômagos, agiganta-se e engole o futuro, tão duvidoso neste contexto de colapso sanitário, socioambiental, econômico e ético-político.

Segundo a ONU, 2020 terminou com 88 milhões de pessoas — 19 milhões de brasileiros — em situação de fome aguda, 21% a mais do que em 2019. No Brasil, em 55,2% dos lares, não se come o mínimo recomendado, segundo dados do Inquérito Nacional sobre Soberania e Segurança Alimentar, da Rede Penssan.

Nas favelas brasileiras, 68% comem uma refeição por dia, de acordo com pesquisa do DataFavela, Instituto Locomotiva e Cufa em 2.180 lares. Dessas famílias, 8 em cada dez admitiram depender da solidariedade para ter o que comer; 93% não têm poupança; e 71% vivem com menos da metade da renda pré-pandemia. A pesquisa foi aplicada em fevereiro, momento da queda dos valores do auxílio emergencial, de R$ 600 para R$ 300 e de R$ 1.200 para R$ 600 (no caso das mães solo), e de desemprego no maior grau desde 2012, com 14,3 milhões sem sustento.

O coronavírus não inventou a desigualdade, mas agravou os seus impactos. O ritmo da contaminação por Covid é duas vezes mais veloz nas favelas (105%) do que no município (45%), revelam os dados da saúde pública do Rio. O vírus não seleciona vítimas por classe ou raça, mas negras e negros correm risco 77% maior de morrer do que pessoas brancas, segundo a saúde pública de São Paulo.

A fome só não é maior porque emergiu das favelas uma potente ação de solidariedade, que esbarra, porém, na expansão da miséria, de outras doenças, como a tuberculose, do desemprego, do déficit de moradia, da carestia dos alimentos. Quem há pouco era doador hoje demanda ajuda. A resposta do Estado é insuficiente. Se em 2020 o auxílio emergencial reduziu a pobreza no Brasil em 3,74%, aconteceu o contrário no Rio: a faixa da população mais pobre cresceu 1,55%.

Para identificar causas e formular soluções — em articulação com atores do poder público e de movimentos sociais que atuam na linha de frente do combate à fome, como MTST e Coalizão Negra por Direitos —, assumimos, na Alerj, a presidência da Comissão Especial de Enfrentamento à Miséria e à Pobreza Extrema. Enquanto construímos um plano emergencial, agimos por meio de iniciativas como as indicações para reabertura de restaurantes populares; de auxílio para pequenos empresários; e de autorização do uso de verbas do Fundo Estadual de Combate à Pobreza no custeio e aumento do valor do cartão-merenda escolar.

A gente precisa cultivar a igualdade como antivírus para a fome e a miséria ou não haverá futuro, nem para aqueles 1% que insistem em usar o Estado a serviço do próprio enriquecimento. Façamos uma mudança radical, estrutural e urgente no modelo de gestão pública das riquezas, ou não haverá riquezas. Preservar a vida e a dignidade humana é a nossa palavra de ordem. A esperança urge aqui e agora.

*Deputada estadual (PSOL-RJ), presidente da Comissão Especial de Enfrentamento à Miséria e à Pobreza Extrema da Alerj

 

 

Fique no barraco!, por Edu Lyra[editar | editar código-fonte]

Originalmente publicado em O Globo em 13 de abril de 2021.

 

Em meio ao pior momento da pandemia, o Brasil diz novamente para a favela: “Fique em casa”. Mas pouca gente se pergunta: que casa?

Eu respondo, leitor. O barraco na favela tem 15 metros quadrados, pouco mais, pouco menos. É construído com madeira catada na rua. O chão é de terra batida, e uma lona faz as vezes de telhado. Mães, filhos e avós se espremem em um ou dois cômodos sem reboco.

“Fique em casa!” Mas que casa? Milhares de brasileiros vivem ao lado de um córrego fedorento, sem acesso a água encanada e esgoto. O banheiro se resume a uma fossa, um buraco cavado no chão.

Quando chove, a enchente leva embora o pouco que se pôde conquistar — uma geladeira, um colchão, algumas roupas. Outras tantas famílias estão empilhadas em beiras de encosta, rezando para que, no próximo temporal, um deslizamento não as soterre.

“Fique em casa”, sim, mas que casa? Tem gente que abre a geladeira e não vê nada além de água. Há quem coloque os filhos para dormir sem poder lhes oferecer nem um copo de leite. Dormir, aliás, pelo menos engana a fome. Quando o favelado acorda, é que começa o pesadelo.

Ficar em casa é um apelo racional, que atende a recomendações dos epidemiologistas. Mas como viabilizar esse confinamento? No barraco não há computador, muito menos wi-fi. O favelado não faz home office. Precisa entregar comida de bicicleta, catar latinha na rua, faxinar a casa dos patrões.

As igrejas e os bares lotam. Sim, está errado, e tudo deve ser feito para desestimular tal comportamento. Mas como explicar a esses garotos e fiéis que é ok se expor ao vírus para trabalhar, mas não no momento de oração ou de lazer? As condições são muito desiguais para cada um cumprir as regras de isolamento.

A sociedade não pode simplesmente dizer “fique em casa” sem levar em conta o país em que vivemos. Aqui na favela, 37% das pessoas sonham em um dia ter uma casa, segundo o DataFavela. Sonham, acima de tudo, com um lar, uma moradia acolhedora que permita viver bem, não apenas sobreviver. Sem considerar essa radiografia social, dizer “fique em casa” é tiro n’água.

Nenhum lugar do mundo fez isolamento em meio a tanta carência. Lockdown é política pública ou não é nada. Se o favelado não tiver condições de ficar em casa com um mínimo de dignidade, ele vai sair e buscar seu sustento. E não se engane: esse não é um problema apenas da periferia. Se o vírus não parar de circular, perdemos todos, moradores da favela ou do condomínio de luxo.

A sociedade precisa fazer uma escolha. Ou continuamos repetindo ao vento “fique em casa”, ou damos condições para que esse conselho seja seguido. O retorno do auxílio emergencial não vai bastar, porque R$ 150 não sustentam uma família. A periferia precisa como nunca de um olhar solidário, de doações, de engajamento.

A fome não mata apenas os mais pobres. Mata também a nossa civilidade. Felizmente, as doações, que estavam na UTI, começaram a reagir.

Que esse “fique em casa” deixe de ser um bordão inócuo para uma imensa parcela da população e se torne uma pergunta: do que você precisa para poder ficar em casa?

 

 

Covid e a desigual morte materna no Brasil, por CFEMEA[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado no blog Outras Palavras em 07 de junho de 2021.

 

Nesse contexto de crise sanitária, a mortalidade materna, causou a morte de mais de 1.114 mulheres no Brasil, sendo que as mortes entre negras é 77% superior às das brancas. O Brasil já responde por 75% das mortes de grávidas e puérperas em decorrência da covid-19 em todo o mundo. Uma realidade trágica e cruel.

No último dia 28 de maio, celebramos o Dia Nacional pela Redução da Mortalidade Materna, que na verdade, não há muito o que celebrar. Em uma recente pesquisa divulgada pela Ong Criola, aponta que as mulheres negras “são 62% das vítimas de morte materna versus 35,6% das mulheres brancas. Em todo o Brasil, a taxa de morte materna está em 59,1 [mortes por 100 mil nascidos vivos], ficando bem atrás do índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que seria menor que 20.” O fato de as mulheres negras serem as maiores vítimas de morte materna, revela mais um fosso das desigualdades raciais no Brasil, o acesso à saúde.

Desde o início da pandemia, denunciamos todas as políticas de governo que deveriam ser propostas e implementadas parar combater essas desigualdades e violências, entretanto parecem ser mais catalizadoras de uma política cada vez mais contra os direitos das mulheres. Em março deste ano, vimos uma proposição legislativa denominada de “Estatuto da Gestante” ser mais um Cavalo de Troia contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A força da denúncia do movimento feminista contra a atrocidade que essa proposta trazia, paralisou, ao menos por hora, a continuidade da sua tramitação. Essa e tantas outras medidas do governo e sua base conservadora no Congresso Nacional são detalhadas pela nota “Que governo é esse que diz defender a maternidade, mas ataca direitos e ameaça a vida”, pela Frente Nacional pela Legalização do Aborto e contra a Criminalização das Mulheres.

Na Baderna Feminista desta semana, o Cfemea conversou com a pesquisadora sobre desigualdades raciais no acesso aos serviços de saúde, direitos reprodutivos e racismo, interseccionalidade e saúde das mulheres, Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública e integrante do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva/Abrasco.

Na entrevista Emanuelle Goés falou sobre como o racismo estrutural está entranhado na sociedade brasileira, sobretudo no acesso à saúde desta população e apontou como os serviços de atendimento ao aborto legal, considerados não essenciais durante a pandemia, têm afetado a vida de mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual e a urgente necessidade de mulheres grávidas e puérperas serem incluídas como prioridade na vacinação contra a covid-19. “As mulheres negras morrem porque estão em lugares com vazios assistenciais, mas também morrem dentro do serviço de saúde porque são maltratadas, são atendidas de forma precária, são mal atendidas, são colocadas em última instância e isso também leva a morte das mulheres negras. Essa é a nossa realidade e dentro da pandemia o que a gente tem observado é o agravamento desse cenário”, destaca Goés.

O racismo se manifesta na sociedade brasileira de diferentes formas, de que modo o racismo se manifesta na saúde da população negra, principalmente quando falamos de mulheres negras?

Para a população negra o racismo se manifesta de diversas formas, na saúde por exemplo, são barreiras institucionais para chegar no serviço, no atendimento direto com discriminação racial, na qualidade de vida porque mora, em geral, em locais onde a qualidade de vida é mais precária, seja porque não tem acesso à serviços de saúde ou porque a localização também não fornece um bem-estar, desde não ter praças, áreas de lazer, então a vida fica totalmente precarizada. E essas regiões que são segregadas racialmente, são barreiras também territoriais, geográficas, e isso vai se somando para população negra de forma acumulativa. No caso das mulheres negras ainda tem outro elemento estrutural que são as desigualdades de gênero. As mulheres negras também vão sofrer essa intersecção de gênero e raça. O racismo e a desigualdade de gênero vão interagir e colocar as mulheres negras em situação mais agravada quando observamos as mulheres brancas, em relação ao acesso aos serviços de saúde, em relação à qualidade de vida, em relação à saúde reprodutiva, por exemplo. Toda a trajetória de saúde reprodutiva das mulheres negras vai ser distinta, porque tem ali o racismo incrementando, atravessando essa trajetória. E ao mesmo tempo, quando a gente compara com os homens, que em grande parte têm uma qualidade de vida mais precária, morrem mais de doenças crônicas, por exemplo, as mulheres negras também estão numa situação muito desfavorável que muitas vezes se aproxima até mesmo do que é para os homens brancos. As mulheres negras estão expostas a intersecção do racismo, nas suas diversas manifestações, com a desigualdade de gênero e com outros marcadores de opressão que também atravessam a trajetória de saúde das mulheres negras.

Com a pandemia , o cenário da mortalidade materna se agravou. Foram mais de 960 mulheres grávidas que perderam a vida para a covid. O Brasil é responsável por 77% das mortes maternas no mundo durante a pandemia do coronavírus. O que esses dados revelam sobre o acesso à saúde das mulheres no país, sobretudo em relação ao recorte racial e de classe?

Esses dados revelam as desigualdades raciais, de classe e de região de nosso país, todas essas questões que temos observado, estudado, evidenciado e denunciado sobre as desigualdades raciais em relação à morte materna. Todo esse mix de marcadores, raça, região e classe compõem um perfil, são mulheres negras, que estão nas periferias, nas regiões com menor acesso a serviços que são os grandes vazios assistenciais, onde não tem serviços de saúde para atender a população que está ali. É nesse tripé – raça, região e classe – em que as mulheres negras estão em maior concentração. O que temos visto nos estudos sobre morte materna na pandemia é que existe um marcador de desigualdades que leva a morte dessas mulheres. Países de média e baixa renda não têm esse elevado número de morte materna como acontece no Brasil. Assim, como nos países onde se tem as desigualdades raciais muito presentes, mesmo em países desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos, onde se tem uma forte presença das desigualdades raciais, do racismo institucional, e isso também se revela quando observamos a morte materna, quando as mulheres negras morrem muito mais, sendo que são uma população muito menor e morrem muito mais de morte materna mulheres negras e latinas nos Estados Unidos. O que é semelhante ao Brasil, que é morrer pelas desigualdades raciais, morrer pelo racismo nas suas diversas manifestações. As mulheres negras morrem porque estão em lugares com vazios assistenciais, mas também morrem dentro do serviço de saúde porque são maltratadas, são atendidas de forma precária, são mal atendidas, são colocadas em última instância e isso também leva a morte das mulheres negras. Essa é a nossa realidade e dentro da pandemia o que a gente tem observado é o agravamento desse cenário, em particular da mortalidade materna, que denunciamos que as mulheres morrem mais de morte materna e que a morte materna não alcançou a meta de redução nos objetivos do milênio porque não foi feita a discussão de melhorar, de qualificar e humanizar o atendimento e de enfrentar o racismo institucional.

Atrasar a gravidez foi a sugestão do Ministério da Saúde às mulheres. O que está por trás dessa “dica”?

A questão não é o que se diz, mas o que está por trás disso, então as mulheres não engravidarem ou atrasarem a gravidez e o Estado não promove nada para que as mulheres possam ter um planejamento reprodutivo adequado, correspondendo aí a crise sanitária. O que fazemos com essa informação? É deixar à própria sorte mesmo? As mulheres engravidarem ou não é uma responsabilidade das mulheres? O Estado diz isso “atrasem a gravidez”, mas não promove nenhum tipo de responsabilização, de caminhar junto nesse processo com as mulheres, na decisão das mulheres de engravidar ou não, porque ele pode até indicar que seria melhor, mas não deve obrigar a fazer essa indicação. Mesmo que fornecesse métodos, as mulheres poderiam escolher entre adiar ou não, mas temos um Estado que não tem um serviço de atenção à saúde reprodutiva, saúde sexual, que funcione previamente, temos um serviço que funciona de forma muito precária, que não tem uma ampla oferta de métodos contraceptivos, não tem uma ampla oferta de informação do cuidado, da atenção, do uso dos métodos e por outro lado também não tem como atrasar ou controlar isso, isso não está sob um total controle, muitas gravidezes podem ocorrer mesmo usando todos os métodos, podem acontecer intercorrências e a mulher engravidar. O mais sério são as mulheres que engravidam em decorrência da violência sexual, as adolescentes, especialmente. Esse mesmo Ministério que manda as mulheres atrasarem a gravidez, fecha os serviços apontados como não essenciais como os serviços de atenção ao aborto legal. Então, como é que lida com essa “dica” diante de uma total isenção do Estado, no que se refere ao acesso à a saúde reprodutiva, no que se refere aos direitos reprodutivos das mulheres, é esse é o nosso cenário essa é a grande questão.

Temos um governo que violenta os direitos sexuais e reprodutivos através de portaria e atua, principalmente no Congresso Nacional com a bancada fundamentalista, a todo momento para retroceder os direitos ao aborto legal, por exemplo. Como essa situação se relaciona com os índices de mortalidade materna?

Esse cenário tem toda uma relação com a taxa de mortalidade materna. Porque no pouco que avançou e no pouco que conseguimos solidificar dentro desse país, as mulheres ficam muito mais vulneráveis a quadros como o aborto inseguro, e o aborto inseguro é a quarta causa de morte materna. Não só isso, mas também como mulheres que precisam planejar sua gravidez por essas questões e como não tem uma ampla oferta nos serviços, essas mulheres terminam engravidando e tudo isso pode levar a desfechos desfavoráveis quando se tem uma gravidez não planejada, não pretendida, não desejada, todas essas questões estão imbricadas nos direitos sexuais e reprodutivos que estão em constante ameaça. Então, se a gente tem uma questão ali sobre o aborto legal, que as mulheres são vítimas de violência sexual correm o risco de não poder realizar o aborto legal, perdermos isso, é perder demais, é retroceder muito, porque tem muito tempo que temos esse direito, esse permissivo em relação ao aborto. É claro que esse desfecho está relacionado à mortalidade materna, é uma questão também de ausência de direitos sexuais e reprodutivos ou da violação de direitos sexuais e reprodutivos.

Em um artigo recente, você pontuou “Os direitos sexuais e reprodutivos vivem em constante ameaça nos contextos de crises humanitárias e isso se agrava quando se associa com estados negacionistas como o Brasil”, quais são essas ameaças, principalmente considerando que vivemos atualmente sob o comando de um presidente genocida?

Quando olhamos ao longo da história as diversas crises humanitárias vemos o quanto isso impactou nos direitos sexuais e reprodutivos, nos direitos das mulheres, de diversas ordens, em diversas dimensões, No Brasil, pensando nesse contexto de pandemia, o retrocesso tem relação com a ameaça com o que se considera essenciais e não essenciais, como pensar que serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva não são serviços essenciais e essa foi uma das primeiras iniciativas, restringe serviços não essenciais e quando fala isso pensa logo no serviço de aborto legal, na atenção ao pré-natal e isso não pode ser “serviço não essencial”, porque as mulheres continuam engravidando, e infelizmente continuam sofrendo violência sexual e, sobretudo, o que foi que a pandemia nos apontou? Que as mulheres se tornaram ainda mais vítimas da violência doméstica, as adolescentes ainda mais vítimas de violência sexual nesse contexto de pandemia por conta do distanciamento social, uma realidade que não foi só no Brasil, mas em outras partes do mundo.

Pensar que os serviços de saúde sexual e reprodutiva não são serviços essenciais, desde a produção de insumos de métodos contraceptivos, de medicamentos para HIV/DST/AIDS, a produção de camisinhas, a oferta mesmo do serviço para atenção do pré-natal, por exemplo, onde as profissionais da Saúde foram realocados para serviços considerados essenciais, que era a atenção à covid-19, a precarização da atenção no pré-natal, sem falar em todo o processo que não havia nenhuma medida protocolar em atenção às mulheres que estavam grávidas no início da pandemia e que até hoje existe uma desorganização disso, e vemos isso em outras questões, por exemplo, não tínhamos as gestantes e puérperas entre os grupos prioritários no plano nacional de vacinação, sendo necessário fazer uma toda uma manifestação de pesquisadoras ativistas e dos movimentos de mulheres para que os gestantes entrassem como grupo prioritário. Lembrando que o Brasil é o país onde mais morrem mulheres de morte materna em decorrência de covid-19. Tudo isso se caracteriza como uma ameaça constante aos direitos sexuais e reprodutivos, porque todas essas crises só fazem agudizar o que as mulheres já viviam e o que a gente tem como direitos são frágeis, no sentido de que o Estado não assegura esses direitos e qualquer situação estamos sob ameaça de perdê-los.

Por que é importante garantir os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas, principalmente nesse momento de crise pandêmica?

Nesse contexto de crise, como falei anteriormente, os direitos são muito frágeis e vulneráveis. Como as mulheres e meninas vão viver no mesmo espaço em que sofrem violência doméstica e sexual? Como é que a gente pensa a partir dos direitos sexuais e reprodutivos conseguimos visualizar que isso poderia acontecer e que precisávamos encontrar medidas para que isso não corresse de forma tão trágica como aconteceu e tem acontecido, em várias partes do mundo. Países onde o isolamento foi muito eficaz, por outro lado a violência doméstica sobretudo, o feminicídio, foi muito elevado, então como implementar medidas sanitárias que não coloquem sob ameaça os direitos e as vidas de mulheres e meninas? Essa é uma reflexão principal que precisa ser trazida. Como atuar numa situação de crise como a que estamos vivendo e ao mesmo tempo não perder de vista os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas — e isso se tornar também o centro da atenção e das medidas sanitárias a serem tomadas?

 

CFEMEA

O CFEMEA é uma organização feminista antirracista que existe para incomodar, deslocar e transgredir. Fundada em, 1989, por um grupo de mulheres feministas, que assumiram a luta pela regulamentação de novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Em 30 anos de existência, a organização desenvolveu ações de advocacy (promoção e defesa de ideias); articulação e comunicação política; ações de formação e mobilização; controle social das políticas para as mulheres e, mais recentemente a promoção do autocuidado e cuidado entre ativistas. Nosso objetivo é a sustentabilidade do ativismo, sabendo que só assim permaneceremos na luta. Estamos junto às nossas companheiras no front da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, no enfrentamento aos fundamentalismos e a todas as formas de violência contra as mulheres e na luta contra o racismo.

 

‘Há uma ligação direta entre insegurança alimentar e racismo no Brasil’, diz nutricionista, por Roberta Carmargo.[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado em Alma Preta, em 17 de maio de 2021.

As pessoas negras consomem frutas e legumes 33% menos do que as pessoas brancas, de acordo com daddos da pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas, do Ministério da Saúde. A nutricionista Áurea Santa Izabel aponta o racismo como o principal agente na manutenção da insegurança alimentar no Brasil. “O racismo alimentar está ligado diretamente aos desdobramentos sociais definidos pela história de mais de 300 anos de escravidão”, afirma a profissional.

A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que cada indivíduo consuma cerca de 400 gramas de frutas ou hortaliças diariamente. A realidade do Brasil caminha no sentido oposto. Com 125 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, somente 29% da população consome a quantidade ideal de alimentos. Os números alarmantes se estabelecem em meio à crise provocada pela pandemia da Covid-19.

Dados do estudo ‘Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil’, realizado pela Universidade Livre de Berlim, mostram que, no segundo semestre de 2020, mais da metade da população teve que conviver com a insegurança alimentar. Neste mesmo contexto, 44% dos brasileiros deixaram de comer carne por não ter meios de custear o alimento.

A nutricionista lembra que o acesso da população negra a alimentos in natura é mais difícil e isso faz parte da estratégia estabelecida pela indústria alimentícia. “A indústria aproveita justamente a população que está fora dessas discussões e que sobrevive a partir daquilo que é oferecido a ela e vem com esses produtos em grande escala,  que ficam mais baratos. A população negra que, na maioria dos casos, não tem condições financeiras e acaba consumindo. Isso faz com que esses alimentos ultraprocessados sejam mais próximos dessa população”, exemplifica Áurea.

Autonomia alimentar através do diálogo

“É uma espécie de doutrinação por osmose que interfere na autonomia alimentar daquela população que faz uma escolha inconsciente daquele alimento e cria um hábito”, explica a pesquisadora na área de Segurança Alimentar e Nutricional, sobre a lógica mercadológica da indústria de alimentos. Para Áurea, o apoio aos pequenos produtores e à agricultura familiar, assim como o diálogo, são meios de combater o racismo alimentar e estimular a autonomia da população negra.

Nas regiões periféricas, os alimentos frescos raramente são a primeira opção da população. “É muito mais fácil você encontrar um miojo ou um saco de biscoito na vendinha da esquina, custando pouco mais de R$ 1. Os grandes mercados não estão nesses lugares para oferecer alimentos mais saudáveis e nem o dono da vendinha tem acesso a fornecedores que estimulem compra e venda de alimentos in natura, por exemplo”, salienta a nutricionista. Neste cenário, destacam-se iniciativas de promoção à alimentação equilibrada e com baixo custo para os moradores das periferias.

Atualmente, a fome atinge 67,5% das famílias negras no país, em uma realidade em que o auxílio emergencial, no valor de R$ 250, não cobre o custo da alimentação. “É muito difícil falar sobre os meios que a população tem para romper com a lógica que sustenta o racismo alimentar, sem apoio do Estado e com o crescimento da indústria de alimentos e da indústria farmacêutica”, reforça Áurea.

“Se eu tenho uma população que se alimenta mal e tem sua saúde prejudicada por isso, eu tenho uma população mais vulnerável e vou vender mais remédio”, pondera a nutricionista, que considera uma evolução nas discussões sobre o tema. “Em 2021, essas discussões estão muito mais amplas. Ainda falta muito para a gente chegar onde quer, mas são ações fundamentais para que a população caminhe na contramão dessa lógica da indústria alimentícia”, finaliza.

 

A “Uberização” do Trabalho no Brasil, por Camila Motta.[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicao em Mad in Brasil, em 25 de maio de 2021.

O artigo “Do Sujeito à Sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia do trabalho em contexto de pandemia pela Covid-19”, publicado na revista Laborativa, levantou algumas reflexões críticas acerca do impacto da pandemia para o trabalhador brasileiro. O embasamento do artigo se deu por uma revisão da literatura científica sobre o assunto e pelas publicações de entidades oficiais, tanto nacionais como internacionais.

A precarização do trabalho no Brasil foi acentuado pela atual crise sanitária do Coronavírus, tornando o contexto trabalhista um local relevante para as observações de certos fenômenos sociais. Enquanto o vírus pode contaminar qualquer pessoa, não atinge as pessoas da mesma forma. Certas categorias profissionais estão mais expostas e vulneráveis ao risco de contaminação que outras.

Desde a década de 80/90 há uma ofensiva neoliberal que ultrapassa as práticas político-econômicas e atingem a subjetividade dos sujeitos, ou seja, suas formas de sentir, pensar e agir. Há uma dominância de um certo “sujeito-empresa” que compete com os outros e consigo mesmo, e ao qual é atribuída a responsabilidade integral dos êxitos e fracassos no trabalho. Uma forma de individualizar questões sócio-históricas.

Outros fenômenos atuais é a “uberização” do trabalho. O trabalho informal no Brasil vem crescendo há alguns anos, e como consequência os trabalhadores estão mais vulneráveis. Aqueles que trabalham para aplicativos, por exemplo, são considerados prestadores de serviço e não mais funcionários da empresa. As empresas já não se responsabilizam pelos trabalhadores como antes, mas são os próprios trabalhadores os responsáveis por si mesmos e por seu material de trabalho.

O uso do “empreendedorismo” para se referir ao trabalho informal disfarça a verdadeira natureza desse tipo de trabalho, criando a sensação de liberdade por parte do trabalhador. Esta liberdade é explorada pelo capital e se caracteriza por uma autoexploração do sujeito que busca sempre produtividade e desempenho, mesmo sem a pressão externa de um patrão.

“Isso ocorre porque as diversas instâncias de poder, que outrora 'dominavam através da violência, coerção, disciplina e imperativos de 'obediência, no modelo neoliberal, se deslocam para espaços invisíveis, 'desaparecem, como é o caso de empresas-aplicativos; os sujeitos 'deixados a mercê de suas próprias iniciativas, acreditam estar libertos das 'ações coercitivas exercidas por essas instâncias de poder; ao se verem 'livres, os membros desse modelo de sociedade partem em suas jornadas 'individuais, a fim de encontrar maneiras de, eles mesmos, acumularem 'seu próprio capital (HAN, 2018; 2015).”

Quando o neoliberalismo desloca as instâncias de poder para espaços invisíveis (já não é mais o chefe, a empresa, instituição…), o sujeito acredita ser o seu próprio chefe, individualizando as questões do âmbito do trabalho, o que acaba dificultando as possibilidades de resistência.

Como consequência da acentuação do processo de precarização do trabalho durante a pandemia, os efeitos negativos na saúde mental dos trabalhadores também serão acentuadas nesse período. Os autores concluem ser necessário resgatar a função social do Estado, reconhecer a importância das Políticas Públicas e recuperar o valor do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem o auxílio do Estado as consequências da Pandemia seriam muito maiores.

***

GUIMARÃES JUNIOR, S.D.; GONÇALVES,L.R; CARDOSO,A.J.S. Do sujeito à sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia organizacional e do trabalho em contexto de pandemia pela COVID -19. R. Laborativa, v. 10, n.1, p. 40- 67, abr./2021 (Link)

 

Terra prometida, por Gabriele Roza (DataLabe).[editar | editar código-fonte]

Originalmente publicado em Ecoa/UOL em 15 de junho de 2021.

 

A rua em frente à estação da BRT Vila Kosmos, na zona norte do Rio de Janeiro, se parece com o início de uma típica favela carioca. Mototaxistas de um lado e um ponto de kombi do outro. A Soldado Bernardino é uma das ruas de acesso à Terra Prometida, uma comunidade localizada no Complexo da Penha. Para chegar até lá, a agricultora urbana Ana Santos indicou: "Você pode descer na esquina e pegar o mototáxi ou o 'Uber favela' até o final". Quando acaba o asfalto e começa o chão de barro, as casas de madeira e pau a pique despontam: "é uma área rural no meio urbano", diz Ana.

Chegando ali dá até para esquecer que é uma região próxima ao centro do Rio de Janeiro. As casas estão espalhadas em uma parte da Serra da Misericórdia, um maciço rochoso de aproximadamente 240 hectares, que abrange 27 bairros da região. Cerca de 200 famílias vivem na comunidade. Ana é uma das moradoras ativas que está sempre pensando em projetos de preservação ambiental para a área, que também é ocupada por pedreiras privadas.

Em 2011, Ana e outras moradoras criaram o Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), um espaço de integração socioambiental e cultural da comunidade. Mas foi em 2018 que elas perceberam que poderiam manter a área verde incentivando a produção de alimentos nos quintais das casas. São esses quintais que hoje, na atual crise alimentar, ajudam a colocar a comida na mesa:

A gente não precisou esperar a pandemia para plantar, mas na pandemia isso se torna muito maior por conta da questão da fome. Na semana passada, não tinha arroz, então a gente colheu cinco quilos de aipim e almoçou aipim, diz Ana.

 

Cultivando soluções

 

19 milhões de brasileiros estão passando fome. Mais da metade da população brasileira não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Esses dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar e foram coletados durante a pandemia da covid-19, mas as previsões para o futuro são ainda piores.

Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2020 (SOFI), produzido pela ONU e outras organizações, atualmente a fome afeta 7,4% da população da América Latina e Caribe, a previsão é de que este percentual aumente para 9,5% em 10 anos.

Como podemos escapar dessa sina? Em cada periferia do Rio de Janeiro você encontra iniciativas dos próprios moradores de combate à fome acirrada na pandemia de covid-19. Coleta de alimentos e entrega de cestas básicas se tornaram rotina de pessoas nas favelas. Mas a Terra Prometida, comunidade rural no Complexo da Penha, mostra como a soberania alimentar pode fazer parte da vida das pessoas faveladas.

 

"A gente precisa sobreviver" 

 

Leildes Xavier dos Santos, 39, apresenta o quintal de sua casa com muito orgulho. Ela mesma se perde na quantidade de plantas cultivadas, que vão desde o arroz e feijão, passando pelo quiabo, aipim, batata doce, pepino, mamão, banana, tomate, até plantas medicinais como a chaya, boldo e aroeira.

Essa aqui é a vinagreira, serve pra remédio, pra matar fome, pra tudo. Na minha gravidez a salvação foi isso', aponta orgulhosa Leildes.

A filha mais nova de Leildes acabou de fazer um ano, mas ela tem outros seis filhos que moram com ela e o marido na Terra Prometida há dois anos.
A diferença de ter esse espaço é que você não compra, você colhe do seu quintal. Nem sempre dá pra comprar. Na crise que nós estamos agora, então?Leildes explica que na pandemia, a família vive do Programa Bolsa Família e dos bicos que o marido faz.

O quintal produtivo agroecológico é uma tecnologia possível de ser replicada em comunidades rurais e urbanas. Além de produzir alimentos na própria casa, as famílias dos treze quintais mapeados pelo CEM trocam entre si os alimentos produzidos. Tem coisas que na minha terra não vai dar, mas do outro lado na Leildes que tem uma outra posição do sol vai dar, diz Ana Santos.

Como a Serra da Misericórdia é um morro, a plantação é feita em curva de nível, a produção é organizada em linhas de diferentes altitudes de acordo com o terreno. Se a gente plantar reto, quando chove vai tudo. Em morro tem um plantio diferente. A galera pergunta se dá pra plantar em morro. Dá! A gente tem a dimensão que pra plantar você precisa ter um grande espaço, mas se a gente tiver recortes de terra, a gente consegue

 

 As disputas pela Terra Prometida 

 

Apesar da Serra da Misericórdia ser uma Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU), desde 1940 pedreiras privadas estão presentes no território. Aqui desse lado é a extração de mármore, essa pedreira faz brita, pedra zero, cimento, pó de pedra, explica Ana.

Segundo a pesquisa de Eric Vidal, aproximadamente 33% da Serra da Misericórdia (80 hectares) são ou foram alvo de exploração mineral. De acordo com o pesquisador, a matéria prima é retirada do maciço de gnaisse, uma rocha metamórfica muito utilizada na construção civil e na pavimentação, e os blocos são removidos através de explosões semanais, que acabam causando rachaduras em residências próximas.

O CEM e o Verdejar, um outra organização que atua na região, denunciam que a atividade causa a degradação ambiental do maciço, retira a cobertura vegetal e do solo superficial e contribui para a formação de ilhas de calor, assoreamento de rios, destruição de nascentes e a poluição do ar e sonora.

Os agricultores urbanos ainda lidam com a falta de água frequente na comunidade. Recentemente, o CEM conseguiu construir uma cisterna para aumentar o plantio. 'Apesar da gente ter várias nascentes, a água não chega. É uma comunidade que não é mapeada pela prefeitura, que não tem acesso a água e a luz. A gente ficou com falta de água por duas semanas, a gente perdeu nossas alfaces, perdemos tudo.

 

"Cultivar a soberania é um super desafio" 

 

Quando a crise chegou, os agricultores do CEM perceberam que o que eles produziam não era o suficiente para matar a fome, então a gente começou a fazer uma campanha com a Rede Ecológica, recebe doações de outros parceiros e reverte isso em cestas agroecológicas, explica Ana. São 200 famílias do Complexo da Penha cadastradas no sistema de entrega de cestas básicas do CEM. Durante sete meses, a organização usou das doações em dinheiro que recebeu de pessoas físicas e grupos parceiros para comprar alimentos para as pessoas que estavam em uma situação de insegurança alimentar na favela.

O grupo resolveu fortalecer a produção agroecológica e comprou os alimentos no Assentamento de Reforma Agrária, também chamado Terra Prometida, em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense do Rio. Você prefere comer arroz e feijão do que comer aipim cozido, por exemplo, então a gente trabalhou esse outro olhar de que a gente precisa se alimentar de verde, que é o que é nutritivo e que pode nos manter firmes, explica Ana.

Para Ana, o conhecimento trocado durante as entregas dos alimentos pelos agricultores de Caxias no Complexo da Penha foi o que deu mais sentido para a parceria. Como a gente pode pincelar essa assistência, esse apoio para transformar em autogestão é o nosso desafio diário. Cultivar a soberania é um super desafio.

Com a troca entre as comunidades, as pessoas da Terra Prometida do Complexo da Penha aprenderam a produzir em uma escala maior e também entenderam que é possível se alimentar de uma forma mais saudável. Muita gente passou a reconhecer que estava envenenado, que só estava comendo porcaria.

 

Como popularizar os alimentos saudáveis para a população periférica?

 

Como popularizar os alimentos saudáveis para o conjunto da população, sabendo que nem todo mundo tem o dinheiro para comprar o produto orgânico?, questiona Bia Carvalho, agricultora do Coletivo Terra, do Assentamento Terra Prometida, em Caxias.

Seria possível se a política pública acreditasse nesse potencial, mas como a gente não tem nesse município, a gente faz uma articulação muito forte com a sociedade. A gente costuma dizer que a gente não é sozinho nunca, a gente só resistiu até aqui por causa da luta coletiva do campo e da cidade.

O Coletivo Terra participou de outras campanhas de doação de comida, como a campanha nacional Tem Gente Com Fome, organizada pela Coalizão Negra Por Direitos e outras ONGs. Entre os dias 15 de abril a 7 de maio de 2021, o assentamento conseguiu montar 4.900 cestas para a campanha.

Daniel Vieira Júnior, 36, agricultor do Coletivo Terra, explica que os projetos solidários, além de serem fundamentais para gerar renda no assentamento, ajudam a dar visibilidade para as pessoas que estão passando fome.

Ele explica que o coletivo se organiza para vender produtos acessíveis para a maior parte da população, não são preços caros, eu sei que o produto orgânico é caro, mas a proposta daqui é produzir um alimento bom e barato. Não é só rico que tem que ter acesso a cestas de orgânico, pobre também tem que comer bem, se alimentar bem, diz o agricultor.

As duas Terras Prometidas passam por uma série de obstáculos para produzir e distribuir comidas saudáveis para pessoas periféricas, é um desafio enorme, a gente conseguiu desafiar a estrada ruim pra passar o alimento, tivemos que passar com quase 5.000 cestas no braço porque a estrada não dá pra passar carro, lembra Bia Carvalho. A grande pergunta é: por que não há esses investimentos se a gente já tá mostrando na prática que é possível combater a fome?

Nota da edição: Essa reportagem faz parte da série de publicações produzidas como resultado do programa Laboratório de Jornalismo de Soluções, da Fundação Gabo e da Solutions Journalism Network, com o apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o jornalismo de soluções na América Latina.

 

Discussões acadêmicas[editar | editar código-fonte]

Esboço de crítica do discurso de "Guerra Contra o Coronavírus", por Marcella Araújo[editar | editar código-fonte]

Texto gentilmente cedido pela autora, Marcella Araújo, e pela revista onde ele foi publicado originalmente, a Horizontes ao Sul. 

No dia 16 de março de 2020, Emmanuel Macron, presidente da França, disse em comunicado à nação que “nous sommes em guerre” [nós estamos em guerra][5]. No dia seguinte, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, tuitou “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN” [O mundo está em guerra contra um inimigo oculto. Nós vamos vencer][6]. O primeiro ministro britânico, Boris Johnson, por sua vez, disse, em coletiva de imprensa, que deveria agir como um “wartime government” [governo em tempos de guerra][7]. Na cobertura televisiva de várias emissoras brasileiras, as chamadas sobre a “guerra contra o coronavírus” foram igualmente recorrentes[8]. Mas nós não estamos em guerra.

Em uma proposição que ficou famosa[9], um general prussiano chamado Carl von Clausewitz (1780-1831) disse que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. O tratado Da guerra, editado e publicado postumamente (1832) por sua esposa, Marie von Bruhl, difere de inúmeros outros escritos sobre a guerra que priorizavam oferecer manuais para os campos de batalha. Clausewitz, por sua vez, pretendia analisar as especificidades do fenômeno da guerra e educar as mentes dos comandantes. Sem mergulhar na discussão sobre a guerra como um instrumento da política de Estado[10], que colegas da Ciência Política poderão fazer com muito mais profundidade, gostaria de frisar este ponto: a guerra é um fenômeno social, um entre outros tipos de conflito.

Como Georg Simmel propôs: o conflito é uma forma de interação social. Só é possível marcar uma posição levando em consideração a existência do outro e manifestando contra ele argumentos ou o uso da força[11]. Conflitos, nesse sentido, envolvem alteridade e reciprocidade – ainda que para marcar antagonismos. Em situações em que os conflitos escalam para o uso da força, cabe lembrar que, em nossa vida coletiva, não aceitamos qualquer exercício de poder - ele precisa vir devidamente justificado. No Estado Democrático de Direito, é a lei que descreve as situações, os direitos e deveres, respaldando o emprego do aparato da força. Mas antes é a crença na legitimidade da lei que garante que ela seja cumprida e são as justificações dadas às formulações racionais contidas na lei que sustentam a própria legitimidade da legislação.

Minha crítica ao discurso da guerra nesta conjuntura pretende apontar os riscos da sua adoção. Sigo em duas frentes. A primeira é identificar as operações discursivas da declaração de guerra: ela circunscreve um coletivo que está sob ataque, ela identifica uma liderança com autoridade para levar adiante os confrontos em defesa desse coletivo e ela nomeia um inimigo agressor. Quando autoridades nacionais recentemente declararam “guerra contra o vírus”, esse “inimigo oculto”, a um só tempo, elas se posicionaram como as lideranças à frente da guerra, em nome de certos entes sociais – a pátria, a economia nacional, as famílias, as empresas, os trabalhadores.

No Brasil, no dia 18 de março, o Governo Federal solicitou o reconhecimento do estado de calamidade pública, dispositivo legal que permite o aumento dos gastos públicos sem violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, vigente desde 2000. Parte da oposição defendeu que a pandemia põe em xeque a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos[12]. O temor de alguns parlamentares é que a vigência do estado de calamidade pública vá além da flexibilização fiscal e abra a brecha para que o presidente Jair Bolsonaro justifique decretar estado de sítio, dispositivo legal previsto no artigo 137 da Constituição Federal de 1988, para situações de guerra[13]. Nesse caso, liberdade de imprensa e liberdade de reunião seriam suprimidas, apreensões em domicílio e intervenções em empresas de serviços públicos seriam permitidas, entre outras medidas. O estado de calamidade pública está vigente no Brasil desde 20 de março[14].

A segunda frente da crítica se detém sobre a discussão da procedência do vírus. Donald Trump não é o único a falar insistentemente que o vírus é chinês[15]. Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) acusou o governo da China de ter escondido informações sobre o coronavírus e comparou a pandemia ao acidente nuclear de Tchernobil (1986), criando uma crise diplomática cujos desdobramentos ainda estão por ser sentidos[16]. Se para muitos o “inimigo” tem uma natureza espectral – ele é invisível a olho nu, oculto, difuso, paira no ar, penetra, adoece e mata corpos humanos –, o racismo contra nacionais e descendentes do primeiro país acometido pela doença procura torná-lo apreensível. A tentativa de atribuição de nacionalidade ao vírus o qualifica, demarca as fronteiras do lugar onde ele teria nascido (ou sido criado, segundo algumas teorias conspiratórias, as quais me poupo de discutir), mas também transforma o fantasma em sujeito. O portador “original” do vírus deveria ter sido tratado e, se a China supostamente não foi transparente na divulgação de informações, ela seria o sujeito inimigo.

Os dois pilares dessa crítica que proponho aqui – a metáfora da guerra para o enquadramento da situação indeterminada presente, por um lado, e o “inimigo oculto”, espécie de fantasma que vai sendo subjetivado, por outro – são tomados de empréstimos de dois sociólogos urbanos e da violência urbana cariocas: Marcia Leite e Michel Misse, respectivamente. Meu propósito ao trazer esses autores é apontar algumas consequências que podemos antever, caso a crise sanitária seja tratada como uma “guerra ao vírus”.

Como o fantasma da violência se tornou um sujeito social no Rio de Janeiro e quais foram os efeitos do emprego da “metáfora da guerra” para combatê-lo? No início dos anos 1980, a “violência urbana” começou a rondar as grandes cidades brasileiras. Em texto intitulado “Violência: o que foi que aconteceu?”, Michel Misse (2002) destaca que a representação da violência nas reportagens e nas falas cotidianas dos moradores do Rio parecia tratá-la como um vírus, no movimento inverso que fiz neste texto. Em suas palavras: “A tal da violência, que parece agir como um espectro ou fantasma, esconde-se ou dissemina-se, é tratada como uma epidemia, um vírus, um micróbio, ou como um Sujeito onipresente, onisciente, onipotente”[17]. Entre os anos 1980, como analisa Misse em inúmeros artigos acadêmicos e em sua tese de doutorado, o que houve foi uma transformação do fantasma social da violência em um sujeito social da violência[18]. Por meio de criminalizações e incriminações das práticas de venda no varejo de drogas, eis que os traficantes de droga se tornaram portadores privilegiados da violência – ainda que ela não se esgotasse neles[19].

Uma das consequências desse processo foi a propagação da “metáfora da guerra”[20], uma guerra contra o “Estado paralelo” dos traficantes de drogas, nas falas de moradores do asfalto carioca e nos discursos das autoridades públicas, como Marcia Leite analisou em sua tese. Artigo mais recente da autora[21], retraça o percurso da “metáfora da guerra” até a “pacificação de favelas”, destrinchando efeitos políticos e cotidianos do emprego da força contra o “inimigo interno” sobre as vidas de moradores de favelas, durante quase trinta anos. Basta lembrarmos os tantos símbolos empregados[22] durante os processos de ocupação militar recente de favelas cariocas, como parte do programa de implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs): “caveirões” do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), incursões de policiais militares pesadamente armados, apagamento de pichações de siglas de facções do tráfico, hasteamento da bandeira nacional no cume dos morros, toques de recolher e revistas indiscriminadas de moradores. Um desenrolar de cenas de “reconquista dos territórios”[23]. Entre muitas outras, a tese de Juliana Farias “Governo de Mortes” descreve densamente as consequências da lógica da guerra e do estado de exceção nas favelas cariocas[24]

Retomar a discussão da sociologia do conflito e as pesquisas de Michel Misse e Marcia Leite, neste texto sobre a pandemia de Covid-19, pretende pinçar elementos e tendências dos processos em curso e abrir perspectivas de inteligibilidade e contestação. É pela “guerra” e as brechas legais que ela permite o caminho que queremos seguir para enfrentar a pandemia?

Na contramão desse discurso de guerra, vemos um outro discurso em gestação: o da solidariedade. Foge às possibilidades deste texto explorá-lo em sua multiplicidade. Restrinjo-me a destacar as cooperações transnacionais em busca da contenção e cura da nova doença. No dia 13 de março, uma equipe da Cruz Vermelha da China com nove médicos, toneladas de equipamentos hospitalares e máscaras chegaram à Itália[25], um dos países europeus em que a crise sanitária está mais aguda, com número de casos e mortes superiores aos da própria China. Cuba[26], por sua vez, enviou 65 médicos para a cidade de Milão, epicentro dos adoecimentos e óbitos. O próprio ministro da Saúde brasileiro, Luiz Mandetta, mais de um ano após encerrar a participação de cubanos no Programa Mais Médicos, pretende reconvocar dois mil deles para fortalecer a rede de saúde pública e o atendimento aos doentes no país[27].

Espero com estas linhas tê-los/as chamado a atenção para os perigos do discurso da guerra. Essa metáfora, a nível mundial, pode nos levar ao acirramento de tensões, racismos e autoritarismos. Temos, em paralelo à exacerbação de conflitos, testemunhado também esforços humanos impressionantes de profissionais de saúde em todo o globo e uma inflexão muito significativa nos debates sobre macroeconomia e política econômica, com a (re)emergência de debates sobre as vidas, a subsistência e o bem estar social[28].

Não estamos em guerra. O que vivemos é uma crise sanitária e econômica, cheia de imprevisibilidade, mas também com grandes aberturas a novos tempos de cooperação.

Pandemia de Covid-19, Assassinato de Marielle e Movimento Escola sem Partido - aproximações, por Roberto Eduardo Albino Brandão[editar | editar código-fonte]

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O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade, por INCT-InEAC/UFF[editar | editar código-fonte]

Texto de Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros[29], originalmente publicado no blog d'O Globo, em 30 de março de 2020. 

Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e práticas do direito no Brasil e em outros países ocidentais. Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza a nossa população em termos de direitos. Ou seja, entre nós, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não há uma estrutura jurídica ordinária que garanta o exercício de um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade é vista como um problema. A inexorável desigualdade econômica produzida pelo o mercado é que deve gerir as desigualdades sociais, e o sistema jurídico deve atuar para mitigá-las. Já aqui a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Essa naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é um obstáculo ao funcionamento regular e regulado do mercado e uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada, constituindo-se também em referência e suporte para sua reprodução, onde pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante.


Essa pandemia coloca em evidência mais uma vez essa naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis. Inicialmente, as chamadas medidas sanitárias – lavagem constantes das mãos com água e sabão – e restritivas de circulação, como a necessidade de praticarmos um “isolamento social” - o qual, na verdade, é um confinamento social que de isolamento nada tem - coloca o foco na suposição de que todos temos, de maneira uniforme, o exercício de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, como por exemplo, as das denominadas favelas ou “comunidades”, existentes em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro e também em outras de nossas cidades e metrópoles. A inexistência de políticas públicas devotadas ao planejamento urbano que propicie o exercício deste direito hoje evidencia uma enorme distância entre os segmentos da classe média urbana e os segmentos menos favorecidos da população no que tange ao seu bem estar no espaço doméstico.


Esta desigualdade se manifesta, ainda, no fato de que os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, confinando-se com suas famílias. Claro que também contando com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação dos trabalhadores domésticos. Confinamento este que também impõe dificuldades suplementares principalmente às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico, das mães que tomam conta sozinhas dos filhos, e no seu efeito perverso, que é o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o "lar" e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos.


Em segundo lugar, a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direito ao trabalho, bem como a sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, deslocando-se por meio de precária e congestionada rede de transportes públicos, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise, tudo isso estimulado por uma espantosa propaganda governamental alheia às prescrições mínimas de segurança sanitária e do trabalho, ao arrepio do resto do mundo.
As comparações com outros contextos têm se concentrado na (in) capacidade de acolhimento da infraestrutura de saúde. Mas os regimes de proteção social e do trabalho das democracias europeias são muito uniformes e presentes no cotidiano dos cidadãos e funcionam como articuladores de políticas em nível nacional. Em contraste, no Brasil, as medidas restritivas severas adotadas pelos governadores dos estados têm atingido apenas uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a direitos como moradia, saneamento, saúde e trabalho. Já as políticas do governo federal têm ido na direção de que os cidadãos podem lidar com seus recursos próprios com as consequências imprevisíveis do contágio.


Finalmente, a crença na eficácia das políticas com ênfase repressiva na saúde e na segurança, seja de “tratamento de doenças”, seja do “tiro, porrada e bomba” – sempre para os “outros” - são condições que dificultam a adoção de medidas preventivas com adesão universal da sociedade. A falta de proteção no trabalho e a falta de confiança nas autoridades públicas limitam a difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade, provocando seu descumprimento, seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, que devem se aplicar apenas aos “outros”, muito difundida entre nós, mas mais explícita nos segmentos hierarquicamente superiores de nossa sociedade.


Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos. Utilizou-se desde a campanha eleitoral de estratégias negacionistas, de desqualificação sistemática e universal dos contendores e dos seus argumentos, replicando a lógica medieval da disputatio, tão cara ao nosso direito processual e à formulação do saber jurídico nacional. Encerrado o período eleitoral, no entanto, prosseguiu governando de modo virtual com essa lógica nas mídias sociais, desprezando práticas de criação de consensos e união de esforços para formular, propor, aprovar e implementar políticas públicas. Mas a negação do conhecimento científico, o ataque sistemático à necessidade e qualidade dos serviços públicos chocou-se com a realidade de uma pandemia, fenômeno que ultrapassa em muito as fronteiras mesquinhas dessa luta política eleitoral.


Um ponto relevante a se notar é a banalização com que essa estratégia de implementação de ações governamentais tem se sustentado. Recentemente revogou-se parcialmente uma Medida Provisória (MP) no que se referia à suspensão do contrato de trabalho sem salário, atribuindo-se essa normativa esdrúxula, no meio de uma pandemia, a um “erro de redação”. Ora, isto mostra a inabilidade desta gestão em relação às regras de funcionamento da própria burocracia institucional, coisa que já vimos discutindo há tempos no que se refere às instituições de segurança pública. Desprezam-se as regras e menosprezam-se os protocolos porque não se acredita na eficácia da racionalidade burocrática. A burocracia que é, antes de tudo, uma memória e uma proteção protocolar das prerrogativas e decoro dos governantes e do direito de governados, é vista como um empecilho para a tomada de decisões, por impedir o exercício arbitrário da autoridade. Uma leitura possível desse “erro” é a de falta de articulação com os empresários e trabalhadores para se elaborar uma MP pertinente para a situação atual. Outra leitura possível é a de uma tentativa de controlar a pauta do debate público, em uma já conhecida estratégia desse governo em produzir crises de forma sistemática para desviar-se de temas negativos a sua imagem, e/ou uma tentativa de pressionar as instituições, na base do “se colar, colou”.


Por outro lado, seja lá de quem for sua autoria, ela revela valores resilientes dessa matriz escravocrata da sociedade brasileira que, reiteradamente, em diferentes circunstâncias, como já dito, demonstra seu desprezo pelos direitos de cidadania de determinados setores da sociedade brasileira, ainda vistos como um seu segmento hierarquicamente inferior. Essa MP é uma forma moderna e institucional de reproduzir a lógica do trabalho escravo, ainda, infelizmente, tão presente em nossa sociedade, na contramão das necessárias políticas de apoio governamental urgente a empresas que não demitam e aos trabalhadores autônomos e desempregados, estratégia que vem se universalizando entre os países atingidos.


Esta experiência coletiva das medidas sanitárias restritivas e os prejuízos sociais e humanos, provavelmente, muito desiguais entre os poucos com proteções sociais e os muitos sem nenhuma, produzirá reflexões sobre o papel da política profissional; dos investimentos nas políticas sociais e proteção ao trabalho; do papel da ciência na sociedade e na produção de políticas públicas — especialmente, mas não exclusivamente, de saúde pública, representada pelo SUS — e no bem estar social. Como o vírus, apesar de atingir de modo mais óbvio os pobres, também atinge a classe média e os ricos, todos dependentes das pesquisas públicas de produção de diagnósticos e de vacinas, essa circunstância pode explicitar com mais eficiência a relevância da ciência, da educação e da saúde públicas em nosso país e na própria reprodução do sistema capitalista.


Por outro lado, devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos sistematicamente em crises, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características ainda desconhecidas.
Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária? Mas isso, só o futuro nos dirá.

 

A Renda Cidadã e a reinvenção do dinheiro, por Antonio Martins[editar | editar código-fonte]

Texto publicado no blog do CEE-Fiocruz, em 02 de abril de 2020.

Ressuscita-me, para que ninguém mais tenha
de sacrificar-se por uma casa, um buraco
Vladimir Maiakovski

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio
Caetano Veloso

Nas crises agudas, o oculto – as verdades longamente sepultadas pela repetição acrítica da vida ou pela ideologia – frequentemente aflora como óbvio. Bastaram as primeiras semanas da pandemia do coronavírus para derrubar dois mitos do pensamento econômico vulgar. Não, os Estados não podem gastar apenas o que arrecadam – pois têm o poder de emitir moeda (e agora o empregam, em especial, para salvar os bancos). Sim, é possível oferecer aos seres humanos dinheiro não vinculado a trabalho. Agora, até os governos mais retrógrados o reconhecem. Nos EUA, Trump fala em um “cheque de 1.500 dólares” aos mais atingidos pela crise. No Brasil, a Câmara dos Deputados rejeitou em 26/3 uma esmola proposta por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes (“voucher” de R$ 6,66 por dia) e deu o pequeno, mas importantíssimo, passo em direção à Renda Cidadã.

Mas há dois problemas principais com esses arranjos. Primeiro, são, além de limitados no tempo, raquíticos e por isso incapazes de assegurar vida digna – em especial, em tempos de pandemia e colapso da atividade econômica. Segundo, vêm como parte menor de imensos pacotes de resgate dos cassinos financeiros. Nesse sentido, assemelham-se mais a medidas indiretas em favor das grandes empresas. A população receberá os recursos e os consumirá de imediato para saldar parcialmente dívidas e compras, permanecendo dependente e desempoderada. Enquanto isso, os Estados estão despejando volumes infinitamente maiores de dinheiro para socorrer os especuladores que fazem apostas mastodônticas nos mercados financeiros – exatamente estes que nos projetaram na crise atual. Ou seja: mantidas as políticas atuais, o Ocidente sairá da crise com muito mais desigualdade e (ainda pior!) muito mais poder para a aristocracia financeira que há trinta anos sequestrou a economia e a própria política.

Este texto defenderá duas ideias opostas a essa lógica – uma proposta de aplicação imediata, e uma provocação para reflexões de longo prazo. Primeiro: é preciso estabelecer uma Renda Cidadã de Emergência universal, igualitária e digna. Ela será paga em complemento – e não em substituição – aos rendimentos regulares. Seu valor deve ser suficiente para proteger os cidadãos da crise sanitária (permitindo-lhes permanecer em casa) e da provável depressão econômica (evitando que pereçam por falta de dinheiro, numa sociedade mercantilizada, ou se vejam falidos, em alguns meses).

Ou seja: mantidas as políticas atuais, o Ocidente sairá da crise com muito mais desigualdade e (ainda pior!) muito mais poder para a aristocracia financeira que há trinta anos sequestrou a economia e a própria política

Uma boa hipótese inicial sobre essa renda: R$ 100 diários, ou 3 mil mensais, para todos os brasileiros – numa primeira etapa, enquanto durar a pandemia. O valor pode parecer exagerado, à primeira vista; mas ao longo do texto ficará claro que não é. Está entre o salário-mínimo do Dieese (R$ 4.342,57) e o PIB per capita do Brasil (R$ 31.833 anuais em 2017). Para a grande maioria das famílias, essa renda representará bem mais do que recebem hoje de seus empregadores ou em seus negócios próprios (segundo o IBGE, o rendimento mensal familiar é R$ 5.426,70, mas devido à desigualdade 73% recebem menos que isso e 23,9%, menos de dois salários mínimos). Para uma pequena minoria, pouco ou nada representará (o 1% mais rico, recebe em média R$ 27,7 mil mensais; e o 0,1%, R$ 213,6 mil!). Além de salvadora, uma Renda Básica de Emergência será, portanto, um primeiro movimento de grande relevância para reduzir a desigualdade abissal que marca o Brasil há 500 anos.

De onde virá este dinheiro? – é a questão que imediatamente se coloca. E a resposta deve ser igualmente imediata e clara: será criado a partir do nada! Nenhum centavo sairá da Saúde e Educação, das obras de infraestrutura, da Previdência ou dos salários dos servidores civis ou militares. O Banco Central depositará 700 Reais Sociais (S$ 700), a cada domingo, em contas individuais criadas diretamente – sem intermediação dos bancos privados – para cada brasileiro. Elas serão movimentadas por meio de aplicativo (os menos habilitados digitalmente receberão cédulas impressas pela Casa da Moeda e entregues por estafetas dos Correios). Os Reais Sociais terão, assim como o dinheiro tradicional, curso forçado – ou seja, o mesmo poder de compra e a aceitação obrigatória que caracteriza o dinheiro comum.

Mas é possível criar moeda a partir do nada? Esta questão nos remete à parte mais instigante – e mais potencialmente transformadora – do argumento. Quase toda a moeda contemporânea é criada a partir do nada. A crise tornou evidente essa verdade, pouco visível em tempos normais. Em 12 de março, quando os tremores dos mercados financeiros se acentuaram, o Banco Central dos EUA (Federal Reserve, ou Fed) anunciou, sem um segundo de debate no Congresso ou com a opinião pública, a primeira grande intervenção de resgate. Criou-se, a partir do nada e sem alterar uma virgula no orçamento do país, 1,5 trilhão de dólares, para socorrer as corporações e bancos em crise. Desde então, os bancos centrais de todo o mundo têm anunciado que produzirão quantidades ilimitadas de dinheiro, para salvar os especuladores e manter os cassinos funcionando. No Brasil, a equipe de Paulo Guedes já anunciou um pacote de medidas que têm natureza diversa mas que, eu seu conjunto, permitem aos mercados financeiros utilizar R$ 1,2 trilhão – o que significaria R$ 6 mil para cada brasileiro. A saída dos Estados, para preservar o cassino global que sequestra as economias, é proteger (e enriquecer ainda mais) os especuladores cuja cobiça alimentou a crise.

De onde virá este dinheiro? – é a questão que imediatamente se coloca. E a resposta deve ser igualmente imediata e clara: será criado a partir do nada! Nenhum centavo sairá da Saúde e Educação, das obras de infraestrutura, da Previdência ou dos salários dos servidores civis ou militares. O Banco Central depositará 700 Reais Sociais (S$ 700), a cada domingo, em contas individuais criadas diretamente – sem intermediação dos bancos privados – para cada brasileiro

A alternativa exige romper um tabu. É preciso reinventar a moeda. Nosso artigo mostrará que ela perdeu mais aceleradamente que nunca, nos últimos trinta anos, o caráter de unidade de conta. Esse termo técnico designa o aspecto de comum presente no dinheiro. Ele é o lubrificante necessário para fazer girar a produção e circulação de riquezas. Viabiliza uma miríade de relações econômicas e sociais que, sem ele, seriam árduas e desnecessariamente complicadas: comprar uma camisa, vender um trabalho de edição de vídeo ou alugar uma casa, por exemplo.

Mas o dinheiro é, ao mesmo tempo, reserva de valor e, nessa condição, ferramenta de desigualdade e alienação. Ele consolida, amplia a multiplica as diferenças de riqueza. Subordina os que não o possuem às ordem dos que o concentram. Naturaliza essa submissão: se trabalho numa fábrica de minas terrestres, que serão utilizadas para matar crianças numa guerra, faço-o por dinheiro – para sustentar minha família e a mim mesmo.

Hoje, esse segundo caráter da moeda soterra e sufoca quase completamente o primeiro – de Bem Comum. A necessidade de dinheiro nos condena ao trabalho cada vez mais insano. As dívidas condicionam todos os nossos planos. Como se verá, isso não ocorre apenas devido a ações como as do Fed. São os bancos privados, hoje, que corriqueiramente criam – do nada – quase toda a moeda. É aristocracia financeira que a concentra e controla. Desfazer esta imensa distorção exigirá transformar todo o sistema monetário e financeiro. A Moeda-Comum e os Bancos Públicos serão chave. Mas a Renda Cidadã de Emergência pode ser o deflagrador. A crise sanitária e econômica ligada ao coronavírus ceifará milhares de vidas (a maior parte, desnecessariamente) e causará enorme sofrimento. Mas pode parir uma ordem social nova.

II.

Do ponto de vista imediato, uma Renda Cidadã de Emergência é, junto com a quarentena, a providência mais essencial para evitar o que a ONU já chama de uma “pandemia apocalíptica”. As duas medidas são complementares e quase gêmeas. O distanciamento social é agora a única arma disponível para reduzir o número de infecções, “achatar a curva” da propagação da covid-19 e evitar o colapso hospitalar que devasta a Itália – e poderá ser ainda mais catastrófico em países como Estados Unidos e Brasil. Mas em economias de mercado, marcadas pelo individualismo e pela competição, com populações empobrecidas, endividadas e precarizadas pelo neoliberalismo, ficar em casa pode significar outra forma de morte: o despencar no abismo da exclusão. Uma parcela expressiva das populações, que não tem reservas, enfrentará dificuldades até mesmo para se alimentar, manter o teto ou seguir as medidas de precaução indispensáveis contra a doença. Muitos outros, embora não tão ameaçados, verão seu padrão de vida desabar, deixarão de cumprir compromissos financeiros e terminarão, quando a vida social regressar, mais empobrecidos e submissos a dívidas e bancos. Governantes criminosos – como já faz Jair Bolsonaro no Brasil – explorarão a fragilidade para incitar os desesperados contra a quarentena e outras ações protetivas.

Do ponto de vista imediato, uma Renda Cidadã de Emergência é, junto com a quarentena, a providência mais essencial para evitar o que a ONU já chama de uma “pandemia apocalíptica”. As duas medidas são complementares e quase gêmeas

A Renda Cidadã de Emergência pode enfrentar esses desafios – desde que cumpra certas condições. Primeiro, seu valor precisa ser realmente relevante, ou seja, suficiente para assegurar uma vida frugal, porém digna. Uma boa referência é o PIB per capita – base da proposta formulada neste texto, de R$ 100 diários, por pessoa. Os R$ 600 mensais aprovados no Brasil estão muito longe disso. Um motorista de aplicativo, uma faxineira, um bartender ou um pedreiro auferem, líquidos, cerca de R$ 100 ao dia, nas regiões metropolitanas. Seus custos são compatíveis com essa renda. Será injusto que seu padrão de vida, que nada tem de luxuoso, despenque, enquanto a elite financeira refestela-se e lucra com recursos do Estado. Como nota à margem, vale lembrar que os banqueiros brasileiros estão se aproveitando das dificuldades da maioria para impor após, o coronavírus, taxas de juros ainda mais altas e condições mais leoninas para rolagem das dívidas.

A segunda condição é a universalidade: a Renda Cidadã deve ser paga a todos os cidadãos. Do ponto de vista conceitual, ela não pode ser vista como um “auxílio aos pobres”, um paliativo ou consolo para aqueles que não estão inseridos no mercado – assim como o ensino e a saúde públicas não podem ser as opções “para quem não pode pagar” uma escola ou hospital privado. Ao contrário: não se trata de retorno à ideia obsoleta de caridade, mas de superação das relações mercantis. Num mundo em que as máquinas realizam cada vez mais tarefas antes obrigatórias aos humanos, a Renda Cidadã é uma das formas de garantir que todos se beneficiem de uma parte da riqueza social produzida no planeta.

Do ponto de vista prático, a Renda Cidadã não pode excluir todos aqueles que, participando igualmente do combate à pandemia, têm um emprego ou rendimento formal, em que recebem acima de 3 salários mínimos. Isso é ainda mais verdadeiro para os milhões cujas ocupações exigem permanecer trabalhando. Os profissionais de Saúde. Os operários que produzem, entre tantos itens, os respiradores artificiais, o sabão e o álcool gel, o óleo e a manteiga para as refeições preparadas em casa, a cerveja. Os agricultores que nos alimentam. Os comerciários que mantêm em funcionamento os supermercados e farmácias. Os operadores que zelam para que todos tenhamos energia elétrica e internet. Os que movimentem o transporte público. Os jornalistas responsáveis pelos textos que você lê durante a quarentena.

A Renda Cidadã deve ser paga a todos os cidadãos. Do ponto de vista conceitual, ela não pode ser vista como um “auxílio aos pobres”, um paliativo ou consolo para aqueles que não estão inseridos no mercado – assim como o ensino e a saúde públicas não podem ser as opções “para quem não pode pagar” uma escola ou hospital privado. Ao contrário: não se trata de retorno à ideia obsoleta de caridade, mas de superação das relações mercantis

É preciso deixar claro: sim, nessas condições, a Renda Cidadã subverte as formas de distribuição usuais de renda e riqueza que nossa sociedade acostumou-se a aceitar acriticamente, como se fossem as únicas possíveis. Se o estado de calamidade pública durar cem dias, serão distribuídos igualitariamente, no Brasil, 2,1 trilhões de Reais Sociais (S$ 2,1 tri), que terão o mesmo poder monetário dos Reais hoje existentes. Isso dará, à população poder econômico inédito – individual e coletivo. Muitos usarão o dinheiro para pagar suas dívidas, o que os tornará menos dependentes da ditadura financeira, e fará os bancos menos poderosos e predatórios. Imagine que, devendo R$ 10 mil no cheque especial, e pagando prestações mensais de R$ 1 mil apenas para não se enforcar ainda mais, você possa saldar seus débitos (e livrar-se da despesa que corrói seu salário) com os Reais Sociais que receberá. Outros planejarão a compra de um bem ou um serviço há muito tempo desejados: uma pequena reforma na casa, uma geladeira e um sofá novos, uma viagem. Alguns, reunidos, terão a soma necessária para iniciar um empreendimento. Quando a vida voltar ao normal, não encontrará uma multidão de pessoas falidas e submetidas aos bancos e às corporações – mas sujeitos sociais com certa potência econômica.

Juntos, os 210 milhões de brasileiros terão reunido, em cem dias, S$ (ou R$) 2,1 tri. Será um ótimo começo. Para efeito de comparação, o 0,1% mais rico do Brasil possui, em títulos da dívida pública, imediatamente conversíveis em dinheiro, R$ 4,4 tri – mais que o dobro. Mas as 200 mil pessoas, que compõem o 0,1% (e cujo salário médio é R$ 213,6 mil mensais), fazem parte (e compram) em outro mundo. Os S$ 2,1 tri, distribuídos entre 210 milhões de brasileiras e brasileiros, mudarão a face do país. Os aeroportos vão se transformar, definitivamente, em rodoviárias. Os restaurantes populares irão se multiplicar como cogumelos – desafiando a monotonia gastronômica das regiões centrais, onde só prosperam, hoje, as cadeias de internacionais. Ninguém será obrigado a trabalhar por um prato de comida: haverá, seguramente, uma elevação do salário médio do brasileiro, hoje cerca de 30% inferior ao do chinês. A lógica da segregação Casa Grande X Senzala será abalada.

É preciso deixar muito claro, também, que sim – a Renda Cidadã subverterá outra ideia, ainda mais arraigada na ideologia do senso comum. O dinheiro (ou seja, a participação na riqueza socialmente produzida) pode estar associado a muitas ações e méritos, além das que a lógica mercantil reconhece. Algumas delas são exercidas, quase sempre, por mulheres. Cuidar das crianças. Arrumar a casa. Preparar a comida para a família. Outras são subestimadas por não gerarem valor, diretamente. Tocar um instrumento nas estações cinzentas do metrô. Contar histórias, nas praças. Zelar por um jardim público. Oferecer refeições, na rua, aos que de outro modo passariam fome. Escrever um romance ou um livro de poesias. Dar aulas de um idioma estrangeiro, ou de culinária – sem cobrar. Relatar, a partir de uma tribo indígena, a experiência de utilização de uma planta para curar uma doença desconhecida. Divertir crianças internadas num hospital. Tudo isso, e tantas outras ações, é motivo para fazer jus a parte da riqueza socialmente produzida. Tudo isso, e muito mais, é motivo para fazer jus à Renda da Cidadania.

É preciso deixar muito claro, também, que sim – a Renda Cidadã subverterá outra ideia, ainda mais arraigada na ideologia do senso comum. O dinheiro (ou seja, a participação na riqueza socialmente produzida) pode estar associado a muitas ações e méritos, além das que a lógica mercantil reconhece. Algumas delas são exercidas, quase sempre, por mulheres. Cuidar das crianças. Arrumar a casa. Preparar a comida para a família

Mas como a sociedade poderá remunerar, com R$ 100 mensais (algo próximo do PIB per capita), atividades que não geram valor mercantil? Aqui, é hora de introduzir talvez o fator mais relevante deste debate, do ponto de vista do imaginário social. Por seu caráter relativamente expressivo, essa Renda Cidadã obriga a pensar sobre os mecanismos que produzem dinheiro em nossas sociedades; e sobre os artifícios adotados pela aristocracia financeira (com a cumplicidade dos Estados) para aproveitar-se das crises para concentrar ainda mais riqueza, e produzir ainda mais desigualdade e pobreza.

III.

Tão assustadores quanto o número de mortes, ou circunstâncias como a escolha de Sofia, a que estão obrigados os médicos no norte da Itália, são os primeiros dados da crise econômica. Nos Estados Unidos, talvez o primeiro país a divulgar dados de desemprego pós-crise, ele disparou. Há três semanas, 200 mil pessoas haviam solicitado seguro-desemprego. Subitamente, esse número saltou, nos sete dias encerrados nesta quinta-feira (26/3), para 3 milhões – quase quinze vezes mais. Análises econômicas confiáveis preveem, para os países ocidentais, taxas de desemprego entre 20% e 50%, até o final do ano. Do ponto de vista financeiro, a realidade é igualmente assustadora. Os bancos, avalia um texto recente, estão afundados em trilhões de dólares de dívidas. Boa parte desses débitos deixarão de ser pagos.

Mas há um truque ideológico, aqui. A mídia comercial atribui, acriticamente, este colapso econômico ao… coronavírus! Será verdade? A lógica elementar e os fatos sugerem que não.

Quando as autoridades agem corretamente, a quarentena é curta: dura, ao máximo, dois meses. Veja o caso de Wuhan, na China – o ponto do globo onde a epidemia eclodiu de surpresa. O isolamento radical foi decretado em 23 de janeiro. O número de casos e de óbitos começou a cair já em 5 de fevereiro (treze dias depois) e recuou, a partir de então, abruptamente. Por isso, em 1º de março foi fechado o primeiro dos dois hospitais construídos em emergência para enfrentar a doença. Desde 18/3 (exatos 55 dias depois de iniciado o isolamento), não se registra mais um único caso de transmissão local.

Dois meses, embora tardem a passar, são um período curto, na existência das pessoas – e, ainda mais, das economias. No Brasil, a vida adulta média dura 700 meses (chega a 840 no Japão…). Em sociedades não tisnadas pelo individualismo extremo, a quarentena — excluída a dor da pandemia – seria uma oportunidade para desacelerar, refletir, encontrar-se consigo e com os problemas e belezas do mundo. A produção de bens e serviços certamente cairia de modo abrupto. Mas seria retomada em seguida – na maioria dos casos, com compensações. Uma geladeira que era necessária, e cuja compra foi adiada pela quarentena, será, de qualquer maneira, comprada em seguida. Uma viagem adiada será reprogramada. Os funcionários contratados continuarão sendo necessários. Por que demiti-los? Qual o motivo para drama?

A resposta está em algo que as análises convencionais agora procuram ocultar. A crise econômica não é consequência da pandemia. O minúsculo coronavírus funcionou apenas como gatilho, que detonou distorções muito mais profundas. Um castelo de cartas desabou. Com ele, despencaram trilhões.

Dois textos de Outras Palavras, [1 2] que se apoiam em artigos da revista The Economist e do Financial Times explicam o movimento em detalhes. Não é possível reproduzir toda a história aqui. Eis um resumo sintético da cadeia de contágio: a) Os mercados financeiros retomaram, assim que amainou a crise de 2008, a “exuberância irracional” que os caracterizou durante todo o período neoliberal. Os bancos foram irrigados por montanhas de dinheiro, liberadas pelos Estados a partir da lógica interesseira do trickle-down, segundo a qual o dinheiro despejado no topo da pirâmide social escorrerá pelas bordas, até chegar à base; b) Para continuar lucrando irresponsavelmente, os grandes bancos globais emprestaram estes dinheiro sem critérios. Ao eclodir a pandemia, o volume de créditos concedidos por eles havia superado os picos de 2008. E as grandes beneficiárias eram, desta vez, as maiores corporações não-financeiras com atuação global. Parte delas recebeu dinheiro mesmo estando tecnicamente falidas; c) A crise expôs os desatinos. As grandes empresas com queda de receita (nos setores de aviação civil, automobilístico ou de hotelaria, por exemplo) serão, provavelmente, incapazes de pagar os créditos irresponsáveis que lhes foram oferecidos pelos bancos. A constatação fez desabar, também, o preço de suas ações nas bolsas de valores; d) Os próximos a ser atingidos serão os próprios megabancos globais. Eles próprios vão se tornar inadimplentes, se um número expressivo de empresas que lhes devem deixar de pagar suas dívidas.

A crise econômica não é consequência da pandemia. O minúsculo coronavírus funcionou apenas como gatilho, que detonou distorções muito mais profundas. Um castelo de cartas desabou. Com ele, despencaram trilhões

A formação das montanhas de crédito que permitem girar o capitalismo financeirizado não pode ser explicada em detalhes nos limites deste texto. Para compreendê-la, recomenda-se, por exemplo, o livro Just Money, da economista britânica Ann Pettifor. Na obra, o foco da autora é desvendar a criação de dinheiro, no capitalismo neoliberal. Ao contrário do que sugerem os mitos fundadores da ideia de moeda, esta não surge a partir de um trabalho realizado, ou de algo produzido. Não está ancorada num bem raro e supostamente precioso, como o ouro. Desde os anos 1930, a moeda é criada a partir do nada por Estados e bancos. Na era do keynesianismo, foi manejada, no Ocidente, por governos que a utilizaram para viabilizar uma grande invenção civilizatória: o Estado do Bem-Estar Social. A partir dos anos 1980, o neoliberalismo apropriou-se das máquinas simbólcias de imprimir dinheiro. São os bancos comerciais, hoje, que criam quase toda a moeda disponível. Em busca de aumentar incessantemente os lucros, eles emprestam um volume de dinheiro muitas vezes maior do que aquele que possuem, em depósitos. A prática chama-se “alavancagem”. Exemplo eloquente: ao permitir a ampliação da alavancagem, numa canetada em 23/3, que não passou por debate algum entre a sociedade ou no Congresso, o BC brasileiro autorizou os bancos comerciais a criar do nada – e emprestar – 1,2 trilhão de reais!

IV.

É este cassino que está desabando, diante de nossos olhos, a partir do grão de areia representado pelo coronavírus. Em condições normais, uma paralisação das atividades produtivas, por tempo limitado, teria efeitos muito reduzidos. Um sistema bancário saudável financiaria os prejuízos dos cidadãos e das empresas — e permitiria pagá-los ao longo do tempo, com juros remunerativos, porém módicos. Mas a economia mundial está submetida a uma máquina especulativa global – a mercados de apostas em que os volumes negociados a cada dia são vinte vezes maiores do que o comércio mundial movimenta num ano. Por isso, um leve sopro na mesa pode fazer ruir o castelo de cartas. Foi o que ocorreu com o coronavírus.

Os dramas – tanto os sanitários quanto os humanos – são incalculáveis. Mas um sistema erigido sobre uma pilha gigantesca de interesses egoístas é incapaz de se autorreformar. Por isso, todas as ações de combate à crise deflagradas pelos governos ocidentais têm um componente essencial: salvar os bancos e a oligarquia financeira. A palavra de ordem é: custe o que custar. O grosso dos 5 trilhões de dólares “contra o coronavírus”, alardeados na quinta-feira, numa reunião do G-20 destina-se a irrigar os cassinos. As grandes corporações, endividadas e insolventes, não serão autorizadas a falir. Os bancos globais, ainda menos. A experiência da crise de 2008 ensina a tramar algo muito maior. A saída do capitalismo neoliberal é criar do nada o volume de dinheiro que for necessário. O objetivo é manter girando a roda de especulação que criou a cris anterior, alimenta a atual e gestará as próximas.

A saída do capitalismo neoliberal é criar do nada o volume de dinheiro que for necessário. O objetivo é manter girando a roda de especulação que criou a cris anterior, alimenta a atual e gestará as próximas

Ao final de cada crise, restam escombros e desigualdade. Em 2008, as corporações utilizaram o dinheiro ofertado pelos Estados para “modernizar-se” e demitir em massa. Passada a crise, a conta foi jogada no colo das sociedades – obrigadas a políticas drásticas de redução de serviços públicos e direitos sociais. Que virá agora, se em uma semana já há 2 milhões de novos desempregados, apenas nos Estados Unidos?

V.

Há em curso, em todo o mundo – ainda que em silêncio – uma revolução no pensamento pós-capitalista. Os que se mantêm aferrados às formas de luta dos séculos passados perdem espaço. Aos poucos, surgem novas perspectivas, que dialogam com os sujeitos sociais paridos pelas novas configurações do sistema. O antigo proletariado, que vendia sua força de trabalho diretamente a um patrão; e que se concentrava em grandes unidades fabris, perdeu a condição de sujeito universal – aquele que, segundo Marx, só poderia ser livre quando libertasse, ao mesmo tempo, o conjunto da sociedade. Surge, aos poucos, um precariado. Seu centro não são mais as fábricas, mas as metrópoles. Ele está disperso. Suas reivindicações são muito menos homogêneas. Mas há um projeto comum, ainda que oculto e inconsciente, entre elas. O precariado deseja, assim como seu irmão mais velho, que as riquezas produzidas socialmente sejam repartidas entre todos. Nesse sentido, há uma linha que une uma garota que se expõe ao coronavírus, ao entregar refeições na rua, a Marx, Bakunin, Kropotsky ou Rosa Luxemburgo.

Há um amplo leque de projetos, em gestação, para realizar esta ideia, nas condições do século XXI. A construção e garantia do Comum. O Green New Deal, que articula a agenda ambiental à social, ao propor uma grande redução das emissões de CO², alcançada com intensos investimentos em infra-estrutura limpa (usinas eólicas e solares, ferrovias, despoluição de rios, saneamento, etc etc etc) e garantia de emprego digno para todos que o desejarem. No contexto em que vivemos, a Renda Básica da Cidadania destaca-se entre elas.

Ela pode representar, para as maiorias e para a luta por superar o capitalismo, o que a jornada de oito horas significou, há cem anos. Ela estabelece um objetivo comum, e muito concreto, para um vastíssimo leque de lutas dos precarizados. Embora tenham um mesmo sentido, estas lutas são hoje díspares e dificilmente dialogam entre si. (Pense, por exemplo, na reivindicação de direitos trabalhistas, por um motorista uberizado, e na exigência, por um povo indígena, do direito a ser remunerado pelo uso de um fármaco desenvolvido graças a seus conhecimentos ancestrais).

A Renda da Cidadania emerge agora, além disso, por pegar o sistema num contrapé. Duas grandes crises econômicas – a de 2008 e a que está se abrindo agora – deixaram claro que é possível criar dinheiro (e, portanto, redistribuir riqueza) a partir do nada. Diante de uma pandemia, será possível permitir que isso se faça a favor apenas do 0,1%? Se resta algo de democracia, na política contemporânea, a resposta é não. A crise pode voltar a ser, como tantas vezes, o elemento de que dispomos para sair do sono e da letargia

* Publicado no site Outras Palavras, em 27/03/2020.

 

Como a pandemia pode aprofundar nossas desigualdades, por Laura Carvalho[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal, em 16 de abril de 2020.

A valorização súbita dos sistema públicos de saúde, das redes de proteção social, das políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico e, de forma geral, do papel do Estado na alocação dos recursos da sociedade tem levado alguns analistas a considerar essa crise como um golpe fatal no neoliberalismo ou, quem sabe, no próprio capitalismo. Para muitos, a trágica pandemia ajudaria a parir um belo mundo novo, bem mais justo e sustentável.

Não é, no entanto, o que prevê Dani Rodrik em artigo recente: o economista e professor da Harvard Kennedy School considera que essa crise apenas reafirmará as visões de mundo de cada um, no que identifica como um super viés de confirmação. De fato, o que temos visto no Brasil é que, enquanto alguns acreditam que a crise abre caminho para a taxação de grandes fortunas, outros entendem que o urgente é o corte de salários de servidores públicos, e alguns ousam sair às ruas para denunciar mais uma conspiração globalista contra o presidente da República. Por isso, para Rodrik, o mais provável é que a covid-19 apenas reforce tendências anteriores, como a crise da globalização, o fortalecimento do autoritarismo populista ou a dificuldade da esquerda em desenhar programas atraentes para a maioria dos eleitores.

É bem provável que seja assim. Mas as transformações trazidas pela pandemia podem alterar as bases sobre as quais tais tendências vão operar e, portanto, seus resultados. Nesse sentido, é fundamental compreender como essa crise pode ser um vetor relevante de concentração de renda, riqueza e poder.

Sobram evidências de que a pandemia não é tão democrática quanto muitos gostam de fazer parecer. Sim, ela está prejudicando a vida de todos, mas os mais pobres sofrerão muito mais os seus impactos na saúde e na economia. É o que mostram os dados de outras pandemias. No caso da gripe espanhola, uma pesquisa publicada na revista médica The Lancet sugere que as taxas de mortalidade foram até trinta vezes maiores em regiões mais pobres. A pandemia de 2009 do H1N1 não foi tão diferente: um estudo de 2013 apontou uma taxa de mortalidade 20 vezes maior em países da América do Sul do que na Europa, por exemplo. Ou seja, tudo indica que os países com a menor dotação de recursos para enfrentar a crise atual, sobretudo se levarmos em conta a enorme fuga de capitais para países ricos em meio à incerteza nos mercados financeiros globais, sofrerão os efeitos mais devastadores da pandemia.

Se a correlação de forças atual não permitir a adoção das medidas necessárias para mitigar os vetores de concentração de renda que essa crise já está trazendo em seu auge, não há razões para esperar que depois seja diferente

Mas não são apenas as desigualdades globais que vão aumentar. Dentro de cada país, os mais vulneráveis também estão mais sujeitos aos impactos da crise econômica e de saúde pública. Além da perda de renda e trabalho em meio ao que deve ser a maior queda anual do PIB de nossa história, a base da pirâmide está mais sujeita à contaminação e a desenvolver casos mais graves da infecção por covid-19. Isso porque o risco de contaminação é elevado pelo número de pessoas que dividem o mesmo dormitório, pelo uso de transporte público, pela falta de saneamento básico e pela dificuldade de manter o isolamento sem reduzir sua renda para abaixo do nível mínimo de subsistência. Já a gravidade dos casos e, portanto, a probabilidade de óbito, depende da existência de comorbidades (doenças crônicas associadas) e do acesso à saúde. Em estudo preliminar, mostramos que, no Brasil, a proporção de pessoas com comorbidades associadas à covid-19 aumenta significativamente entre os menos escolarizados (54% para quem só frequentou o ensino fundamental, ante 34% para quem frequentou o ensino superior, por exemplo). Além disso, o número de leitos de UTI no SUS é quase cinco vezes menor do que na rede privada.

Os primeiros números divulgados pelo Ministério da Saúde apontam que o novo coronavírus já é mais letal entre negros no Brasil: pretos e pardos representam 1 em cada 4 hospitalizados, mas 1 em cada 3 mortos. Em Nova York, os dados indicam que a letalidade entre negros e latinos é duas vezes maior do que entre brancos.

Como se já não bastasse a ampliação das desigualdades de renda, raciais e de gênero, dada a carga maior de trabalho doméstico que vem recaindo sobre as mulheres, a pandemia também tende a ampliar a concentração de riqueza. Em particular, os pequenos negócios terão mais dificuldade de sobreviver. Muitos serão absorvidos por negócios maiores, outros irão à falência. Em ambos os casos, a concentração de mercado nos setores mais afetados irá aumentar, prejudicando a concorrência e, assim, os consumidores.

Por fim, o mercado de trabalho também deve sofrer algumas mudanças estruturais. Para além da escalada brutal do desemprego, que por si só já tende a retirar poder de barganha de trabalhadores nas negociações salariais, o crescimento do trabalho remoto pode levar a uma pejotização ainda maior das relações de trabalho e abrir espaço para um aumento das jornadas, que se tornam menos monitoráveis.

Não será surpresa nenhuma, portanto, se alguns de nós sairmos de casa, finda a primeira fase da pandemia, para se deparar com um mundo ainda mais desigual. Só que enquanto isso, outros enxergarão apenas um mundo com patamares ainda maiores de dívida pública. O primeiro grupo defenderá, por exemplo, tornar a renda básica permanente e resolver injustiças históricas do nosso sistema tributário. Já o segundo tentará emplacar uma agenda ainda mais agressiva de cortes de gastos, prejudicando de forma desproporcional os que utilizam serviços públicos e dependem de nossa incipiente rede de proteção social.

Se a correlação de forças atual não permitir a adoção das medidas necessárias para mitigar os vetores de concentração de renda, riqueza e poder que essa crise já está trazendo em seu auge, não há razões para esperar que depois seja diferente. Renda básica emergencial, recursos para o SUS, realocação de leitos da rede privada de saúde, produção de testes e respiradores, medidas efetivas de isolamento, crédito subsidiado para micro, pequenas e médias empresas e preservação de vínculos empregatícios sem perda de renda são alguns dos temas que exigem mobilização imediata, sobretudo para que as medidas sejam tomadas na magnitude e no tempo necessários. O mundo do pós-pandemia está sendo construído agora.

Laura Carvalho é Professora Livre Docente do Departamento de Economia da FEA-USP, autora de “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico” e colunista do jornal Nexo. Podcast Entretanto. Twitter: @lauraabcarvalho

 

A cidadania vertical no Brasil e o coronavírus, por Marcelo da Silveira Campos[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em 17 de abril de 2020.

A ideia do isolamento vertical não é (nem nunca foi) nova no Brasil. Especialmente, quando nós relacionamos essa proposta de isolamento ao que denomino como cidadania vertical.

Isolamento parcial, ou vertical como vem sendo denominado, consiste essencialmente em retirar das relações sociais somente os grupos mais suscetíveis à mortalidade pela Covid-19 como, por exemplo, as pessoas acima de 60 anos e portadores de condições de risco como hipertensão, diabetes, doenças respiratórias. A defesa do atual presidente Bolsonaro por essa medida, na base do discurso bolsonarista, toma como justificativa a “volta ao trabalho” em massa. É precisamente isso que fez insuflar as pequenas (ainda bem) carreatas em 12 de abril a favor da “volta ao trabalho” ou ainda o encontro o “corpo a corpo” do presidente, em Goiânia, com alguns apoiadores um dia antes. Entretanto, em constantes reuniões e pronunciamentos no Planalto, diga-se muitas vezes contrárias às diretrizes do próprio Ministro da Saúde – demitido, aliás, pela defesa do isolamento horizontal – e da Organização Mundial da Saúde, as autoridades federais admitem que não há qualquer estudo para justificar tal orientação e que o pico da Covid (hoje com mais de 30 mil casos confirmados e oficialmente registrados) será em maio. No dia 14, novamente, o presidente distorceu a declaração do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, ao questionar a quarentena e dizer que ele está certo na condução da crise. 

Sabemos bem, diariamente desse contexto particular, lamentável e muito específico do Brasil: o país deve ser um dos poucos mantém um chefe de Estado dizendo para pessoas “irem trabalhar” concomitantemente com o número de casos aumentando vertiginosamente dia após dia . Entretanto, o que quero chamar a atenção para reflexão é que a ideia do isolamento vertical, contudo, não é (nem nunca foi) nova no Brasil. Especialmente, quando nós relacionamos essa proposta de isolamento ao que denomino neste texto como cidadania vertical no Brasil. Em termos sucintos, podemos dizer que a cidadania é vertical no Brasil porque ela, desde sempre, é uma cidadania fundamentalmente hierarquizada: os grupos privilegiados, que constituem uma pequena parcela da população, possuem a maioria dos recursos sociais, jurídicos, econômicos e simbólicos para exercer a diferenciação e reproduzir a desigualdade no espaço público e no espaço privado; por outro lado, a maioria da população – as classes menos privilegiadas que compõem fundamentalmente o mercado de trabalho dos serviços domésticos, trabalhadores da indústria de bens e serviços, trabalhadores do mercado informal e os profissionais da saúde que atuam na ponta das redes de assistência em saúde e social – não detém os mesmos recursos sociais, jurídicos e econômicos para exercer os direitos no espaço público e privado, ou seja, para ser e exercer uma cidadania horizontal. 

Ora, como se sabe é a composição do nosso mercado de trabalho durante o século XIX, constituído basicamente pela escravidão massiva de negras e negros, que fez uma cidade como a do Rio de Janeiro ter aproximadamente 50% da população formada por escravos. É do mesmo século XIX que uma das primeiras obras consideradas sociológicas no país – Os sertões de Euclides da Cunha – descreve como, na recém-república, a forma como Canudos atraiu centenas de nordestinos pobres despertando a ira dos grandes fazendeiros e da elite política localista: morreram mais de 15 mil pessoas no país sendo a grande maioria, os pobres e pardos. 

 Chamo a atenção para esses dois pontos porque, no meu entender, eles estão articulados na reação sociopolítica à Covid-19; e constituem, hoje, o maior risco para o alastramento da doença em nosso território e um novo genocídio da população pobre e periférica do país. Em outras palavras: a defesa política do isolamento vertical (e os seus defensores) representam o maior risco à nossa democracia, bem como, representam a continuidade e reprodução do que proponho aqui como uma cidadania vertical. 

Logo, como consequência, os trabalhadores das classes médias altas e altas continuarão em seus isolamentos horizontais, trabalhando no chamado home office, e tomando as medidas de não exposição pública necessárias para todas e todos. Em contrapartida, o isolamento vertical atingirá majoritariamente os moradores das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, os trabalhadores da saúde que dedicam suas vidas ao trabalho na ponta da saúde pública e assistência social, os empregados domésticos, os 12 milhões de desempregados e, evidentemente, os encarcerados nas masmorras superlotadas de todos os nossos estados. Estes sim estarão expondo – novamente, aliás – suas vidas ao isolamento vertical. E, mais uma vez, retomará a cidadania vertical no país. 

Nas comunidades do Rio de Janeiro, por exemplo, pelo menos sete mortes (notificadas oficialmente) foram registradas em cinco favelas: Rocinha, Vigário Geral, Maré, Manguinhos e Cidade de Deus. É nesse contexto que agora ocorrem as medidas de “higienização” nas comunidades, novamente, onde são alvos privilegiados (como já os são cotidianamente nas operações policiais e sistema prisional) as populações e classes “mais perigosas”: corpos negros, pobres e periféricos. Há, nesse ponto, ainda uma associação entre perigo e a “volta ao trabalho”: se rearticula um discurso de “isolamento” para as comunidades e favelas – “é lá que está o perigo” – ao mesmo tempo que sabe-se que neste momento lá está a maior dificuldade de acesso à renda, educação, saúde e posição home office no mercado de trabalho. Que evidentemente será desigualmente distribuída por raça, gênero e posição social.  

Os dados oficiais da pandemia divulgados nesta semana à pedido da Coalização Negra por Direitos (e mais 150 entidades) revelam justamente, com base no último boletim epidemiológico, o que nós sempre soubemos: o coronavírus é muito mais letal entre nós negros, como aponta Tay Cabral. O percentual de óbitos de negros e negras é 32,9% maior que o de pessoas negras hospitalizadas (23,1%). E o mais importante é que 67% dos brasileiros negros dependem integralmente do SUS. Ou seja, não possuem recursos materiais, simbólicos e privados para o tratamento da Covid-19. O Cadúnico (cadastro necessário para os acessos aos programas sociais e rendas mínimas) tem 71,5% de negros, com renda média de R$ 285 por mês. Quando correlacionamos gênero, classe e raça no Brasil, iremos observar que 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. 

Lembre-se da “divisão sexual do trabalho” relacionada à distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho e nas profissões associadas prioritariamente à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. São desigualdades sistemáticas e reproduzidas a partir de hierarquizações associadas, especialmente, ao trabalho informal e às trabalhadoras da saúde. O isolamento horizontal, logo, é uma medida somente posta para os mais ricos e com capital cultural em todos os países do globo. Entretanto, a especificidade da cidadania vertical no Brasil é que a defesa explícita do isolamento vertical pode vir a ser enunciada pelo Poder Executivo porque para uma parcela da população brasileira o direito à vida, à saúde, à integridade física do corpo – os chamados direitos civis e sociais – só podem ser aceitos e legitimados para uma pequena parcela privilegiada. Que, evidentemente, estará menos exposta ao coronavírus.

Afinal de contas, essa é a história de nossa composição do mercado de trabalho formal após a escravidão nos grandes centros urbanos. Essa também é a nossa história – que só começou a mudar poucos anos atrás – com a educação superior, com os cursos de medicina e direito instaurados em poucas capitais para que voltado para as classes altas, compostas de homens brancos. Que constituíam, ao mesmo tempo, a elite política, jurídica e econômica de nosso país. Aliás, essa é também a história dos nossos direitos humanos, onde, os presos oriundos das classes médias e altas intelectualizadas compunham as motivações para as grandes campanhas para a defesa dos direitos humanos. Enquanto os chamados “presos comuns” – vejam que apenas no Brasil essa expressão pode ser verbalizada – ocupavam e morriam nas masmorras brasileiras.

Ora, a defesa do isolamento horizontal, portanto, igualmente distribuído para os diferentes grupos, setores e classes sociais da população – com todos submetidos à mesma medida de quarentena – é algo mais do que necessário. É uma afirmação de cidadania universalizante no Brasil. 

Mas infelizmente inconcebível para boa parte dos setores privilegiados. Trocando em miúdos como nos ensina a canção do Chico: o isolamento horizontal está relacionado fundamentalmente a uma concepção prática no espaço social – público e privado – de exercício de uma cidadania plena (parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a “Cidadania plena para um americano negro”) para todas e todos. O que em nossa história republicana continua a ser tarefa urgente a ser construída e reconstruída cotidianamente: uma cidadania plena para os brasileiros, especialmente, para os negros e negras, os periféricos, as empregadas domésticas, as trabalhadoras da saúde que não querem mais nada de vertical. E sim horizontalidade.      

1  HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui.,  São Paulo , v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007.

2 Parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a cidadania plena, nos EUA, para os negros.  PARSONS, Talcott. ([1965] 1993), “Cidadania plena para o americano negro? Um problema sociológico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 22, p. 32-61.

Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador do INCT-InEAC/UFF. 

* Uma versão sucinta deste texto foi publicada no Boletim “Cientistas Sociais e o Coronavírus” publicados em uma ação conjunta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM).

 

Mentira epidemiológica – A morte à vista, lucro imediato, economia a prazo, por Heleno Correa[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog do CEBES , em 28 de abril de 2020. 

Por Heleno Correa, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e diretor executivo do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes)

Os países da Europa e tardiamente os EUA e a Suécia estão colocando em prática políticas de isolamento ou distanciamento social. A necessidade de desativar fábricas, comércio e turismo e fazer o fechamento quase completo do que não são atividades essenciais à manutenção da vida mudou completamente a política de não emitir dinheiro nos bancos centrais e estão liberando renda mínima básica para cidadãos subitamente desempregados ou sem trabalho autônomo.

Governos ultraliberais que atendiam à “TROIKA” BCE-CEE-FMI (Banco Central Europeu, Comissão Econômica Europeia, Fundo Monetário Internacional) e ao Federal Reserve estadunidense passaram da defesa das ideias econômicas de Ludwig Von Mises, Frederick Hayek, Milton Friedman, impulsionadas por Karl Popper e Keneth Rothman – criadores do Fórum Mundial de Davos – para girar 180º e executar o modelo de defesa econômica do estado defendido entre 1933 e 1937 por John Maynard Keynes que recuperou os EUA da depressão com o “New Deal” de Franklin Delano Roosevelt (1).

Três países permaneceram isolados no mundo propondo a política de deixar adoecer e morrer para enterrar muita gente com a COVID-19. Os EUA, Brasil e Hungria. As propostas do sociopata maior – Donald Trump – junto com seu Pateta sul-americano no Brasil são de deixar todo o mundo adoecer e quem sobreviver ficará imune para trabalhar até morrer de cansaço, fome ou balas (2).

Para alguns médicos que não estudaram epidemiologia devemos deixar todos ficarem doentes e deixar chegar a morte dos que vão sucumbir em até treze semanas. Quem sobrar viverá com uma “economia forte” cheia de banqueiros felizes, sem investimento do estado nos programas que toda Europa e até Trump estão colocando para a Renda Mínima Cidadã que o ex-senador Suplicy defende há mais de vinte anos. A ignorância custa mais caro que o investimento do estado. E a hipótese de ignorância em abril de 2020 é a mais benigna.

Os princípios do isolamento ou distanciamento social são:

  • As pessoas não podem sair de casa, exceto por motivos indispensáveis: compras, trabalho, farmácia, hospital, banco ou companhia de seguros (com justificativa extrema).
  • É proibido levar as crianças para passear ou ver amigos ou familiares, exceto para cuidar de pessoas que precisam de ajuda, mas com medidas de higiene e que mantenham a distância física.
  • Todos os bares e restaurantes devem ser fechados, apenas permitido a retirada de pedidos.
  • Todo o entretenimento deve ser fechado: esportes, filmes, museus, festas municipais.
  • Casamentos não podem ter convidados. Os funerais não podem ter mais do que um punhado de pessoas.
  • O transporte de massa deve permanecer aberto. ”

É lógico supor que para ficar em casa as pessoas devem receber apoio de dinheiro para comprar comida e remédios. O objetivo de diminuir o contágio por contato social requer que as pessoas privadas de trabalho e renda possam sobreviver. Para isso a renda mínima cidadã funciona e não pode ser colocada apenas durante “três meses”.

As famílias trabalhadoras de renda estável têm buscado colaborar com o distanciamento social. Passaram a dedicar mais cuidado aos idosos e às crianças. Dispensaram empregadas diaristas garantindo o pagamento de seus salários enquanto afastadas. Dividiram o trabalho entre familiares e vizinhos. Com isso pretendem diminuir a chance de que as trabalhadoras e trabalhadores domésticos enfrentem ônibus lotados indo e vindo expostas ao contágio todos os dias.

A renda das famílias de classe média e média-baixa consegue sustentar os salários dos empregados por trinta, talvez sessenta dias a contar do início da quarentena. Depois disso existe uma incógnita por que até mesmos os que são funcionários públicos estáveis, como os que são perseguidos pelo governo bozo-guedes-mourão não terão certeza de receber seus salários em dia.

O Calote salarial aplicado pelo governo do estado de Minas Gerais pode chegar a outros estados, de tal forma que nem mesmo os militares terão certeza de receber parte do que o Banco Central do Brasil destina aos investidores e donos de bancos. O país caminha para uma grave depressão, com fome e miséria. Todas as famílias trabalhadoras que “não são ricas” precisam de alternativas de políticas públicas de sustentação de renda em menos de sessenta dias. De acordo com Ana Roxo definimos como ricas as pessoas que podem ficar um ano sem trabalhar.

O medo começa a chegar aos trabalhadores que recebem de seus empregadores para ficar em casa. A dispensa remunerada dos servidores domésticos tem o limite de que eles também se sentem inseguros sem uma Renda Mínima Cidadã. Pensam que uma dispensa remunerada agora pode significar que não vão retornar depois e que a epidemia-pandemia é apenas um pretexto. O medo e a razão andam juntos. Nem muita conversa resolve. Estão todos em mau estado psicológico, especialmente os de contratações mais recentes.

Contra eles trabalha o desmando dos governos falando que para impedi-los de trabalhar vão tirar de circulação os ônibus. Equivale a um toque de recolher para pobres trabalhadores que ao passar um único ônibus lotado irão se engalfinhar para entrar amassando seus corpos contra o contágio pelo Coronavírus. Chegou a hora de brigar para que os mafiosos controladores das empresas de ônibus coloquem mais ônibus rodando nas ruas e só permitam passageiros sentados. A solução não é retirar o transporte para a quarentena. A solução é oferecer mais transporte e menos lotação com proteção para os motoristas, cobradores e inspetores de linha.

E o governo Brasileiro continua enviando ao Congresso Nacional medidas que chama de “reformas” para retirar direitos trabalhistas, sociais e de seguridade social. Retira e bloqueia pagamentos do programa de transferência de renda chamado de “bolsa família”, retira direitos trabalhistas, fecha o intercâmbio científico, fecha pós-graduações, terceiriza o Sistema Único de Saúde criando “agência” que não é nem Agência segundo a lei brasileira e não passa de uma ONG governamental federal, e deixa os trabalhadores sem renda para enfrentar o desemprego. Trabalha para aprofundar a depressão econômica e apresenta aquele que vai dar o tiro de misericórdia – o Coronavírus.

A maldade ultraliberal está concentrada no interesse das duzentas pessoas que são donas de financeiras, têm dinheiro nos bancos, controlam os políticos e juízes. Com essas medidas estão ajudando o serviço mortal do Coronavírus como carrasco de quem eles já condenaram. O Brasil está na contramão do mundo e usa medidas epidemiológicas ruins e ineficazes como o fechamento de fronteiras, cuja finalidade é geopolítica e não sanitária. Os vírus não passam pela aduana. Passam pelo avião presidencial, que serve de coiote.

Os profissionais de saúde que apoiam o governo revelam a incapacidade de ver o mundo real e de aprender. Alguns são médicos especialistas ou clínicos que não estudaram epidemiologia, não se atualizaram, não viram os exemplos recentes da China e da Coreia, ignoram o que aconteceu na Itália que se aproxima do modelo privatista destruidor do SUS. Partem de premissas verdadeiras e pelo método errado chegam a conclusões erradas. É tarde para aprender? A ignorância ou o desimportar-se com a vida das pessoas que dizem valorizar parecem pouca desculpa para não serem capazes de ver o que acontece. Nem que custe a vida dos outros que dizem preservar.

Profissionais de saúde do governo ultraliberal aprenderam a defender a economia de mercado da escola de Chicago acima da economia capitalista moderada de Keynes. Ignoram a economia socialista como opções de defesa da vida. A trupe guedes-mourão-maia-alcolumbre vai levar o país à morte de milhares de pessoas indefesas e defenderá o trabalho contagiante, dizendo que deseja salvar pessoas. ‘Deixai qualquer esperança vós que entrais’ nessa trilha, citando Dante.

Isso coloca a estratégia de Testagem Universal que foi a chave do sucesso de bloqueio na Coreia do Sul como única alternativa para o distanciamento social absoluto e planejado que parece ter sido aplicado com sucesso na Alemanha.

Coloca também como criminosa a estratégia de liberar comércio e atividades não essenciais para a população trabalhadora esperando que a epidemia seja extinta DEPOIS de morrer muita gente pobre, periférica e sem meios de salvar suas vidas em uma UTI dos poucos hospitais aparelhados.

Os primeiros modelos epidemiológicos de disseminação de surtos epidêmicos em populações vulneráveis surgiram na Inglaterra em 1927. São modelos complexos que exigem muitas variáveis para calcular a taxa de reprodução de casos novos. O modelo de Kermack-McKendrick foi aplicado a muitas epidemias e tem sido trabalhado com a busca de um equilíbrio em que o número de casos novos a cada contato com pessoa doente seja menor que um. São modelos de cálculo diferencial compartimentalizado chamados basicamente de “SIR” – Suscetíveis, Infectados e Recuperados (3).

A imprensa brasileira não publica ou esconde os modelos epidemiológicos que desmentem o número de 70% de adoecimentos como piso necessário para interromper a epidemia. É MENTIRA seja por critérios estocásticos seja por critérios determinísticos que tenhamos de tolerar o charlatanismo epidemiológico praticado pelos ministros da Saúde.

NÃO é necessário infectar 70% para reduzir a zero novas infecções. Isso depende da chance de novos contatos infectantes que dependem de muitas variáveis modeláveis para reduzir o “R-zero” ou Ro que é a taxa de reprodução de casos novos a partir de um caso transmissor, sintomático ou não. Repito. Qualquer modelo epidemiológico sobre chegarmos a um Ro que seja menor que 1 é multivariável.

Os técnicos governamentais da saúde mentiram para lançar esse número mágico, falso e cruel de 70%. Certamente com isolamento total a taxa de infecção nova já teria chegado a zero. Como os serviços de alimentação e sustentação da vida impedem isso é possível que modelos com todas as variáveis mostrem que chegaremos a taxas de adoecimentos entre dez e vinte por cento dependendo do planejamento social.

Escolas NÃO SÃO necessárias à sustentação da vida no modelo de sala de aula que temos. Nosso modelo Escola confinada é fonte de infecções. A entrada desordenada de estados e municípios nas medidas de confinamento pelas escolas sem planejamento anterior foi errada. A saída pela volta das mesmas escolas é pior. Ambos os movimentos de entrada e saída desconsideraram combinar estratégias de sustentação com as famílias trabalhadoras desses escolares. A manutenção da quarentena exige planejamento democrático participativo e regras de consenso. Quarentena bruta é sujeita a descumprimento e ao arbítrio do guarda da esquina, como em qualquer ditadura.

A mentira dos 70%, e mesmo 100% mágicos desconsidera que a mobilidade social cria novos contatos e é apenas uma das variáveis que determinam a sustentação da epidemia (4). Todas as outras variáveis não são constates e podem ser alteradas por organização da vida social (5-6). O planejamento atual só fala na economia e desconsidera o poder econômico do estado nas mãos do Banco Central (banqueiros) e do ministro da economia. O modelo de “saída gradual para infectar 70%” é mentiroso, incompetente e assassino. Chega de empresários comandando a vida e enchendo cemitérios. Chega de charlatães epidemiológicos assassinos.

Referências:

1 . http://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20200423-fran%C3%A7a-evitou-mais-de-60-mil-mortes-por-coronav%C3%ADrus-gra%C3%A7as-ao-confinamento

2 . https://www.diariodocentrodomundo.com.br/ministro-da-saude-defende-expor-populacao-ao-covid-19/

3. https://pt.wikipedia.org/wiki/Modelo_epid%C3%AAmico

4. https://mathworld.wolfram.com/Kermack-McKendrickModel.html

5. https://www.gciencia.com/saude/un-modelo-un-teorema-e-teoria-de-xogos-contra-o-coronavirus/

6. https://pt.slideshare.net/rakraenkel/semina-usp2013

 

Lugares da Covid e territórios do poder: os casos de Duque de Caxias e Rio das Pedras, por Luciano Ximenes Aragão e Marcio Rufino Silva[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na página da PPGIHD-UFRRJ, em 02 de maio de 2020.

O ritmo e as consequências da expansão da Covid-19 no município de Duque de Caxias e na localidade de Rio das Pedras, no bairro de Jacarepaguá, município do Rio de Janeiro, bem podem fornecer importantes pistas quanto à compreensão dos processos sociais subjacentes à pandemia e ao cotidiano da crise social das cidades brasileiras.

Além de muitas e importantes análises sobre o ritmo presente e as prospecções da evolução da Covid-19 na Baixada Fluminense e nas demais áreas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro[1], circulou, nos últimos dias, uma série de reportagens, em diferentes mídias, a respeito de aspectos peculiares de ambos os lugares indicados no parágrafo anterior, sobretudo do modo como as suas populações estão atravessando o período da quarentena.

Delineando o problema em dois atos

Duque de Caxias, o município mais populoso da Baixada Fluminense[2], cujo primeiro caso oficialmente confirmado de infecção pelo novo vírus data de 24 de março de 2020 (segundo os dados constantes no Painel Rede CoVida, disponíveis em https://painel.covid19br.org/), naquela mesma data teve veiculada uma declaração de seu prefeito, Washington Reis, afirmando que “[...] nossa orientação desde a primeira hora foi manter as igrejas abertas, porque a cura [à doença causada pelo novo coronavírus] virá de lá, dos pés do senhor”.[3] A reportagem reforça, ainda, que a fala do prefeito seria “[...] direcionada a fiéis e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus e de outras denominações”, com o intuito de lhes assegurar que seus templos manteriam as portas abertas diante das medidas de isolamento social constantes em decreto estadual[4] e já adotadas naquele momento por outros municípios. Ao lado da vereadora Leide Nascimento (PRB), que afirmava que os cultos já não estavam acontecendo e que a própria igreja já havia tomado suas medidas quanto à higiene das mãos dos “obreiros e fiéis” que adentravam as igrejas, o prefeito declarou, ainda, que subiria ao “Monte” para “orar”, buscando que “Duque de Caxias tenha a proteção de Deus”. Questionada pela reportagem quanto às medidas locais para combate à COVID-19, a Prefeitura de Duque de Caxias afirmou que agentes de segurança estavam orientando a população, sobretudo os mais idosos, ao isolamento social e que estavam suspensos por 15 dias a realização e feiras livres. Quanto às igrejas e ao comércio, tal decisão ainda era facultativa naquele momento.

Outra reportagem noticiava que, no início daquela mesma semana, o movimento nas ruas do município, inclusive no Centro, ainda estava muito próximo dos dias normais, com comércio aberto, calçadas cheias, filas em bancos e grupos de idosos aglomerados em praças públicas[5]. E, no final de março, a despeito das medidas de enfrentamento à COVID-19 anunciadas pela prefeitura do município, como a aquisição de um centro de saúde particular e a abertura de novos leitos, era notória a resistência do poder local em adotar medidas de isolamento social. Uma reportagem[6], por exemplo, noticiava que, ao contrário de Caxias, “algumas prefeituras da Baixada Fluminense determinaram o fechamento do comércio mesmo antes de haver registro oficial de infectados pelo novo coronavírus”, o que fora o caso de Nova Iguaçu, São João de Meriti, Mesquita, Nilópolis, Queimados, Japeri, Paracambi e Magé. A reportagem, ainda, indica Duque de Caxias como um “reduto bolsonarista”, seja pela maior quantidade absoluta de votos, dentre os demais municípios da região, dispensados ao então candidato Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, seja pelo “alinhamento” do poder institucional local com os discursos negacionistas do presidente quanto à necessidade e eficácia da estratégia de isolamento social diante da pandemia. Ao final, a reportagem cita falas de ativistas sociais locais, que denunciam o baixo investimento público no enfrentamento das desigualdades sociais e raciais locais e a subordinação das populações mais pobres, majoritariamente negra, a religiões neopentecostais e grupos milicianos, bem como a adesão de parte dessa população a discursos mais radicais dessas religiões e a perspectivas anticientíficas preconizadas por essas tendências políticas e teológicas. Por fim, cita iniciativas do grupo “Movimenta Caxias” e da iniciativa “#Coronanabaixada[7], na promoção de campanhas de arrecadação de mantimentos e de reivindicação de políticas locais de enfrentamento à pandemia.

Dias depois, noticiava-se que a 1ª Vara Federal de Duque de Caxias havia derrubado os efeitos de Decreto Federal que definia como “serviço público essencial” atividades religiosas e funcionamento de casas lotéricas[8]. Em 30/03/2020, no entanto, a Advocacia Geral da União (AGU), no entanto, entrou com recurso junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que, por sua vez, atendeu o pedido e liberou a vigência do decreto que incluía “atividades religiosas de qualquer natureza” e “unidades lotéricas” no rol de atividades essenciais[9]. O parecer do TRF-2, assinado pelo desembargador Roy Reis Friede, presidente do Tribunal, acatou as justificativas da AGU quanto ao pedido de suspensão da liminar da Vara de Duque de Caxias, reiterando que a vara teria usurpado competência constitucionalmente entregue ao Poder Legislativo, sendo “competência exclusiva do Congresso Nacional [...] sustar atos normativos do Poder Executivo quando estes exorbitem do poder regulamentar”; a referida decisão, ainda, reiterou que não se poderia “aproveitar o momento de pandemia mundial e calamidade pública para se permitir a perpetração de afrontas à Constituição da República e ao consagrado Princípio da Separação dos Poderes”. Por fim, a decisão advoga que, em “localidades desassistidas da rede bancária”, só é possível às populações mais pobres acessarem serviços bancários básicos por via de unidades lotéricas e que as atividades religiosas foram autorizadas pelo decreto mediante “caráter de cautela”, já que elas só poderiam ser efetivadas “obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”.

Nova reportagem do dia 2 de abril, pouco mais de 15 dias após a promulgação do decreto estadual que estabelecia o isolamento social e o encerramento de atividades não essenciais, relatava que, em Duque de Caxias, ainda havia lojas abertas, aglomerações e filas no Centro e em vários bairros.[10] Em resposta, o prefeito gravou um vídeo informando que já haviam sido promulgados decretos do município determinando o fechamento do comércio e que carros de som da prefeitura andavam pelas ruas da cidade convencendo seus moradores a permanecerem em suas casas. Dez dias depois, Washington Reis foi internado na unidade de tratamento semi-intensivo do Hospital Pró-Cardíaco, no bairro de Botafogo, zona sul do município do Rio de Janeiro, com teste positivo para contaminação com o Covid-19.[11] No dia seguinte à internação do prefeito, o município já contava com 81 casos confirmados e 16 mortes registradas, sendo a segunda cidade com maior número de mortes do Estado do Rio de Janeiro e a última da Região Metropolitana a adotar medidas de isolamento social.[12] Note-se, aliás, que o município de Niterói, cujo primeiro caso oficial foi confirmado em 12 de março de 2020, doze dias antes do primeiro caso de Duque de Caxias, e que durante boa parte do primeiro mês de vigência do decreto estadual figurou como o segundo município com maior número de infectados do Estado do Rio de Janeiro, atrás apenas da capital, em 27 de abril estava com 260 casos confirmados e 19 mortes, ao passo que Duque de Caxias tinha 300 casos confirmados e o altíssimo número de 63 mortos devido ao novo coronavírus.

Não faltaram análises críticas quanto à situação caótica que o município estava vivendo desde o final de março, quando os primeiros sinais de que a situação poderia sair do controle foram veiculadas. Uma situação particular foi relatada em um texto que expôs o vínculo entre a imensa subnotificação de casos no município, a precariedade do sistema público de saúde local e o monopólio dos serviços funerários “em uma cidade de um milhão de habitantes”, o que apontava indícios disso tudo “[...] ser mais um dos negócios lucrativos da milícia”, somado ao “controle que exercem sobre os serviços nos hospitais públicos”. Nesse sentido, José Cláudio Souza Alves afirma que “a estrutura legal e formal de hospitais, cartórios, funerárias e cemitérios são perpassadas pelo poder miliciano, com seus representantes na Delegacia, no Batalhão, na Câmara dos Vereadores e na Prefeitura”. Nessa situação, uma economia de terror é erguida justamente nos escombros de uma “potencialização da força e impunidade dos assassinos”, implicando uma prática de “chacinas invisíveis”, ampliando “o poder da morte pelo desaparecimento dos corpos”, configurando verdadeiras mortes “sem corpo”.[13] Em 13 de abril de 2020, ainda com parte do comércio aberto no município e com depoimentos de pessoas que ainda duvidavam da gravidade da doença, reportagem afirmava que havia espera de até 8 horas em na Unidade de Pronto Atendimento Beira-Mar, dedicada exclusivamente às pessoas com sintomas da doença; nessa unidade, pessoas com febre, gripe ou falta de ar reclamavam das imensas filas e da aglomeração dentro da unidade de saúde.[14] Dias depois, era possível coletar opiniões distintas entre os moradores do município, desde aqueles que defendiam o “isolamento vertical”, onde apenas os grupos mais vulneráveis ficariam em isolamento social, de modo a não “colapsar” a economia do país, até as opiniões de que havia uma pressão excessiva de muitos empresários pelo receio deles não poderem auferir seus lucros via exploração do trabalho de seus funcionários, e que deveria haver maior amparo do Estado aos mais necessitados.[15]

Nesses últimos dias, o quadro da evolução da doença em todo o país e, especialmente, no Rio de Janeiro, só foi se agravando. As imagens de superlotação em unidades de tratamento intensivo e corredores de hospitais e de abertura de covas coletivas em cemitérios passaram a fazer parte do noticiário e do cotidiano de muitas pessoas, sobretudo as mais empobrecidas de algumas metrópoles. Assim como em outros lugares da região Norte do Brasil, que atravessam pouco a pouco a linha do colapso do sistema público de saúde e, logo mais, da rede particular (citemos os exemplos de Manaus, Belém, Macapá, Fortaleza, Recife e São Paulo como os mais críticos do país neste momento[16]), bem como de seus sistemas funerários, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro já convive com o uso de câmaras frigoríficas para armazenamento dos corpos antes de seu encaminhamento ao enterro.[17] Tornam-se cada vez mais comuns, igualmente, relatos de profissionais de saúde que, dada a escassez de leitos e de respiradores para a imensa demanda de tempos de Covid, se veem obrigados a “escolher” pacientes, deixando os menos afortunados à morte pelo sufocamento ocasionado pela ação do vírus nos pulmões. Em um momento em que o município do Rio de Janeiro atingiu a marca de quase 100% dos leitos de UTI ocupados, não é incomum relatos como o do cirurgião-geral e diretor do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Pedro Archer, segundo o qual, dada a escassez de respiradores em uma unidade pública de saúde na zona oeste do município, todos os dias essa “escolha” tem que ser feita.[18]

Na manhã do sábado de 25 de abril, passado um mês desde a confirmação do primeiro caso em Duque de Caxias, imagens divulgadas em redes sociais e posteriormente confirmadas pela prefeitura mostravam cadáveres amontados nos corredores do Hospital Moacyr do Carmo. Dentre os 15 corpos dispostos no corredor, pertencentes a famílias que não podiam arcar com os custos do sepultamento, ao menos 10 seriam de vítimas da Covid-19. Segundo servidores ouvidos pela reportagem, o mau cheiro podia ser sentido de outros corredores de acesso. A reportagem prossegue indicando disputas entre a prefeitura do município e a concessionária de “serviços públicos cemiteriais e administradora dos cemitérios de Duque de Caxias”, AG-R Eye, quanto aos preços cobrados pela empresa.[19] Dois dias depois, outra reportagem afirmava que os corpos já haviam sido retirados do hospital, e que a prefeitura afirmava que tal situação, incomum na unidade, deveu-se à “irresponsabilidade da concessionária que administra os cemitérios da cidade”.[20]

Rio das Pedras, localidade do bairro de Jacarepaguá, atravessada pela Estrada de Jacarepaguá e pela Avenida Engenheiro Souza Filho, tem ocupado, igualmente, muito espaço nas mídias no contexto do alastramento da Covid-19, e por razões muito semelhantes às do município de Duque de Caxias. Além das dificuldades cotidianas de cumprimento das medidas de isolamento social, da subnotificação de casos, outras situações chamaram muita atenção. Em 25 de março, ainda nos primeiros dias da quarentena estadual, reportagem informava que “tráfico e milícia” haviam imposto toque de recolher em favelas e demais localidades do Rio de Janeiro por conta da disseminação do novo coronavírus. Segundo o texto, a ordem de encerramento de atividades e da circulação de pessoas a partir das oito horas da noite, veiculadas por um carro de som circulando nas ruas, foi confirmada na Rocinha e no Cantagalo, na zona sul, em Rio das Pedras e na Cidade de Deus, na zona oeste, e em outras localidades na zona norte do município do Rio de Janeiro. Após relatar a experiencia de outros lugares, onde o turismo em favelas havia sido interrompido e onde traficantes inclusive faziam uso de máscaras e álcool gel, Rio das Pedras, segundo a reportagem um “bairro dominado pela milícia”, teve o depoimento de um morador que afirmava que “eles não estão batendo em ninguém” e que “a maior parte está obedecendo”.[21] Ao que parece, essa “benfeitoria” não durou muito tempo. Pouco mais de 20 dias depois, e quando os casos confirmados de Covid-19 já se aproximavam de 4.000 e estavam registradas oficialmente 350 mortes no Estado do Rio de Janeiro, foram veiculadas denúncias de que grupos milicianos estavam obrigando a reabertura de comércio da Zona Oeste do Rio (especialmente em Itanhangá, Rio das Pedras, Muzema e Gardênia Azul) e parte da Região Metropolitana (especialmente o município de Itaboraí), de modo a efetivar a tradicional cobrança extorsiva de taxas de comerciantes e de moradores, muitos deles já empobrecidos pela interrupção de atividades econômicas devido à quarentena.[22]

Coronavírus e o atravessamento da vida cotidiana

Partimos, aqui, da premissa de que o vírus e sua disseminação nada têm de puramente biológico, já que seu conteúdo político e sua base econômica podem ser observados pelo próprio ritmo de sua disseminação, desde as suas primeiras manifestações. Aliás, David Harvey (2020, p. 13)[30], tratando especificamente do início da disseminação global do vírus, afirma que, para “tentar interpretar, compreender e analisar o fluxo diário de notícias”, sua tendência seria “localizar o que está acontecendo no contexto de dois modelos distintos, mas intersectantes, de como o capitalismo funciona”. Para o geógrafo inglês, o “primeiro nível é um mapeamento das contradições internas da circulação e acumulação de capital como fluxos de valor monetário em busca de lucro”, por intermédio da “produção, realização (consumo), distribuição e reinvestimento”; por sua vez, esse modelo complica-se quando é elaborado “através [...] das lentes das rivalidades geopolíticas, dos desenvolvimentos geográficos desiguais, das instituições financeiras, das políticas estatais, das reconfigurações tecnológicas” e, finalmente, “da teia em constante mudança das divisões do trabalho e das relações sociais”. Para o autor, então, ambos desdobramentos se ancoram em “um contexto mais amplo de reprodução social (nas famílias e comunidades), numa relação metabólica e em constante evolução com a natureza [...] e todo o tipo de formações culturais, científicas, religiosas e sociais contingentes” que são fruto do engenho humano através do espaço e do tempo.

Tendo o novo coronavírus surgido, provavelmente em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, importante nexo produtivo e logístico da China contemporânea, e, cerca de um mês depois, tendo expandido seus domínios por Irã, Itália e Espanha e, pouco mais tarde, pelos Estados Unidos, foi por intermédio desses territórios que o vírus foi trazido à convivência brasileira. Inclusive, estudo promovido na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo rastreou que 54,8% dos casos importados de Covid-19 para o Brasil, até o dia 5 de março, apenas uma semana após a confirmação do primeiro caso no município de São Paulo, haviam vindo da Itália. A pesquisadora Ester Sabino, uma das autoras do estudo, afirmou ainda que, diferentemente da China e outros países, onde o surto “começou devagar, com um número pequeno de casos inicialmente, no Brasil mais de 300 pessoas começaram a epidemia, em sua maioria vindas da Itália” e, ainda, que “isso resultou em uma disseminação muito rápida do vírus”.[23] Tendo esses passageiros provindo daquele país, grande parte desembarcou em outras cidades, como Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife, Porto Alegre entre outros, o que explica em parte dessas metrópoles com importantes conexões aeroportuárias terem sido as primeiras a se configurarem como epicentro da doença no Brasil.

Entrando no estágio intitulado pelos estudiosos e autoridades sanitaristas de “circulação comunitária” em meados de março nas duas maiores metrópoles do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, o ritmo da disseminação do vírus certamente adquiriu o carimbo tipicamente brasileiro, passeando pelas vias das aglomerações e do trânsito cotidiano, com toda a sua desigualdade, violência, humilhação cotidiana e abandono aos empobrecidos. Muitos foram os artigos, análises e estudos que mostraram o quanto seria uma questão de tempo até que o vírus, trazido ao país e aos seus maiores centros urbanos grosso modo por uma elite econômica internacionalizada, se desfizesse de um pretenso caráter “democrático”[24] e começasse a vitimizar, pouco a pouco, aos destituídos habitantes de favelas e periferias precarizadas, quase nunca apartados de seus cortes de gênero, raça e outras formas de segregação e isso incluindo também a população de rua[25]. E foi justamente o que ocorreu tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil: negros e pardos passaram ter, inclusive, maior mortalidade assim que se consolidou a circulação local do vírus em ambos países.[26]

E é justamente esse conteúdo político, ou uma produção política da sociedade, que podemos perceber nesses dois lugares da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esses lugares, segundo nossa interpretação, parecem paradigmáticos tanto em relação à urbanização e sua forma e conteúdo no âmbito da formação social brasileira, historicamente pautado em formas derivadas do escravismo e suas ramificações quanto ao controle da terra, das rendas e dos excedentes da produção social, quanto aos paradigmas contemporâneos de forças avançadas de gestão da barbárie em temos de capitalismo financeirizado.

A “produção política da sociedade” é uma hipótese teórica aventada pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre em várias de suas obras, e podemos defini-la, a princípio, da seguinte maneira:

[Essa produção] significa, de um lado, o ato de estabelecer a equivalência do desigual, a homogeneização, o identitário, e de outro desvela o conflito que está presente de forma imanente na relação de troca – seu caráter de constrição, de equalização forçada e legitimada que torna necessária a mediação de um tertius [terceiro termo] em nossa sociedade: o Estado. A equivalência e a igualdade jurídica, pela dimensão do constrangimento, convivem necessariamente com a dependência e a subordinação nas práticas sociais e nas instituições (SPOSITO, 1996, p. 46)[31].

Nos casos levantados acima, do enfrentamento da Covid em Duque de Caxias e Rio das Pedras, de que modo esse Estado lidaria com as equivalências? De que modo o Estado promove esse “constrangimento” e a “subordinação nas práticas sociais e nas instituições”?

Anselm Jappe, filósofo e ensaísta alemão, publicou recentemente um livro intitulado “A sociedade autofágica” (2019)[32]. Tratando, especificamente, da “crise da forma-sujeito”, o autor põe em dúvida que a “autoconservação” ou “autoafirmação” do sujeito, uma pretensa “base do pensamento moderno”, ainda seja válida nas últimas décadas. Na prática, isso significa que uma “pulsão de morte do capitalismo” estaria na vanguarda de processos sociais cada vez mais irracionais, onde uma “satisfação libidinal” seria alcançada pela apropriação de bens ou corpos, mesmo com o custo do auto-aniquilamento. O “instinto de sobrevivência” é substituído pela pulsão destrutiva e mesmo autodestrutiva. Ainda, segundo o autor,

Desde finais da década de 1990, multiplicaram-se massacres premeditados em escolas, universidades, locais de trabalho e noutros espaços públicos, principalmente nos Estados Unidos, mas não só; atentados qualificados como “jihadistas”, mas que não entram nas categorias tradicionais da política e da religião; ataques, ou mesmo homicídios, imotivados, em locais públicos – muitas vezes por causa de um “olhar de través”; ataques ferozes contra imigrantes, marginais ou homossexuais. [...] É conhecida a violência sádica manifestada por certas formas de criminalidade ligadas ao tráfico de droga, nomeadamente no Brasil e no México, cujos autores sabem, com quase toda certeza, que vão morrer jovens. (JAPPE, 2019, pp. 258-259)

O esgarçamento e a dissolução das formas sociais modernas é assunto tratado por Marildo Menegat em vários de seus textos. Tal como uma compreensão de que “a aparência inabalada das coisas já não corresponde à sua verdade”, lemos que a vida social, especialmente no Brasil e no Rio de Janeiro na Era Covid, “faz do presente a mera espera de um futuro que não se quer, a exemplo de quem aguarda um tsunami sem ter para onde correr”. O resultado dessa “civilização em fim de linha” é que o horror de classes ou segmentos sociais ainda funcionais para a acumulação detêm em relação àqueles que passaram a “ser o outro lado da fronteira do desmoronamento da sociedade” (MENEGAT, 2019, p. 68)[33]. Isso quer dizer que, se o próprio Menegat ainda indicava o encarceramento em massa como possibilidade de gestão dessa massa economicamente disfuncional, em nossos tempos de Covid, o simples laissez-faire da “contaminação de rebanho”[27] fará o serviço final de eliminação física. Ou seja, uma “economia política da barbárie” (2019, p. 78), lastreada pelo Estado de exceção há muito tempo tornado regra, é capaz de “pôr tudo abaixo” caso não se realize a forma tautológica do dinheiro valer mais dinheiro ao final do processo de giro do capital.

Francisco de Oliveira, famoso sociólogo brasileiro falecido em julho de 2019, em seu último livro lançado em vida, intitulado “Brasil: uma biografia não autorizada” (2018), advogava logo no início de seu texto um “adeus do futuro ao país do futuro”. Iniciando com uma “síntese da formação histórica brasileira”, advogava de pronto que o “nascimento” do Brasil ocorrera simultaneamente à modernidade: à conquista territorial, “mesclavam-se a propagação da fé cristã, comércio e exploração de riquezas comerciais” (OLIVEIRA, 2018, p. 27)[34]. O extermínio das populações nativas era o primeiro traço daquela colonização mercantil que se iniciava e, pouco a pouco, enraizava-se em um território, cujo acesso à terra fora de pronto definida pelas capitais e, em seguida, pelas sesmarias. A concentração de terras e, mais tarde, o comércio de escravizados da África constituiu o ambiente propício à empresa mercantil escravista-colonial. Sintetizando um percurso histórico de quase quatro séculos, o sociólogo resume assim a trajetória de nascimento do moderno Estado-nação brasileiro:

Foi um duro percurso, do Quilombo dos Palmares [...] até desaguar, sem tempestade [...], na abolição da escravatura, em 1888. [...] Batia às portas a República. Desde logo, eis os elementos do truncamento brasileiro, mesmo que não se adotasse ponto de vista de desenvolvimento histórico linear. Truncamento que alimentou a autoironia dos brasileiros, cáustica às vezes, mas baseada em fatos: uma independência urdida pelos liberais, que se fez mantendo a família real no poder e se transformou imediatamente numa regressão quase tiranicida; um segundo imperador que passou à história como sábio e não deixou palavra escrita, salvo cartas de amor um tanto pífias; uma abolição pacífica, que rói as entranhas da monarquia; uma república feita por militares conservadores, mais autocratas que o próprio imperador. Num registro não sarcástico: desenvolvimento conservador a partir de rupturas históricas libertadoras. (2018, p. 32)

Este país que, entre as brechas possíveis da história do capitalismo no século XX, empreendeu esforços de desenvolvimento congregando “quinhentos anos em cinquenta”, cedo abandonava a esperança de figurar no primeiro mundo, caído na armadilha da dívida e, posteriormente, do fiscalismo neoliberal e da erosão da nação, atrelado ao ideário prático da assim chamada globalização. Para Oliveira, ao invés de produzir-se um Estado mínimo, fora gestado um “Estado máximo”, guardião dos movimentos do capital, buscando assegurar tais movimentos “contra toda a incerteza, que aliás cresce exponencialmente no mundo globalizado”. Por fim, “a combinação de máxima incerteza, erosão da comunidade política e Estado máximo produziu um Estado que está muito próximo de ser um Estado policial” (2018, p. 75).

Se quinze anos atrás o diagnóstico era de que “o cotidiano havia se transformado [...] numa constante negociação entre a não forma mercantil, que impõe sobrevivências praticamente gângsteres – o narcotráfico, por exemplo, e sua consanguínea violência – e as precárias formas das políticas assistencialistas” (2018, p. 77), hoje talvez o diagnóstico mereça algumas atualizações. Atualmente, no meio de uma grave pandemia, que dia a dia vitima milhares de pessoas mundo afora, em vários lugares do Brasil, os mais pobres acotovelam-se nas portas da Caixa Econômica Federal, buscando o “auxílio emergencial”[28], demorado e ainda pouco acessível a muita gente, e, ainda, precisa negociar sua sobrevivência em contextos de extrema violência operada por grupos milicianos, cuja indissociabilidade com as tramas do Estado é mais do que conhecida. Trata-se de um poder discricionário que simplesmente sofisticou os métodos da espoliação, incluindo a modalidade do pagamento de taxas e pedágios pela “segurança”, o monopólio de serviços essenciais, o acesso ao mercado imobiliário e, ao mesmo tempo, a convivência com a violência do narcotráfico e da guerra contra as drogas. Além disso, a novidade histórica de um governo que, segundo muitos analistas, produz propositalmente o desgoverno e a crise, e cuja declaração do presidente em um dia de alta histórica do número de mortos no Brasil mais a ultrapassagem do total acumulado de mortes na China[29] resume-se a um grosseiro “e daí?”[30], é acompanhada da proposta de banimento de voos comerciais dos Estados Unidos ao Brasil, feita pelo presidente estadunidense Donald Trump, de quem Jair Bolsonaro é aliado de primeira hora, que atribuiu ao Brasil um aumento exponencial e perigoso da curva de contaminações.[31]

Seria esse o cenário para o delírio anarcocapitalista de cores tupiniquins,[32] apropriado às veredas de uma sociedade desigual porque escravista, violenta porque hipermoderna em suas formas de espoliação via o máximo de trabalho abstrato, injusta porque é necessária uma cadeia da equivalência de perpetuação das desigualdades e dos privilégios às rendas e ao dinheiro sem lastro? Seria o Brasil das ruínas de seu projeto modernizador o berço de uma novidade histórica, para além do neoliberalismo privatista, um distópico “modelo” de sociedade onde milícias e famílias ricas isoladas com vieses teocráticos, a verdade de uma “nova sociedade” propagandeada por tantos grupos que cerram fileiras na defesa inconteste de uma forma social moribunda?

Os desafios teóricos e analíticos se multiplicam na mesma intensidade com que a realidade se complexifica. Contudo, aumenta também a necessidade de pensarmos sobre ela. Trata-se de se debruçar sobre o cotidiano (ou de seus resíduos, o infra-cotidiano) para enfrentar o modo sobre o qual ele vai sendo sentido, vivido e tecido. É como se estivéssemos sobre o bastidor de um bordado e a linha não querer acompanhar o desenho que está ali sobre o tecido que aparentemente já tem uma vida própria. Não temos o controle da linha e da agulha. Essa é a metáfora aproximativa para reter o aprofundamento das contradições que se apresentam na produção (social) do espaço. Para além de nossos voluntarismos, aquilo que desejamos, nos confrontamos com a responsabilidade de contribuir com esse estado de coisas.

A linha teórica que se propõe aponta para a crítica da economia política, mas com uma orientação para o entendimento das disputas em torno da apropriação do excedente social, ou seja, de parte do trabalho excedente capturado pelo Estado ou em operações que ora tem origem nas próprias instituições, ora fora delas, ora atravessadas por ela. Isto quer dizer que há momentos da vida social em que se destaca uma crise das instituições, e, em seu lugar, emergem as organizações. Dentre aquelas, a mais destacada é uma crise do Estado, muitas vezes revelada como uma crise fiscal utilizada como panaceia para desviar o excedente social para socorrer o setor financeiro, com a finalidade de que este não recaia na insolvência. Na justificativa para essa iniciativa acumulam-se narrativas emanadas dos setores hegemônicos que mistificam as suas consequências. É preciso alimentar os medos para que seja aceita toda sorte de medidas austeras e que sejam decretadas; todas as formas de extorsão sejam aprovadas pela opinião pública. Cada vez mais o lastro dessa economia, dado pelo trabalho, se esvai.

De certo modo, quando se observa que as referidas operações das instituições, em especial do Estado e que as atravessam, estão nelas mesmas ou fora delas, admite-se a intrincada conveniência dos distintos momentos que ela assume. É preciso aqui apresentar como se manifestam os mecanismos que drenam a renda – no caso aqui destacado, o trabalho excedente, ou que se poderia denominar mais-valia social – daqueles grupos sociais cujo único bem tem sido a sua força de trabalho para aqueles setores muito ricos. Os casos de Duque de Caxias e Rio das Pedras nos mostram evidências dessas operações. Como muitos outros territórios no Rio de Janeiro, nota-se como essas áreas se metamorfoseiam em territórios economizados. As formas de dominação desses territórios observadas são desdobradas a partir do controle daqueles territórios que metamorfoseiam ou resultam em renda de monopólios: o controle (pelas organizações milicianas) sobre novos lotes “edificáveis” na comunidade da Muzema e de parte de Rio de Pedras, o controle sobre o abastecimento de gás, assim como da cobrança pelo acesso às instalações de TV a cabo, são os seus exemplos mais emblemáticos, embora outros possam ser acrescidos. Todo tempo da vida (e até da morte!) são capturados como momentos de acumulação e de monopolização, mesmo que a despeito da suspensão da vida cotidiana, como nos mostram esses tempos de pandemia.

O desenho dos territórios economizados se entrecruza com os momentos da referida “produção política da sociedade” e por essa razão insistimos que esta se coaduna com a exploração e ampliação da dominação e neste sentido, a luta de classes está sendo reposta. Clássicas questões, como a da habitação (e esta envolvendo a terra urbana) e a própria questão urbana têm de ser vistas em outros níveis analíticos, mantendo-se como ponto de partida e de chegada esse conjunto de trajetórias da (e na) cidade. Precisamos retomar o controle da agulha e da linha (e do novelo) para compreender as tramas e tessituras dessa produção social do espaço em ato.

[35]

Luciano Ximenes Aragão (FEBF-UERJ)

Marcio Rufino Silva (PPGGEO-UFRRJ)

 

Em tempos de pandemia: propostas para defesa da vida e dos direitos sociais, por UFRJ[editar | editar código-fonte]

As Escolas de Serviço Social e de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) produziram uma coletânea de artigos com propostas para defesa da vida e dos direitos sociais durante a pandemia do novo coronavírus. As(os) organizadoras(os) Elaine Moreira, Rachel Gouveia, Joana Garcia, Luis Acosta, Marcos Botelho, Mavi Rodrigues, Miriam Krenzinger e Tatiana Brettas reuniram em 20 capítulos diversas discussões sobre conjuntura, políticas públicas e experiências dos sujeitos neste período.

CONFIRA O LIVRO COMPLETO aqui.

 

Covid-19 em favelas cariocas: no limiar entre os direitos humanos e as desigualdades sociais, por Luana Almeida de Carvalho Fernandes, Caíque Azael Ferreira da Silva, Cristiane Dameda e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na METAXY é uma Revista semestral do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH/UFRJ, em 20 de maio de 2020

Escrevemos esse manuscrito dois meses após a confirmação da transmissão comunitária no Rio de Janeiro e da primeira morte em decorrência da pandemia do coronavírus. São sessenta dias de orientações de quarentena e isolamento social e estamos próximos do início das medidas de fechamento completo (também conhecidas como lockdown, ou "tranca-rua") na maioria das cidades da Região Metropolitana. Para nós, brasileiras e brasileiros, tudo começa no final de janeiro de 2020: recorrentemente chegam notícias sobre o surto da doença causada pelo novo coronavírus, a Covid-19, que constituiu uma Emergência de Saúde em nível internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, assim, é afirmada como pandemia. A OMS sugeriu que o mundo deveria parar e se isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas de saúde. Entretanto, diante de sistemas de saúde já sobrecarregados e sucateados, o que fazer? Nos últimos anos, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos em áreas sociais como a saúde, sofremos com a intensificação do sucateamento dos sistemas de saúde, fechamento de leitos e hospitais em todo o país. Para muitos, o colapso social já começava analisando essa questão. Mas, é importante ir além: diante da realidade continental e desigual do Brasil, na qual muitos trabalham informalmente para garantir diariamente o que comer, como adotar tais medidas de restrição, principalmente diante de um governo negligente? Como afirma a psicóloga boliviana María Galindo (2020)[36]: na América Latina o coronavírus escancara a ordem colonial do mundo. "Aqui a sentença de morte estava escrita antes da covid chegar em avião de turismo" (p. 124). Não atingimos o pico da pandemia por aqui, embora há quem diga por aí que o pior já passou para as classes alta e média[5]. Talvez, numa análise mais profunda, possamos descobrir que, no Brasil, a pandemia nunca foi sobre os mais ricos. Na verdade, ela não é sobre os mais pobres também, mas evidencia os requintes de crueldade que a nossa forma de reprodução social da vida imprime na sociedade. Neste sentido, o presente ensaio visa problematizar a relação entre direitos humanos e desigualdades sociais nas favelas cariocas, a partir dos cenários que emergem com a pandemia do novo coronavírus.

O nosso inimigo invisível – o coronavírus – "faz ver e falar" (DELEUZE, 1990; HUR, 2016)[37] sobre essas desigualdades. Especialmente no caso do Rio de Janeiro, o terceiro lugar em contágios e mortes no país, gostaríamos de discutir sobre um tema que consideramos de suma importância: a chegada do coronavírus às favelas cariocas expõe uma forma de relação entre poder público e populações mais pobres que é ubuesca[6]: adjetivo aqui utilizado sob  inspiração de Foucault (2002)[38], em que o autor aponta o cruzamento entre os enunciados científicos e jurídicos usados para legitimar como estatuto de verdade a produção desses discursos que estão alheios às próprias regras científicas e jurídicas. Por isso são:

Textos grotescos – e quando digo ‘grotesco’ gostaria de empregar a palavra num sentido, se não absolutamente estrito, pelo menos um pouco rígido ou sério. Chamarei de ‘grotesco’ o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem, o ‘ubuesco’ (FOUCAULT, 2002, p. 15)[39].       

Invisível e excepcional o coronavírus foi tido inicialmente como “um vírus democrático” – expressão que compôs muitos escritos e noticiários televisivos no início da disseminação. Uma enfermidade amplamente alastrada que atingiria a todos e de maneira igualitária; que evaporou a segurança da nobreza e, o medo da sua contaminação, extrapolou as fronteiras territoriais e econômicas, com uma ideia de comunhão, de um possível mundo mais solidário onde o vírus venceria o capital e a competitividade nele emaranhada. "Este vírus é democrático e não distingue entre pobre e ricos ou entre estadista e cidadão comum" (ZIZEK, 2020, p. 25)[40].

Como um vírus pode ser "democrático" (ZIZEK, 2020)[41] em um país tão desigual? A realidade das periferias e favelas mostra-se outra comparada às zonas nobres; as orientações de epidemiologistas, sanitaristas e de outros conhecedores científicos mostram-se incompatíveis com a estrutura material, financeira e social que aqueles possuem, sem condições básicas para seguirem prescrições alimentares, de isolamento, de higiene, sem contar que as informações acerca dos cuidados, que muitas vezes chegam enviesadas e desmoralizam a gravidade da doença, tratando-a como uma “gripezinha” (LÖWY, 2020)[42]. Controlar a contaminação nos países ditos democráticos poderia ser um desafio, aponta Boaventura de Sousa Santos (2020)[43], uma vez que, cada pessoa é “livre” para decidir sobre sua circulação e outros aspectos de operacionalização da vida. Assim como, para os brasileiros, o acesso à informação e aos serviços públicos de saúde por exemplo, também são para todos. Uma utopia, sabemos. “De-mo-cra-ci-a”: cinco sílabas e uma fonética elaborada, mas que, às vezes, não articula e é ineficiente para representar o direito à igualdade e ao exercício livre e participativo da vida nas mais diferentes classes sociais (BICALHO, 2013)[44]. O Brasil apresenta um dos maiores índices no que concerne a desigualdade social (estando na 10ª posição em comparação com outros países do mundo, verificando-se no ano de 2019 ampliação da desigualdade entre os extremos da distribuição da renda do trabalho, de acordo com IPEA[7]).  Para a manutenção da ordem capitalista, o darwinismo social ainda permeia como ideologia explicativa a esse fenômeno e atinge maciçamente os pobres, os negros e a classe trabalhadora, historicamente explorados pelo colonialismo (BOLSANELLO, 1996)[45]. Sobreviverão aqueles mais fortes, capazes de adaptar-se ao ambiente (e, aqui, sobreviver à pandemia).

As especificidades das favelas e periferias não são algo novo. Há locais onde o abastecimento de água é irregular e a coleta de lixo é praticamente inexistente. Conforme descrito no blog Maré Online[8]: na realidade das favelas, onde muitas casas são pequenas com poucos cômodos e muitas pessoas, sem circulação de ar, é quase impossível o respeito às medidas de prevenção propostas pelos órgãos nacionais e internacionais de saúde. No começo da quarentena, já se alertava sobre o risco de convulsão social das favelas, com a perspectiva de empobrecimento muito forte: 7 em cada 10 famílias das favelas teriam suas rendas comprometidas numa primeira análise[9]. São muitos motivos para isso, mas destacamos os que mais nos chamam a atenção: as relações de trabalho são completamente precárias, tendo muitos trabalhadores em relações informais de trabalho, autônomos, terceirizados ou prestando serviços por meio de plataformas. Na verdade, há toda uma economia baseada na prestação de serviços que sustenta muitas das famílias desses locais: manicures, pedreiros, padeiros, empregadas domésticas. Imediatamente, um obstáculo para o atendimento às orientações de quarentena e isolamento social, já que "o pão de cada dia" depende do trabalho, também de cada dia. Toda essa realidade, escancarada pelo coronavírus, existe desde sempre nesses locais. Como ressalta Dornelles (2017)[46]:

O que se verifica, principalmente em tempo de capitalismo de barbárie, como o adotado pela ordem neoliberal, é que os contingentes humanos que se encontram em situação de vulnerabilidade, de exclusão social, são cada vez maiores, em todo o mundo. Compõem uma multidão de seres humanos que passam a ser identificados como inimigos da ordem e perigosos, cuja existência e condições de vida não são tratadas como resultado deste modelo de acumulação de capital, mas sim como segmentos a serem criminalizados e punidos (p. 123).

As favelas surgem em função de uma realidade desigual que se impõe aos trabalhadores, de limitação do acesso ao direito à moradia digna. E não foram poucas as tentativas pela história das favelas que os moradores fizeram de responsabilizar o poder público pelas melhorias, mas também não foram poucas as vezes em que o poder público atuou incansavelmente na destruição de favelas, na demolição de casas e no rompimento de diálogos democráticos com a população. Assim, a lógica do “nós por nós” é imperante em muitos desses territórios.

O novo coronavírus além de causar mudanças sanitárias e econômicas, visibiliza o que vem sendo posto como prioridade e desafia a humanidade na construção de uma nova realidade; neste sentido a pandemia pode ser considerada como um acontecimento, na visão foucaultiana, e a ameaça de contágio pelo SARS-CoV-2 como um poderoso dispositivo. Foucault (2008)[47] afirma o acontecimento como aquilo que ao irromper provoca descontinuidades no âmbito do saber-poder, tornando certo discurso possível ao fazer mudar a épistème de uma época. E, quanto aos dispositivos, são máquinas, redes, sempre parciais, momentâneas (nunca universais e eternas) que respondem por certos efeitos na medida em que se encontram em processo contínuo de produção de objetos (BARROS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009)[48]. Dispositivo, portanto, que questiona o direito à vida, o direito à dignidade (DUDH, 1948)[49], questiona a função do Estado, nossa capacidade empática e os nossos processos de escolha diante da ameaça de morte. O coronavírus dá visibilidade às distintas realidades marcadas pela desigualdade social, como no caso do Brasil. Como ressalta o filósofo português José Gil (2020)[50], a pandemia não é sobre o medo da morte, mas sobretudo o medo da morte absurda.

  1. COVID19NasFavelas

A cidade do Rio de Janeiro é a que possui a maior quantidade de pessoas morando em favelas no país, representando 22,03% da população do estado. Comparando o Censo de 2010 com o Censo 2000, ocorreu um crescimento de 27,5%. Logo, considerando as proporcionalidades, é possível que tenhamos atualmente mais de 30% de pessoas habitando as favelas na capital do estado[10]. Desde o início da pandemia na cidade do Rio de Janeiro, datada de 12 de março de 2020, a partir do início da transmissão comunitária, até a finalização deste manuscrito (17 de maio), dois meses depois, não há um plano de contingência específico por parte do governo federal, estadual e nem municipal para contenção da contaminação pelo vírus nas favelas, ainda que haja importantes proposições legislativas nesse sentido, como o PL 1000/2020 na Câmara Federal; 1755/2020 na Câmara dos Vereadores do Rio; 2200/2020 e 2568/2020 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Todos os PLs versam sobre planos de atenção emergencial às favelas, na compreensão da importância de que, diante da pandemia, o Estado assuma a responsabilidade por garantir o mínimo para uma quarentena com dignidade. Isso passa por questões contempladas nos três PLs citados inicialmente, como acesso a água, comida e renda mínima, mas também por questões como a que é apresentada no último PL, apresentado à ALERJ, que prevê a proibição de operações policiais nas favelas enquanto durar a pandemia e o lockdown. Em maio, grandes operações voltaram a acontecer, com saldos de letalidade absurdamente assustadores. No Complexo do Alemão, em uma única operação, foram 12 pessoas assassinadas pela polícia, por exemplo.[11]

Enquanto isso, na ausência de ações efetivas dos governantes e com o aumento progressivo de casos e mortes, outro setor das favelas também tem apresentado medidas de “combate” ao coronavírus. O tráfico de drogas, em vários locais, fez recomendações fortes pelo isolamento social, proibindo a ocupação de vias públicas dentro de favelas e aglomerações[12]. Em Acari, o tráfico de drogas estaria usando carro de som, chamado de Carro da Lapada, para avisar aos moradores que não é tempo de férias, mas de proteção, definindo os parâmetros para o toque de recolher e indicando quem está habilitado a sair nas ruas. Esse carro também estaria monitorando aglomerações e fazendo ameaças - as lapadas, gíria local para falar de espancamentos - no caso de descumprimento das recomendações, visto que “se você não abraçar o papo, o papo te abraça”[13]. 

Compreender a realidade reticular e multidimensional nos ajuda a avançar numa postura mais propositiva sobre a realidade das favelas, que são territórios heterogêneos, onde muitas realidades e marcadores sociais coabitam. É importante entender também que problematizar a realidade das favelas não significa abordar somente questões relativas à precariedade e à pobreza. Os moradores das favelas brasileiras reúnem um poder de consumo de R$ 119,8 bilhões por ano, massa de rendimento que supera países como o Uruguai, segundo a pesquisa “Economia das favelas” realizada pelo Instituto Locomotiva e DataFavela[14]. Diante desse cenário, cabe ressaltar a potência da favela no que tange ao poder de resistência, articulação comunitária, solidariedade e engajamento social. Acompanhando o percurso de ações tomadas em relação ao coronavírus são notórias as articulações realizadas nesses territórios a ponto do reconhecimento em 31 de março de um dos ministros da saúde do período, Luiz Henrique Mandetta:

Parabéns as comunidades do Rio de Janeiro. Parabéns as favelas, as comunidades e eu as conheço. Estudei aí. Estudei aí. Fiz ação voluntária tanto ali no Vidigal, quanto na Rocinha quando eu era acadêmico de medicina. Outro dia, fui lançar o programa de doenças sexualmente transmissíveis lá na Rocinha com jovens de comunidade. Parabéns Maré, parabéns pelo trabalho que vocês estão fazendo e o exemplo de dignidade, de comportamento, de inteligência. Da aula de sabedoria que vocês estão dando. Na dinâmica, Heliópolis em São Paulo, todas elas. Paraisópolis. Todas elas. Eu falo do Rio de Janeiro porque fiquei 10 anos naquela cidade.[15]

Em 19 de março, parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde, liderado pelo ministro acima citado, e pelos governantes brasileiros diante da pandemia que se aproximava do nosso país não incluíam as favelas[16]. A primeira tentativa de organização das demandas desses territórios veio, não por acaso, da coalizão entre lideranças do Complexo do Alemão, da Cidade de Deus, do Complexo de Favelas da Maré, da Rocinha e do Santa Marta, com pesquisadores da UFRJ, PUC-Rio e UERJ, em diálogo com a FIOCRUZ[17]. O plano reúne iniciativas na dimensão preventiva, indica necessidade de protocolos para atendimentos médicos, aponta parâmetros para a coordenação das ações territoriais e defende a construção de um Gabinete de Crise de Atenção às Favelas. Ainda que, quando o plano foi apresentado e entregue ao poder público, ações pontuais já estivessem sendo feitas por esse, a articulação de um plano que pensasse as favelas na sua amplitude e diversidade e propusesse saídas organizativas e políticas para o enfrentamento à pandemia só se deu no encontro de pesquisadores (majoritariamente de instituições públicas) com lideranças territoriais. O papel das universidades e institutos de pesquisa nesse momento passa pela reafirmação da sua função social e fortalecimento das políticas que estejam alinhadas com o interesse da sociedade brasileira, sem perder de vista a necessidade de tratar desigualmente os desiguais na medida de sua necessidade; ou seja, na atenção aos princípios de isonomia para o acesso aos direitos, assegurado pela nossa Constituição Federal de 1988.

Uma das principais medidas propostas no plano supracitado é referente à articulação de uma rede de apoio social. A partir da compreensão de que a pandemia traz consigo o empobrecimento para muitas famílias, torna-se essencial a defesa de medidas de solidariedade, como a distribuição de cestas básicas, água potável, máscaras e luvas para proteção individual, materiais de higiene e afins, mas também a luta por políticas públicas de acesso à renda, como a liberação do auxílio emergencial. Ainda em abril, a Câmara dos Deputados votou e aprovou a liberação do benefício, cujos valores variam entre R$ 600,00 e R$ 1200,00.  O início do pagamento da primeira parcela do auxílio emergencial deu-se em 09 de abril; dentre as burocracias estabelecidas para o acesso ao benefício, estavam o acesso à internet, por meio de site e aplicativo,  e o uso de conta bancária: dois pontos dificultadores considerando a realidade brasileira. O resultado foi a formação de imensas filas e aglomerações nas agências da Caixa Econômica Federal e Lotéricas, o que fez com que muitas famílias passassem semanas tentando receber seu benefício, sem sucesso.

As desigualdades sociais aqui discutidas possuem íntimas relações com processos políticos históricos e contemporâneos, que existem desde muito antes da pandemia e existirão ainda após seu fim. Dessa forma, é possível que a vivência da pandemia no Brasil potencialize uma crise sem precedentes. O Ministério da Economia divulgou em uma perspectiva tida como otimista, uma queda de 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB)[18] Instituições financeiras como o JP Morgan e BTG Pactual, projetam queda de 7% no PIB brasileiro[19[20]. Evidencia-se que considerando a expectativa atual do Governo Federal, o país irá sofrer a maior queda do PIB na história, visto que valores próximos ocorreram somente no ano de 1981, com a diminuição de 4,39% no valor do PIB. 

Não é por acaso que no Brasil, diferente de países como Itália, Portugal, Inglaterra e França, a concentração dos casos de letalidade por coronavírus não são marcadas pelas diferenças de faixa etária. Aqui, o que determina quem vive ou morre em decorrência das complicações do vírus são fatores socioeconômicos, com um componente racial muito forte entre os “determinantes de risco”. No início do mês de maio, o Complexo de Favelas da Maré atingia uma letalidade de 30,8% dos contaminados, enquanto o bairro do Leblon acumulava uma taxa de 2,4%[21]. Há uma série de fatores que impedem o acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento adequado. Não é por acaso que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica, contaminada pela sua patroa que esteve na Europa pouco antes da pandemia[22]. Dados revelam que os bairros com mais negros concentram mais mortes que os bairros com menos negros, em maioria absoluta[23]. Ainda assim, o Ministério da Saúde responde que não há informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor, nem o número de testes a partir dos grupos raciais. Segundo dados da ONG Open Knowledge Brasil[24], apenas o Espírito Santo tem feito os boletins epidemiológicos divulgando os dados referentes ao marcador raça/cor. No Rio de Janeiro uma ação judicial foi protocolada para determinar que os marcadores de raça/cor de infectados e mortos fossem registrados, para que se possa produzir dados mais concisos sobre os grupos vulneráveis à pandemia. A decisão do Juiz Federal Dimitri Wanderley responsabiliza a União pela expedição de diretrizes para o preenchimento obrigatório dos dados em todo o país.[25] A decisão ainda não surtiu efeito nos resultados que são divulgados. Sem orientação geral e supervisão, seguimos operando na lógica de ocultação de dados para a construção de realidades alternativas e falsas, onde marcadores de raça e classe não influenciam nos casos de morte e contágio. Isso se repete em várias outras regiões de favelas ou periferias, não só no Rio de Janeiro.

É importante marcar, nesse momento, que a subnotificação é muito forte, e pode ser ainda maior no caso de favelas e periferias, dado que além da superlotação da rede de saúde pública, o acesso aos testes ainda é muito caro na esfera privada. Sem o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, expansão das testagens e aumento de vagas nos Centros de Tratamento públicos, é evidente que a população mais afetada será a mais pobre. Ao mesmo tempo em que os dados oficiais são divulgados, os moradores têm conduzido suas próprias pesquisas sobre contaminados e mortos[26], tal como medidas de combate às fake news. Em 11 de maio, a mídia comunitáriaVoz da Comunidade, do Complexo do Alemão, lançou um aplicativo com informações sobre o novo coronavírus no intuito de viabilizar o acesso em tempo real a informações confiáveis e verificação de notícias, o aplicativo foi realizado com financiamento do Consulado Americano no Rio de Janeiro[27]. No que concerne à confiabilidade das informações em relação aos contágios ocorridos na Rocinha e na Maré, há estudos que apontam que o número de mortes pode ser até três vezes maior que o que foi divulgado pelos órgãos oficiais. As mortes nesses territórios já superam os números de muitas cidades na região metropolitana do Rio de Janeiro, como Niterói ou São Gonçalo. A articulação de redes para a defesa e garantia de direitos da população periférica e favelada tem sido forte. No início de abril, moradores da favela do Santa Marta higienizaram ruas, a partir de articulação com o empresariado local, como afirma um morador: "Conversei com uns amigos meus, eles pagaram os equipamentos e eu comprei luva, materiais simples, e consegui algumas doações para materiais químicos, que vão acabar. A nossa favela é a primeira do Brasil sanitizada com os mesmos equipamentos da China, pelos moradores"[28], e que outras favelas fizeram contato para aprenderem a usar os equipamentos. Outros atores, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público Estadual, também realizaram importantes ações; em 08 de maio, quase dois meses após o começo da pandemia, as entidades conseguiram na justiça uma liminar que obriga o poder público a regularizar o abastecimento de água nas favelas. São pequenas grandes vitórias como essa que caminham rumo a um horizonte onde a favela possa viver com dignidade.

Campanhas de arrecadação de alimentos têm sido mobilizadas por várias instituições, como a Central Única das Favelas (CUFA) e o Instituto Marielle Franco, este lançou um mapa para dar visibilidade às iniciativas de combate contra o coronavírus nas favelas e periferias do Brasil. As mobilizações também têm ocorrido com frequência através das lives musicais em parceria com artistas e empresas privadas. No dia 02 de abril, foi lançada a campanha Mães de Favela, pela CUFA, construída a partir de pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva e Data Favela, que salienta que as favelas do Brasil têm 5,2 milhões de mães, na qual mais de 70% ficará sem renda durante o isolamento social. A pesquisa publicada na BBC News Brasil, ressalta o lugar de vulnerabilidade e o papel social das mulheres moradoras de favela no sustento e cuidado dos seus filhos e idosos, a partir de um olhar interseccional:

Os mais frágeis da sociedade são os moradores de favela. Os mais frágeis entre os favelados são as mulheres. E os mais frágeis entre as mulheres são as mães. Por que? Porque elas cuidam dos filhos, muitas vezes trabalham no emprego informal, costurando, fazendo unha, e ainda cuidam dos velhos. Porque todos os velhos, 90% dos idosos das favelas, são as mulheres que cuidam: sejam noras ou sejam filhas.[29]

Essa situação é um concreto exemplo do que expressa o conceito de necropolítica, formulado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2018)[51]. No Rio de Janeiro, a expressão já vem sendo explorada pelos que discutem a questão da política de segurança pública, da guerra às drogas, do extermínio da juventude negra e de tantos outros assuntos que estão relacionados ao modo pelo qual o Estado se relaciona com os territórios de favela e periferia. Acontece que, aplicada ao momento de pandemia, podemos colocar em outro patamar analítico o conceito, expandindo a compreensão de um governo da vida que se faz presente nesses locais exterminando das maneiras mais convencionais (pelas operações policiais ou encarceramento em massa) mas também a partir de uma construção histórica marcada pelas ausências, pela desresponsabilização do Estado, pelos impedimentos ao desenvolvimento, pela falta de investimento e planejamento específico, pela ocultação dos dados sobre a realidade de um povo. Ganha um contorno especial, portanto, a compreensão de uma política de morte que se opera ativamente, ao passo que não se garante as condições dignas para o exercício do cuidado, que muitas vezes contradiz as orientações dos órgãos de saúde e especialistas; mas que também se apresenta numa dimensão mais ardilosa, no exercício da desresponsabilização sobre a vida dos mais vulneráveis, no desinvestimento que tem sido feito nos últimos anos nas medidas de proteção social, na desregulamentação do mundo do trabalho e no congelamento do investimento em áreas sociais como ciência e tecnologia e saúde pública, um dos mais duros efeitos dos tentáculos neoliberais na governamentalidade estatal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia tem sido um importante dispositivo para fazer ver e falar a dura realidade de desigualdade das favelas e periferias no nosso país. Mas, será que ela coloca mais uma vez no mapa essas favelas? A pandemia faz o Brazil descobrir que há gente que passa fome no Brasil?[30] Vamos lá: a “redescoberta” das favelas que tem acontecido na grande mídia e em ações governamentais não acontece exatamente pela preocupação com a favela e seus moradores em si. Lá no começo da pandemia, algumas pessoas falavam que o grande problema do Brasil seria as favelas, em comentários puramente racistas, numa lógica que imaginava que as favelas contaminariam o restante do país. Essa “redescoberta” então tem se dado numa preocupação que é mais intensa com os que vivem fora desses espaços do que com os que vivem ali. Como se favelados e periféricos fossem o grande perigo para a expansão do coronavírus. Será que essas análises consideram que os rastros da primeira morte mostram que o caminho é o oposto, muitas vezes? Ou que os dados indicam que, ainda que "quem pague a conta" sejam os mais pobres, negros, favelados e periféricos, a culpa do contágio não está nessas pessoas, mas em governantes que resistem em lidar com sua responsabilidade e sequestraram nosso país para interesses privados, privatistas, de poucos (LÖWY, 2020)[52]. As favelas, na contramão, são o “setor social” que mais está organizado e ativo no combate ao coronavírus. A análise do mapeamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco[31], revela dezenas de territórios organizados em ações territoriais. Ao mesmo tempo, a iniciativa de pensar políticas públicas para o enfrentamento ao caos que está posto também tem sido das favelas, articuladas em seus coletivos e lideranças. No começo de abril, por exemplo, lideranças da Rocinha entregaram ao governador Wilson Witzel (PSC-RJ) um plano com 17 medidas de combate à pandemia na favela[32]. Além disso, há outros planos comunitários em curso. Em diversas favelas no Rio de Janeiro, como Chapéu Mangueira e Babilônia, há iniciativas de atendimentos psicológicos aos moradores, organizadas por lideranças comunitárias em diálogo com voluntários.[33]

Em tempos de incertezas, o vírus exige de nós paciência, porém “quem tem fome, tem pressa” - essa sentença torna-se um exemplo crucial que demanda reflexões acerca do modo organizativo e, portanto, das desigualdades estampadas na sociedade brasileira.  O coronavírus faz ver as particularidades das favelas e periferias e a negligência do poder público diante das demandas dos mais pobres. Exclusões, habitações precárias, rendas comprometidas pelos trabalhos interrompidos e, pelo que se observa, não se trata apenas de medidas de isolamento dessas pessoas, mas também da suspensão de serviços para prestarem que os impedem de trabalhar. A pobreza se alastra.

Uma preocupação é compartilhada tanto pelos moradores e ativistas quanto pelo poder público. O empobrecimento e a diminuição da qualidade de vida dos moradores de favelas é um grande problema. A maior divergência é sobre as saídas a serem apresentadas: se, por um lado, defende-se a adoção de campanhas de conscientização, lockdown e manutenção do auxílio emergencial, por outro há acenos para saídas que podem provocar ainda mais violações de direitos. O exemplo mais extremo disso é a tentativa de militarização da questão social empreendida pelo Prefeito do Rio de Janeiro, que solicitou uma ação federal para fechar comércios das favelas, apontando, inclusive, que dificilmente conseguirá lidar com o local sem a mediação da Polícia Militar e seu armamento[34]. A demanda de presença que se faz do poder público aqui não passa pelo pedido de mais truculência, mas pela construção de mecanismos que garantam ao mesmo tempo a proteção integral às famílias nesses territórios e seu direito à quarentena com dignidade (com distribuição de itens de alimento, higiene, sanitização das vias públicas, liberação de redes de internet, liberação de auxílio emergencial) e a construção de planos de acesso aos serviços de saúde por todos que demandarem, com testagem, orientação, internação e cuidados para todos. Uma vida saudável tem sido incompatível com a estrutura capitalista posta. Em condições de quarentena os sujeitos moradores de favelas e periferias padecem e mais do que nunca, apontam que a igualdade não existe, nem perante a lei.

Apesar de tanto descaso e violação de direitos, as favelas reconhecem suas necessidades e ainda mais sua força; mobilizam seu capital humano e desenvolvem ações de cunho preventivo e emergencial, assim como solicitam e, à sua maneira, convocam atores importantes para responsabilizar o poder público na garantia de direitos à vida, enquanto esse aparenta nada entender sobre equidade. Fica evidente o importante papel do associativismo comunitário, seja nas doações, seja na proposição de políticas públicas, constituindo-se um ponto de inflexão, um desvio no curso normal das subjetividades moduladas pelos princípios do neoliberalismo, com o indicativo de que as melhores apostas de saídas para a crise são organizadas no encontro com o coletivo. Boaventura Sousa Santos[35] aponta que a reinvenção da democracia passa por uma expansão da democracia nessa dimensão comunitária, nos bairros, na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, no combate aos ideais tão fortes de empreendedorismo e competitividade que hoje imperam. As saídas encontradas pela população que sofre são as ações de solidariedade, de conscientização, de reivindicação específica, as quais são extremamente importantes, no entanto, só o Estado é o garantidor de direitos por meio da criação de políticas públicas localizadas.

Uma crise dentro de outras existentes – historicamente – e, mais uma vez, fatores socioeconômicos, intimamente vinculados a classe-raça-cor, determinam quem vive e quem morre, não só no estado do Rio de Janeiro, apesar desse fazer parte do palco. Ressaltamos que a subnotificação da Covid-19 tem produzido realidades distorcidas, sendo que tais marcadores  não têm sido levados em conta pelas estatísticas e tornam-se operadores das políticas de morte. O mesmo seria dizer que, ao não reconhecer as especificidades, à medida que deixa faltar – não planeja melhorias, não investe, não garante as condições dignas de atendimento, de cuidado à saúde, congela investimentos nas áreas sociais e de saúde e desregulamenta direitos trabalhistas  – o Estado opera ativamente para extermínio das pessoas mais pobres e no aumento da desigualdade.

Luana Almeida de Carvalho Fernandes é Psicóloga, especialista em Responsabilidade Social e Gestão de Projetos Sociais, mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: luanaacfernandes@gmail.com

Caíque Azael Ferreira da Silva é Bacharel em Psicologia e discente do curso de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CAPES). Pesquisador no Dicionário de Favelas Marielle Franco (Fiocruz). E-mail: caiqueazael12@gmail.com

Cristiane Dameda é Psicóloga, especialista em Proteção de Direitos e Trabalho em Rede, mestra em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CNPq). E-mail: crisdameda@gmail.com.

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho é Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica, mestre e doutor em Psicologia. Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia e ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq). E-mail: ppbicalho@ufrj.br

 

Biopolítica da precariedade em tempos de pandemia, por Márcia Leite[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado na Revista DILEMAS, da UFRJ, na edição de maio de 2020, "Reflexões sobre a Pandemia".

Este texto foi escrito no calor dos eventos e das angústias que vivemos, desde que se tornou claro que a pandemia havia chegado ao Brasil e que, na falta de políticas públicas e agenciamentos políticos consequentes, produziria muitos mortos e acentuaria a precariedade em que vive parte significativa da população brasileira”.  (LEITE, 2020)
 

LEIA O ARTIGO COMPLETO AQUI!

 

A diluição do poder de expor à morte, por José Clayton Murilo Cavalcanti Gomes[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em 26 de maio de 2020.

No cenário pré-pandêmico, tinha-se a necropolítica, que geria parcela considerável das mortes de negros e pobres através de políticas de segurança pública “de guerra”, constituindo, assim, uma população mais matável. A pandemia trouxe à tona novas formas de tecnologias de gestão da morte descentralizando o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer, exsurgindo-se, ao que parece, uma expansão do poder de expor à morte.

Nós choramos a morte de João Pedro. O menino, morador de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, foi morto durante uma operação da Polícia Federal, com apoio das polícias Civil e Militar. Morreu enquanto brincava. João Pedro, junto com os seus primos, jogavam sinuca em casa.

Segundo as testemunhas, a família tentou socorrer João Pedro, mas foram impedidos pelos policiais, que logo levaram o menino de helicóptero até uma base do Corpo de Bombeiros localizada a 18 km do local dos disparos, sem, contudo, informar aos familiares sobre o paradeiro do jovem. A família iniciou uma campanha nas redes sociais em busca de João Pedro, que fora encontrado 18 horas depois, já sem vida, no Instituto Médico Legal.

Embora chocante, a morte de João Pedro não se projeta enquanto única. Dados do Atlas da Violência informam que as cidades brasileiras registraram, em 2017, cerca de 65,6 mil homicídios. Foram 179 mortes letais intencionais por dia, número que garantiu ao período de 2017 o recorde de ano mais violento desde que se iniciou a série histórica, em 1979.

Embora estarrecedor por si só, o número de mortes se torna ainda mais preocupante quando clivado. Isto porque, ao observar os aspectos raciais, de gênero e de geração, o levantamento demonstrou que das 65,6 mil pessoas mortas intencionalmente, 49,5 mil eram negras, majoritariamente jovens e do sexo masculino. Isto significa que 75,5% dos homicídios cometidos naquele ano foram contra pessoas pretas ou pardas.

Estes índices de violência letal intencional coadunam forças às acusações de diversos segmentos, especialmente aqueles ligados aos movimentos sociais, de que experienciamos no Brasil um genocídio da juventude negra. Entretanto, as acusações de genocídio imputadas aos agentes de Estado que produzem ou deixam de produzir políticas públicas parecem ter-se renovado e adquirido variantes de modus operandi frente à pandemia de Covid-19.

Covid-19 e a continuidade do extermínio

Isso porque, se antes, no cenário pré-pandêmico, tinha-se que a necropolítica[53] geria parcela considerável das mortes de negros e pobres através de políticas de segurança pública “de guerra”, com táticas, armamento e brutalidade típicos de um conflito bélico, constituindo, assim, uma população mais matável, a pandemia trouxe à tona novas formas de tecnologias de gestão da morte, descentralizando o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer, exsurgindo-se, ao que parece, uma expansão do poder de expor à morte.

Esta diluição no poder de matar e expor à morte começa a se esboçar nos dados preliminares da primeira leva de infectados e mortos pelo coronavírus no Brasil, já que, segundo informações subnotificadas do Ministério da Saúde divulgadas em abril, pretos e pardos representam 23,1% dos hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave, mas somam 32,8% dos mortos pelo novo coronavírus.

Os números são diametralmente opostos no que diz respeito às pessoas brancas, já que estes correspondem a 73,9% entre aqueles hospitalizados e 64,5% entre os mortos por Covid-19. Dessa maneira, segmentos sociais têm denunciado o governo Bolsonaro pelo seu desdém narcisista em relação às políticas de enfrentamento aos impactos do vírus nas favelas e periferias. Desdém narcisista este que, ao tempo que faz com que Jair Bolsonaro pregue contra o isolamento social e impacte diretamente no número de contaminações e mortes, confere-lhe a fantasia de imunidade ao vírus.

Vê-se, aqui, que o racismo surge enquanto uma linha fronteiriça entre as mortes justificadas pela “metáfora da guerra” e aquelas fruto da ausência deliberada de ações de confronto ao coronavírus. Nesse contexto, encontramo-nos implicados em um dilema acerca das similitudes argumentativas que levam ao acionamento, em ambas as ocasiões e mesmo em diferentes contextos, do argumento de genocídio da população negra. Serão o racismo e a ausência de políticas públicas efetivas as únicas chaves explicativas para o morticínio de negros no Brasil antes e durante a pandemia de coronavírus?

Os signos da “favela” e do “favelado”

Os esforços para produção de possíveis respostas a esta indagação passam, inexoravelmente, pelo contexto de formação das favelas e periferias no Brasil. Estes ambientes, como se vê, encontram-se no cerne da discussão em razão dos riscos que permeiam o território nestas situações.

Márcia Leite[54] nota, ao analisar o processo de formação das favelas no Rio de Janeiro, que antes de práticas de Estado consideradas arbitrárias e violadoras de direitos se tornarem modus operandi naqueles locais, houve uma caracterização destes espaços enquanto lócus da violência, espaços distintos da cidade em que estavam inseridas e radicalmente à margem da sociedade, criando, enfim, uma cisão social e fazendo da “favela” e do “favelado” categorias que carregariam em si as mazelas sociais mais perturbadoras para a classe média, como a prostituição, a vagabundagem, a pobreza e as práticas criminosas.

Embora tenha sofrido algumas mudanças, essa visão racializada denunciada por Márcia Leite tem impactado diretamente no modo como os moradores das favelas e das periferias acessam políticas públicas, já que, tal como Leite, não acredito que ações de Estado estejam ausentes nestes locais, “mas sua presença caracteriza-se pela prestação de serviços de baixa qualidade, clientelismo e ineficiência das instituições estatais, brutalidade policial e desrespeito aos direitos civis de seus habitantes que não têm reconhecido e garantido seu estatuto de cidadania”[55].

Precariedade de vidas desnecessárias ao neoliberalismo

Este descaso proposital engendra diversos processos passíveis de análise, mas um, especificamente, interessa-nos: a precariedade. Os signos de “favela” – que passou a assumir uma forma de semiótica genérica para caracterização de locais simbolizados no imaginário social enquanto “violentos” ou expostos à pobreza – e “favelado” exsurgem enquanto marcadores necessários à desqualificação dessas vidas enquanto vidas precárias.

Embora, na literalidade, a “precariedade’ possa ser compreendida enquanto algo sem valor, em más condições, para Judith Butler o conceito é contrário. A vida precária constitui-se enquanto aquela que se perde ou que pode ser perdível, já que estas vidas só podem ser assim compreendidas se forem tomada enquanto vidas que podem ser percebidas e, assim, dignas de luto. No fim, a afirmação de que os moradores das favelas e periferias são “marginais” ou “foco da pobreza” significa que aquelas pessoas não são percebidas e não atendem às condições sociais e econômicas necessárias ao seu reconhecimento enquanto uma vida.[56]

Essa dependência de condições sociais e políticas faz com que negros e pobres, moradores das favelas e periferias, estejam submetidos aos argumentos de “saúde da economia” ou das “mortes de CNPJ”, por exemplo. É preciso, assim, compreender que o manejo do pretexto econômico não visa, aqui, a manutenção de empregos ou a valorização da mão de obra, mas a exposição de segmentos sociais precarizados à morte na busca pelo lucro, de maneira que seja nas mortes marcadas pelas dinâmicas de “quase guerra” ou aquelas causadas pelo Covid-19, estas vidas são desnecessárias na lógica do necropoder.

Aliás, a ausência de condições sociais, exponenciada pelo descaso racista de agentes de Estado, é uma das principais razões pelas quais negros e negras são obrigados a deixar suas casas em meio à pandemia. Ora, não sendo estas pessoas passíveis de luto, podem ser facilmente descartadas. Tanto que, segundo o Observatório Covid-19 e a Prefeitura de São Paulo, pretos têm 62% mais chance de morrer que brancos na cidade de São Paulo.

Note-se que essa constituição do negro e do pobre enquanto descartáveis ou desnecessários passa, necessariamente, pela raça. Isto porque a visão constitutiva dos pretos e pobres enquanto “o outro” permite o afastamento destas pessoas do acesso às políticas de saúde, educação e alimentação, por exemplo, relegando-os às ações violadoras dos direitos humanos. Constituir uma parcela da população enquanto mais matável, seja pelas ações violentas, seja por um vírus dito “democrático”, é manejar a raça para a aplicação das tecnologias de morte.

Percebe-se, claro, que o acesso defeituoso às políticas públicas, associado ao racismo, importa em parte significativa da resposta às questões aqui levantadas, mas não é suficientes. Digo isso porque as pessoas vulnerabilizadas por relações desiguais de raça também são cruzadas pela classe, pelo gênero, pelo território e pela geração. Estas pessoas não se constituem negras antes ou depois de se fazerem trabalhadoras ou “pobres”.

No Brasil, como em diversos outros contextos, raça, pobreza, gênero, sexualidade, criminalização do território e geração não consistem em domínios apartados da vida social. Pelo contrário, como notou Angela Davis, “raça é a maneira como a classe é vivida”. Mas isto de tal maneira que a própria ideia de que existe um grupo populacional que pode morrer, como uma baixa inexorável da guerra ou da doença, é racializada. A disposição dos pobres à morte resulta da construção desse “outro” – o pobre, o favelado etc. – como menos humano, formando aquilo que Roberto Efrem Filho[57] chamou de reciprocidades constitutivas que oportunizam o mata-mata.

A visão do “outro” como menos humano, aliás, é a constante que tem justificado mudanças significativas na compreensão da necropolítica, já que, se antes o poder e a capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer se concentravam em certas figuras políticas, capazes de executar ou dar ordens de execução, a pandemia inaugura um novo modo de diluição deste poder, afinal de contas, as pessoas podem carregar em seu próprio corpo um vírus capaz de atingir especificamente certas parcelas sociais.

Esta expansão do poder de expor à morte é destinada aos negros e pobres porque, neste caso, doenças pré-existentes aumentam significativamente o risco de morte, de maneira que se considerarmos as dificuldades no acesso às políticas de melhoria de vida experienciadas por negros e pobres, facilmente podemos aferir quem está mais propenso à doença. Além disso, segundo a ONU, negros representam cerca de 80% dos usuários do Sistema Único de Saúde. O SUS, como se sabe, tem sofrido consideráveis cortes de verbas, sendo que a precarização do sistema de saúde ao qual negros e pobres estão recorrendo se mostra enquanto uma das diversas táticas de morticínio.

Não à toa, a imprensa noticia recorrentemente as manifestações bolsonaristas em diversas cidades do Brasil, de modo que o próprio Bolsonaro e a sua malta participam dos protestos antidemocráticos que pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Estas pessoas, notavelmente brancas e com privilégios de classe que as permitem o acesso a planos de saúde, que vão às manifestações e fazem “acampamento” regado a churrasco e armas de fogo, sabem, em um nível ou em outro, do risco a que expõem pessoas mais vulneráveis, mas, tal qual o presidente, debocham.

O argumento de que a economia irá se “destroçar” revela que, embora o racismo seja uma fronteira entre as mortes causadas pelo descaso em relação ao coronavírus e aquelas cometidas pelo acionamento do arquétipo da guerra, ambas as situações confluem para a constituição de uma população mais matável ou mais morrível, desnecessárias às dinâmicas do capital, demonstrando, afinal de contas, que a “preocupação” com a saúde da economia significa, na verdade, a necessidade de expor os trabalhadores à morte em favor do lucro.

O assassinato de João Pedro, afinal de contas, mostra-nos, inequivocamente, que a constituição de uma população frequentemente cruzada pelas políticas de gestão da morte passa pela raça, pela criminalização do território, pela geração, pelo gênero e etc, evidenciando, então, o contínuo extermínio da população negra, seja antes ou durante a pandemia. No fim, pode-se perceber que os corpos que outrora foram compreendidos enquanto mais matáveis nas incursões violentas de agentes de Estado nos lugares à margem da cidade são, agora, os mesmos que são mais morríveis graças às omissões – e por vezes ações – destes mesmos agentes e da sua horda. Os corpos mais matáveis e mais morríveis que se inscrevem nestas dinâmicas de poder, portanto, são os dos negros, dos pobres, dos trabalhadores, dos, não à toa, doentes.

  • Agradeço imensamente a Roberto Efrem Filho pela revisão e pelos importantes debates que possibilitaram a escrita deste texto.

José Clayton Murilo Cavalcanti Gomes é graduando em Direito pelo Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ-Santa Rita) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB); pesquisador junto ao projeto de pesquisa “”Mal Secreto”: decisões do STF e políticas de gênero e sexualidade”.

 

As periferias na pandemia: explicitação da política de precarização e de exposição à morte, por Alexandre Magalhães[editar | editar código-fonte]

Artigo acadêmico publicado na revista TESSITURAS - Periódicos UFPEL, em maio de 2020

Resumo: Este artigo pretende traçar brevemente a configuração atual de periferias e favelas no contexto de expansão da pandemia do novo coronavírus. Buscarei apontar para o fato de que tal processo tem explicitado desigualdades estruturais e processos deliberados de precarização das condições de vida dessas pessoas (que chamarei aqui de política de precarização), mas também os inúmeros esforços delas para continuar vivendo, numa aposta na afirmação da vida contra a política de morte promovida pelo presidente da República.

ACESSE O ARTIGO COMPLETO AQUI.

 

Relatório: Efeitos da Medida Cautelar na ADPF 635 sobre as Operações Policiais na Região Metropolitana do RJ, por Daniel Hirata, Carolina Christoph Grillo e Renato Dirk[editar | editar código-fonte]

Artigo acadêmico originalmente publicado na seção Reflexões na Pandemia, da Revista DILEMAS, em 25 de junho de 2020.

"Na sexta-feira, 26 de junho, um dia após o ponto final deste texto, seria julgada pelo Supremo Tribunal Federal, em Tribunal Pleo, a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) de nº 635. O relatório-síntese aqui disponível encontra-se anexado aos autos do processo, visando instruir a decisão dos ministros, e foi elaborado por pesquisadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), também ligados ao Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nele, são analisados os efeitos de redução da violência da medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, que determinou a suspensão de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19. Como argumentado no relatório, foram muitas as vidas poupadas por essa liminar que, se mantida, poderá salvar muitas mais."

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Para além da quarentena: reflexões sobre crise e pandemia, por NUFIPE-UFF[editar | editar código-fonte]

"Esta coletânea surge do desejo de elaborarmos um material para reflexão sobre a grave crise societária em curso, agravada pela pandemia da COVID-19, que trouxesse debates interseccionais, pois estamos vivendo em fogo cruzado de múltiplas agendas reacionárias.
Para nossa surpresa e felicidade,todas e todos que convidamos aceitaram prontamente participar do projeto e escreveram no “calor da hora”. Trata-se, portanto, de um projeto coletivo viabilizado em parceria com a Mórula Editorial, neste e-book com distribuição gratuita."

Capítulo: PANDEMIA E CRISE CAPITALISTA: A SITUAÇÃO DAS FAVELAS, de Reginaldo Scheuermann Costa.

 

A pandemia expôs os muros invisíveis erguidos pelo capitalismo nas grandes metrópoles, por David Harvey[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na Revista Jacobin Brasil, em 9 de julho de 2020.

A crise do COVID-19 desencadeou uma nova rodada de reflexão na imprensa sobre as desigualdades urbanas. Se não focarmos nas raízes desses problemas, que estão na estrutura do nosso sistema econômico, nunca conseguiremos resolvê-los.

É bem possível que, se e quando emergirmos coletivamente das tormentas provocadas pela COVID-19, estaremos em um cenário político onde a reforma do capitalismo estará na agenda. Mesmo antes do vírus surgir, já havia pequenas sugestões de uma transição. Grandes líderes empresariais que se encontraram em Davos, por exemplo, ouviram que sua obsessão por lucros, valor de mercado e negligência com os impactos sociais e ambientais estava se tornando contra-produtiva. Eles foram aconselhados a se esconder da fúria pública sob alguma forma de “consciência” ou “eco-capitalismo.”

O estado lamentável da saúde pública e sua capacidade de defesa contra as investidas do vírus, após quarenta anos de políticas neoliberais em diversas partes do mundo, aumentou o nível de indignação pública. Austeridade em tudo menos nas despesas militares ou subsídios aos supostamente necessitados — apesar de ridiculamente ricos — corporações deixaram para trás um gosto amargo, em especial após o resgate dos bancos em 2008. Em contraste, as medidas coletivas e estatais dos governos em meio a pandemia pareceram funcionar e geraram posicionamentos públicos mais favoráveis para alguns governos.

Em suas notáveis conferências diárias no noticiário, o Governador de Nova York, Andrew Cuomo, insiste que a eventual saída da crise atual requer mais do que reimaginar cenários econômicos, sociais e políticos, dependerá também do que ele vê como uma peculiar reconciliação entre a expressão da vontade popular e os poderes governamentais. Para aqueles de nós que viveram o recente pesadelo em Nova York, esta declaração de confiança no valor da intervenção estatal faz algum sentido.

Infelizmente, os movimentos preparatórios de Cuomo para seu exercício de reimaginação, até então, envolveram o recrutamento do clube de bilionários de Michael Bloomberg (para organizar a testagem), de Bill Gates (para coordenar iniciativas em educação) e o ex-CEO da Google, Eric Schmidt (para calibrar comunicações e funções governamentais). O levante democrático que se tornou mais proeminente nas ruas ainda está para deixar sua marca no poder político. Na perspectiva de Cuomo, as reimaginações e reconstruções necessárias, serão customizadas de acordo com as necessidades do capital e das pessoas, conforme definido por uma elite capitalista progressista.

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População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde, por Márcia Pereira, Joilda Silva, Emanuele Freitas, Alexandre da Silva, Andrea Beatriz, Luis Eduardo Batista e Edna de Araújo[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado originalmente na Revista de Estudos Avançados, em 2020.

Este artigo tem por objetivo contribuir para a reflexão sobre a pandemia da Covid-19 ante as assimetrias que tal emergência sanitária global vem produzindo em contextos de desigualdades no Brasil. Sabe-se que as desigualdades sociais colocam populações em situações mais precárias de adoecimento e morte, sendo distinto o impacto de acordo com o lugar ocupado pelos grupos populacionais na estrutura social.

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O papel da ciência e da pesquisa para reduzir desigualdades na pandemia de Covid-19, por Fiocruz[editar | editar código-fonte]

Portal de Periódicos Fiocruz apresenta uma seleção de artigos sobre desigualdades em saúde na pandemia de Covid-19, trazendo um panorama com múltiplas visões relacionadas ao tema.

No Brasil, a desigualdade é plural – são diversas desigualdades: econômica, social, racial, de gênero... E, se o problema não é de hoje, o fato é que a pandemia está expondo ainda mais a enorme vulnerabilidade do país. Atenta a essa questão crucial, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência escolheu o tema “Os caminhos da ciência para a redução das desigualdades” para marcar o Dia Nacional da Ciência e do Pesquisador (8/7) – data de sua criação em 1948. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) expressa este compromisso em sua própria missão institucional: “Produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias voltados para o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e que contribuam para a promoção da saúde e da qualidade de vida da população brasileira, para a redução das desigualdades sociais e para a dinâmica nacional de inovação, tendo a defesa do direito à saúde e da cidadania ampla como valores centrais”.

Diante da crise sanitária, diversos pesquisadores têm se dedicado a analisar como as populações mais vulneráveis vêm sendo afetadas. Entre eles, Tânia Fernandes e André Lima – ambos da Fiocruz –, que produziram um artigo sobre Covid-19 e as favelas, no qual atentam para os perigos de uma homogeneização do acesso à saúde. “Essa desigualdade também desconstrói a ideia de que a Covid-19 é uma doença democrática, que atinge igualmente a todos os cidadãos. Na realidade, o vírus atinge a todos, mas seus efeitos não se expressam democraticamente, diante da inadequação histórica das políticas públicas, das diversas vulnerabilidades a que está exposta uma fração significativa da sociedade, e da atenção do Estado para seus cidadãos, que não se dá de forma equânime. A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, concorda e complementa esta constatação, afirmando que ‘a capacidade de proteção e de resposta a isso é diferente num país desigual como o nosso’”, escrevem.

Neste contexto, o Portal de Periódicos Fiocruz apresenta uma seleção de artigos sobre desigualdades em saúde com foco na pandemia de Covid-19, traçando um panorama com múltiplas visões relacionadas ao assunto. O conteúdo é também uma forma de homenagear os pesquisadores que se dedicam a produzir conhecimentos em defesa da vida, e de aprofundar a reflexão sobre populações vulneráveis e inequidades no Brasil. Acesse a lista, a seguir, e compartilhe nas suas redes.

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O capitalismo racial existe?, por Michael Walzer[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no blog NUSO - Nueva Sociedad (espanhol e português), em agosto de 2020, e serve como ponto de reflexão para os debates sobre a pandemia no Brasil.

Grande parte da esquerda agora fala em "capitalismo racial". Existe uma coisa dessas? Aparentemente, é apenas uma forma de unir duas esferas. Se o racismo fosse derrotado, ainda teríamos capitalismo. E depois da derrota do capitalismo, continuaríamos a ter racismo.

Por muitos meses, fiquei intrigado com o aparecimento da frase "capitalismo racial" na imprensa de esquerda. Que significa?

Talvez o adjetivo "racial" seja simplesmente um adjetivo qualificativo comum. O capitalismo racial é um tipo de capitalismo e, portanto, deve haver outros tipos que requerem outros adjetivos. Na América, temos um tipo de capitalismo em que a maioria dos trabalhadores explorados, ou a maioria dos mais explorados, são pessoas de cor. A classe baixa e o exército de reserva são definidos tanto racialmente quanto economicamente. Claro, nenhum autor de esquerda ficaria indiferente à exploração dos trabalhadores brancos, que ainda podem constituir a maioria da força de trabalho americana e que certamente são a maioria dos trabalhadores explorados na Europa. O propósito do adjetivo, então, é apenas focar nossa atenção, por um bom motivo, nos trabalhadores não brancos.

A frase "capitalismo racial" não nos deixa claro se a posição hierárquica dos trabalhadores não brancos é determinada pela raça ou pelo capitalismo ou pelos dois, trabalhando juntos de alguma forma. Para começar a responder a essa pergunta, precisamos examinar alguns exemplos de capitalismo não racial.

A forma de capitalismo patrocinada pelos comunistas chineses é obviamente não racial. Embora os trabalhadores explorados sejam, na terminologia ocidental, pessoas de cor, a terminologia ocidental não se aplica aqui. Se os chineses importassem trabalhadores brancos para fazer trabalhos menos qualificados, isso poderia tornar o capitalismo chinês "capitalismo racial", mas não há notícias de tais importações. A versão predatória do capitalismo que prevalece na Rússia de Vladimir Putin também não é racial. Pode ser que os muçulmanos estejam entre os trabalhadores mais explorados na Rússia, mas eles são em sua maioria caucasianos (alguns deles eram caucasianos originais), então teríamos que falar sobre o capitalismo religioso, onde o grupo privilegiado são os cristãos ortodoxos , não pessoas brancas. Mas ninguém está fazendo isso. Não tenho estatísticas, mas pelo que li sobre a China e a Rússia, duvido que na América, no capitalismo racial, a taxa de exploração seja maior do que nesses dois países, onde o capitalismo não é racial. O capitalismo "funciona" com e sem uma classe baixa racializada e um exército de reserva.

Mas isso está correto? O adjetivo "racial" às vezes faz uma afirmação muito mais forte: não é um adjetivo qualificativo, mas sim um adjetivo definidor. O capitalismo é necessária e inerentemente racista. Esqueça a China e a Rússia, que são recém-chegados ao capitalismo. O capitalismo ocidental é a versão prototípica e tem sido racista desde o primeiro dia (se concordarmos que houve um primeiro dia): sempre e para sempre racista. Isso significa que Manchester em 1844, onde, segundo a descrição de Friedrich Engels, todos os trabalhadores explorados eram brancos, não era capitalista? Não, esses trabalhadores estavam produzindo tecido de algodão cultivado e colhido por escravos negros no sul dos Estados Unidos.

Isso é verdade, mas não tenho certeza se é o suficiente para uma discussão sobre a necessidade. Considere um contrafactual: se escravos negros não estivessem disponíveis, o recrutamento de trabalhadores irlandeses teria começado muito antes de ser iniciado. O capitalismo não teria interrompido sua ascensão mesmo se o comércio de escravos não tivesse ocorrido.

Mas o exemplo de Manchester e das plantações do sul dos Estados Unidos sugere o que todos nós sabemos agora: o capitalismo é um sistema econômico global e depende da exploração de pessoas de cor ao redor do mundo. Aqui, entretanto, parece claro que a questão principal é a exploração, não o racismo. Dada a demografia global, a maioria dos trabalhadores em qualquer economia global serão pessoas de cor. Mesmo em um sistema global regulado democraticamente ou sócio-democraticamente, a maioria dos trabalhadores e da maioria dos administradores - a classe baixa e a classe dominante - não serão brancos. Na verdade, o que com razão seria considerado racista seria a recusa de qualquer empresa transnacional em contratar pessoas de cor. (Na cidade da Pensilvânia, onde cresci, a siderúrgica local não estava contratando e, portanto, ele não explorou judeus ou negros. Eu acho que este também é um exemplo de capitalismo racial).

Tudo isso sugere que o capitalismo e o racismo devem ser analisados ​​separadamente. Às vezes, eles se sobrepõem, como acontece na América hoje. Mas a sobreposição é circunstancial, desnecessária. Os dois fenômenos são diferentes. Eles não têm seus destinos amarrados. Cada um, por diferentes razões, requer severas críticas e oposição persistente. Muitos anos atrás, havia escritores socialistas que argumentavam que o triunfo da classe trabalhadora libertaria mulheres, judeus, negros e todos os outros. Lutas políticas independentes contra o sexismo, anti-semitismo ou racismo eram desnecessárias; na verdade, eles se distraíram da importantíssima luta de classes. Hoje, algumas pessoas de esquerda parecem acreditar que o fim do racismo trará a queda do capitalismo. Ambas as teorias estão erradas.

Mesmo que o racismo seja derrotado, ainda teremos capitalismo; Após a derrota do capitalismo, continuaremos a ter racismo. Colocar o adjetivo e o substantivo juntos nos dá uma falsa sensação de relacionamento entre os dois fenômenos.

Pode fazer sentido, então, banir a frase das páginas de jornais e revistas de esquerda. Mas como me oponho a essas proibições, gostaria apenas de sugerir que a frase é sempre questionada pelos editores. Os autores que o utilizam têm alguma ideia do que significa? Ou são apenas contra o capitalismo racial, qualquer que seja seu significado?

Nota: Este artigo foi publicado originalmente em inglês na revista Dissent, onde você também pode ver algumas respostas. Tradução: Carlos Díaz Rocca.

 

Apresentação ao relatório Operações Policiais e Ocorrências Criminais: por um debate público qualificado, por Daniel Hirata, Carolina Grillo e Renato Dirk[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na Revista DILEMAS, seção Reflexões sobre a Pandemia, em 17 de agosto de 2020.

O relatório  aqui  disponível  é  o  segundo  publicado  pelo  Grupo  de  Estudos  dos  Novos Ilegalismos (Geni), da  Universidade  Federal  Fluminense  (UFF),em  parceria  com  o Fogo Cruzado-RJ, nesta seção excepcional de Dilemas, Reflexões na Pandemia. Este, como o primeiro, encontra-se anexado aos autos do processo de Arguição de Descumprimento de  Preceito  Fundamental  (ADPF)  de  nº 635 —a ADPF  635  ou  ADPF  das  Favelas —,cujo julgamento  das  medidas  cautelares  pleiteadas  foi  concluído  nesta  última  segunda-feira,  17 de agosto  de  2020,  pelo  Supremo  Tribunal  Federal(STF).  Visando  à  defesa  da  vida  da  população residente em favelas e à apuração de violações praticadas pelo estado do Rio de Janeiro, a ADPF 635 foi requerida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em novembro de 2019, e contou com a colaboração  de  uma  série  de  instituições  e  organizações  da  sociedade  civil,  como  a  Educafro: Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,  Justiça  Global,  Associação  Redes  de  Desenvolvimento  da  Maré,  Movimento  Negro Unificado,Instituto  de  Estudos  da  Religião (Iser),  Conselho  Nacional  de  Direitos  Humanos (CNDH), Coletivo  Papo  Reto, Movimento  Mães  de  Manguinhos, Rede  de  Comunidades  e Movimentos Contra a Violência, Fala Akari e a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial. 

Como  demonstrado  neste  relatório,  a  mobilização  coletiva  pela  ADPF  635  foi  exitosa  em preservar vidas desde o início da vigência da decisão liminar do relator do processo, o ministro Edson Fachin, em 5 de junho deste ano, determinando que “não se realizem operações policiais em  comunidades  do  Rio  de  Janeiro  durante  a  epidemia  do  Covid-19,  salvo  em  hipóteses absolutamente excepcionais”. Em 5 de agosto, o plenário do STF referendou a manutenção dessa decisão, com apenas dois votos divergindo do relator e nove acompanhando a sua decisão. Essa foi uma das mais importantes conquistas dos movimentos de favelas nas últimas décadas e, agora, com o julgamento dos pedidos de medida cautelar pleiteados na petição inicial da ADPF 635, foi acompanhada de mais uma vitória, ainda que parcial.

LEIA O RELATÓRIO COMPLETO AQUI.

 

Rio: na pandemia, o papel do tráfico e o das milícias, por Piauí[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no blog Outras Palavras, em 26 de agosto de 2020.

Por Rafael Cariello, na Piauí.

Entre a primeira semana do mês de março e a última de julho, a cidade do Rio de Janeiro esteve submetida a três padrões distintos de pandemia do novo coronavírus, segundo estudo inédito de pesquisadores brasileiros ligados à Universidade de São Paulo, à Universidade de Barcelona e à Universidade Católica de Brasília. A forma de cada uma dessas três curvas foi determinada não apenas pelo vírus, mas também por quem mandava em cada bairro, por quem tinha poder de fato sobre a vida das pessoas que passaram a fazer parte das estatísticas da doença.

Houve um padrão específico para as áreas controladas pelo tráfico (onde se verificou o menor incremento médio de hospitalizações e mortes, ou seja, uma curva mais achatada), outro para aquelas dominadas por milicianos (locais em que o crescimento de mortes e hospitalizações foi o maior das três regiões, com número explosivo de casos) e um terceiro padrão para os bairros mais ricos da capital fluminense, onde o Estado não é desafiado por poderes paralelos (com aumento do número de hospitalizações e mortes num ritmo intermediário ao das outras duas áreas).

Em todos os bairros da cidade, os casos de hospitalizações e mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) deram um salto a partir de fevereiro deste ano. Mas a pesquisa revela que a velocidade de crescimento foi radicalmente diferente nas áreas controladas por milicianos, de um lado, e naquelas controladas por traficantes, de outro. Enquanto nos bairros sob  controle das facções ligadas à venda de drogas o número de hospitalizações por SRAG cresceu 46% a menos do que nas áreas com presença efetiva do poder público, nas localidades controladas pelas forças paramilitares, as hospitalizações cresceram 34% a mais do que o observado nos bairros sem poder paralelo. Nos dois casos, os números que representam as inclinações distintas das curvas (46% a menos ou 34% a mais do que na cidade “oficial”) refletem diferenças provocadas pelo comando de traficantes ou milicianos sobre a vida das pessoas, já descontadas outras causas de incremento dos números de hospitalizações, como a densidade populacional local e fatores socioeconômicos.

Os efeitos também se fizeram notar no número de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave. Enquanto nas áreas dos milicianos elas aumentaram 29% a mais do que nos bairros com presença estatal, os óbitos sofreram um incremento 43% menor nas áreas do tráfico, também em relação à cidade “oficial”, ou seja, aos locais sem controle de qualquer tipo de crime organizado.

Os economistas Raphael Bruce, da Universidade Católica de Brasília, Alexsandros Cavgias, da Universidade de Barcelona, e Luis Meloni, da USP, autores do estudo Filling the Void? Organized Crime and Covid-19 in Rio de Janeiro (Preenchendo a lacuna? Crime organizado e Covid-19 no Rio de Janeiro), conseguiram assim encontrar impactos distintos para os comportamentos em relação à pandemia dos dois grupos criminosos que controlam territórios no Rio – comportamentos que já vinham sendo noticiados em relatos na imprensa, mas cujos efeitos ainda não haviam sido testados de maneira rigorosa. “Mostramos que as diferentes formas de controle territorial impostas pelo crime organizado afetaram a dinâmica da epidemia de Covid-19 no Rio de Janeiro”, eles escrevem no trabalho, que ainda não foi publicado. 

Apesar de as diferenças epidemiológicas por áreas da cidade flagradas pelo estudo serem claras, os mecanismos que podem ter levado a esses comportamentos distintos das curvas de hospitalizações e mortes ainda são tratados pelos pesquisadores como hipóteses. O custo para os milicianos em impor normas de distanciamento social seria muito alto, supõem os economistas, uma vez que essas forças paramilitares exploram o comércio local cobrando taxas dos pequenos empresários. Esse custo é muito menor para os traficantes, eles dizem.

No dia 17 de abril, o site G1 noticiava: “Milícia obriga reabertura de comércio na Zona Oeste e Região Metropolitana do Rio para manter cobrança de taxas.” Na reportagem, sem se identificar, um comerciante afirma: “Os milicianos daqui, cara, ficam oprimindo a gente, entendeu? Mandando ficar com o bar aberto, que nós ‘tem’ que ficar para fazer dinheiro para pagar eles, para eles ‘poder’ pagar os caras da cobertura da PM.”

Em contraste, há relatos de que o tráfico impôs toques de recolher e a obediência a normas de distanciamento social durante os piores meses da pandemia na capital fluminense. “Um benefício imediato desse tipo de atitude para os traficantes é o de não ficarem, eles próprios, doentes”, explicou Raphael Bruce, em entrevista à piauí. “Parece simples, mas, por não terem laços tão próximos com o Estado quanto a milícia, há o temor de serem detectados ao procurarem socorro médico.”

Para evitar problemas de subnotificação – que poderia ser distinta dependendo do tipo de controle local imposto às populações –, os pesquisadores utilizaram dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave, disponibilizados pelo Ministério da Saúde, em vez de estatísticas sobre casos confirmados de Covid-19. Há, de toda forma, enorme correlação entre casos de SRAG e de Covid-19 neste ano. “É difícil imaginar que uma outra epidemia, simultânea à do coronavírus, estivesse provocando esse salto nos casos de SRAG”, explicou Alexsandros Cavgias.

Os três pesquisadores notaram que as médias de casos desse tipo de doença a cada semana, em cada bairro da cidade, vinham se mantendo relativamente constantes entre 2013 e o início deste ano. As diferenças nas taxas de evolução da doença só aparecem depois de fevereiro de 2020. Embora as médias já fossem um pouco mais altas nas áreas controladas pelas milícias, o salto foi de toda forma muito maior nessas localidades. Entre 2013 e o início deste ano, havia em média 0,08 caso de hospitalização por semana, por SRAG, nos bairros com presença eficaz do poder público; 0,06 hospitalização por semana nas áreas do tráfico; e 0,13 caso nos bairros controlados pela milícia. Esses números passaram, entre março e julho, para médias de 7,07 hospitalizações por semana no primeiro tipo de área, 4,45 hospitalizações nas regiões controladas pelo tráfico, e 11,61 casos de hospitalização por semana nas regiões sob o poder das milícias. “Antes da pandemia, as tendências eram parecidas”, afirmou Luis Meloni, da USP. “Não vinha aumentando mais em bairros da milícia do que em outros lugares da cidade.”

O estudo realizado pelos economistas incluiu o acompanhamento de outros fatores que poderiam ter afetado o número de casos depois da eclosão da doença, como a densidade populacional e as condições socioeconômicas em cada bairro. “Adicionamos controles que poderiam ‘matar’ todo o efeito constatado”, explicou Cavgias. “Mesmo assim o efeito explicado apenas pelo grupo que controla o bairro permaneceu nos resultados, e permaneceu grande”, completou.

ARTIGOFilling The Void? Organized Crime and COVID-19 in Rio de Janeiro, de Raphael Brucey, Alexsandros Cavgiasz e Luis Melonix.

LEIA O ESTUDO COMPLETO AQUI.

 

Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural, por Roberta Gondim de Oliveira, Ana Paula da Cunha, Ana Giselle dos Santos Gadelha, Christiane Goulart Carpio, Rachel Barros de Oliveira, Roseane Maria Corrêa[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado na Revista Cadernos de Saúde Pública, em setembro de 2020.

Resumo:

A incidência e mortalidade por COVID-19 em países com fortes desigualdades sociais se diferenciam em termos populacionais. Em países com histórico e tradição colonial como o Brasil, os marcadores sociais das diferenças têm profunda ancoragem na demarcação racial, sobre a qual agem as dinâmicas e os processos político-sociais fundados no racismo estrutural. Contrapõe-se a narrativas que propõem uma leitura sobre ser esta uma pandemia democrática, cujo argumento se alinha à retórica da democracia racial que corresponde a uma potente estratégia de manutenção do lugar de populações racializadas, como indígenas e negros, uma produção da colonialidade moderna. Este ensaio debruça sobre o comportamento da pandemia em relação à população negra no Brasil, em diálogo com aportes decoloniais e de leituras críticas sobre o racismo. Discutem-se respostas governamentais e indicadores da doença, segundo o quesito raça/cor, demonstrando a manutenção de tramas e enredos históricos que seguem vulnerabilizando e inviabilizando vidas negras. Aponta-se também para a importância de movimentos de resistência locais, operados a partir do lugar que esses sujeitos ocupam, os espaços urbanos precarizados por ação/omissão do Estado - as favelas.

Palavras-chave: COVID-19; Racismo; Vulnerabilidade Social

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Nós Por Nós: Teias de solidariedade, políticas de desencarceramento e abolicionismo penal no mundão em pandemia, por Natália Corazza Padovani[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado na Revista DILEMAS, seção Reflexões sobre a Pandemia, em 15 de outubro de 2020.

"No emergente mundão em pandemia, o coletivo Por Nós se compunha da percepção de que, como mulheres sobreviventes do cárcere, elas eram por excelência objeto das políticas públicas de segurança  e tutela—práticas cotidianas colocadas a cabo pelas malhas da governamentalidade (FOUCAULT, 2008) que simultaneamente  as categorizam como criminosas e vulneráveis. Mulheres sobreviventes do enocárcere são sujeitos  conformados pelas  tramas institucionais estatais (GREGORI, 2000); afinal, nunca se está tão dentro doEstado como na prisão (BARBOSA, 2005). Ao mesmo tempo, a formação de coletivos como o Por Nós de corre da materialidade vívida de que as suas sobrevivências são apenas asseguradas pelos seus muitos nós afetivos, e não pelos seus "direitos" como "sujeitos vulneráveis". Mais uma vez, isso não é novidadenem uma decorrência do contexto pandêmico. Antes, é a partir desse contexto que se multiplicaa visibilização de coletivos organizados que passam a se sustentar por meio de suas redes: seus nós."

LEIA O ARTIGO COMPLETO.

 

Sanitização comunitária, articulações e trocas de conhecimentos para ‘cuidar dos nossos’: Entrevista com Thiago Firmino, liderança da favela Santa Marta, Rio de Janeiro, por Palloma Valle Menezes e Apoena Dias Mano[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado na Revista DILEMAS, seção Reflexões sobre a Pandemia, em 29 de outubro de 2020.

"Na  entrevista  que  se  segue,  ocorrida  em  14  de  julhode  2020, Thiago  relata  suas experiências e impressõesdo combate à Covid-19 na favela Santa Marta. Numa cronologia pessoal que se entrelaça com a história da favela, ele apresenta reflexões desde os momentos anteriores à chegada da pandemia até suas expectativas para o futuro. Transitando entre o envolvimento  em  projetos  sociais eo  trabalho  como  guia  de  turismo,  ou  desde  o  seu envolvimento na rádio comunitária até a criação do conjunto de grupos de WhatsApp para a comunicação entre os moradores, seus relatos expressam que a constituição e preservação de redes de contatos em sua trajetória foi determinante para a possibilidade de implementar ações rápidas e eficientes no combate às desigualdades expressas pela pandemia."

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Políticas de isolamento na pandemia: confrontação federativa, disputas discursivas e consequências político-sanitárias, por Sonia Fleury[editar | editar código-fonte]

O artigo, originalmente publicado na revista CONASS, Coleção COVID-19, em janeiro de 2021, busca demonstrar que o modelo de governança construído ao longo da institucionalização do SUS, em consonância com o modelo constitucional de um federalismo compartilhado e com finalidade social, não resistiu à conjuntura crítica que juntou a pandemia ao estilo autoritário da liderança populista no poder, dando origem a um modelo de federalismo de confrontação, com sérias consequências para a democracia e para a saúde pública. Foram levantadas as principais disputas discursivas em relação às políticas de isolamento social, suas consequências sanitárias e políticas, identificando os principais atores envolvidos.

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Redes e territórios: Ações de enfrentamento a processos de despossessão em tempos de pandemia, por Renato Abramowicz Santos[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado na Revista DILEMAS, seção Reflexões sobre a Pandemia, em 16 de dezembro de 2020.

"Este texto trata de violências e violações de direitos praticadas pelo Estado durante a pandemia de Covid-19 a  partir de casos acompanhados ao longo dos últimos meses, sobretudo na cidade de São Paulo. A apresentação de alguns desses eventos busca revelar os processos de despossessão — que são históricos, mas tiveram seus efeitos e alcancesagravados e reatualizados — promovidos pelo Estado neste momento de crises de diversas naturezase que atingemdistintos grupos sociais."

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Covid-19: conhecer para enfrentar os desafios futuros, edição especial Saúde em Debate[editar | editar código-fonte]

Editorial publicado em dezembro de 2020.

O que será do amanhã?

Ana Maria Costa, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS); Josué Laguardia, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict); e Regina Fernandes Flauzino, Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de Saúde da Comunidade (ISC), Departamento de Epidemiologia e Bioestatística (DEB)

DESDE 25 DE FEVEREIRO, QUANDO FOI CONFIRMADO NO BRASIL o primeiro caso de Covid-19, acumulamos, lamentavelmente, 175 mil mortos, e mais de 6,5 milhões de infectados até a primeira semana de dezembro de 2020. Declarada pela Organização Mundial da Saúde como pandemia em 11 de março, a doença se move dos bairros mais ricos para as periferias; e dos grandes centros urbanos para as cidades do interior, alastrando-se pelo País ao longo desses meses, desenhando uma curva alargada na qual se destacam os níveis mais elevados de incidência, taxa de transmissão e óbitos nos meses de junho, julho e agosto. Sem o controle da doença e ainda com significativa taxa de transmissão, a Covid-19 volta a crescer no País, agora, tendo como epicentro todo o território nacional. Atualmente, o Brasil ocupa a sétima e a nona posição entre os países com as maiores taxas de mortalidade e letalidade, mas essa situação pode mudar perante o aumento do número de casos da doença, a extinção da renda emergencial e a retomada da lei do teto de gastos com o risco de uma perda em torno de R$ 40 bilhões para o orçamento da saúde a partir de 2021. Ao acentuar as injustas desigualdades sociais persistentes no País, a Covid-19 revela seu caráter discriminatório ao acometer os mais pobres e vulneráveis, sacrificando populações subalternizadas invisíveis – indígenas, negros, povo cigano, quilombolas, população de rua, refugiados.

O que vem ocorrendo no enfrentamento da pandemia no Brasil está no foco das análises de diversos estudiosos, que ressaltam o descaso e a inoperância na adoção de medidas e iniciativas reconhecidas como adequadas e eficientes para conter a doença. Muitos atribuem a condução caótica e omissa do governo federal ao despreparo e à incompetência, mas as evidências sugerem uma desconcertante ação deliberada de economia necropolítica associada ao darwinismo social1. Entretanto, já não se trata mais do necroestado ou da necropolítica em que o Estado é o gestor da morte. Aqui o governo vem se esmerando na implementação do Estado suicidário, ou seja, um novo e perverso estágio dos modelos de gestão imanentes ao neoliberalismo em que o Estado passa a ser ator contínuo de sua própria catástrofe. Trata-se de uma condição espelhada no fascismo de Hitler na qual o Estado cuida diretamente da administração da morte de setores de sua própria população, que se aproxima perigosamente de sua própria destruição2.

As trocas e desautorizações de ministros da saúde e a omissão do governo federal no exercício de seu papel mobilizaram os gestores municipais e estaduais a assumirem o processo de controle da pandemia. Sem apoio na aquisição de insumos e recebimento de recursos e desprovidos da coordenação federal, os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) vêm sendo não apenas desamparados, mas boicotados pelo governo federal. O distanciamento social e o uso da máscara, medidas eficazes para contenção da disseminação da pandemia, são desestimuladas e ridicularizados por integrantes do governo federal. A despeito das advertências de pesquisadores e instituições acadêmicas de todo o mundo sobre a importância dos testes populacionais, o governo brasileiro não estabeleceu uma estratégia de testagem para identificação de infectados que permitisse o isolamento e o controle dos focos da doença para reduzir a transmissão do novo coronavírus. Na mesma direção, ainda que o Congresso Nacional tenha aprovado e destinado recursos extras para o enfrentamento da Covid-19 pelo SUS, o governo não usou os recursos existentes para proteger a população e controlar o avanço da doença.

O protagonismo do SUS, ainda que sua atuação ocorra sob condições precárias que colocaram em risco de adoecimento e morte centenas de seus profissionais, impactou de maneira positiva milhares de vidas. Essa condição paradoxal deixa claro que não há possibilidade de construir estratégias para cumprimento do mandamento constitucional da Saúde com Direito de Todos e Dever do Estado sem uma avaliação profunda acerca dos desafios e impactos provocados pela pandemia da Covid-19.

O SUS mostrou-se fundamental para salvar vidas, para a saúde e o bem-estar da população brasileira. O acesso universal propiciado pelo SUS entre nós contrasta com o que vemos na experiência de outros países, particularmente nos Estados Unidos, em que, sem sistema público, muitos cidadãos com sintomas da Covid-19 fogem do tratamento, morrem em casa e nas ruas por medo dos gastos exorbitantes para custeio do próprio bolso do seu cuidado em saúde. É o SUS que sustenta a saúde como um direito de todos.

A saúde de uma população é produto de sua acumulação política e resulta da determinação social, econômica e cultural; e, sob essa perspectiva, a efetivação do direito universal à saúde, como conquistado na Constituição Federal, depende, centralmente, da democracia social direcionada à redução dessas desigualdades. O SUS, enquanto um sistema público e universal, é parte dessa complexa condição requerida ao direito à saúde. Entretanto, cabe assinalar que os objetivos da saúde universal e de qualidade essenciais na consolidação do SUS se deparam com barreiras, interesses e contradições no interior do próprio modelo de Estado, na sociedade, na democracia e de projeto de desenvolvimento do País. A saúde está sob a mira do setor privado, que pretende transformar atenção, cuidado e assistência médica em mercadoria – e, mais uma vez, uma situação de emergência sanitária nos demonstrou que a saúde não pode ser uma mercadoria, em que só quem tem riqueza pode ter acesso. De outro modo, o resultado é a barbárie.

As medidas para enfraquecer e até mesmo inviabilizar o SUS são variadas, mas os golpes sobre o seu financiamento, que comprometem a capacidade do SUS de prover atendimento adequado e oportuno às necessidades de saúde, são a sentença de morte para centenas de milhares de brasileiros nos próximos anos, com ou sem pandemia.

E o que será do amanhã?

O capitalismo do consumo excessivo das classes abastadas tem consequências sérias à sobrevivência da própria humanidade ao transformar o Estado em empresa a serviço dos interesses do mercado e dos donos do capital. A degradação ambiental desenfreada e protegida pelo Estado é produto da inconsequência da corrida pelo lucro e, incidindo sobre as mentalidades das pessoas, desmantela os valores civilizatórios de solidariedade e coletivismo que estão na gênese da produção dessa crise sanitária que resguarda todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça³.

A conjunção dessa tempestade de crises – sanitária, ambiental, econômica e social – acentua os efeitos de um país que vinha sendo devastado pelo neoliberalismo nas últimas décadas e agora, sob um governo de ultradireita, é conduzido a um Estado suicidário autoritário em movimento em torno do nada. Trata-se de uma realidade perturbadora que muitas vezes imobiliza a própria resistência. De certa forma, observa-se uma acomodação da sociedade – particularmente das populações pobres –, que sempre viveu uma guerra civil não declarada com uma naturalização dos genocídios e dos massacres e em que a acumulação de capital é garantida pela bala e o medo².

Cabe então interrogar sobre o futuro, mediante o desconcerto de um governo regido por um delírio de entrega ao sacrifício, que incita o aplauso do povo aos seus algozes e que não se importa com a morte dos outros. Nesta realidade, entretanto, é possível identificar emoções ou afetos capazes de mobilizar mudanças de fortalecimento de uma solidariedade nas periferias e favelas.

O Estado Social que emprestou potência aos direitos humanos, particularmente os direitos sociais, como estratégia no combate às desigualdades sociais, já não encontra ressonância nessa realidade perturbada. Qualquer retomada da centralidade dos direitos humanos na luta dos excluídos, explorados e discriminados requer ressignificá-los, começando por reafirmar que os direitos são fruto da conquista histórica dos oprimidos. A captura desses direitos pela hegemonia, que, mais uma vez, aplicou neles uma maquiagem institucionalizada, naturalizou e banalizou o sofrimento humano, resultando no esgarçamento da tessitura da solidariedade social. A essa hegemonia, definitivamente, não interessa e não serve a luta contra as desigualdades sociais e econômicas enraizadas tanto no Brasil quanto nos países latino-americanos4.

O panorama atual é que a maioria da população, inspiração e objeto do discurso e da luta por justiça e direitos humanos, não alcançou ser sujeito deles. No Brasil, os insurgentes que ocuparam as ruas foram jovens da periferia, trabalhadores informais de serviços essenciais, incluído o transporte por aplicativo. Convivendo diariamente com o risco, a doença e a morte, impedidos do distanciamento social, eles protestaram e ingressaram na prática da política. São jovens que enfrentam, há tempos e cotidianamente, a violência policial, o tráfico, o desemprego e a exclusão; que trazem uma experiência de vida desde que nasceram com a exclusão e a violência institucional. O Brasil real assumiu sua voz e, na escassez, mostra a nova solidariedade entre os que dividem o que pouco têm.

O aprendizado se apresenta aos que querem ou darão conta de aprender. O fato é que as novas realidades e narrativas desafiam a humanidade, e esses desafios continuarão impondo ao futuro novas respostas políticas, econômicas e sociais. A escuta e a leitura da complexidade e crueza da realidade desafiam partidos políticos democráticos, não apenas aos do campo da esquerda, a um novo compromisso com uma democracia aliada ao combate das desigualdades e da discriminação.

Esses novos atores políticos, agora presentes e atuantes, que redefinem e ressignificam os direitos humanos e as políticas sociais, serão a base do Estado fundado na solidariedade social. No entanto, serão essenciais mudanças mais profundas. Os mais ricos terão que perder privilégios, acumular menos e dividir mais. A taxação das grandes fortunas não pode mais ser um tabu. Está prevista na nossa Constituição, e o assunto segue debaixo do tapete.

A ciência também foi surpreendida pela intensidade e magnitude da pandemia se a comparamos às experiências anteriores das últimas duas décadas. O grau de desconhecimento acerca do novo vírus, aliado à descrença, por parte de alguns segmentos da sociedade, do papel da ciência na resolução de problemas de saúde, criou a tempestade perfeita para disseminação de fake news e seu uso para o fortalecimento de grupos políticos da extrema-direita. A despeito do conhecimento acumulado e rapidamente disseminado desde o início da pandemia e da rapidez no desenvolvimento de novas vacinas para conter a transmissão da Covid-19, resta o desafio posto às empresas farmacêuticas de convencer a população sobre a eficácia e a segurança desses produtos. Para tal, não basta alegar que os estudos foram realizados dentro dos melhores padrões científicos requeridos pelas agências reguladoras. É preciso transparência, garantir o acesso público aos dados anônimos dos participantes dos estudos que dão sustentação científica às afirmações de que as vacinas são seguras e eficazes.

Mesmo antes da sua aprovação, já circulam rumores sobre pretensos riscos à saúde devido ao uso dessas vacinas. A sociedade terá como desafio lidar com as situações de alardes, material frequentemente usado pelos grupos antivacinas para disseminar suas teorias conspiratórias e o descrédito aos argumentos científicos. Nas sociedades em que governos e segmentos populacionais apoiam tais teorias, as repercussões negativas desta pandemia de desinformação podem comprometer os esforços para alcançar níveis de cobertura vacinal necessários para reverter o quadro epidemiológico atual da Covid-19.

Neste cenário de devastação, morte e desinformação, não é mais tolerável aceitar a manutenção de modelos de fazer ciência e de sistemas de saúde atrelados aos interesses de corporações cujo objetivo principal seja a boa saúde financeira dos seus acionistas. Tampouco a academia e os seus pesquisadores devem seguir pautando suas ações em modelos neoliberais de desempenho que favorecem os grandes grupos editoriais em detrimento de uma ciência cidadã.

Do mesmo modo, o cenário político tem que garantir que esses novos atores do Brasil real possam vocalizar suas aspirações por democracia, direitos, igualdade, equidade, não discriminação de raça, orientação sexual e gênero, justiça e inclusão social. São persistentes, mas renovadas demandas que, daqui para a frente, pautarão os nossos desafios e, também, a política.

CONFIRA O ARTIGO DE OPINIÃO: Pandemia nas favelas: entre carências e potências | por Sonia Fleury, Palloma Menezes

CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

 

Efeitos das desigualdades socioeconômicas e vulnerabilidades na preparação do sistema de saúde e na resposta ao COVID-19 no Brasil: uma análise abrangente | The Lancet[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado em 12 de abril de 2021.

Resumo

 

Contexto: O Brasil experimentou uma disseminação rápida da COVID-19 apesar de ter sistemas de saúde e proteção social bem estabelecidos. Entender a relação entre o nível de preparo do sistema de saúde, a resposta à COVID-19, e o padrão da disseminação da pandemia é particularmente importante em um país tão marcado por desigualdades socioeconômicas (e.g., habitacional e no mercado de trabalho) e outros riscos sanitários (estrutura etária e carga de doenças crônicas).

 

Métodos: A partir de diversas fontes públicas no Brasil, obtivemos dados sobre fatores de risco sanitários para a COVID-19 (proporção da população com doenças crônicas e proporção acima de 60 anos), vulnerabilidade socioeconômica (proporção da população com vulnerabilidade habitacional e proporção de trabalhadores informais), capacidade do sistema de saúde (número de leitos de UTI e médicos), cobertura da atenção primária e assistência social, mortes por COVID19, e respostas dos governos estaduais em termos de políticas de distanciamento físico. Também obtivemos dados sobre a proporção da população permanecendo em casa, baseada em dados geolocalizados, como medida de adesão ao distanciamento físico. Desenvolvemos um índice de vulnerabilidade socioeconômica (SVI) a partir de características individuais, domiciliares, e do Índice de Desenvolvimento Humano. Conduzimos análises nos níveis estadual e municipal. Usamos estatísticas descritivas e correlações entre indicadores estaduais para caracterizar a relação entre a disponibilidade de recursos de saúde e características socioeconômicas, e a disseminação da pandemia e resposta dos governos e da população em termos de novos investimentos, legislação, e distanciamento físico. Usamos regressões lineares em um painel mensal municipal de fevereiro a outubro de 2020 para caracterizar a dinâmica da mortalidade por COVID-19 e a resposta à pandemia dos municípios.

 

Resultados: A disseminação inicial da COVID-19 foi em maior parte influenciada por padrões de vulnerabilidade socioeconômica, medida pelo índice de vulnerabilidade socioeconômica, ao invés de estrutura etária ou prevalência de fatores de risco de saúde. Os estados com alta (acima da média) vulnerabilidade socioeconômica (SVI) ampliaram suas capacidades hospitalares, publicaram legislação mais rigorosa relacionada à COVID-19, e registraram maiores aumentos na adesão ao distanciamento físico, ainda que não suficientemente para prevenir mortalidade por COVID-19 mais alta durante a fase inicial da pandemia, comparados a estados com SVI mais baixo. Taxas de mortalidade aceleraram até junho, em particular em municípios com maior vulnerabilidade socioeconômica. Durante os meses seguintes, diferenças em políticas de resposta convergiram em municípios com menor e maior vulnerabilidade socioeconômica, enquanto o distanciamento físico permaneceu relativamente alto e taxas de mortalidade relativamente mais baixas nos municípios mais vulneráveis socioeconomicamente.

 

Interpretação: No Brasil, desigualdades socioeconômicas, ao invés de idade, estado de saúde, e outros fatores de risco para a COVID-19, afetaram o curso da pandemia, com uma carga desproporcionalmente adversa em estados e municípios com maior vulnerabilidade socioeconômica. A resposta de governos locais e o comportamento da população em estados e municípios mais vulneráveis socioeconomicamente contribuíram para conter os efeitos da pandemia. Políticas e ações focalizadas são necessárias para proteger aqueles com maior vulnerabilidade socioeconômica. Esta experiência pode ser relevante em outros países de baixa e média renda (LMICs), onde níveis de vulnerabilidade socioeconômica variam muito.

 

Financiamento: Não há.

 

CONFIRA O ESTUDO COMPLETO AQUI.

 

Pesquisas, relatórios e dados[editar | editar código-fonte]

Coronavírus nas favelas (DataFavela)[editar | editar código-fonte]

O estudo realizado em março de 2020 reúne algumas informações preliminares sobre a situação do Coronavírus nas favelas, a partir de 1142 entrevistas em 262 favelas de todo o Brasil.  O estudo é conduzido pelo Data Favela, que surge da parceria entre Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas – CUFA e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. As pesquisas do Data Favela são realizadas pelos moradores das comunidades, que são treinados e supervisionados pela equipe do Instituto Locomotiva.

Sobre a pesquisa[editar | editar código-fonte]

"O corona atinge a população de forma desigual. Existem aqueles que, ainda bem, conseguem ficar no conforto do seu lar, com a geladeira cheia, fazendo home office. No entanto, a pesquisa deixa claro que existe milhões de brasileiros, autônomos, e com a geladeira vazia", avalia Celso Athayd e, Fundador da CUFA e do Data Favela e coordenador do movimento #FavelaContraOVirus “Criamos o movimento “Favela Contra o Vírus” com o objetivo de impedir que essas desigualdades provoquem ainda mais mortes nas favelas brasileiras, esse território com mais de 13,6 milhões de pessoas que não tem as mesmas condições de quarentena que os moradores do asfalto” - 'Celso Athayde, fundador da CUFA. 

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Acesse o material[editar | editar código-fonte]

Para ter acesso aos resultados completos da pesquisa, clique aqui.

 

Infográficos da Desigualdade - Casa Fluminense | Série COVID-19[editar | editar código-fonte]

A ONG Casa Fluminense (RJ) deu início à série especial dos Infográficos da Desigualdade. A cada semana serão compartilhados dados, propostas e reflexões sobre a realidade de desigualdades na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com o olhar atento para a precarização e a falta de acesso a direitos básicos que marcam historicamente o cotidiano das periferias.

O contexto da pandemia do COVID-19 evidenciou ainda mais o papel das políticas públicas de garantir segurança para a população, principalmente para os economicamente mais vulneráveis. Começando o papo falando sobre habitação. As principais estratégias para conter o avanço da disseminação da COVID-19 têm sido o distanciamento social e o isolamento domiciliar, para além das práticas recorrentes de higiene. Seguimos defendendo o #FiqueEmCasa, entretanto essas medidas acendem um alerta para parte da população nas periferias da RMRJ que vivem a realidade do adensamento populacional excessivo.


Quartos com mais de 3 pessoas é a realidade de 300 mil casas na Região Metropolitana do Rio, segundo o Censo 2010 e o IPS 2018. Japeri é o município que possui o maior adensamento habitacional excessivo, com 14% dos domicílios nesta condição. Jacarezinho lidera entre as regiões administrativas da capital, seguido por Maré, Rocinha, CDD, Zona Portuária e Santa Cruz.

Em um cenário no qual muitas destas casas sequer possuem ventilação adequada, é necessário que o poder público garanta subsídio para compra de material de construção e assistência técnica para essas populações. A adaptação emergencial sobre arejamento não deve ser responsabilidade dessas famílias. Em casos mais graves, é preciso garantir moradias adequadas ou improvisadas em outro espaço, como hotéis, escolas e universidades.

 

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As chuvas do início do mês de março, por exemplo, prejudicaram diferentes áreas do Rio de Janeiro. Hoje, os moradores de Magé, na Baixada Fluminense, praticam o isolamento social dentro de casas interditadas pela Defesa Civil por risco de desabamento.

Segundo os dados do Infográfico da Desigualdade, analisados pela Casa Fluminense, cerca de 6.800 em Magé tem mais de três moradores dividindo o mesmo quarto. Com a pandemia do Covid- 19, outro ponto preocupante é a situação daqueles que ainda precisam trabalhar. Com a diminuição dos transportes públicos, é preciso fazer um longo caminho a pé para pegar uma condução. Confira a matéria completa.

Além disso, na 2ª série dos Infrográficos da Desigualdade, a Casa Fluminense demonstra que o avanço do Covid-19 no Brasil e no mundo agravou a perda de renda familiar e expôs ainda mais a vulnerabilidade dessas famílias que já se sustentavam com muito pouco. Os estudos já têm apontado o aumento do número de famílias na linha da pobreza e abaixo dela. Vimos também o crescimento de casos de violência doméstica após as medidas de isolamento social. Atentos a isso, o segundo Infográfico da Desigualdade vai tratar da cobertura da política pública de assistência social nas cidades da metrópole do Rio, organizada por meio do Sistema Único de Assistência Social - SUAS.

Nas cidades, os Centros de Referência de Assistência Social - CRAS são a porta de entrada para prevenção e atendimento indispensável à proteção social das pessoas mais vulneráveis e que vivenciam situações de violação de direitos. Estamos falando de mulheres e crianças vítimas de violência, idosos, pessoas com deficiência, jovens em medida socioeducativa, agricultores familiares, pescadores e demais pessoas que dela necessitarem.

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A realidade é que a rede de CRAS em alguns municípios da Região Metropolitana do Rio está operando muito acima da sua capacidade. Nas cidades de Nova Iguaçu e Rio de Janeiro há menos da metade dos CRAS necessários para atender as famílias residentes, de acordo com dados do Ministério da Cidadania de fevereiro de 2020. As unidades em São João de Meriti, Caxias e São Gonçalo também estão operando acima da capacidade. A Norma Operacional Básica do SUAS estabelece até 5.000 famílias por centro de referência.

Olhar para esta realidade, em pleno contexto de pandemia e distribuição da Renda Básica Emergencial, é refletir sobre seus impactos na abrangência do atendimento à população em situação vulnerável que inclui a realização da inscrição das famílias no tão citado Cadastro Único.

Como medida a curto prazo, já sabemos que serão disponibilizados aplicativos e telefones para o cadastro de quem não está na base e se enquadra nos dois perfis: trabalhador informal recebe até meio salário mínimo ou possui renda familiar de até três salários mínimos. Certamente, algumas perguntas ficam: Que condições essas famílias mais vulneráveis dispõem para realizar sua inscrição por esses meios? Quantas famílias já poderiam estar cadastradas com a priorização da implementação das normas determinadas pela Política Nacional de Assistência Social?

A sobrecarga na rede de CRAS precariza a estruturação e a prestação do atendimento ofertado, tanto para a população que mais precisa como para os profissionais do SUAS. Por isso, é preciso garantir a construção de mais CRAS e Centro de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS e a consequente contratação de mais profissionais para a ampliação do atendimento socioassistencial. A ampliação do alcance das políticas de proteção social básica e especializada são passos fundamentais para a redução das desigualdades e das injustiças sociais.

InfográficosDaDesigualdade
#CoronaNasPeriferias
#COVID19NasFavelas

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A série "Infográficos da Desigualdade" faz parte da pesquisa da nova publicação Mapa da Desigualdade | Região Metropolitana do Rio de Janeiro 2020, que será lançada pela Casa Fluminense em abril. Em breve, mais infos!

"Torneiras secas para enfrentar o novo Coronavírus no Rio de Janeiro", da Ouvidora da Defensoria Pública (RJ)[editar | editar código-fonte]

Na última semana, a Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro fez um comunicado à população pelas redes sociais pedindo informações sobre onde está sem água no Rio de Janeiro. O objetivo era indicar à Defensoria onde atuar com urgência para que todas as pessoas tenham condições de seguir as orientações das autoridades sanitárias e, assim, colaborar para a contenção da pandemia de Covid-19, o novo Coronavírus.

Em apenas 5 dias (de 18 a 23/3), foram recebidas 475 denúncias de problemas de abastecimento em 140 lugares diferentes. São majoritariamente favelas e periferias de 14 municípios do estado, localizados principalmente na região metropolitana.

O relatório parcial com as informações desses primeiros 5 dias  já foi repassado aos núcleos especializados da Defensoria Pública. O Núcleo de Defesa do Consumidor já está buscando, com apoio do Ministério Público, uma solução emergencial extrajudicial junto à CEDAE.

Na análise das informações desses 5 primeiros dias, identificamos pelo menos 19 lugares sem água onde já há pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo Covid-19, o que aumenta as preocupações com o alastramento da pandemia.

ACESSE AO RELATÓRIO DA OUVIDORIA DE DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (junto às localidades e suas denúncias)!

Bom Dia Rio: Defensoria Pública do RJ recebe 475 denúncias sobre falta de água.

O formulário de envio das informações sobre onde está sem água no RJ continua aberto para novas respostas: acesse aqui.

Às favelas e periferias, desejamos força! Saudamos as entidades da sociedade civil que também estão lutando. Contem com a Ouvidoria.

Equipe da Ouvidoria da Defensoria do RJ.

Operações policiais em tempos de coronavírus, do Observatório da Segurança do Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]

Observatório da Segurança do Rio de Janeiro lança o estudo Operações policiais em tempos de coronavírus: os primeiros efeitos da epidemia nas políticas de segurança

O combate ao coronavírus teve um efeito importante sobre as operações policiais, que há décadas constituem o centro da política de segurança no Rio de Janeiro. A Rede de Observatórios comparou dados sobre o policiamento antes e depois do decreto de emergência no estado, de 16 março, e também as informações do último mês com março de 2019.

De 1 a 15 de março, foram monitoradas 58 operações  (grupo de policiais destacados para cumprir um objetivo específico e pontual) e 81 ações de patrulhamento (rondas de rotina, ou o chamado baseamento). 

A partir do decreto de 16 de março e até o dia 31 deste mês, as operações diminuíram 74% (15 ao todo)  e os patrulhamentos, 49% (total de 41). 

Menos operações, menos vítimas: em todo o mês de março de 2020, houve 15 mortes em ações policiais. Em 2019, foram 36. Ou seja: as incursões policiais em favelas tem, sim, um efeito importante na mortalidade.

A participação da Polícia Militar em ações diminuiu 30%, comparando março de 2020 com o mesmo mês em 2019. Já a Polícia Civil teve aumento de 116% nas suas atividades. 

A motivação das ações também mudou de um ano para outro: neste último mês, houve redução de 43% de operações de repressão ao tráfico de drogas, em relação a março de 2019. Aumentaram as ações de cumprimento de mandado (105%) e voltadas a crimes contra o patrimônio (190%). A categoria “outros”, que inclui apoio a medidas de combate à pandemia, cresceu 300%!

Na primeira semana de abril, as operações em favelas voltaram a ocorrer em grande número na cidade do Rio de Janeiro. É inadmissível que os moradores dessas localidades, que vem enfrentando a pandemia em condições precárias, voltaram a se preocupar também com a sua segurança durante operações policiais.

CONFIRA O ESTUDO COMPLETO!

 

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Pretos têm 62% mais chance de morrer por Covid-19 em São Paulo do que brancos, por Observatório Covid-19[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no Jornal G1, em 28 de abril de 2020.

Pardos têm risco 23% maior. Dados são resultado de grupo de trabalho entre Observatório Covid-19 e a Prefeitura de São Paulo.

Por Carolina Dantas, G1

Os pretos moradores da cidade de São Paulo têm uma chance 62% maior de morrer por Covid-19 do que os brancos. Os pardos têm 23% mais risco. Os dados são resultado de uma análise científica das mortes registradas na cidade até 17 de abril, uma parceria entre o grupo de cientistas Observatório Covid-19 e a Prefeitura de São Paulo.

Karina Ribeiro, epidemiologista e professora-adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, é autora do estudo e precisou separar os dados por faixa etária e raça/cor, quantidade total de moradores para cada uma dessas informações, além de fazer um ajuste matemático para chegar à taxa de risco por raça na cidade.

A classificação segue um padrão de raça/cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pardos e pretos são considerados como negros em conjunto. Os números também aparecem no boletim epidemiológico da cidade divulgado nesta terça-feira (28).

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Mortalidade por raça/cor em SP — Foto: Carolina Dantas/G1

"Peguei o número de toda a população de São Paulo por faixa etária, o número de óbitos por Covid-19, o número dos residentes por município. Aí, no final, calculamos a taxa de mortalidade ajustada por idade, uma forma de comparar levando em consideração a estrutura toda. Você tem grupo racial com mais gente idosa. Na realidade, a maioria das doenças precisamos fazer esse ajuste para fazer a conta", explicou.

Em números absolutos, temos mais mortes em pacientes brancos. Essa única informação, no entanto, não representa que são eles os que têm o maior risco de perder a vida. O grupo de cientistas leva em consideração as características do vírus Sars CoV-2, a pirâmide etária de cada raça/cor na cidade, entre outros fatores, e assim ajusta o real risco de vida para o grupo racial.

Bairros mais afetados

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Mapa de mortes por distrito divulgado pela prefeitura com as mortes confirmadas ou suspeitas de coronavírus até o dia 24 de abril. — Foto: Reprodução/Twitter

Água Rasa, Pari, Artur Alvim, Limão e Alto de Pinheiros são os bairros que registraram o maior número de mortes suspeitas ou confirmadas pelo novo coronavírus a cada 100 mil habitantes na capital paulista, segundo o mapa epidemiológico divulgado nesta segunda-feira (27) pela Prefeitura de São Paulo. De acordo com o mapa, as mortes continuam concentradas na periferia da cidade.

Os dados mostram que, na Água Rasa (Zona Leste), foram 47,2 mortes registradas por grupo de 100 mil pessoas na semana epidemiológica terminada em 24 de abril. O bairro registrou 39 mortes confirmadas ou suspeitas neste período e tem 82.564 mil moradores, segundo os números da subprefeitura local.

No Pari, também na Zona Leste, foram registradas 9 mortes confirmadas ou suspeitas de coronavírus até 24 de abril, e também chega a incidência de 47,2 mortes por grupo de 100 mil.

Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, continua sendo o distrito com maior número absoluto de mortos em São Paulo, segundo o mapa da Prefeitura. O bairro passou de 54 para 81 mortes por coronavírus confirmadas ou suspeitas. Crescimento de 39% em apenas sete dias. Por grupo de 100 mil habitantes, a Brasilândia tem 28,7 mortes.

Em toda a cidade de São Paulo, a prefeitura registrou 2.688 óbitos confirmados ou suspeitos na semana epidemiológica até 24 de abril.

SP: Mortes por 100 mil habitantes

  • Água Rasa - 47,2
  • Pari - 47,2
  • Artur Alvim - 44,8
  • Limão - 42,7
  • Alto de Pinheiros - 41,5
  • Belém - 40,6
  • Liberdade - 39,8
  • Vila Formosa - 39,3
  • Campo Belo - 37,6
  • São Mateus - 37,3

Em Artur Alvim, ainda na Zona Leste, foram 45 mortes, alta de 50% em uma semana. O bairro está na terceira posição em concentração de óbitos, registrando 44,7 mortes por 100 mil pessoas.

Mesma situação do Limão, na Zona Norte, que acumulou 34 óbitos por coronavírus na última semana, uma taxa de 42,7 mortes por 100 mil habitantes.

Na Zona Oeste, Alto de Pinheiros, a taxa ficou em 41,5, - em números absolutos foram 17 mortes.

 

Em duas semanas, número de negros mortos por coronavírus é cinco vezes maior no Brasil, por Agência Pública[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado em Agência Pública, em 06 de maio de 2020.

Em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por Covid-19 no Brasil quintuplicou. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo Governo Federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930. Além disso, a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por coronavírus aumentou para 5,5 vezes.

Já o aumento de mortes de pacientes brancos foi bem menor: nas mesmas duas semanas, o número chegou a pouco mais que o triplo. E o número de brasileiros brancos hospitalizados aumentou em proporção parecida.

A explosão de casos de negros que são hospitalizados ou morrem por Covid-19 tem escancarado as desigualdades raciais no Brasil: entre negros, há uma morte a cada três hospitalizados por SRAG causada pelo coronavírus; já entre brancos, há uma morte a cada 4,4 hospitalizações.

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Os dados são resultado de uma análise feita pela Agência Pública com base nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde que possuem informações de raça e cor de internações e mortes por coronavírus. O Governo Federal divulgou esses números atualizados apenas até 26 de abril.

Para cada morte em Moema, quatro morrem na Brasilândia

Em São Paulo, na maior cidade do país e a que conta maior número de mortes por Covid-19, são os bairros onde a população negra está mais concentrada que trazem a maior quantidade de óbitos pela doença. Segundo a Pública apurou, dos dez bairros com maior número absoluto de mortes causadas pelo coronavírus, oito têm mais negros que a média de São Paulo.

O bairro com maior número absoluto de mortes é a Brasilândia, com 103 casos. A região tem cerca de 50% da população negra — a média de São Paulo é de 37%. No extremo oposto, o bairro com menos negros da cidade, Moema, teve 26 mortes. A média de negros na região é de menos de 6%.

Mesmo ajustando-se as mortes à população, os dois bairros têm realidades diferentes: em comparação ao número de moradores de Moema, Brasilândia tem cerca de 25% a mais de mortes. A Pública considerou os dados do último Censo (2010) para os cálculos de população e raça/cor dos moradores.

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Bairros da periferia e com mais moradores negros que a média de São Paulo têm visto os casos de Covid-19 dispararem — e com eles, as mortes. O Jardim Ângela, bairro com maior porcentagem de negros de toda a cidade, viu as mortes por coronavírus quase que triplicarem em cerca de duas semanas. Grajaú, Parelheiros, Itaim Paulista, Jardim Helena, Capão Redondo e Pedreira, todos bairros com maioria da população negra, mais que dobraram as mortes por Covid-19 nesse mesmo período.

O avanço do coronavírus na periferia de São Paulo vem encurtando a distância de mortes entre bairros mais ricos, onde surgiram os primeiros casos de Covid-19. Em 17 de abril, bairros com menos população negra que a média da cidade tinham 13% a mais de mortes que as regiões onde moram mais negros. Duas semanas depois, essa diferença caiu para 3%. Se a tendência se mantiver, os bairros onde vivem mais negros que a média da cidade devem ultrapassar os bairros onde vivem menos negros.

O jornalista Lucas Veloso, cofundador da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, mora em uma das principais avenidas de Guaianases, bairro localizado no extremo leste da cidade de São Paulo. Ele observa que o movimento de transeuntes no local aumentou nas últimas semanas, em comparação à semana do dia 24 de março, quando o governador João Doria (PSDB) instituiu a quarentena no estado. “Nas duas primeiras semanas [depois do anúncio do decreto], as ruas estavam de fato mais desertas. O movimento da feira que acontece às quartas, por exemplo, tinha caído muito. Havia poucas barracas, poucos feirantes. Mas depois da terceira e quarta semanas, percebi que isso mudou”, relata.

Segundo ele, parte da população local não conseguiu parar por questões de renda. “Muitos dos que moram nas periferias fazem parte dos serviços essenciais. Então, o transporte público de manhã, na estação de trem, não diminuiu tanto. São entregadores, enfermeiros, seguranças. Então, como é um bairro pobre, de periferia, que muitas pessoas estão sujeitas a subempregos, o bairro não consegue parar totalmente”, analisa o jornalista.

Agora, ele observa que até mesmo as pessoas que conseguiam ficar em casa relaxaram as restrições da quarentena. “As pessoas tinham a esperança, no começo, de conseguir o auxílio emergencial do governo e não precisar sair de casa. Só que tem todas essas burocracias que as pessoas não conseguiram resolver, muitas pessoas não têm qualidade de internet e não conseguiram baixar o aplicativo, aí o dinheiro do auxílio não vem. Isso também é um fator que faz as pessoas voltarem às ruas.”

Os locais onde vivem mais negros são justamente os com menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM). Os dez bairros com pior IDHM em São Paulo têm mais negros que a média da cidade. Já os dez com melhor IDHM têm menos negros que a média. Nos dez bairros com maior número absoluto de mortes, oito têm IDHM considerado médio, abaixo de 0,8. São justamente esses oito bairros onde a média de moradores negros está acima da média da cidade.

No Rio, bairros com mais negros que a média da cidade já acumulam mais mortes

Na capital carioca, os bairros com mais negros que a média da cidade já têm mais mortes em número absoluto que os bairros com menos negros.

O crescimento de casos na periferia e nas favelas levou essas regiões a registrarem cada vez mais falecimentos. Atualmente, Campo Grande, com mais de 50% de moradores negros, é o bairro com mais mortes. A região passou Copacabana, que antes era o local com maior número absoluto de falecidos pela Covid-19. Após Copacabana, Bangu e Realengo, dois bairros com maioria da população negra, ocupam o 3 e 4º lugar com mais mortes na cidade.

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A Rocinha, maior favela da cidade, já conta nove mortes nos dados oficiais. Médicos que atendem a comunidade contestam o número e apontam que já haveria 22 mortes na favela.

A relação entre quantidade de casos confirmados e mortes também é bastante diferente entre bairros ricos e pobres do Rio de Janeiro, o que pode apontar dificuldade de moradores das favelas e da periferia de fazerem exames. Na Rocinha, por exemplo, há mais que o dobro de mortes em relação aos casos confirmados que no Leblon. Os bairros com mais casos confirmados são Copacabana e a Barra da Tijuca.

No Amazonas, com colapso do SUS, brancos sobrevivem mais que negros

No Amazonas, entre as pessoas que desenvolvem quadros graves da Covid-19, são mais frequentes mortes de negros que brancos. Segundo a Pública apurou, a cada 2,4 negros em estado grave, há uma morte. Já entre brancos, uma morte foi registrada a cada 3,2 pacientes em situação grave.

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O estado, que foi o primeiro a ter lotação máxima de unidades de terapia intensiva para pacientes com Covid-19, tem registrado um aumento mais expressivo entre negros em estado grave que entre brancos. No final de abril, em menos de uma semana, a quantidade de pacientes negros em situação grave mais que dobrou.

A maioria absoluta das mortes no Amazonas são de negros: mais de 13 negros morreram para cada falecimento de branco. A secretaria de saúde já registrou cerca de 850 doentes negros em situação grave e mais de 340 mortes. Já entre brancos, foram 81 casos graves e 25 mortes. Os dados de raça e cor foram atualizados em 29 de abril.

Ministério da Saúde diz que não há estudos que apontem raça como fator de risco

Apesar dos dados mostrarem que negros tiveram maior aumento de óbitos e registram mais mortes entre hospitalizados, o Governo Federal não divulga em detalhes essas informações. Não há, por exemplo, a informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor ou o número de testes em negros, brancos e outros grupos.

Como explica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, não divulgar esses dados impede que profissionais de saúde, a imprensa, pesquisadores e mesmo a população acompanhem se a subnotificação em negros é maior que em brancos. A médica explica que negros dependem mais do Sistema Único de Saúde (SUS) — uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicava que, em
2008, a população negra representava 67% dos usuários do SUS.

“Se o acesso ao exame está difícil no sistema público, como você consegue saber se um paciente negro confirmou ou não a doença? E se há pessoas que sequer estão tendo a chance de serem atendidas, inclusive para internação, sabemos que a Covid-19 está subnotificada na população negra, mas não sabemos quanto”, analisa.

Foi o grupo de trabalho de saúde da população negra, da qual Borret faz parte, que pediu ao Ministério da Saúde que publicasse dados de raça/cor de mortos por coronavírus. O governo só passou a divulgar os dados no boletim referente a 11 de abril, sem detalhar dados de casos confirmados ou de testes. Questionado sobre a falta de dados mais completos, o ministério, já sob a gestão de Nelson Teich, chegou a afirmar que não há “estudos técnicos ou científicos que apontem cor ou raça como fator de risco da doença”.

“Nós sabemos disso, o problema não é raça, mas o racismo, que dificulta o acesso de negros à saúde. O acesso à saúde da população negra é muito pior que da população branca no país. E a gente não tem tempo, o coronavírus não dá tempo para fazermos um trabalho pedagógico sobre a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Precisamos que o Ministério esteja atento a essas questões o tempo todo, como está escrito na Lei.”, critica Borret.

Para Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR), a ausência de dados sobre raça e cor é um problema para a análise do impacto que a Covid-19 tem em diferentes grupos. “Em alguns lugares começaram a fazer análises sobre como a população negra tem sido afetada de forma desproporcional, como nos Estados Unidos, por exemplo. Isso pode estar relacionado a diversos outros fatores, mas é importante ter o dado para começar a fazer esse tipo de análise aqui no Brasil”.

O último boletim Transparência Covid-19, publicação semanal organizada pela OKBR que avalia a transparência dos estados e Governo Federal na divulgação dos dados da pandemia, apontou que 32% dos estados divulgam seus microdados. Dos estados que disponibilizam seus microdados, apenas o Espírito Santo disponibiliza a base incluindo dados sobre raça/cor; no entanto, essa informação não é preenchida em todos os casos registrados (dos 3208 registros coletados até o dia 3 de maio, 1094 tinham o campo raça/cor ignorado).

No último dia 5, a Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou que registro e divulgação de casos de coronavírus no país tenham obrigatoriamente informações sobre a raça/cor dos infectados.

Falta de dados sobre população negra é problema histórico no Brasil

A falta de dados oficiais sobre raça é histórica no país, afirma o advogado Daniel Teixeira. Ele é diretor do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), organização não-governamental voltada para a promoção da igualdade de raça e de gênero.

“Há vários fatores que podem explicar essa alta letalidade [da Covid-19 entre a população negra]. Justamente, ter informações melhores significa a gente, inclusive, confirmar ou até excluir a importância ou relevância de cada um desses fatores, conforme o caso. Porque aí está a riqueza que os dados podem fazer”, defende Teixeira, que diz que a falta deles pode ser “desastrosa”. O pesquisador pondera que a lacuna não ocorre apenas na área da saúde e é comum no país. “A falta desse tipo de recorte pode ser um impeditivo para que a gente tenha políticas públicas que deem conta dessa situação que, historicamente, desconsidera as dimensões de desigualdades estruturais no Brasil”, diz Teixeira.

A jornalista Christiane Gomes, coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, em São Paulo, e integrante do coletivo negro Ilú Obá de Min, afirma que a pandemia escancara a desigualdade racial do Brasil, “fruto de um passado colonial que persiste ainda hoje”. “No começo da pandemia, se dizia muito que o vírus não escolhe classe social nem raça. Mas isso é uma falácia e os próprios números que comparam a quantidade de mortes em bairros como o Morumbi e a Brasilândia exemplificam isso”, afirma.

Ela pontua que o problema não é somente um reflexo da pobreza, mas que a discussão também tem que considerar gênero e raça. “Por exemplo, quem trabalha mais no trabalho doméstico? São as mulheres negras. Quem trabalha mais nos serviços de estrutura, de segurança? Enfim, que é a base da pirâmide social brasileira? É a população negra. Então, é essa população que está mais vulnerável e é a que menos consegue fazer isolamento social. Estamos falando de um problema macro, o Brasil é um país que tem o racismo na sua estrutura”, analisa Gomes, que defende maior transparência de dados da pandemia provocada pelo novo coronavírus, com o objetivo de orientar a gestão pública.

Nos EUA, letalidade do coronavírus também é maior entre negros

O advogado Daniel Teixeira, diretor do Ceert, lembra que a falta de transparência sobre os dados raciais da pandemia também ocorreu em outros países, como os EUA, que oficialmente lidera o número de casos de infecções pelo novo coronavírus no mundo. “No CDC, Centers for Disease Control and Prevention, órgão que monitora os dados referentes à Covid-19 e outras doenças, também não se tem tido uma leitura ampla em relação aos dados”, pondera o especialista.

A pouca disponibilidade dos dados raciais levou a Johns Hopkins University, instituição que é referência na área de saúde no país, lançar um mapa mostrando quais estados norte-americanos têm produzido recortes raciais sobre a nova pandemia. De acordo com o mapeamento da universidade, apenas dois dos 50 estados norte-americanos, Illinois e Kansas, têm estatísticas raciais completas sobre casos confirmados, óbitos e testes para o novo coronavírus.

Desde a publicação do levantamento, houve melhora na transparência: o número de estados que disponibilizam dados raciais sobre os casos confirmados subiu de 34 para 42; já o número de estados que também disponibilizam dados raciais sobre as mortes provocadas pela Covid-19 subiu de 26 para 38.

“Eles estão monitorando e falando da importância para que o façam. É um apelo da universidade, para que isso seja considerado, tendo em vista o impacto desproporcional que já se verifica nos estados e cidades que já fazem esse monitoramento com recorte”, diz Teixeira.

Com os dados, foi possível atestar a maior letalidade da doença entre as comunidades negras no país, como mostraram reportagens da Reuters, sobre maior probabilidade de negros morrerem ao contrair Covid-19 e do Washington Post que repercutiu um estudo na Geórgia, que revelou desproporcionalidade da hospitalização de pessoas negras por Covid-19 no estado.

Teixeira alerta que os números disponíveis, nos EUA e no Brasil, ressaltam “a doença constante do racismo estrutural que se auto reproduz. “Essa é questão central do racismo. Não à toa que um dos movimentos mais fortes dos EUA hoje é o Black Lives Matter, as vidas negras importam. Essa afirmação se dá porque a morte [da população negra] desde sempre e cada vez mais é vista como parte da paisagem social. A ponto de haver pouca revolta com relação a essas mortes, em tão maior quantidade da população negra.”

 

31 Favelas e Complexos com Casos Confirmados: O Perigo das Subnotificações da Covid-19 em Favelas, por RioOnWatch[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog RioOnWatch, em 13 de maio de 2020.

Subnotificação Torna a Pandemia no Brasil a Mais Perigosa do Mundo

As subnotificações de casos e óbitos por Covid-19 no Brasil são gigantescas devido ao número insuficiente de testes realizados e a demora para liberar os resultados. O número alto de óbitos em relação ao número de casos confirmados e o súbito crescimento dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), além do aumento da capacidade de necrotérios em hospitais do Rio são evidências deste fenômeno.

Em abril, especialistas estimaram que para cada óbito confirmado por Covid-19 deveria ter até mais 9 que não foram notificados. O número de casos no Brasil deve ser 15 vezes maior do que declarado. O Brasil é agora o país com a taxa de contágio mais alta do mundo. Nas favelas cariocas as subnotificações explodem. A relação entre os números de óbitos e casos confirmados é duas vezes maior do que no restante da cidade.

Se no começo os efeitos da doença foram sentidos primeiro nos bairros nobres, agora o coronavírus está batendo com força nas favelas e periferias, mas os números oficiais atuais não refletem suficientemente esta realidade.

Comunidades Criam Próprias Ferramentas para Monitorar Vítimas

Até nesta área, mobilizadores de favela estão preenchendo a lacuna deixada pelo Estado. Comunicadores comunitários de várias favelas estão desenvolvendo seus próprios painéis digitais para seguir a evolução dos casos nas favelas cariocas e disponibilizar dados mais realistas. O jornal Voz das Comunidades criou o painel Covid-19 nas Favelas que mostra o número de casos e de óbitos confirmados por comunidades e sua evolução no tempo, com base em dados públicos.

Nesta quarta-feira, 13 de maio, o portal reportou 14 comunidades com 362 casos confirmados e um total de 114 óbitos. A contagem é baseada nos dados da prefeitura disponibilizados no Painel Rio Covid-19—e agora também contempla dados do governo estadual, Clínica da Família Zilda Arns, Clínica da Família Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria – ENSP, Clínica da Família Victor Valla, Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza, Clínica da Família Rinaldo De Lamare, Cms Dr Albert Sabin e Comitê SOS Providência.

O painel do Voz das Comunidades atualmente contabiliza Rocinha (92 casos confirmados), Manguinhos (42), Complexo da Maré (39), Morro da Providência (34), Mangueira (28), Jacaré (28), Complexo do Alemão (27), Cidade de Deus (23), Acari (22), Vidigal (13), Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (7), Jacarezinho (5), e Vila Kennedy (2).

O painel do Vozes contemplava somente dados do painel da prefeitura até esta semana. No entanto, dados compartilhados por várias Clínicas da Família—do Complexo do Alemão, Manguinhos, Jacarezinho, Rocinha, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo—revelavam que as unidades de saúde comunicavam os números de casos e óbitos com teste positivo muito mais rapidamente do que a prefeitura, e possuíam uma cobertura do território mais precisa. 

Por exemplo, a Clínica da Família Zilda Arns, que atua numa parte do território do Complexo do Alemão, criou um painel público próprio, atualizado todos os dias, para monitorar não só os casos e óbitos confirmados, mas também os casos suspeitos com síndrome gripal, com SRAG ou internados, e os recuperados. Também continha dados mais específicos sobre idade, sexo, sintomas e bairros de residência das pessoas contabilizadas. 

Dados da Prefeitura Inadaptados ao Monitoramento das Favelas 

Estas diferenças de dados são ocasionadas devido a escolha de quais bairros—definidos no painel da prefeitura—são categorizados como sendo favela, porque as delimitações dos bairros usadas no levantamento de casos pela prefeitura raramente correspondem às áreas das comunidades. 

Isso revela a amplitude da subnotificação de casos nas favelas cariocas: muitas comunidades fazem parte de um bairro maior, então seus casos não podem ser citados especificamente, são diluídos nos números totais da área onde estão localizados. 

Por exemplo, o território de Rio das Pedras faz parte da área de Jacarepaguá (133 casos) e do Itanhangá (33 casos), então os números de casos confirmados desta favela não são contabilizados pela prefeitura como sendo casos de coronavírus dentro da comunidade. Da mesma forma, os bairros de Pavuna (70 casos) e Costa Barros (27 casos) contém várias comunidades que não fazem parte dos números específicos das favelas. E o Morro da Providência (10 casos) fica dentro da Gamboa, no Centro. Os dados são de 12 de maio.

Relatos de várias partes da cidade demonstram esse fenômeno. Sejam nos dados da prefeitura ou dos painéis comunitários listados acima, todos só consideram favelas e complexos maiores. Isso deixa a grande maioria das favelas do Rio de Janeiro sem sequer dados públicos sobre seus casos. O RioOnWatch tem ciência de casos e mortes, por exemplo, em comunidades pequenas como Pica-Pau em Cordovil, Vila Parque da Cidade, Mata Machado, Tijuaçu, Asa Branca, e Tuiuti. Até favelas maiores como BorelComplexo da Penha e Gardênia Azul, temos notícias de casos, porém não estão enumerados nas listas e painéis citados acima. Outras fontes de mídia também têm reportado ainda outras comunidades impactadas como Vilar Carioca e os complexos São Carlos e Pedreira. É de se concluir, então, que o número de favelas impactadas já seja uma grande proporção dos territórios de favela na cidade.

Por isso, os dados do Painel Rio Covid-19 da prefeitura não atendem a necessidade urgente de monitoramento dos casos de Covid-19 específico das favelas do Rio de Janeiro, porque o governo utiliza delimitações que não correspondem aos limites territoriais das favelas. Como resultado, existe um apagão de dados sobre a realidade da pandemia nas favelas, razão pela qual ativistas de favelas acreditam que a situação nas comunidades já é muito mais crítica do que parece nos dados oficiais. 

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Zonas usadas pelo monitoramento dos casos de Covid-19: inadaptadas para cobrir os territórios das favelas

Esconder a Escala da Crise nas Favelas Consta Necropolítica

Os dados das unidades de saúde e os levantamentos comunitários já revelam que a prefeitura não está se preocupando em contabilizar casos em favelas, apesar das mesmas correrem o maior risco com a pandemiaSegundo o post da página no Facebook, Voz da Vila Kennedy, existe pelo menos 16 óbitos na Vila Kennedy; e de acordo com o painel da Clínica da Família Zilda Arns já são 10 óbitos no Complexo do Alemão, um número diferente dos 5 contabilizados no painel da prefeitura. A ocultação da escala da crise da pandemia nas favelas só reforça ainda mais as pessoas a acreditarem na retórica insidiosa do Presidente Bolsonaro, ocasionando a não adesão da população de favelas as medidas de prevenção como o isolamento social.

Minimizar o problema nega também o reconhecimento da necessidade de políticas públicas firmes e específicas para lidar com a situação nas favelas. No momento em que, as unidades de saúde pública do município confirmam que as autoridades não divulgam a totalidade dos casos nas favelas, pode-se afirmar que essa falta de transparência é uma política negligente e cruel do Estado para as favelas.

Também é difícil encontrar os números exatos de certas zonas de outras áreas de periferias do país como em São Paulo. Como resultado é impossível saber quantos casos de infectados pelo coronavírus e óbitos realmente existem nas favelas do Brasil. 

Os dados oficiais disponibilizados pelos governos municipal, estadual e federal, são muitas vezes a única fonte à qual a mídia e o grande público podem recorrer para avaliar e analisar a situação e informar a população sobre a pandemia nas favelas, cobrando e fiscalizando as soluções oferecidas pelas autoridades públicas. Sem estes dados, não temos base eficaz para o desenvolvimento e realização de políticas públicas ou cobrança às autoridades. 

A escalada da pandemia nas favelas só não está tão invisível, porque iniciativas como as citadas em algumas favelas da cidade do Rio, se multiplicam a cada dia. 

Lista de Favelas com Casos Confirmados[editar | editar código-fonte]

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Acari
Asa Branca
Borel
Caju
Cantagalo
Cidade de Deus

Complexo da Maré

Complexo da Pedreira

Complexo da Penha

Complexo do Alemão

Complexo São Carlos

Costa Barros
Jacaré
Jacarezinho
Mangueira
Manguinhos
Mata Machado

Morro da Providência

Parada de Lucas

Pavão-Pavãozinho

Pavuna (região)

Pica-Pau em Cordovil

Rio das Pedras
Rocinha
Tijuaçu
Tuiuti
Vidigal
Vigário Geral
Vila Kennedy

Vila Parque da Cidade

Vilar Carioca

Caso saiba de algum caso suspeito ou confirmado em alguma comunidade não citada nesta lista, por favor nos envie informações pelo WhatsApp 99832-5575 ou email contato@rioonwatch.org.br.

No momento está sendo divulgado um questionário de uma pesquisa coordenada pela Subsecretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI) e FAPERJ em parceria com a UERJUFRJ e Fiocruz, “com objetivo identificar a existência de prováveis casos de subnotificação nos sistemas de informação, para ajudar as ações de prevenção e promoção de saúde pelos órgãos governamentais”. Veja o questionário Subnotificação da COVID-19 no Estado do Rio de Janeiro aqui.

 

Em 4 semanas, mortes de pretos e pardos por Covid-19 passam de 32,8% para 54,8%[editar | editar código-fonte]

Dados publicados no editorial do dia 18 de maio de 2020, no Jornal G1.

Brancos, no entanto, ainda representam a maioria das hospitalizações pela doença. Dados foram divulgados pelo Ministério da Saúde nesta segunda-feira (18).

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Internações e mortes por Covid-19 — Foto: Cido Gonçalves/G1

A porcentagem de pacientes mortos por Covid-19 entre os pretos e pardos passou de 32,8% para 54,8% entre 10 de abril e 18 de maio, um período de quatro semanas. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (18) pelo Ministério da Saúde.

Já a porcentagem de pacientes brancos hospitalizados pela Covid-19, mesmo que em queda no mesmo período, é a maior: 51,40%. Os pretos e pardos, mesmo que tenham um índice maior no número de mortes, representam 46,7% das internações pela doença.

Esta nomenclatura de raça/cor é a mesma utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pretos e pardos são categorias diferentes e, juntos, podem ser classificados como negros.

Situação no país

O ministério também divulgou nesta segunda seu mais recente balanço de mortes e casos confirmados de Covid-19 no Brasil. Os principais dados são:

  • 16.792 mortes, eram 16.118 no domingo
  • Em 24 horas, foram mais 674 novas mortes registradas
  • 254.220 casos confirmados, eram 241.080 casos no domingo
  • Em 24 horas, foram mais 13.140 casos

De acordo com o ministério, 136.969 pacientes estão em acompanhamento (53,9% do total) e 100.459 estão recuperados (39,5%).

 

 

Operações policiais no RJ durante a pandemia: frequentes e ainda mais letais, por Rede de Observatórios da Segurança[editar | editar código-fonte]

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Material divulgado em 21 de maio de 2020.

A sucessão de mortes violentas e chocantes dos últimos dias no Rio de Janeiro demonstra que as operações policiais, e por extensão as polícias fluminenses, se tornaram instrumentos de matança e terror. No dia 18 de maio, segunda-feira, João Pedro Mattos, de 14 anos, foi assassinado em sua casa em São Gonçalo; ontem, 20 de maio, quarta-feira, o jovem João Victor Gomes da Rocha foi morto ao sair para comprar uma pipa, na Cidade de Deus, durante uma operação que interrompeu a entrega de cestas básicas na comunidade. As duas mortes ocorreram dias após uma outra ação no Complexo do Alemão, que deixou 13 mortos.

Desde 2019, o Observatório da Segurança RJ, um projeto do CESeC, monitora as ações policiais no estado, com base em informações divulgadas nos principais jornais, portais de notícias, grupos de WhatsApp e Telegram e perfis e páginas nas redes sociais. O levantamento dos dados de 15 de março, data do início das medidas de isolamento social no Rio, até 19 de maio mostra que as polícias fluminenses modificaram sua atuação no início da pandemia, mas logo voltaram a adotar o foco em operações violentas e letais.

Os dados sobre as operações monitoradas indicam que em março houve uma forte queda no número de operações em relação às realizadas em 2019. As operações com motivação "repressão ao tráfico de drogas" diminuíram, enquanto efetivos policiais passaram a ser empregados em ações relacionadas ao controle da pandemia do Covid-19.

No entanto, essa tendência não se manteve. Em abril, as operações policiais aumentaram no estado do Rio de Janeiro e superaram os números de 2019. O combate ao tráfico de drogas voltou a ser um dos focos principais das ações — como as sangrentas incursões em favelas, noticiadas nos últimos dias, vem mostrando.

Com o crescimento no número de intervenções, a letalidade policial também aumentou. Em abril de 2020, houve 57,9% mais mortes decorrentes de ação policial do que o mesmo mês de 2019. Em maio de 2020, até o dia 19, o total de vítimas fatais também superou o mesmo período no ano anterior. O advento da pandemia do novo coronavírus causou apenas uma breve redução nas ações violentas e letais que constituem o foco da atual política de segurança do governo do Rio de Janeiro. Em um momento em que a sociedade se mobiliza para salvar vidas, as forças policiais continuam a produzir mortes em níveis intoleráveis.

LEIA O ESTUDO COMPLETO AQUI!

 

Pesquisa sobre a Covid-19 nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, por SOS Favela[editar | editar código-fonte]

Feita entre 9 e 16 de maio de 2020, com base em cadastro de 32.037 famílias de 332 comunidades e 29 municípios, a pesquisa destaca o gênero/sexo, a faixa etária e o número de moradores por domicílio, relacionado ao nível de renda, das pessoas infectadas no estado do Rio de Janeiro.

LEIA A PESQUISA COMPLETA AQUI!

 

Estudo da Rede de Pesquisa Solidária (USP) propõe tributação de altas rendas para prorrogar auxílio emergencial[editar | editar código-fonte]

A projeção foi feita por pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária como forma de viabilizar a continuidade do benefício por mais tempo

Criado para aliviar a perda de renda da população afetada pela crise econômica gerada pela covid-19, há um debate público de que o auxílio emergencial de R$ 600,00 deveria ser mantido por mais tempo, podendo, ao parecer de pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária, ser financiado com recursos vindos de uma nova contribuição social emergencial sobre altas rendas. Até o momento, o governo hesita em prorrogar o benefício nesse valor; no máximo cogitam a possibilidade de concessão de R$ 200, o que levaria mais de 20 milhões de pessoas à situação de pobreza. Nove Projetos de Lei (PL) de parlamentares de oposição tramitam no Congresso Nacional sobre o tema, diferindo entre as propostas apenas o prazo que deverá se estender o auxílio do governo. A contribuição incidiria em rendas a partir de R$ 15 mil.

Esse é o assunto da Nota Técnica de número 8 da Rede de Pesquisa Solidária. O boletim da rede aponta as tendências recentes do mercado de trabalho durante a pandemia, com destaque para o crescimento das taxas de desocupação e os efeitos causados pela adoção da MP 936 – que permite redução de jornada de trabalho com corte proporcional do salário e a suspensão total do contrato de trabalho durante a pandemia do coronavírus. Também indicou caminhos para viabilizar a continuidade da Renda Básica Emergencial (RBE).

Segundo os pesquisadores da rede, o debate sobre o assunto é de enorme importância, uma vez que sua conclusão poderá ser responsável pelo agravamento maior ou menor da situação crítica de milhões de famílias que vivem em condições extremamente vulneráveis.

Continuidade da Renda Emergencial

Dada a gravidade da situação da economia e dos fortes impactos negativos sobre o emprego e a renda das famílias, há compreensão de que a RBE aprovada pelo Congresso Nacional dia 30 de março precisaria ser prolongada. Porém, de todas as propostas levadas a debate, não há indicação de fontes de financiamento. Atualmente, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional nove  PLs (PDT, PT, PSOL, DEM, PP, PSDB) solicitando extensão da RBE. Seis propõem que os benefícios sejam pagos pelo menos até 31 dezembro de 2020; um propõe renovação de três meses; outro, prorrogação até março de 2021; e, por fim, um dos projetos propõe que o auxílio seja permanente.

O mercado de trabalho e a pandemia

O mercado de trabalho foi duramente afetado pela pandemia da covid-19. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), de responsabilidade do Ministério da Economia, apontou um saldo negativo de mais de 1,067 milhão de postos de trabalho formais de março a abril; e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Contínua, mostrou um acréscimo de 4,9 milhões no contingente de desocupados no trimestre de fevereiro a abril de 2020 em relação aos anos anteriores (novembro/2018-janeiro/2019). O setor de Serviços foi o mais afetado, seguido do Comércio e Reparação e da Indústria de Transformação.

Como forma de obter um cenário mais próximo do atual, os pesquisadores da rede combinaram diversas fontes de dados – PNAD/Caged e dados do Ministério da Economia, que detectou, até o dia 26 de maio, que 8.154.997 trabalhadores formais fizeram algum tipo de acordo com seus empregadores.

Todos os cenários construídos indicam uma drástica redução da renda – com perdas maiores para aqueles que reduzem mais a jornada de trabalho e para aqueles que possuem maior renda, uma vez que o seguro-desemprego tem um valor máximo de R$ 1.813,03.

Impactos da Renda Básica Emergencial

Pesquisadores da rede fizeram duas projeções de desemprego, com dois valores para o benefício emergencial, o de R$ 600 e R$ 200. Em um cenário em que o desemprego é de 17,1%, as perdas na renda média observadas antes da incidência da RBE apenas seriam compensadas se o benefício fosse o de R$ 600. O benefício de R$ 200 manteria a renda domiciliar per capita em 6,5% abaixo de seu patamar observado antes da pandemia e uma taxa de pobreza de 13,8%. Isso significa cerca de 20 milhões a mais na situação de pobreza do que no estimado para o cenário com o benefício de R$ 600, que teria uma taxa de pobreza de 4,0%. Acompanhe na tabela abaixo:

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Contribuição Emergencial sobre Altas Rendas

Segundo a Caixa Econômica Federal, até o dia 26 de maio, 57,9 milhões de beneficiários receberam o auxílio emergencial, totalizando um valor de R$ 74,6 bilhões. Cerca de R$ 49,32 bilhões abaixo dos R$ 123,92 bilhões disponibilizados do crédito extraordinário das MPs 937/2020 e 956/2020.

Em um cenário de maior desemprego (26,6%) e maior cobertura (61,1 milhões de beneficiários), o valor mensal da RBE seria de R$ 40,5 bilhões por mês. Prorrogados por mais três meses, o total do gasto atingiria R$ 121,5 bilhões.

Embora seja um montante elevado, a proposta de uma Contribuição Emergencial sobre Altas Rendas, elaborada por Úrsula Dias, professora e pesquisadora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, e Peres e Fábio Pereira dos Santos, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), seria suficiente para cobrir esse custo. Essa contribuição incidiria sobre os rendimentos totais, isto é, a soma dos rendimentos tributáveis, exclusivos (já coletados na fonte) e isentos, onerando apenas aqueles com rendas mensais superiores a R$ 15.000 (extrato dos 10% mais ricos, conforme a distribuição dos declarantes do Imposto de Renda de Pessoa Física – IRPF).

A contribuição sobre altas rendas teria alíquotas progressivas, partindo de 10% para aqueles que tiveram rendimentos entre 15 e 40 salários mínimos (SMs), 15% para contribuintes situados entre 40 e 80 SMs e 20% para aqueles que auferiram 80 SMs. Nesse cenário, a arrecadação seria de R$ 142 bilhões, ou seja, um montante suficiente para estender a RBE de R$ 600 por até quatro meses.

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A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.

A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia (Ciência Política-USP). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (Sociologia-USP e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (Ciência Política-USP), Graziela Castello, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP (INCT-InCor). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o InCor.

A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise. “Distanciamento social, mercado de trabalho, rede de proteção social e percepção de comunidades carentes são alguns dos alvos de nossa pesquisa. Somos cientistas políticos, sociólogos, médicos, psicólogos e antropólogos, alunos e professores, inteiramente preocupados com o curso da crise provocada pelo coronavírus no mundo e em nosso país”, define Arbix.

As notas anteriores estão disponíveis neste link.

 

Mulheres Negras Decidem: Para Onde Vamos, por Instituto Marielle Franco[editar | editar código-fonte]

Entre quase 250 mulheres negras ativistas entrevistadas pelo Instituto Marielle Franco para a pesquisa Mulheres Negras Decidem - Para Onde Vamos, 62% afirmaram estar atuando no enfrentamento à pandemia de Covid-19. As mulheres entrevistadas responderam também a quantidade de pessoas que foram impactadas por suas ações e somando temos mais de um milhão e duzentos mil pessoas beneficiadas.

Dentre as mulheres negras ativistas que participam da nossa pesquisa, 93% acessaram o Ensino Superior, sendo 19% com superior incompleto, 24% com superior completo e 50% com pós-graduação concluída ou em andamento. Apesar do alto nível educacional, isso não se reflete na renda dessas mulheres, já que mais da metade, 57%, tem renda familiar de até 3 salários mínimos.

Além disso, foi perguntado quanto essas mulheres conseguiram arrecadar, até aquele momento, para realização de suas ações. A maioria dessas mulheres respondeu ter arrecadado até 3 mil reais. Ou seja, "somos capazes de fazer muito com pouco".

Baixe o Relatório “Mulheres Negras Decidem - Para Onde Vamos”, uma parceria do Instituto Marielle Franco e do Movimento Mulheres Negras Decidem e confira o que mulheres negras estão fazendo para enfrentar essa pandemia e quais soluções elas propõe para sairmos desta crise: AQUI.

 

A realidade de 14 milhões de favelados(as) no combate ao novo coronavírus, por Instituto Data Favela[editar | editar código-fonte]

A pesquisa realizou 3.321 entrevistas digitais, em 239 favelas, de todos os estados brasileiros entre os dias 19 e 22 de junho de 2020. Os entrevistados foram selecionados a partir de um conjunto de amostras pré-selecionado a fim de oferecer uma diversidade de região, idade e ocupação.

Nas favelas brasileiras, 80% das famílias estão sobrevivendo com menos da metade da renda que tinham antes da pandemia do novo coronavírus. Para 45% a renda diminuiu muito (menos da metade), enquanto 35% afirmam ter perdido toda a renda mensal que tinham antes da covid. Os que tiveram queda da renda pela metade são 11%, outros 5% tiveram queda menor que a metade e 4% não tiveram queda nos ganhos.

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Nas favelas de todo o Brasil, 41% das famílias que solicitaram o auxílio emergencial de R$ 600 ao governo federal em função da pandemia da covid-19 não conseguiram receber nenhuma das parcelas do benefício, segundo um levantamento do Instituto Data Favela. De acordo com o Data Favela, que é uma parceria entre o Instituto Locomotiva e a Central Única das Favelas (Cufa), quase sete (68%) em cada 10 famílias entraram com pedido do auxílio. Em 96% dos casos de pessoas que receberam, o benefício foi utilizado para a compra de alimentos. Produtos de higiene e limpeza também lideram a destinação dos recursos.

Entre as famílias de comunidades do país que receberam doações ou estão recebendo o auxílio emergencial, aprovado no final de março por deputados e senadores, oito entre 10 afirmaram que não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas mais básicas caso não tivessem recebido alguma doação.

Os entrevistados e entrevistadas pelo Data Favela também apontaram quem são as entidades que mais fizeram doações. Em primeiro lugar (69%) estão ONGs e empresas, seguidos de vizinhos, amigos e parentes, depois governos e, por fim, igrejas. Na ordem de doação estão alimentos, cesta básica, produtos de higiene, produtos de limpeza e dinheiro.

O estudo descobriu que as percepções sobre a pandemia entre moradores das favelas variam amplamente. Enquanto 52% acreditam que o Brasil está atualmente no meio da pandemia, 33% acreditam que a pandemia ou está em seu estágio final, ou já terminou, ou nunca existiu..

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Contudo, há muito mais consenso sobre a preocupação e o estresse que a pandemia trouxe. 89% expressaram ansiedade quanto à saúde de parentes mais velhos e 88% se preocupam sobre seu próprio bem-estar financeiro.

80% dos entrevistados relataram que estão tentando seguir as instruções de isolamento físico, com 39% dizendo que, apesar de tentarem, não conseguem sempre cumprir. Daqueles não seguindo medidas de prevenção, 72% atribuíram isso à necessidade financeira. Ao mesmo tempo, 45% acreditam que as medidas são desnecessárias e 9% admitem haver fatores políticos na sua falta de cumprimento das medidas. O Presidente Jair Bolsonaro encorajou seus apoiadores a interpretarem o coronavírus como uma “gripezinha” e criticou o distanciamento social.

CONFIRA O RELATÓRIO COMPLETO AQUI OU BAIXE AQUI.

 

A pandemia já tem nítido caráter de classe, por EcoDebate[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, em 06 de julho de 2020.

Estudo inédito em São Paulo demonstra: negros têm 2,5 vezes mais riscos de contrair a doença; e em bairros periféricos, prevalência é quase três vezes superior à das áreas ricas. É como se houvesse dois surtos distintos, dizem pesquisadores.

Por Marina Harriz, no EcoDebate

Pesquisa demonstra que nos bairros mais pobres da cidade a fração das pessoas infectadas é 2,5 vezes maior que nos bairros mais ricos. Enquanto na população mais pobre a prevalência é de 16%, nos bairros mais ricos ela é de 6,5%. No conjunto da cidade a prevalência é de 11,4%, um aumento de 2,4 vezes entre 4 de maio e 15 de junho.

A prevalência da COVID-19 na capital paulista tem cor da pele, classe social e nível de escolaridade, acompanhando a desigualdade social presente no município. É o que mostram os resultados da segunda fase do SoroEpi MSP – Inquéritos soroepidemiológicos seriados para monitorar a prevalência da infecção por SARS-CoV-2 no Município de São Paulo, projeto conjunto entre cientistas e médicos da Universidade de São Paulo e da Secretaria da Saúde do Estado com o apoio do Grupo Fleury, IBOPE Inteligência, Instituto Semeia e Todos pela Saúde (http://www.monitoramentocovid19.org/).

De acordo com os resultados, a soroprevalência, ou seja, a frequência de indivíduos com anticorpos contra o novo coronavírus, é 4,5 vezes maior em pessoas que não completaram o ensino fundamental se comparada com aqueles que concluíram o nível superior (22,9% versus 5,1%).

O levantamento também aponta que a soroprevalência é 2,5 vezes maior em pessoas adultas pretas do que brancas (19,7% contra 7,9%). Habitações com 5 ou mais pessoas apresentam soroprevalência quase duas vezes maior quando comparadas com residências com apenas um ou dois moradores (15,8% contra 8,1%). No total, a pesquisa aponta que 11,4% de moradores da capital com mais de 18 anos já foram infectados pelo novo coronavírus, um total de 958 mil pessoas.

Esses são os resultados da primeira de seis coletas seriadas que serão repetidas mensalmente

Em campo

Nesta fase do projeto, foram coletadas e analisadas 1.183 amostras de sangue em 115 setores censitários, sendo que 12 residências foram sorteadas em cada um desses setores, durante o período de 15 e 24 de junho de 2020. A capital paulista tem uma população de 8.407.202 habitantes com 18 anos ou mais. Para a realização da pesquisa, foram criados dois estratos na cidade: distritos com maior renda e distritos com menor renda, sendo que cada um deles corresponde a cerca de metade da população pesquisada.

Os participantes foram selecionados utilizando uma amostragem probabilística em dois estágios: setor censitário e domicílio. No primeiro estágio foram sorteados 115 setores censitários. No segundo estágio foram selecionados por sorteio 12 domicílios em cada setor. Todos os habitantes maiores de 18 anos das residências sorteadas foram convidados a participar. Após responderem um questionário, uma amostra de sangue foi colhida por punção venosa dos participantes. A quantidade de anticorpos contra o SARS-CoV-2 (IgG e IgM) foi medida usando o método de quimioluminescência.

Conclusão

A principal conclusão é de que a epidemia de SARS-CoV-2 no município de São Paulo pode ser entendida como duas epidemias com dinâmicas de propagação distintas, o que reflete as desigualdades sociais presentes no município. Além disso, mesmo não sendo perfeitamente comparáveis, considerando o início da coleta do projeto-piloto (4 de maio de 200) e desta segunda fase (15 de junho de 2020), estima-se que houve um aumento de 2,4 vezes (11,4% versus 4,7%) na soroprevalência dos moradores com 18 anos e mais.

Entenda o projeto piloto

Em maio de 2020, o projeto-piloto identificou na análise final dos dados que 4,7% (Intervalo de Confiança de 95%: 3,0 a 6,6) das pessoas residentes nos bairros Água Rasa, Bela Vista, Belém, Jardim Paulista, Morumbi e Pari, equivalente a uma população de 298.240 habitantes, já tiveram contato com o vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19. Os seis distritos foram selecionados por apresentarem as mais altas taxas de casos e/ou óbitos da capital naquele momento.

 

Mortes entre pretos e pardos por doenças respiratórias crescem mais do que entre brancos durante a pandemia[editar | editar código-fonte]

Por G1 - Originalmente publicado em 13 de julho de 2020, no G1.

Entre a população que teve a morte relacionada ao coronavírus, percentuais indicam 44% de mortes de brancos, 38,4% de pardos e 8,2% de pretos.

O registro de mortes por doenças respiratórias entre aqueles declarados pretos e pardos cresceu mais de 70% durante os meses de pandemia, se comparado ao mesmo período do ano anterior. O índice é superior ao registrado entre todas as outras raças. Os dados são do Portal da Transparência, divulgados nesta segunda-feira (13), com base em registros de óbitos feitos nos cartórios do país.

Os números são de mortes ocorridas entre 16 de março e 30 de junho de 2020, e mostram que os registros de mortes por doenças respiratórias cresceram 34,5% no período.

No recorte por raça, as mortes registradas por Insuficiência Respiratória, Pneumonia, Septicemia e Síndrome Respiratória Grave (SRAG) mataram:

  • 72,8% mais pardos
  • 70,2% mais pretos
  • 45,5% mais indígenas
  • 40,4% mais amarelos
  • 24,5% mais brancos

Mortes por causas naturais

As mortes por causas naturais entre aqueles declarados pretos e pardos cresceu mais de 30% durante os meses de pandemia, se comparado ao mesmo período do ano anterior.

Os números apontam que houve aumento de 13% no total geral de mortes por causas naturais.

Entre elas, houve:

  • 31,4% mais mortes de pardos
  • 31,1% mais mortes de pretos
  • 15,3% mais mortes de amarelos
  • 13,2% mais mortes de indígenas
  • 9,3% mais mortes de brancos

Em números absolutos:

  • 390.078 pessoas morreram de causas naturais no período
  • 181.591 são brancas
  • 121.768 são pardas
  • 25.782 são pretas
  • 3.948 são amarelas
  • 701 são indígenas

De acordo com os dados, 56.288 mortes por causas naturais não continham a informação sobre raça e cor.

Mortes por coronavírus

Os dados apontam que, nas mortes que tiveram causa relacionada à infecção por coronavírus, a proporção entre as raças da população é a seguinte:

  • 44,4% das mortes são de pessoas brancas
  • 38,4% das mortes são de pessoas pardas
  • 8,2% das mortes são de pessoas pretas
  • 1,5% das mortes são de pessoas amarelas
  • 0,24% das mortes são de pessoas indígenas
  • 7,2% das mortes são de pessoas com raça/cor ignorada

Mortes por doenças cardíacas

As mortes que tiveram as causas registradas como doenças cardíacas tiveram aumento de 0,7% no período.

Os registros que incluem AVC, Infarto, e demais doenças cardiológicas (que causam morte súbita, parada cardiorrespiratória e choque cardiogênico), indicam aumento por raça:

  • 13,7% mais pretos
  • 8,4% mais pardos
  • 2,2% mais indígenas

As populações identificadas como branca e amarela registraram queda no período. Para brancos, houve redução de 0,5%; para amarelos, queda de 0,3%.

Maior risco entre pretos, pardos e indígenas

Um estudo, coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) revelou que a prevalência do coronavírus Sars-Cov-2 entre a população indígena urbana (5,4%) é cinco vezes à encontrada na população branca (1,1%).

O levantamento avaliou apenas moradores de cidades brasileiras e não entrevistou indígenas que vivem em aldeias. Pretos e pardos também apresentaram maior proporção de testes positivos que brancos, respectivamente 2,5% e 3,1%.

Já um outro estudo, feito pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde,da PUC-Rio, indica que pretos e pardos morreram por Covid-19 mais do que brancos no Brasil.

"O que a pandemia tem evidenciado é o que vários estudos já mostravam em relação ao maior prejuízo da população pobre e negra ao acesso da saúde. A Covid-19 encontra um terreno favorável porque essas pessoas estão em um cenário de desigualdade de saúde e de precarização da vida", afirma Emanuelle Góes, doutora em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do Cidacs/Fiocruz sobre desigualdades raciais e acesso a serviços de saúde.

Entre os motivos, os pesquisadores apontam:

  • acesso a serviços de saúde
  • condições de vida da população mais pobre
  • falta de acesso ao saneamento básico
  • fome ou necessidade de trabalhar para poder pagar a comida do dia

 

Boletim Socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas, por Fiocruz-RJ[editar | editar código-fonte]

A Fundação Oswaldo Cruz lançou no dia 13 de julho de 2020 o primeiro Boletim Socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas. De acordo com a publicação, o baixo número de casos e óbitos registrados nos bairros com “alta e altíssima concentração de favelas” se contrapõem às taxas de letalidade nessas regiões, que chegam a ser o dobro em relação aos bairros que não têm favelas. A publicação também aponta que a Covid-19 é mais letal nos homens do que mulheres e o maior percentual de óbitos na população negra nos territórios periféricos. O Boletim, que estará disponível no Observatório Covid-19 da Fiocruz, é uma iniciativa da Sala de Situação Covid-19 nas Favelas. 

A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Jussara Angelo explica que, em decorrência da complexidade de se obter dados em uma escala mais detalhada e que dê visibilidade à magnitude da Covid-19 nas favelas cariocas, o boletim foi elaborado integrando três fontes de informação. Foram analisados dados oficiais do Painel da Prefeitura*, dados dos painéis das unidades de saúde e do Voz das Comunidades. A publicação conta também com narrativas de interlocutores do território, que, através de suas experiências de vida e trabalho em diferentes regiões da cidade, colaboraram com a produção do material. 

Segundo dados do Censo 2010, estima-se que 22% dos habitantes do município do Rio de Janeiro moram em áreas de favelas. Para entender a distribuição da Covid-19 na cidade, construiu-se uma tipologia urbana, cuja classificação dividiu os bairros em cinco áreas: sem favelas, concentração baixa, concentração mediana, concentração alta e concentração altíssima.

A taxa de incidência por Covid-19, conforme a tipologia utilizada, mostrou que as áreas classificadas como “sem favelas” e “baixa concentração de favelas” são as que apresentaram maiores taxas de incidência da doença, respectivamente, de 115,58 por 10mil habitantes e 74,98 por 10 mil habitantes, ambas acima da média do município do Rio de Janeiro (70,71 por 10 mil habitantes). Os bairros classificados como “concentração altíssima de favela” apresentaram uma taxa de 23,94 por 10mil habitantes, de acordo com o boletim. 

Já a taxa de mortalidade por covid-19 apresentou o mesmo padrão da taxa de incidência. O registro foi maior nos bairros "sem favelas" e de "concentração baixa de favelas", com taxa, respectivamente, de 10,67 e 8,90 por 10 mil habitantes.

Porém, nos bairros Complexo do Alemão, Jacarezinho, Acari, Rocinha, Costa Barros, Vidigal e Barros Filho, considerados de “altíssima concentração de favelas”, a taxa de letalidade da doença é de 19,5%, ou seja, o dobro dos “bairros que não têm favelas” (9,2%) e muito acima da taxa do município (11,7%). “Além da questão da baixa testagem influenciando este indicador, a alta letalidade também pode indicar uma maior gravidade por covid-19 nesses territórios, que podem ser influenciadas pela presença de doenças pré-existentes como hipertensão, ou fatores de risco como tabagismo, além da dificuldade de acesso aos serviços de saúde”, afirmou Bianca Leandro, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e uma das autoras.

Taxa letalidade

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“A baixa testagem na cidade do RJ e a desigualdade na capacidade de testagem entre as áreas analisadas têm grande influência na invisibilidade dos casos e mortes por Covid-19 no sistema de saúde. A letalidade nos bairros com alta concentração de favelas nos alerta para isso”, afirmou o pesquisador André Périssé, da Ensp/Fiocruz e um dos autores.
 
Gênero e raça

O boletim revela que apesar da ausência de preenchimento da variável raça/cor em 45% das notificações (22.416), a ocorrência da covid-19 é maior na população negra nos bairros classificados como “concentração altíssima”, “concentração alta” e “concentração mediana” de áreas cobertas por favelas. Nos bairros de “concentração baixa”, o percentual da população negra (25,6%) é muito próximo a ocorrência na população branca (27,6%). 

Com relação ao gênero, em todas as tipologias urbanas, as maiores taxas de mortalidade são do sexo masculino. Nos bairros com “altíssima concentração de favelas”, o valor da taxa de mortalidade entre os homens é de, aproximadamente, 6 a cada 10 mil habitantes do sexo masculino, enquanto nos “bairros sem favelas” chega a quase 14 por 10 mil habitantes. A taxa de letalidade apresentou padrão similar, sendo maior que a do sexo feminino em todas as tipologias urbanas. “Além do fator de realização da testagem, o diferencial entre homens e mulheres pode ocorrer em virtude da maior vulnerabilidade dos homens, busca tardia dos serviços de saúde e demais quadros de comorbidades”, afirmam, os autores. 

Publicação mensal, o Boletim Socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas é uma iniciativa da Sala de Situação Covid-19 nas Favelas, vinculada ao Observatório Fiocruz. O boletim foi desenvolvido pelos pesquisadores Jussara Rafael Angelo e André Périssé, da Ensp/Fiocruz, e Bianca Leandro, da EPSJV/Fiocruz. Na Fundação, tem parceria do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) e da Coordenação de Cooperação Social (CCS/Fiocruz). 

*Foram utilizados dados oficiais do município do Rio de Janeiro, disponibilizados no painel da prefeitura, coletados até o dia 21 de junho de 2020.

 

Pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança mostra impacto da política de segurança do Rio de Janeiro durante a pandemia[editar | editar código-fonte]

A divulgação dos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) de junho de 2020 mostrou que a política de segurança praticada no Rio de Janeiro, cada vez mais baseada em operações policiais em favelas, deixa mortos e afeta a vida das comunidades – mas não tem impacto na criminalidade. É o que mostra pesquisa realizada pela Rede de Observários da Segurança.

Em 5 de junho, o ministro Edson Facchin, do STF, concedeu uma liminar, no processo conhecido como ADPF das Favelas pela Vida, que determinou a suspensão de operações policiais em favelas durante a pandemia, a não em circunstâncias especiais. 

Resultado: o número de mortos por intervenção policial caiu de 129, em maio de 2020, para 34, em junho. Uma redução de 74%.

Os defensores da política de confronto poderiam imaginar que a violência iria aumentar. Mas não foi o que aconteceu. Crimes violentos letais em geral, homicídios dolosos e roubos de carga também se reduziram. 

Houve aumento de 15% dos roubos de rua, que não tem relação com as operações em favelas.

A política do “tiro na cabecinha” não é a única saída para a segurança pública no Rio de Janeiro.

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Dados apresentados em 18 de julho de 2020.

 

Pandemia sem água na torneira, por Amanda Rossi e Renata Buono[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado na Revista Piauí, em 27 de julho de 2020.

Para 9,6 milhões de casas brasileiras, a recomendação de lavar as mãos para evitar o coronavírus não é trivial. São casas que não estão ligadas à rede de água, segundo a última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, do IBGE. O número corresponde a todas as casas dos estados do Rio de Janeiro e de Pernambuco, juntos. Outras 34 milhões de residências não têm esgoto, o que equivale a metade das casas do país. Sem saneamento adequado, os brasileiros ficam mais doentes. O país registra 342 mil internações hospitalares por doenças que poderiam ser evitadas se houvesse pleno acesso a água e esgoto. Esta semana, o =igualdades retrata as condições de saneamento do país.

No Brasil, uma de cada sete casas não está ligada na rede de água. No total, são 9,6 milhões de residências sem água na torneira – equivalente aos estados do Rio de Janeiro e de Pernambuco, juntos.

O Nordeste concentra 5 de cada 10 das casas não ligadas à rede água. Em seguida, está o Norte, com 3 de cada 10. O Sudeste tem 1 de 10. Sul e Centro-Oeste dividem o restante.

Estar ligado à rede de água não significa poder ligar a torneira a qualquer hora. De cada 5 municípios com abastecimento de água, 1 enfrentou racionamento – a maior parte deles devido a seca ou estiagem.

O Brasil desperdiça muita água. A cada 10 litros captados, 4 ficam pelo caminho, em vazamentos diversos. Apenas os 6 litros restantes chegam às torneiras das casas brasileiras.

A situação do esgoto é mais grave. No país, 34 milhões de casas não estão ligadas à rede de esgoto. Isso equivale a metade das residências do país.

A cobertura de esgoto em São Paulo é 30 vezes a do Pará. Enquanto em São Paulo 92% das casas têm acesso a esgoto, no Pará são apenas 3%.

Além da falta de água e esgoto, o Brasil lida com a precariedade das habitações. Entre 100 brasileiros, 3 vivem em casas sem um banheiro exclusivo para a família, precisando recorrer a banheiros de terceiros ou mesmo a outras soluções.

O Brasil tem um alto número de internações por doenças provocadas por saneamento inadequado. Foram 342 mil em 2016, último ano com dados disponíveis. É mais do que as internações por acidentes de trânsito no SUS. Para cada 10 pessoas internadas por saneamento inadequado, o SUS internou outras 6 pessoas por acidentes de trânsito.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

LEIA A ANÁLISE COMPLETA AQUI.

 

Radar Covid-19 nas Favelas, por Observatório COVID-19 Fiocruz-RJ[editar | editar código-fonte]

Radar COVID-19, Favelas é um informativo produzido no âmbito da Sala de Situação Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, vinculada ao Observatório COVID-19 da Fiocruz. Estruturado com base no monitoramento ativo (vigilância de rumores) de fontes não oficiais – mídias, redes sociais e contato direto com moradores, coletivos, movimentos sociais, instituições e articuladores locais – busca sistematizar, analisar e disseminar informações sobre a situação de saúde nos territórios selecionados, visando promover a visibilidade das diversas situações de vulnerabilidade e antecipar as iniciativas de enfrentamento da pandemia.

Os relatos são coletados por meio da constituição de uma rede de interlocutores, valorizando a produção compartilhada de conhecimento, o acesso e a participação ativa de moradores de favelas e de seus movimentos sociais.

CONFIRA AS EDIÇÕES AQUI: Radar Covid-19 nas Favelas (boletim)

 

Favelas do Rio têm mais mortes por Covid-19 que outros países do mundo, por Voz das Comunidades[editar | editar código-fonte]

Dados publicados no jornal Voz das Comunidades, por Amanda Botelho, em 10 de agosto de 2020.

Comunidades apresentam mais óbitos pelo novo coronavírus que estados do Brasil e países do mundo

Os casos de Covid-19 crescem a cada dia no mundo, no Brasil e nas favelas do Rio de Janeiro. As 25 comunidades monitoradas pelo Voz das Comunidades, apresentam maior número de óbitos por Covid-19 que em diferentes estados do Brasil e países do mundo.

De acordo com o Painel Covid-19 nas Favelas, são 644 mortes pelo novo coronavírus em 25 favelas do Rio. O número ultrapassa estados como Mato Grosso do Sul com 509 óbitos, Amapá com 602, Tocantins com 547, Roraima com 547 e Acre com 561 mortos por Covid-19. Só no estado do Rio de Janeiro são 178.850 casos confirmados e 14.080 mortes. 

Os números também assustam quando comparados a outros países. As favelas monitoradas apresentam mais mortes por Covid-19 que Paraguai, Uruguai e Venezuela somados. O Complexo da Maré lidera o ranking do painel com 493 casos confirmados e 90 óbitos por Covid-19, com uma diferença de dois óbitos a mais que em todo o país de Cuba, com 88 mortes. Além disso, o total de 4.557 casos confirmados nessas favelas é maior que o número de casos em 105 diferentes países do mundo. 

Há sete meses atrás, foi diagnosticado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. Hoje, são mais de 3 milhões de casos confirmados no país que já ultrapassou a marca de 100 mil mortos. Em média, são registrados mil mortes por dia. O Brasil é o segundo país com maior número de casos e óbitos pelo novo coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais de 162 mil óbitos e mais de 5 milhões de casos confirmados.

Apesar da flexibilização social ainda não há cura para a Covid-19, o vírus está circulando e os cuidados básicos são necessários. Portanto, vale ressaltar que pandemia não acabou.

 

Proibição das operações policiais: o que mudou na Baixada Fluminense, por Giselle Florentino e Rayssa Pereira[editar | editar código-fonte]

Dados originalmente publicados no site da Iniciativa Direito, Memória e Justiça Racial, em 21 de agosto de 2020.

Após dois meses da proibição da realização de operações policiais durante o período de isolamento social em todo o território do Rio de Janeiro, a IDMJR continua sistematizando os principais impactos da liminar expedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,  Edson Fachin –  ressalta-se que esta liminar foi expedida antes dos pareceres do STF para ADPF 635¹.

No dia 06 de junho de 2020 o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, decretou a completa proibição de operações policiais durante a pandemia de Covid-19 no Rio de Janeiro. O que deveria significar a não realização de operações policiais em favelas e periferias, porém, essa não foi a realidade. A IDMJR está monitorando os registros² de operações policiais na Baixada Fluminense e os dados mostram que a liminar do STF não está sendo cumprida.

No 2º mês de execução da liminar que impede as operações policiais no território fluminense, identificamos um total de 26 operações policiais ocorridas na Baixada Fluminense, com 5 pessoas mortas e 6 pessoas feridas. O registro de operações policiais triplicou na Baixada apenas no mês de julho!

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A IDMJR identificou que após 60 dias de proibições de operações policiais em todo o território fluminense ocorreram 34 operações policiais realizadas apenas na Baixada Fluminense, mesmo em um momento que juridicamente as operações não poderiam ocorrer devido a pandemia de Covid-19. 

O Batalhão que mais realizou operações policiais é o 15ºBPM, de Duque de Caxias, com um total de 9 operações em julho. Tivemos 7 operações em Japeri (24ºBPM), 3 operações em Belford Roxo (15ºBPM), 3 em São João de Meriti (21ºBPM), 2 em Guapimirim (34ºBPM) e 1 Nova Iguaçu (34ºBPM).

Ressalta-se que há uma intensificação nas operações policiais em determinadas áreas, como nos municípios de Duque e Caxias e Belford Roxo, a maior parcela das operações policiais ocorreram em Roseiral e no Complexo da Manguerinha. São comunidades que possuem um forte controle de uma facção específica do tráfico e que convive com constantes ataques das milícias. 

Ademais, Japeri também foi alvo intenso da realização de operações policiais, principalmente na área de Engenheiro Pedreira, o domínio do território está em ampla disputa entre facções de tráficos e milícias. A ocorrência de operações policiais tendem a enfraquecer a atuação de facção de tráficos e com isso abre um amplo espaço para tentativas de controle das milícias na área.

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Lembrando que qualquer tipo de operação policial durante a quarentena está proibida – desde que em circunstâncias excepcionais. Portanto, todas essas ações são ilegais e descumpre uma liminar do STF. Outra questão que nos chama atenção são que essas operações sempre acontecem em territórios dominados por uma facção de tráfico específica e que também é rival das frações de milícias da Baixada. Qual seria o motivo para o Estado escolher apenas essas áreas para realizarem operações?

A IDMJR identificou que ocorreu um amplo descumprimento da liminar do STF. Pois, não houve interrupção das operações policiais mesmo durante a pandemia na Baixada Fluminense. Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública – ISP, ocorreu também um aumento de 30% nos casos de autos de resistência na região.

Por isso, garantir o cumprimento da suspensão operações policiais e todos pareceres deferidos pelo STF da AdPF 635 são imprescindíveis para impedir a continuação de uma política de confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que apenas resultam em mortes do povo negro.

 

Panorama Nacional: monitoramento da atuação do poder público no contexto da pandemia de Covid-19, por Articulação por Direitos na Pandemia[editar | editar código-fonte]

Divulgado em 14 de setembro de 2020, no blog do Observatório das Metrópoles.

A pandemia da Covid-19 trouxe para o Brasil uma gravíssima crise sanitária, econômica, política e social, com brutal piora nas condições de vida, sobretudo das populações mais pobres e vulnerabilizadas do país. Preocupadas com o impacto da pandemia para a segurança, saúde e dignidade da população de comunidades, periferias e grupos vulnerabilizados, dezenas de entidades, coletivos, movimentos sociais e organizações populares formaram uma Articulação Nacional de Redes e Entidades da Sociedade Civil pelo combate ao Covid-19 nas Periferias e Grupos Vulnerabilizados.

A Articulação vem monitorando a atuação e ausências do poder público no contexto da Pandemia a partir das vivências e realidades dos grupos e comunidades vulnerabilizados, com o objetivo de disputar narrativas e dar visibilidade a omissões e violações de direitos, e para incidir por políticas públicas e ações imediatas e estratégicas na perspectiva do direito à cidade e justiça social. O monitoramento foi sistematizado, apresentando de forma sintética os resultados levantados a partir dos diálogos em territórios e com grupos específicos.

O estudo ouviu lideranças e representantes de 195 comunidades e grupos, em 30 cidades e 15 estados do Brasil, entre 28 de maio até 3 de julho de 2020. Os dados foram coletados por meio de entrevistas e questionários. As perguntas foram direcionadas para os seguintes públicos temas prioritários:

Público-alvo:

A. Residentes em comunidades, favelas, assentamentos precários
B. População em situação de rua
C. Catadoras e catadores de resíduos sólidos

Temas prioritários:

1. Apoio Humanitário / Financeiro
2. Acesso à Informação
3. Acesso a Serviços Básicos
4. Condições de Moradia / Abrigamento
5. Condições de Mobilidade
6. Acesso a Serviços de Saúde e Assistência Social
7. Militarização dos territórios
9. Gênero e violência doméstica

A sociedade civil contribuiu com muito do que foi a resistência e a proteção das pessoas em relação ao COVID-19 nas periferias e com grupos vulneráveis. Esse monitoramento constata que de fato o apoio do poder público foi muito limitado e em alguns casos foi inexistente. Neste momento em que as cidades estão retomando as atividades, é fundamental a constatação de que muitas das iniciativas do poder público que tiveram algum nível de proteção à população precisam continuar e, em alguns casos, é necessário ainda mais medidas de atenção a esta população, que está mais exposta ao risco da pandemia.

ACESSE AQUI A PESQUISA 'PANORAMA NACIONAL'!
 

Quatro meses de proibição das operações policiais no Rio de Janeiro, por Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial[editar | editar código-fonte]

Relatório divulgado originalmente em 19 de setembro, no site da IDMJR, por Giselle Florentino e Rayssa Pereira.

Após 4 meses da proibição da realização de operações policiais durante o período de isolamento social em todo o território do Rio de Janeiro, a IDMJR segue acompanhando e sistematizando os principais impactos da liminar expedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,  Edson Fachin –  ressalta-se que esta liminar foi expedida antes dos pareceres do STF para ADPF 635¹.

O que deveria significar a não realização de operações policiais em favelas e periferias, porém, essa não é a realidade. A IDMJR está monitorando os registros² de operações policiais na Baixada Fluminense e os dados mostram que a liminar do STF não está sendo cumprida, inclusive que há um tendência do aumento das operações policiais para níveis anteriores ao da liminar.

Ao longo de 4 meses de execução da liminar que impede as operações policiais no território fluminense, identificamos um total de 68 operações policiais ocorridas apenas na Baixada Fluminense resultando em 14 pessoas mortas e 15 pessoas baleadas e/ou feridas.

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Estamos assistindo a retomada das operações policiais, ressaltamos que qualquer tipo de operação policial durante a quarentena está proibida – desde que em circunstâncias excepcionais. Portanto, todas essas ações são ilegais e descumpre uma liminar do STF.

No mês de setembro a Polícia Militar realizou 17 operações na Baixada Fluminense, com 5 pessoas assassinadas e 3 feridas. Sendo o 24ºBPM, o Batalhão que mais realizou operações policiais, um total de 10 operações em apenas neste mês. Tivemos 2 operações realizadas pelo 34ºBPM, 2 operações do 21ºBPM, 1 pelo 15ºBPM, 20ºBPM e pelo 39ºBPM.

Em relação aos municípios mais afetados com operações policiais, Itaguaí sofreu com 10 operações policiais em um único mês. Não é uma surpresa o município receber o maior número de operações policiais neste momento, dado o atual enfrentamento das polícias a uma das maiores frações de milícias do Rio de Janeiro, que justamente é sediada nesta região.

Ao contrário do cenário do mês anterior, que as operações policiais aconteceram em áreas de domínio do tráfico, neste momento identificamos um aumento de operações policiais em áreas de um determinado domínio de uma fração de milícias específica. Ressalta-se que nomeação do novo Secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski, impactou o quadro organizacional das Delegacias e Batalhões da Baixada foram completamente alterados, inclusive com a chegada de mais 100 policiais para ação ostensiva em Nova Iguaçu por conta do PROEIS.

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Atualmente assistimos a reorganização do poder das milícias na Baixada Fluminense mesmo durante a pandemia, que passa a ter uma maior influência das lideranças das frações de milícias de Parada de Lucas. Os territórios estão em franca disputa entre facções de tráficos e também sob a égide de novos acordos das milícias e que se relacionam diretamente com a eminência do período eleitoral.

Por isso, lançamos o Zap Denúncia, um canal para monitorar o cumprimento da suspensão das operações policiais na Baixada Fluminense, bem como, uma ferramenta para recebimento de denúncias de qualquer tipo de violações de Estado sobre Segurança Pública que aconteça na Baixada.

A IDMJR identificou que ocorreu um amplo descumprimento da liminar do STF. Afinal, não ocorreu a interrupção das operações policiais mesmo durante a pandemia na Baixada Fluminense. Por isso, garantir o cumprimento da suspensão operações policiais e todos pareceres deferidos pelo STF da ADPF 635 são imprescindíveis para impedir a continuação de uma política de confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que apenas resultam em mortes do povo negro.

 

Boletim Socioepidemiológico Covid-19 nas Favelas 2ª edição, por Fiocruz-RJ[editar | editar código-fonte]

O 2° Boletim Socioepidemiológico Covid-19 nas Favelas mostra que o contexto de baixa testagem para Covid-19 no município do Rio de Janeiro ainda é uma realidade. A maior frequência de casos da doença foi observada nos bairros sem favelas e de baixa concentração destas. O estudo analisou os dados oficiais disponibilizados pela prefeitura de 22 de junho a 28 de setembro.

Segundo a análise, os bairros com alta e altíssima concentração de favelas apresentaram no total 2.529 casos de Covid-19 (5% do total do município) e 111 óbitos (6% do total do município) pela doença. A iniciativa tem como objetivo analisar a Covid-19 nas favelas do Rio do Janeiro, abordando indicadores como frequência, incidência, mortalidade e letalidade por sexo, raça/cor e idade. 

Boletim Socioepidemiológico Covid-19 nas Favelas é elaborado integrando dados oficiais do Painel da Prefeitura, dados dos painéis das unidades de saúde, dados populacionais e cartográficos obtidos no Instituto Pereira Passos e do jornal comunitário Voz das Comunidades. A pesquisa conta também com narrativas de interlocutores do território que, através de suas experiências de vida e trabalho em diferentes regiões da cidade, colaboraram com a produção do material. 

O Boletim é um produto da Sala de Situação Covid-19 nas Favelas, vinculada ao Observatório Covid-19 da Fiocruz. A Sala tem diversos objetivos, tais como a produção de informação para apoiar o monitoramento epidemiológico e social da Covid-19 em favelas, inicialmente na cidade do Rio de Janeiro. 

De acordo com dados do Censo 2010, estima-se que 22% dos habitantes do município do Rio de Janeiro moram em áreas de favelas. Para entender a distribuição da Covid-19 na cidade, construiu-se uma tipologia urbana, cuja classificação dividiu os bairros em cinco áreas: sem favelas, concentração baixa, concentração mediana, concentração alta e concentração altíssima.

CONFIRA O BOLETIM AQUI.

 

6 meses de proibição das operações policiais, por Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial[editar | editar código-fonte]

Por Giselle Florentino e Rayssa Pereira, publicado em dezembro de 2020, no site da IDMJR.

Chegamos aos 6 meses da proibição da realização de operações policiais durante o período de isolamento social em todo o território do Rio de Janeiro, a IDMJR segue acompanhando e sistematizando os principais impactos da liminar expedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,  Edson Fachin no dia 06 de junho de 2020 –  ressalta-se que esta liminar foi expedida antes dos pareceres do STF para ADPF 635¹.

O que deveria significar a não realização de operações policiais em favelas e periferias, porém, essa não é a realidade. A IDMJR está monitorando os registros² de operações policiais na Baixada Fluminense e os dados mostram que nos últimos meses ocorreu o aumento de operações policiais evidenciando que a liminar do STF não está sendo cumprida, inclusive que o patamar de operações policiais realizadas nos território volta ao nível anterior da expedição da liminar.

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Ao longo de 6 meses de implementação da liminar que impede as operações policiais no território fluminense, identificamos um total de 171 operações policiais ocorridas apenas na Baixada Fluminense.  Sendo 89% das operações policiais realizadas na região são feitas pela Polícia Militar e 11% pela Polícia Civil.

Estamos assistindo ao completo descaso no cumprimento da liminar que proíbe as operações policiais durante a quarentena – desde que em circunstâncias excepcionais. Portanto, todas essas ações que continuam acontecendo no território são ilegais e descumpre uma liminar do STF.

Em 6 meses foram 171 operações policiais realizadas na Baixada Fluminense que resultaram em 41 pessoas assassinadas e 53 pessoas feridas e/ou baleadas. A maior parcela das operações policiais foram motivadas para apreensão de drogas e retiradas de barricadas. Logo, não se apresenta como casos excepcionalidade ou imprescindível para a segurança pública. Apenas uma escolha política do Estado do Rio de Janeiro para descumprimento da liminar do STF e a continuidade de uma política de segurança pública genocida.

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Após 8 dias das mortes de Emily e Rebeca em Caxias, a Baixada Fluminense-RJ continua sendo um território de violações do Estado. Mais duas famílias foram assoladas pela violência policial, a execução de 02 jovens negros, os amigos Edson Júnior, 20 anos e Jordan Natividade ,18 anos, assassinados pela Polícia Militar em Belford Roxo.

Em que qualquer jovem negro em uma moto, tornou-se argumento para a Polícia assassinar e executar corpos nas favelas e periferias. Neste caso, mesmo após a tortura e a execução, os corpos dos jovens foram desovados no Bairro Babi (Belford Roxo) – uma área de controle da milícia e que possui um longo histórico de Desaparecimentos Forçados. Uma evidente forma de tentar encobrir o assassinato dos jovens.

A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial já enviou uma representação para o Gaesp/MPRJ cobrando a responsabilização do Estado.

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Durante os 6 meses de completo descumprimento da liminar do STF, a IDMJR identificou que apenas 5 Batalhões são responsáveis por 78% de todas as operações policiais que ocorrem na Baixada Fluminense. O 24º BPM foi o que mais realizou operações policiais durante a pandemia de COVID-19, um total de 37 operações na Baixada. Seguido pelo 15º BPM com 36 operações policiais, 26 operações do 39ºBPM, 21 operações do 21ºBPM e 14 operações do 34°BPM.

Em relação aos municípios mais afetados com operações policiais nesses 6 meses de execução da liminar do STF, Duque de Caxias e Belford Roxo foram os municípios que mais registraram operações policiais, com 38 operações em Caxias e 31 operações Belford Roxo somente em setembro. São áreas que as frações das milícias estão disputando com o tráfico para obter o domínio e a lucratividade do território.

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Apenas 5 municípios da Baixada Fluminense concentram 66% das operações policiais realizadas em toda a região. Dada a reorganização do poder das milícias na Baixada Fluminense mesmo durante a pandemia, que passa a ter uma maior influência das lideranças das frações de milícias de Parada de Lucas. Os territórios estão em franca disputa entre facções de tráficos e também sob a égide de novos acordos das milícias. Haja vista, as novas frentes de atuação das milícias, como falsificação de produtos – desde cervejas à cosméticos femininos.

A IDMJR identificou que ocorreu um amplo descumprimento da liminar do STF. Afinal, não ocorreu a interrupção das operações policiais mesmo durante a pandemia na Baixada Fluminense. Por isso, garantir o cumprimento da suspensão operações policiais e todos pareceres deferidos pelo STF da ADPF 635 são imprescindíveis para impedir a continuação de uma política de confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que apenas resultam em mortes do povo negro.

Por isso, lançamos o Zap Denúncia, um canal para monitorar o cumprimento da suspensão das operações policiais na Baixada Fluminense, bem como, uma ferramenta para recebimento de denúncias de qualquer tipo de violações de Estado sobre Segurança Pública que aconteça na Baixada.

 

Mulheres negras na pandemia: o caso de Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), por AfroCebrap, NEB-FGV e LAPEST-UFMG.[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em 22 de dezembro de 2020.

Agentes Comunitários de Saúde (ACS) constituem um grupo peculiar no mercado de trabalho. De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2017, 70% de ACS são mulheres, mais da metade delas se autodeclaram como pardas, são adultas, quase 70% com ensino médio completo, com média salarial de dois salários mínimos e mais de 70% são estatutárias (Figura 1, p. 15).

Desde a década de 90, a categoria de ACS cresceu no país, constituindo um mercado de trabalho formal no qual mais da metade das trabalhadoras são negras (Tabela 1, p. 7; Figura 2, p. 25). Dezembro #5 Informativo Desigualdades raciais e Covid-19 Informativo Desigualdades raciais e Covid-19 | dezembro #5 2 • A inserção da população negra no mercado de trabalho é mais caracterizada pelo trabalho informal. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, a proporção de trabalhadores pretos e pardos com vínculos informais de trabalho em 2019 foi 47,4%, enquanto para a população branca esse percentual foi de 34,5%.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (PNAD-Contínua) de junho de 2020 indica que mulheres pretas e pardas (negras) correspondem a 28,9% da população adulta, o que equivale a 29 milhões de cidadãs. Regionalmente, elas estão mais concentradas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (onde estão 56,9% delas) que as mulheres brancas (somente 23,3% destas habitam em tais regiões).

O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indica que a categoria de ACS corresponde a mais de 200 mil trabalhadores, com crescimento na contratação, entre 2008 e 2020, em quase 5 mil municípios, especialmente no Nordeste (Mapa 2, p. 14).

 Apesar da antiguidade e da importância da profissão, o Brasil não possui inquérito nacional sobre as características demográficas da categoria e suas condições de trabalho. Mas, pesquisas indicam precarização, sobrecarga, condições ruins de saúde, inclusive doenças de risco de contaminação por Covid-19 e adoecimento mental (pp. 14-19).

Uma pesquisa coordenada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB/FGV) evidencia que esse quadro se intensificou nos primeiros meses da pandemia da Covid-19. Diversas ACS participantes do estudo relataram ter recebido pouco Equipamento de Proteção Individual (EPI), treinamento, orientações e apoio institucional para trabalhar na pandemia. Ademais, os relatos apontam para casos de assédio moral de supervisores e usuários durante a pandemia. A carência de testagem da doença também sinaliza um cenário crítico das experiências dessas profissionais (pp. 24-35).

 As ACS também reportaram sentir medo, despreparo e desânimo para exercer a profissão durante a crise sanitária. Ainda, os testemunhos versam sobre a reconfiguração de atividades fundamentais à Atenção Primária à Saúde (APS), como a relação direta com os usuários do SUS por meio das Visitas Domiciliares (VD), descaracterizando assim a rotina de trabalho dessas profissionais (pp. 24-35).

LEIA O INFORMATIVO COMPLETO AQUI.

 

 

"O Vírus da Desigualdade", relatório produzido pela OXFAM[editar | editar código-fonte]

Publicado em janeiro de 2021.

O ano de 2020 foi doloroso para todo mundo. A pandemia de covid-19 causou muitos estragos na vida de milhões de pessoas – muitos morreram e muitos foram contaminados e sofreram as graves consequências da doença. Em todos os países, os mais pobres sofreram os maiores impactos, perdendo emprego e renda, enquanto os mais ricos conseguiram se recuperar em tempo recorde. A pandemia de covid-19 expôs, alimentou e aumentou as desigualdades econômicas, de raça e gênero por toda a parte.

Nosso injusto sistema econômico está permitindo que os super-ricos acumulem imensas fortunas enquanto dificulta a vida de bilhões de pessoas. Do jeito que tem funcionado, a economia global está dificultando a sua vida, se você for pobre, mulher ou de grupos étnicos e raciais, como negros, indígenas e quilombolas.

A luta por um mundo mais justo e menos desigual tem que ser prioridade dos esforços de recuperação econômica. Os governos têm que garantir que todas e todos tenham acesso à vacina contra a covid-19 e apoio financeiro para lidar com os efeitos da pandemia. É preciso investir em serviços públicos, criar milhões de novos empregos e assegurar que todas e todos tenha educação e saúde de qualidade. É preciso também que os mais ricos e as grandes corporações paguem uma parte justa em impostos. As economias têm que funcionar para todas e todos, não apenas para um pequeno grupo de privilegiados.

LEIA O RELATÓRIO COMPLETO AQUI.

 

7 meses de proibição de operações policiais no Rio de Janeiro, por Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial[editar | editar código-fonte]

Por Gisele Florentino e Rayssa Pereira, publicado originalmente em janeiro, no blog da IDMJR.

Já chegamos aos 7 meses da proibição da realização de operações policiais durante o período de isolamento social em todo o território do Rio de Janeiro, a IDMJR segue acompanhando e sistematizando os principais impactos da liminar expedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,  Edson Fachin no dia 06 de junho de 2020 –  ressalta-se que esta liminar foi expedida antes dos pareceres do STF para ADPF 635¹.

O que deveria significar a não realização de operações policiais em favelas e periferias, porém, essa não é a realidade. A IDMJR está monitorando os registros² de operações policiais na Baixada Fluminense e os dados mostram que nos últimos meses ocorreu o aumento de operações policiais evidenciando que a liminar do STF não está sendo cumprida, inclusive que o patamar de operações policiais realizadas nos território volta ao nível anterior da expedição da liminar e segue em franca expansão.

Os últimos 3 meses estamos assistindo o completo desrespeito a execução da liminar que impede as operações policiais no território fluminense, identificamos um total de 126 operações policiais ocorridas apenas na Baixada Fluminense neste período.

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Verificamos o completo descaso no cumprimento da liminar que proíbe as operações policiais durante a quarentena – desde que em circunstâncias excepcionais. Portanto, todas essas ações que continuam acontecendo no território são ilegais e descumpre uma liminar do STF.

De outubro à dezembro foram 126 operações policiais realizadas na Baixada Fluminense que resultaram em 4 pessoas assassinadas e 17 pessoas feridas e/ou baleadas. A maior parcela das operações policiais foram motivadas para apreensão de drogas e retiradas de barricadas. Logo, não se apresenta como casos excepcionalidade ou imprescindível para a segurança pública. Apenas uma escolha política do Estado do Rio de Janeiro para descumprimento da liminar do STF e a continuidade de uma política de segurança pública genocida.

Em dezembro ocorreram 42 operações policiais na Baixada Fluminense. Sendo, 22 operações policiais realizadas exclusivamente pelo 39ºBPM! Nesses 7 meses de execução da liminar, Belford Roxo foi o município mais afetado pela ocorrência de operações policiais. Fica uma dúvida: porque justamente os territórios que possuem domínio de uma facção de tráfico específica são os que mais sofrem com a realização de operações policiais?

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O 34ºBPM realizou 7 operações policiais, seguido pelo 15ºBPM com 5 operações policiais, 20ºBPM com 4 operações policiais e o 21ºBPM e 24ºBPM com 2 operações policiais. Estamos assistindo a uma intensa ofensiva da polícia mesmo em tempo de aumento dos casos de Covid-19 em todo o território fluminense, uma política de segurança pública genocida.

Em relação aos municípios mais afetados com operações policiais em dezembro, Belford Roxo, Magé e Duque de Caxias juntos correspondem por 76% das operações policiais realizadas na Baixada Fluminense. São áreas que as frações das milícias estão disputando com o tráfico para obter o domínio e a lucratividade do território.

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Dada a reorganização do poder das milícias na Baixada Fluminense mesmo durante a pandemia, que passa a ter uma maior influência das lideranças das frações de milícias de Parada de Lucas. Os territórios estão em franca disputa entre facções de tráficos e também sob a égide de novos acordos das milícias. Haja vista, as novas frentes de atuação das milícias, como falsificação de produtos – desde cervejas à cosméticos femininos.

A IDMJR identificou que ocorreu um amplo descumprimento da liminar do STF. Afinal, não ocorreu a interrupção das operações policiais mesmo durante a pandemia na Baixada Fluminense. Por isso, garantir o cumprimento da suspensão operações policiais e todos pareceres deferidos pelo STF da ADPF 635 são imprescindíveis para impedir a continuação de uma política de confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que apenas resultam em mortes do povo negro.

 

8 meses de proibição das operações policiais no Rio de Janeiro, por Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial[editar | editar código-fonte]

Por Gisele Florentino e Rayssa Pereira, publicado originalmente em janeiro, no blog da IDMJR.

Chegamos aos 8 meses da proibição da realização de operações policiais durante o período de isolamento social em todo o território do Rio de Janeiro, a IDMJR segue acompanhando e sistematizando os principais impactos da liminar expedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,  Edson Fachin no dia 06 de junho de 2020 –  ressalta-se que esta liminar foi expedida antes dos pareceres do STF para ADPF 635¹.

O que deveria significar a não realização de operações policiais em favelas e periferias, não tornou-se realidade. A IDMJR está monitorando os registros² de operações policiais na Baixada Fluminense e os dados mostram que nos últimos meses ocorreu o aumento de operações policiais evidenciando que a liminar do STF não está sendo cumprida, inclusive que o patamar de operações policiais realizadas nos território volta ao nível anterior da expedição da liminar e segue em franca expansão.

Estamos assistindo o completo desrespeito a execução da liminar que impede as operações policiais no território fluminense. Apenas no primeiro mês de 2021 já identificamos um total de 43 operações policiais ocorridas apenas na Baixada Fluminense!

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Verificamos o completo descaso no cumprimento da liminar que proíbe as operações policiais durante a quarentena – desde que em circunstâncias excepcionais. Portanto, todas essas ações que continuam acontecendo no território são ilegais e descumpre uma liminar do STF.

As 43 operações policiais realizadas na Baixada Fluminense em janeiro de 2021 resultaram em 6 pessoas assassinadas e 15 pessoas feridas e/ou baleadas. A maior parcela das operações policiais foram motivadas para apreensão de drogas e retiradas de barricadas. Logo, não se apresenta como casos excepcionalidade ou imprescindível para a segurança pública. Apenas uma escolha política do Estado do Rio de Janeiro para descumprimento da liminar do STF e a continuidade de uma política de segurança pública genocida.

Ressaltamos que 40% das policiais realizadas na Baixada Fluminense foram exclusivamente executadas pelo 39ºBPM em Belford Roxo! Nesses 8 meses de execução da liminar, Belford Roxo foi o município mais afetado pela ocorrência de operações policiais.

Desde o dia 11 de janeiro de 2021 está ocorrendo uma megaoperação policial para a implementação do destacamento da Polícia Militar em Belford Roxo, recebemos informações de moradoras e moradores que já são 22 pessoas assinadas. Inclusive, os corpos estão sendo retirados em carroças pelos próprios moradores. Já são mais de duas semanas de terror em Belford Roxo e que não tem perspectiva de acabar.

Ressaltamos que a Polícia Militar em suas redes sociais não informa o real número de assassinatos que ocorreram devido a esta megaoperação. O levantamento de operações policiais que a IDMJR realiza é a partir da mineração de dados de fontes oficiais da Polícia Militar, o que apenas ratifica que há subnotificações em toda atuação policial. É possível observar isso, quando confrontamos as informações oficiais do Estado com os relatos de moradores que convivem com uma rotina de terror e medo.

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Há uma intensa ofensiva da polícia mesmo em tempo de aumento dos casos de Covid-19 em todo o território fluminense, uma política de segurança pública genocida. O Estado do Rio de Janeiro ignora qualquer tipo de orientação para diminuição da letalidade no território e mantém uma política de morte que apenas produz assassinatos da juventude negra, pobre e periférica.

Em relação aos municípios mais afetados com operações policiais em janeiro de 2021, Belford Roxo e Duque de Caxias juntos correspondem por 67% das operações policiais realizadas na Baixada Fluminense. São áreas que as frações das milícias estão disputando com o tráfico para obter o domínio e a lucratividade do território.

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Dada a reorganização do poder das milícias na Baixada Fluminense mesmo durante a pandemia, que passa a ter uma maior influência das lideranças das frações de milícias de Parada de Lucas. Os territórios estão em franca disputa entre facções de tráficos e também sob a égide de novos acordos das milícias. Haja vista, as novas frentes de atuação das milícias, como falsificação de produtos – desde cervejas à cosméticos femininos.

A IDMJR identificou que ocorreu um amplo descumprimento da liminar do STF. Afinal, não ocorreu a interrupção das operações policiais mesmo durante a pandemia na Baixada Fluminense. Por isso, garantir o cumprimento da suspensão operações policiais e todos pareceres deferidos pelo STF da ADPF 635 são imprescindíveis para impedir a continuação de uma política de confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que apenas resultam em mortes do povo negro.

 

9 meses de proibição das operações policiais no Rio de Janeiro, por Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial[editar | editar código-fonte]

Por Gisele Florentino e Rayssa Pereira, publicado originalmente em janeiro, no blog da IDMJR.

Estamos há 9 meses sob a liminar que proíbe da realização de operações policiais durante o período de isolamento social em todo o território do Rio de Janeiro. A IDMJR segue acompanhando e sistematizando os principais impactos da liminar expedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,  Edson Fachin no dia 06 de junho de 2020 –  ressalta-se que esta liminar foi expedida antes dos pareceres do STF para ADPF 635¹.

A IDMJR está monitorando os registros² de operações policiais na Baixada Fluminense e os dados mostram que a liminar do STF não está sendo cumprida, inclusive que o patamar de operações policiais realizadas nos território volta ao nível anterior da expedição da liminar e segue em franca expansão.

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Estamos assistindo o completo desrespeito a execução da liminar que impede as operações policiais no território fluminense. Apenas nos primeiros 60 dias de 2021 identificamos um total de 71 operações policiais ocorridas apenas na Baixada Fluminense!

Verificamos o completo descaso no cumprimento da liminar que proíbe as operações policiais durante a quarentena – desde que em circunstâncias excepcionais. Portanto, todas essas ações que continuam acontecendo no território são ilegais e descumpre uma liminar do STF.

As 28 operações policiais realizadas na Baixada Fluminense em fevereiro de 2021 resultaram em 8 pessoas assassinadas e 5 pessoas feridas e/ou baleadas. A maior parcela das operações policiais foram motivadas para apreensão de drogas e retiradas de barricadas.

Logo, não se apresenta como casos de excepcionalidade ou imprescindível para a segurança pública. Apenas uma escolha política do Estado do Rio de Janeiro para descumprimento da liminar do STF e a continuidade de uma política de segurança pública genocida.

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Ressaltamos que quase 40% das policiais realizadas na Baixada Fluminense foram exclusivamente executadas pelo 39ºBPM em Belford Roxo! Nesses 9 meses de execução da liminar, Belford Roxo foi o município mais afetado pela ocorrência de operações policiais. 

Ressaltamos que Desde o dia 11 de janeiro de 2021 está ocorrendo uma megaoperação policial para a implementação do destacamento da Polícia Militar em Belford Roxo, recebemos informações de moradoras e moradores que já são 22 pessoas assinadas. Inclusive, os corpos estão sendo retirados em carroças pelos próprios moradores. Já são mais de dois meses de terror ininterruptos em Belford Roxo e que não tem perspectiva de acabar.

Ressaltamos que a Polícia Militar em suas redes sociais não informa o real número de assassinatos que ocorreram devido a esta megaoperação. O levantamento de operações policiais que a IDMJR realiza é a partir da mineração de dados de fontes oficiais da Polícia Militar, o que apenas ratifica que há subnotificações em toda atuação policial. É possível observar isso, quando confrontamos as informações oficiais do Estado com os relatos de moradores que convivem com uma rotina de terror e medo.

Há uma intensa ofensiva da polícia mesmo em tempo de aumento dos casos de Covid-19 em todo o território fluminense, uma política de segurança pública genocida. O Estado do Rio de Janeiro ignora qualquer tipo de orientação para diminuição da letalidade no território e mantém uma política de morte que apenas produz assassinatos da juventude negra, pobre e periférica. 

Inclusive, foi anunciado pela Polícia Militar a compra de 15 novos veículos blindados, os Caveirões, para atuar em operações policiais. Os veículos blindados, com preço unitário de R$652,5 mil, totalizando 10 milhões de reais.

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Em relação aos municípios mais afetados com operações policiais em fevereiro de 2021, Belford Roxo e Duque de Caxias juntos correspondem por 60% das operações policiais realizadas na Baixada Fluminense em Fevereiro de 2021. São áreas que as frações das milícias estão disputando com o tráfico para obter o domínio e a lucratividade do território.

Dada a reorganização do poder das milícias na Baixada Fluminense mesmo durante a pandemia, que passa a ter uma maior influência das lideranças das frações de milícias de Parada de Lucas. Os territórios estão em franca disputa entre facções de tráficos e também sob a égide de novos acordos das milícias. Haja vista, as novas frentes de atuação das milícias, como falsificação de produtos – desde cervejas à cosméticos femininos.

A IDMJR identificou que ocorreu um amplo descumprimento da liminar do STF. Afinal, não ocorreu a interrupção das operações policiais mesmo durante a pandemia na Baixada Fluminense. Por isso, garantir o cumprimento da suspensão operações policiais e todos pareceres deferidos pelo STF da ADPF 635 são imprescindíveis para impedir a continuação de uma política de confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que apenas resultam em mortes do povo negro.

 

População negra fica para trás na vacinação, por Raquel Torres[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em 16 de março de 2021 no blog Outras Palavras.

Levantamento mostra que do total de 8,5 milhões de imunizados, apenas 1,7 milhão se declaram negros contra 3,2 milhões de brancos

Quem se infecta mais e morre mais por covid-19 no Brasil são as pessoas negras – mas elas estão ficando para trás nas filas da vacinação.

Agência Pública e a Repórter Brasil fizeram um levantamento a partir de dados das primeiras 8,5 milhões de pessoas vacinadas. Viram que 3,2 milhões se declaram brancas, contra 1,7 milhões de negras.

A informação só não é mais completa porque um alto percentual dos formulários preenchidos durante a vacinação não informa o quesito cor/raça – o que já é, em si, muito ruim.

Há algumas explicações para o problema, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. Uma delas é que, por conta de determinantes sociais, há menos negros do que brancos com mais de 90 anos – a primeira faixa etária de idosos a ser imunizada.

A diferença continua mesmo para idosos mais jovens: a partir dos 60 anos, havia cerca de 30% a mais de pessoas brancas que negras no último censo do IBGE.

Outro problema é a dificuldade de locomoção, que representa uma adversidade extra, ao menos onde as equipes da atenção básica não conseguem fazer a busca ativa de pessoas para vacinar. 

Tem mais: uma parte da população negra que poderia estar enquadrada nos grupos prioritários, por estar na linha de frente contra a covid-19, não necessariamente recebeu a vacina.

Isso porque, em algumas regiões, trabalhadores da limpeza e segurança dos hospitais não entraram na primeira etapa.

“Até estudante de Medicina que não estava na linha de frente acabou passando na frente dos profissionais da limpeza – o que é um absurdo, se a gente for analisar estrategicamente quem vacinar primeiro, quem são as pessoas que precisam estar trabalhando para o serviço de saúde continuar oferecendo tratamento”, aponta a médica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade.

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Quase 70% dos moradores de favelas não têm dinheiro para comida, por Agência Brasil[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em 13 de março de 2021, na Agência Brasil.

Pesquisa realizada para medir os impactos da pandemia de covid-19 entre as pessoas que moram em favelas mostra que 68% delas não tiveram dinheiro para comprar comida em ao menos um dia nas duas semanas anteriores ao levantamento. Os dados são do Instituto Data Favela, em parceria com a Locomotiva – Pesquisa e Estratégia e a Central Única das Favelas (Cufa).https://agenciabrasil.ebc.com.br/ebc.png?id=1403817&o=nodehttps://agenciabrasil.ebc.com.br/ebc.gif?id=1403817&o=node

A pesquisa foi feita com 2.087 pessoas maiores de 16 anos, em 76 favelas em todas as unidades da federação, no período de 9 a 11 de fevereiro de 2021. A margem de erro é de 2,1 pontos percentuais.

Além da falta de dinheiro para comprar comida, o levantamento mostra que o número de refeições diárias dos moradores das comunidades vem caindo: de uma média de 2,4, em agosto de 2020, para 1,9, em fevereiro.

“Os dados são hoje os mais preocupantes desde o início da pandemia. Nós monitoramos, durante o último ano, praticamente todos os meses a situação das favelas e, em nenhuma das pesquisas, o dado foi tão preocupante como esse, seja no número de pessoas sem poupança, seja no número de pessoas com falta de dinheiro para comprar comida, seja na redução do número de refeições”, destacou o presidente do Instituto Locomotiva e Fundador do Data Favela, Renato Meirelles.

De acordo com o levantamento, 71% das famílias estão sobrevivendo, atualmente, com menos da metade da renda, que obtinham antes da pandemia. A pesquisa mostra ainda que 93% dos moradores não têm nenhum dinheiro guardado.

“O principal impacto é na geração de renda. Como tem um grupo grande de trabalhadores informais, e você teve uma dificuldade no período inicial de chegar o auxílio emergencial lá dentro, o impacto na renda foi gigantesco, e isso trouxe a fome. Mas a fome é consequência da ausência de renda”, ressaltou Meirelles.

Auxílio Emergencial

Além da fome e da queda na renda, as pessoas das comunidades têm enfrentado ainda um risco sanitário maior por ter que se expor ao vírus para conseguir sustento: 32% estão procurando seguir as medidas de prevenção contra a covid-19; 33% estão procurando seguir, mas nem sempre conseguem; 30% não conseguem seguir; 5% não estão tentando seguir.

“Com o agravamento da crise sanitária e com os recordes de contaminação, nunca foi tão importante o reestabelecimento imediato do auxílio emergencial. São brasileiros que foram obrigados, desde o início da pandemia, a ter que escolher entre o prato de comida ou a proteção da saúde da sua família”, disse. 

“Não é à toa que a maior parte das pesquisas sobre a infecção mostra que o número de contágio na favela é, em geral, o dobro quando comparada às regiões mais nobres”, acrescentou. 

Doações

O levantamento mostra ainda a importância das doações na vida dos moradores das favelas: nove em cada dez pessoas receberam alguma doação durante a pandemia. E oito em cada dez famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas caso não tivessem recebido doações.

“É muito comum nas pesquisas ouvir a frase: na favela se o seu vizinho tem comida, ninguém passa fome. No sentido de que eles dividem o pouco que têm, mostrando uma solidariedade impressionante nesse cenário”, disse Meirelles.

 

Fome na pandemia: moradores de favelas já fazem menos de duas refeições por dia, por Rede Brasil Atual[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente em 31 de março de 2021, no Brasil de Fato.

Com o agravamento da pandemia do novo coronavírus e sem nenhum apoio por parte do governo de Jair Bolsonaro, a fome já faz milhares de vítimas nas favelas brasileiras. É o que mostra a pesquisa A Favela e a Fome, realizada pelo Instituto Locomotiva em parceria com a Central Única de Favelas (Cufa).

O estudo mostra que os moradores de 76 comunidades pesquisadas fazem atualmente 1,9 refeições por dia, em média. O que significa que apenas uma refeição – café da manhã, almoço ou jantar – é feita por todos os moradores dos domicílios. As demais são suficientes apenas para alguns membros da família, geralmente as crianças.

“Com o fim do auxílio emergencial, o recorde do desemprego e o caos na saúde, a fome voltou à mesa da favela. Nossa pesquisa mostrou que uma família faz hoje, em média, menos de duas refeições por dia. A situação ainda não chegou ao pior estado porque ONGs ainda fazem chegar auxílio às comunidades. Mas vivemos uma situação limite”, explicou o presidente do Instituto Locomotiva e fundador do Data Favela, Renato Meirelles.

A pesquisa ouviu 2.087 pessoas, em fevereiro, e revela que 68% delas teve a alimentação prejudicada em meio à pandemia – com parcela importante chegando a passar fome. Em pesquisa semelhante, feita em agosto de 2020, esse percentual era de 43%.

Ainda segundo o instituto, 82% das famílias pesquisadas relataram que não conseguiriam se alimentar diariamente sem ajuda de doações. Além disso, 90% das pessoas disseram ter recebido ajuda em algum momento da pandemia.

Com o agravamento da pandemia e sem auxílio emergencial, 71% das famílias moradoras de favelas tiveram perda de renda, sobrevivendo hoje com cerca da metade do que ganhavam antes do surto.

Os entrevistados relataram ainda não ter nenhum dinheiro guardado (93%). No ano passado, 58% dessas famílias recebeu o auxílio emergencial de R$ 600. Dinheiro que também movimentava a economia local, garantindo a sobrevivência dos pequenos comerciantes.

Desde a suspensão do auxílio emergencial, em dezembro, pelo governo Bolsonaro, já são três meses sem praticamente nenhum apoio governamental.

“O principal impacto é na geração de renda. Como tem um grupo grande de trabalhadores informais, e você teve uma dificuldade no período inicial de chegar o auxílio emergencial lá dentro, o impacto na renda foi gigantesco, e isso trouxe a fome. Mas a fome (em meio à pandemia) é consequência da ausência de renda”, destacou Meirelles.

Entre o risco de ser contaminado pelo vírus, que aumentou com o agravamento da pandemia, e passar fome, as famílias que vivem em favelas estão sem opções. E isso se reflete na conduta diária.

Apenas 32% dos entrevistados disseram estar seguindo as medidas de prevenção contra a covid-19. Outros 33% afirmam estar tentando, mas que nem sempre conseguem. Os últimos 35% dizem não conseguir seguir as regras, por precisar, ao menos, fazer “bicos”.

 

36% dos brasileiros dizem ter comido menos ou passado fome na pandemia, por Gabriela Oliva[editar | editar código-fonte]

Publicado originalmente no blog Poder 360, em 01 de abril de 2021.

Pesquisa PoderData divulgada nesta 5ª feira (1º.abr.2021) mostra que 36% dos brasileiros dizem ter passado fome ou comido menos durante a pandemia do novo coronavírus. Essa é a soma do percentual dos que dizem ter deixado de fazer refeições (7%) com o dos que passaram a comer menos do que o de costume (29%) nesse período.

O percentual de pessoas que deixou de comer, conforme o levantamento, equivale a 14,9 milhões de pessoas, considerando a população brasileira estimada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Os que não dizem ter passado fome ou comido menos são 61% (soma dos 17% que afirmam comer mais durante a pandemia, com os 44% que dizem ter “comido como sempre”). A pesquisa nacional PoderData foi realizada de 2ª a 4ª feira (29-31.mar.2021), com 3.500 pessoas, nas 27 unidades da Federação.

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A partir de março de 2020, Estados e municípios começaram a adotar medidas restritivas para conter a disseminação da covid-19. Comércios, bares e restaurantes foram fechados ou tiveram seus horários de funcionamento alterados em todo o Brasil.

Dessa forma, milhões de pessoas ficaram em casa, em confinamento, principalmente nos primeiros meses de quarentena. Hospitais estavam se preparando para a demanda e instalando novos leitos. Além disso, o desemprego disparou e atingiu nível recorde, alterando a rotina de diversas famílias brasileiras.

Durante a pandemia, o governo federal concedeu um auxílio emergencial, para tentar reduzir o impacto econômico para famílias mais carentes. No começo, o valor pago chegou a ser de R$ 600, em média, mas caiu para R$ 300 no fim de 2020, sendo encerrado quando o ano acabou. Neste ano, haverá uma nova rodada, com pagamento de R$ 250, em média. O valor será depositado a partir de 3ª feira (6.abr).

A pesquisa foi feita pela divisão de estudos estatísticos do Poder360. A divulgação do levantamento é realizada em parceria editorial com o Grupo Bandeirantes.

Foram 3.500 entrevistas em 541 municípios, nas 27 unidades da Federação. A margem de erro é de 1,8 ponto percentual. Saiba mais sobre a metodologia lendo este texto.

Para chegar a 3.500 entrevistas que preencham proporcionalmente (conforme aparecem na sociedade) os grupos por sexo, idade, renda, escolaridade e localização geográfica, o PoderData faz dezenas de milhares de telefonemas. Muitas vezes, mais de 100 mil ligações até que sejam encontrados os entrevistados que representem de forma fiel o conjunto da população.

DESTAQUES DEMOGRÁFICOS

O estudo destacou, também, os recortes para as respostas à pergunta sobre a percepção dos brasileiros em relação a alimentação na pandemia.

Quem se alimentou mais que antes da pandemia:

  • os que têm de 25 a 44 anos (20%);
  • os que ganham de 5 a 10 salários mínimos (36%);
  • os moradores da região Centro-Oeste (27%).

Quem passou fome ou deixou de fazer alguma refeição:

  • os que têm de 16 a 24 anos (12%);
  • os moradores da região Norte (25%);
  • os desempregados ou que não tem renda fixa (18%);
  • dos que cursaram o ensino fundamental (10%).
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ALIMENTAÇÃO X GOVERNO BOLSONARO

30% dos entrevistados que consideram o governo do presidente como “ruim ou péssimo” estão se alimentando menos que de costume durante a pandemia. Outros 8% deixaram de fazer uma refeição ou passaram fome.

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Brasil vacina duas vezes mais pessoas brancas do que negras, por Observatório 3º Setor[editar | editar código-fonte]

Publicado em 02 de abril de 2021, por Mariana Lima, no Observatório 3º Setor.

Um levantamento da Agência Pública chegou à seguinte conclusão: há mais pessoas brancas do que negras vacinadas contra a Covid-19 no Brasil.

O levantamento foi produzido a partir dos dados de 8,5 milhões de pessoas que receberam a primeira dose das vacinas contra a Covid-19 aprovadas e aplicadas no país.

Apesar da vacinação brasileira ter sido iniciada com uma mulher negra – a enfermeira Mônica Calazans – há dois meses, atualmente a proporção é de aproximadamente duas pessoas brancas para cada pessoa negra vacinada.

Neste cenário, há menos negros vacinados em relação à quantidade de brasileiros que se declaram negros quando comparada à população branca que foi vacinada.

A diferença nos dados é ainda mais grave devido à desigualdade da mortalidade pela Covid-19 no país: das pessoas que tiveram a doença no Brasil, há proporcionalmente mais mortes entre negros que brancos.

Além disso, negros são a maioria absoluta dentre os casos registrados do novo coronavírus pelo país e também das mortes.

Mesmo com o Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde, o Brasil vacinou menos de 5% de sua população. E, apesar de incluir populações negras dentre os grupos prioritários, como comunidades quilombolas, há menos negros sendo vacinados.

De acordo com o levantamento da Pública, no Brasil, há 3,2 milhões de pessoas que se declaram brancas e que receberam a primeira dose de uma vacina contra a Covid-19. Já entre as pessoas negras, esse número cai para pouco mais de 1,7 milhão.

Assim, enquanto mais de 3 a cada 100 pessoas brancas receberam a primeira dose da vacina, menos de 2 a cada 100 entre a população negra receberam a mesma dose.

Vale pontuar que a população negra é comparativamente mais jovem que a branca. Apesar do Brasil ter mais pessoas negras que brancas, negros são minoria em todas as faixas etárias a partir de 40 anos de idade.

Para se ter uma ideia, a partir dos 60 anos, havia cerca de 30% a mais de pessoas brancas que negras no último censo do IBGE, de 2010.

Ainda neste cenário, grupos como trabalhadores terceirizados de hospitais, do setor de limpeza e segurança, por exemplo, não foram considerados na primeira etapa de vacinação como grupos prioritários. Essas áreas tendem a ter uma maior presença de profissionais negros.

A divisão entre profissões é marcante: entre os vacinados, negros são maioria de pessoas em situação de rua (59,29%); já brancos são a maior parte dos vacinados em várias profissões, como bombeiros (80,45%), médicos e enfermeiros.

No total, foram vacinados 67.391 médicos brancos, contra 22.110 médicos negros.

Segundo o levantamento da Pública, em todos os grupos de faixas etárias há menos negros vacinados que brancos.

A quantidade de mulheres vacinadas é aproximadamente o dobro da de homens, tanto na população negra quanto na branca.

O levantamento levou em consideração apenas as pessoas a partir de 18 anos de idade que receberam a primeira dose de uma das duas vacinas aprovadas pela Anvisa e já distribuídas pelo Governo Federal: a CoronaVac/Sinovac, produzida pelo Instituto Butantan, e a AstraZeneca/Oxford, fabricada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A segunda dose tem um prazo diferente para cada uma das vacinas: o Butantan recomenda a segunda dose entre 14 e 28 dias após a primeira; já a Fiocruz recomenda três meses para a segunda dose da vacina AstraZeneca/Oxford. Os dados incluem vacinas aplicadas até o dia 14 de março.

Em relação aos mortos, a desigualdade entre brancos e negros permanece. A maior parte dos casos e das mortes por covid-19 ocorreram em negros, considerando os números absolutos.

Mais de 89 mil pessoas negras morreram no Brasil pela doença desde o início da pandemia, de um total de 260 mil casos confirmados. O número de mortes entre negros é cerca de 10% a mais que entre brancos.

Os dados também apontam que a mortalidade foi maior entre negros que entre brancos: 92 óbitos a cada 100 mil habitantes em negros, para 88 em brancos.

O levantamento da Pública contabilizou as mortes decorrentes de quadros graves de problemas respiratórios (SRAG) causados pelo coronavírus e registrados pelo Ministério da Saúde até 22 de fevereiro.

É importante salientar que em 27,5% dos formulários preenchidos durante a primeira dose da vacinação contra a Covid-19, o quesito raça/cor foi ignorado.

Fonte: Agência Pública

 

Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil, por Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional[editar | editar código-fonte]

Material divulgado no início de 2021, no site Olhe Para a Fome.

EM MEIO À PANDEMIA DA COVID-19, O BRASIL VIVE UM PICO EPIDÊMICO DA FOME: 19 MILHÕES DE BRASILEIROS ENFRENTAM A FOME NO SEU DIA A DIA

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020.

Os resultados mostram que nos três meses anteriores à coleta de dados, apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar. Isso significa que em 55,2% dos domicílios os habitantes conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018 (36,7%).

Em números absolutos: no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos.

Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).

É um cenário que não deixa dúvidas de que a combinação das crises econômica, política e sanitária provocou uma imensa redução da segurança alimentar em todo o Brasil.

O BRASIL CONTINUA DIVIDIDO ENTRE OS POUCOS QUE COMEM À VONTADE E OS MUITOS QUE SÓ TÊM VONTADE DE COMER

A fome no Brasil é um problema histórico, mas houve um momento em que fomos capazes de
combatê-la.

Entre 2004 e 2013, os resultados da estratégia Fome Zero aliados a políticas públicas de combate à pobreza e à miséria se tornaram visíveis.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, revelou uma importante redução da insegurança alimentar em todo o país. Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2% – o nível mais baixo até então. Isso fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura finalmente excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente.

Mas esse sucesso na garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável foi anulado. Os números atuais são mais do que o dobro dos observados em 2009.

A FOME RETORNOU AOS PATAMARES DE 2004.

E o retrocesso mais acentuado se deu nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, segundo dados da PNAD e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8,0% ao ano. A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6%.

Ou seja: em apenas dois anos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Nesse período, quase 9 milhões de brasileiros e brasileiras passaram a ter a experiência da fome em seu dia a dia.

FOME NÃO TEM HORA, MAS TEM LUGAR

Segundo a pesquisa VigiSAN, a insegurança alimentar cresceu em todo país, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas. As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome.

Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste – enquanto o percentual nacional é de 55,2%. Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9,0% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste.

O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões. Já no Norte, que abriga apenas 7,5% dos habitantes do Brasil, viviam 14,9% do total das pessoas com fome no país no período.

Além disso, a conhecida condição de pobreza das populações rurais, sejam elas de agricultores(as) familiares, quilombolas, indígenas ou ribeirinhos(as), tem reflexo importante nas condições de segurança alimentar. Nessas áreas, em todo o país, a fome se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios.

A FOME TEM GÊNERO, COR E GRAU DE ESCOLARIDADE

Algumas condições individuais podem afetar negativamente a situação de segurança alimentar.

Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem.

Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.

A fome se fez presente em 14,7% dos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto. Com Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto, caiu para 10,7%. E, finalmente, em lares chefiados por pessoas com Ensino Médio completo em diante, despencou para 4,7%.

A FOME NÃO ANDA SOZINHA

A fome vem acompanhada de muitas outras carências, destacadamente a falta de água.

A insegurança hídrica, medida pelo fornecimento irregular ou mesmo falta de água potável, atingiu em 2020 40,2% e 38,4% dos domicílios do Nordeste e Norte, respectivamente, percentuais quase três vezes superiores aos das demais regiões.

O abastecimento irregular de água é uma das condições que aumentam a transmissão pessoa a pessoa da Covid-19, ocorrendo com maior frequência em domicílios e regiões mais pobres do país.

A relação entre a insegurança alimentar e a insegurança hídrica é incontestável. Segundo a pesquisa VigiSAN, a proporção de domicílios rurais com habitantes em situação de fome dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos (de 21,8% para 44,2%).

A INSEGURANÇA ALIMENTAR PODE TER AVANÇADO TAMBÉM ENTRE AS PESSOAS QUE NÃO SE ENCONTRAM EM CONDIÇÃO DE POBREZA

Houve em dois anos um aumento acentuado na proporção da insegurança alimentar leve – de 20,7% para 34,7%.

Cerca de metade dos entrevistados relatou redução da renda familiar durante a pandemia, provocando inclusive cortes nas despesas essenciais. Esses lares constituem o grupo com maior proporção de insegurança alimentar leve – por volta de 40%.

Isso aponta para o impacto da pandemia entre famílias que tinham renda estável, que provavelmente foram empurradas da segurança alimentar para a insegurança alimentar leve.

A crise econômica agravada pela pandemia está fazendo com que a insegurança alimentar se alastre inclusive entre os que não se encontram em condição de pobreza.

POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGO E RENDA + AUXÍLIO EMERGENCIAL = COMBATE EFETIVO À FOME NA PANDEMIA

Um dado se destaca: a insegurança alimentar moderada e grave desaparece por completo em domicílios com renda familiar mensal acima de um salário-mínimo per capita: 0,0%.

No que se refere à situação de trabalho da pessoa de referência dos domicílios, a ocorrência da fome foi quatro vezes superior entre aquelas com trabalho informal e seis vezes superior quando a pessoa estava desempregada.

A SOLUÇÃO PARA ERRADICAR A FOME PASSA, ENTÃO, POR POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGO E RENDA.

Em tempos de Covid-19, no entanto, os desafios são maiores. O sucesso da garantia do direito humano à alimentação adequada, alcançado até 2013, foi progressivamente revertido a partir de 2014, e ganhou impulso negativo maior com o início da pandemia da Covid-19.

Famílias que solicitaram e receberam parcelas do auxílio conviviam com alta proporção de insegurança alimentar moderada ou grave (28%), o que enfatiza a grande vulnerabilidade desse grupo. Sem uma resposta adequada dos governos em forma de políticas públicas, a fome vai persistir – e aumentar.

A escalada da fome durante a pandemia não é de responsabilidade de um vírus, mas de escolhas políticas de negação e da ausência de medidas efetivas de proteção social.

PRECISAMOS OLHAR PARA A FOME, TODAS E TODOS NÓS. ESSE DESAFIO TAMBÉM É NOSSO.

CONFIRA O RELATÓRIO COMPLETO.

 

A roleta russa da Covid no Brasil, João Gado F. Costa, Francisco J. Ricci, Amanda Gorziza e Renata Buono [editar | editar código-fonte]

Originalmente publicado em Piauí em 05 de abril de 2021.

A Covid-19 já tirou a vida de mais de 330 mil brasileiros. O risco de morte de uma pessoa que contrai a doença está relacionado com diversos fatores, como renda, raça, lugar de moradia, idade e presença de comorbidades, ou seja, outras doenças. O risco de um paciente morrer de Covid, caso hospitalizado, equivale a colocar duas balas em uma arma de cinco tiros e disparar contra si mesmo; esse risco aumenta para três balas se o indivíduo for para UTI; e chega a quatro se for intubado. A mortalidade de pacientes com Covid em Unidades de Terapia Intensiva na região Norte é maior do que a média nacional – 79% das pessoas internadas em UTI nessa região entre fevereiro e agosto de 2020 morreram. A Covid também escancara a desigualdade brasileira: o risco de morte em uma UTI pública é maior que em uma privada. Além disso, a possibilidade de pretos e pardos morrerem pela doença é maior que a de brancos. Os números foram compilados pelo Pindograma, site de jornalismo de dados. Confira no =igualdades desta semana.

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Estudo sobre as hospitalizações de pacientes com Covid no Brasil entre 16 de fevereiro e 15 de agosto de 2020 mostrou que o risco de morte de todos os hospitalizados foi de 38%. Se o paciente for para a UTI, o risco sobe para 59%; se for intubado, vai a 80%.

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Entre fevereiro e agosto de 2020, 59% das pessoas admitidas em UTIs no Brasil morreram. Já no auge da pandemia na Itália, em abril, a mortalidade em UTIs no país foi de 48%.

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O risco de morrer de Covid em uma UTI pública no Brasil é maior que em uma privada. A mortalidade de pacientes com Covid internados em UTIs privadas foi de 30%, enquanto em UTIs públicas foi de 53%.

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Na região Norte, a mortalidade de pacientes com Covid internados em UTIs é maior do que a média nacional. 79% das pessoas internadas em UTIs no Norte entre fevereiro e agosto de 2020 morreram. No Nordeste, a mortalidade foi de 66%; no Sul, 53%; no Centro-Oeste, 51%. Já no Sudeste, que registrou a menor taxa, o risco de morte em UTI foi de 49%.

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Alguns grupos têm maior risco de desenvolver as formas mais graves da Covid, como é o caso de idosos acima de sessenta anos. Apesar disso, a mortalidade de pacientes mais jovens no Brasil também é significativa. De fevereiro a agosto de 2020, 31% dos pacientes nordestinos com menos de sessenta anos morreram – o dobro do registrado no Sul, onde 15% das pessoas dessa faixa etária que estavam internadas morreram. 

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Estudo mostra que pobres, negros e pessoas de baixa escolaridade correm risco maior de morrer por Covid na cidade de São Paulo. A possibilidade de uma pessoa parda morrer da doença é 42% maior que a de uma pessoa branca. Para uma pessoa preta, o risco é 77% maior que o de uma pessoa branca.

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No começo de junho de 2020, a taxa de mortalidade da Covid no Brasil era de 5,3% e, nos Estados Unidos, 5,7%. Atualmente, o cenário se inverteu. Os Estados Unidos têm taxa de 1,8% de mortalidade, e a do Brasil está em 2,5%. Ou seja, atualmente, o risco de morrer de Covid no Brasil é maior que nos Estados Unidos.

Fontes: Estudo de Bozza, Ranzani e pesquisadores publicado na revista The Lancet Respiratory Medicineestudo de Grasselli e outros na Jama Internal Medicineestudo de Ribeiro e pesquisadoras na International Journal of EpidemiologyUTIs Brasileiras; Brasil.io; CDC COVID Data tracker

 

Ações e políticas públicas para conter a Covid-19 e seus impactos sociais[editar | editar código-fonte]

Disponível em site com guia completo.

 Um guia para gestores públicos sobre melhores práticas e iniciativas baseadas em evidências para enfrentar a doença e seus efeitos nocivos sobre populações marginalizadas durante e após a pandemia.

 

Como reduzir os impactos do coronavírus entre indígenas

Além dos invasores de terras e do desmonte das políticas indigenistas, os indígenas agora têm de lutar contra o novo coronavírus. Destacamos medidas urgentes para conter a disseminação da doença entre indígenas e minimizar seus impactos. Nesse contexto, é fundamental priorizar os indígenas na campanha de vacinação contra a Covid-19. Para ver mais, clique aqui.

 

Como diminuir as desigualdades de gênero na pandemia

A Covid-19 tem um peso muito maior sobre as mulheres, a população LGBT+ e outras minorias. Selecionamos as melhores sugestões de políticas públicas para melhorar a equidade de gênero no preparo, resposta e recuperação à atual pandemia e a outras que possam surgir. Saiba mais aqui.

 

Favelas na luta contra o coronavírus

As mais de 13.000 comunidades do Brasil sofrem ainda mais os efeitos devastadores da Covid-19, que pode ser até duas vezes mais letal nestes cenários urbanos. Com base em evidências, selecionamos ações para melhorar as condições de vida dos moradores e apoiá-los em suas próprias iniciativas de controle da pandemia. Veja o guia aqui

 

Realização

Embaixa Britânica Brasília

Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz

Fiocruz 120 anos - Patrimônio da Sociedade Brasileira

Ministério da Saúde

 

Apoio:

Wellcome

 

Desenvolvimento:

Easy Telling

 

 

Entrevistas[editar | editar código-fonte]

 

Sousa, da Redes da Maré: “Quem só via a favela pela violência, passou a enxergá-la a partir do coronavírus”[editar | editar código-fonte]

Eliana Sousa Silva, fundadora e diretora da ONG, explica que 140.000 pessoas vivem na Maré, muitas sem água encanada e esgoto, o que favorece a epidemia e requer medidas urgentes.

Por Felipe Betim, ao El País, em 28 de março de 2020.

Desde que coronavírus aterrissou no Brasil, várias organizações da sociedade civil, ativistas e lideranças comunitárias estão se mobilizando para atuar nas favelas e proteger as pessoas mais vulneráveis da pandemia. Eliana Sousa Silva, fundadora da ONG Redes da Maré, que atua há décadas no Complexo de Favelas da Maré, sobretudo nas áreas de Educação e Segurança Pública, é uma dessas lideranças que vem estruturando ações de enfrentamento ao coronavírus. Em entrevista ao EL PAÍS por telefone, ela explica que a pandemia “está escancarando” a desigualdade social, um tema historicamente negligenciado no Brasil. A partir de uma campanha de arrecadação de recursos, o objetivo é distribuir alimentos e material de limpeza para a parcela mais pobre da população —utilizando, para isso, os comércios e prestadores de serviços locais, afetados economicamente pela paralisia das atividades. “A gente não tem as condições básicas para criar uma prevenção em massa, e isso é anterior ao coronavírus", argumenta. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Pergunta. A pandemia de coronavírus afeta pobres, classe média e ricos da mesma forma?

Resposta. Não, claro que não. A pandemia de coronavírus está escancarando uma questão, que já sabemos que faz parte do nosso cotidiano, que é a desigualdade social. Isso já a partir do momento em que você precisa estabelecer um distanciamento, um isolamento, e uma quarentena para as pessoas. Mas as pessoas vivem nas favelas em casas muito pequenas, sem ventilação adequada, faltam recursos e infraestrutura de urbanização... Isso falando de coisas básicas. Se vivêssemos em um país onde as pessoas tivessem habitação e as coisas funcionassem bem, já haveria problema. Mas não temos o básico para lidar com a crise. As favelas, periferias e regiões mais pobres que não são providas de serviços públicos estão diretamente afetadas para além do que a própria contaminação trás. Elas já estão muito vulneráveis.

P. Quais são as vulnerabilidades concretas que o coronavírus escancara?

R. São várias questões. A primeira tem a ver com as condições habitacionais e de densidade populacional. Na Maré vivem 140.000 pessoas divididas em 16 favelas. São 47.000 domicílios em 4,5 quilômetros de extensão. Os números são equivalentes a de uma cidade brasileira de médio porte. As pessoas estão muito próximas, as casas são pequenas, sem condições sanitárias, esgoto, água potável... Em algumas favelas você não tem água encanada todo dia. E aqui no Rio ainda tem toda a questão da qualidade da água da Cedae, um elemento que piora as condições. Numa perspectiva ambiental mais geral, você precisa ter espaços arejados e condições mínimas para estabelecer esse distanciamento social, mas a realidade é a de três pessoas morando num quarto. A gente não tem as condições básicas para criar uma prevenção em massa, e isso é anterior ao coronavírus.

P. Muitas familias de classe média vêm fazendo home office, mas nas favelas o trabalho informal é a realidade. Quais são as vulnerabilidades econômicas?

R. É a outra camada do problema. Além da questão estruturante, um país de déficit habitacional e de saneamento, tem as condições de trabalho daqueles que moram em favelas e periferias. Nem todas vão ter condições de trabalhar em casa. São prestadores de serviço ou profissionais autônomos que dependem do trabalho para gerar renda. Se não trabalham, não geram. Além do tipo de trabalho, pelas condições das residências elas nem teriam um espaço para sentar ali em frente ao computador e trabalhar de home office.

P. Que tipo de ação a Redes da Maré vem fazendo nas últimas semanas?

R. A nossa campanha está dirigida para as 6.000 famílias mais vulneráveis. A partir da população da Maré, de 140.000 pessoas, a gente cruzou dados de pobreza para chegar a esse número. Nossa meta é contribuir com recursos materiais para que essas pessoas possam minimamente sobreviver durante essa crise. Estamos buscando recursos para a compra de cestas básicas e material de limpeza, mas nossa proposta é que possamos comprar esses produtos nos comércios da Maré. São quase 4.000 estabelecimentos comerciais, então é também uma forma de girar a economia local e ajudar esses autônomos e prestadores de serviços. Existe um projeto [que envolve mulheres chamado Maré de Sabores], que presta serviços de buffet, mas todos os eventos foram cancelados. Então estamos mobilizando elas para não deixar sem apoio os usuários de crack. A partir das contribuições da campanha, vamos cozinhar 180 quentinhas a partir de sexta, fazendo escalas de trabalho que garantam a prevenção delas, e entregar de dentro do carro. Estamos buscando recursos financeiros para comprar itens de alimentação e prevenção, mas parte dos recursos vai para essas mulheres, para gerar renda para elas.

Desde que começou essa crise, a gente estabeleceu uma parceria com a Fiocruz para validar as informações e o que pode ser feito dentro de uma realidade como a das favelas. Tem nos ajudado a entender inclusive como fazer essas ações se protegendo, já que a gente mobiliza muitas pessoas para entregar as cestas básicas. O interessante é como em cada uma das favelas as pessoas podem buscar soluções locais para criar um processo dinâmico e também positivo de ajudar um ao outro, e também gerar recursos. Vai ser um aprendizado mobilizar a sociedade em torno de causas que são muito emergenciais.

P. Acredita que a crise possa trazer um efeito positivo, que é dar sentido de urgência para todas essas questões históricas?

R. Estamos num momento difícil num ponto de vista objetivo. Mas as pessoas estão em casa, é o momento de refletir e olhar para o coletivo. Todas as dificuldades que vivemos no plano mais básico já está posto no cotidiano. As pessoas que muitas vezes não querem ver, ou só enxergam as favelas a partir da questão da violência armada. Com essa crise, começam a ver que não é só isso. É importante chamar atenção para essas questões, e que não pode ser algo pontual. Para sobreviver a outras possíveis crises que teremos, precisamos resolver essas questões muito básicas.

P. E como os setores de classe média alta podem ajudar?

R. Várias pessoas, organizações e fundações estão mobilizadas para dar uma solução imediata, mas falta muita gente entrar com o que pode contribuir. Uma forma de ajudar é buscando essas instituições que já vinham fazendo projetos sociais antes e já vinham trabalhando em cima dessa desigualdade social. Há diferentes organizações atuando nas favelas que vivem demandando recursos que não conseguimos no dia a dia, e que talvez as pessoas, olhando o tamanho do problema, possam gerar um retorno mais perene. É ter um olhar para investigar onde as pessoas estão mais precisando e buscar pessoas confiáveis que trabalham nessa agenda de urgência.

P. Além do papel dessas organizações, existe o papel do próprio Estado de realizar ações mais abrangentes. O coronavírus se espalha muito rapidamente e o Brasil não tem a estrutura da Itália, onde a situação já é grave. Se o Estado não atua, acredita que os mais pobres serão mais uma vez deixados para morrer?

R. A coisa mais séria é justamente quando o Estado vai realmente entrar na dinâmica de urgência dessa crise. O que tenho percebido são respostas muito imediatas. Mas realmente falta um processo mais estruturante e de aprendizado em torno disso. Um exemplo são as Unidades Básicas de Saúde e as Clínicas da Família. Muitas delas estão em situações muito irregulares, seja do ponto de vista de pessoal ou de estrutura material. Essas estruturas poderiam ser referências importantes para dar suporte e confiança para a população, uma porta de entrada do sistema de saúde para tirar dúvida, prestar esclarecimentos e continuar o atendimento de pessoas mais vulneráveis. E, no entanto, já vinham sendo sucateadas. Os agentes comunitários iam de porta a porta, mas isso vem sendo desmontado. E os profissionais de saúde vêm sofrendo muito com esse desmonte.

Por outro lado, se não houver uma medida urgente de suporte às demandas básicas, e em larga escala isso só pode vir do Estado, a contaminação nessas áreas, com certeza, vai acontecer rapidamente. Vai ser uma coisa massiva, e as unidades de saúde não estão funcionando como deveriam. O que temos que trabalhar neste momento é a prevenção, que é o lugar dessas unidades. Não podemos deixar acontecer. Na Itália não houve clareza sobre como lidar com a pandemia desde o início. Aqui temos de olhar para essa desigualdade que temos e parar de negligenciá-la. Não é hora de dizer que “a favela já está ferrada mesmo, então vamos deixar para lá”. Não, é hora de olhar para essa população, que historicamente é a que mais sofre, é a que sempre é sacrificada.

 

Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da 'necropolítica'[editar | editar código-fonte]

Em entrevista realizada para o Jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 30 de março de 2020, Achille Mbembe, filósofo camaronês, comenta sobre como governos decidem quem viverá e quem morrerá em tempos de pandemia.

Por Diogo Bercito, de Washington

O coronavírus está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Ao sair de casa, afinal, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Já há mais de 775 mil casos confirmados e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”,
Mbembe afirma. "O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder.”

Mbembe, 62, é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo "necropolítica". Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá — e de que maneira viverão e morrerão. A necropolítica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todas as pessoas de uma maneira igual.

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtividade  "Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida", disse o brasileiro recentemente.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. 

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia? Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavírus é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar… E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando. Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte? Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamento. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outras pessoas também se isolarem? Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incineradas ou enterradas imediatamente, sem demora. Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidamente possível. 

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade? A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.

Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa. Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratizado. O isolamento é precisamente uma forma de regular esse poder. Outro debate que evoca a necropolítica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorização do resgate da economia. Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo.

Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexuais, usuários de droga? Na teoria, o coronavírus pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados.

Diversos presidentes têm se referido ao combate ao coronavírus como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolítica. Existe dificuldade em dar um nome ao que está acontecendo no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados em todo o mundo retomar as antigas terminologias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras
de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalismo durante esta pandemia? Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalistas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes? Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo.

O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida. Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

 

“É preciso que o recurso de 600 reais chegue hoje”, com Sonia Fleury[editar | editar código-fonte]

Cada favela precisa de um plano emergencial específico, segundo suas especificidades, diz a pesquisadora.

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin, para o Instituto Humanitas UNISINOS | 02 Abril 2020

coronavoucher de 600 reais para os trabalhadores informais, autônomos e intermitentes, como ficou conhecido o pagamento do auxílio emergencial que será feito pelo governo federal, “pode chegar às pessoas das comunidades, mas para ser operacionalizado, ele requer uma burocracia que pode retardar o recebimento e talvez seja tarde demais”, adverte a cientista política Sonia Fleury[58]. Para ela, a melhor maneira de suprir as necessidades financeiras desses trabalhadores é através de uma renda mínima que possa ser garantida imediatamente. “Um economista liberal disse que deveriam estar jogando dinheiro de helicóptero. É mais ou menos isso; não dá para pensar agora em mecanismos burocráticos, porque as pessoas não têm como prover a renda. Na favela, as pessoas costumam dizer que se vende o almoço para comprar a janta. Se a pessoa não trabalhar, não tem o que comer e isso já está acontecendo”, afirma.

Enquanto o auxílio governamental não chega às comunidades, o voluntariado assistencial tenta suprir as necessidades mais emergenciais, como alimentação, mas somente isso “não dá; é preciso que esse recurso de 600 reais chegue hoje, e não se tem clareza de quando vai chegar na mesa das pessoas”, reitera. A crise, salienta, evidencia as carências, mas também as potencialidades das favelas. “A favela hoje é o lugar mais organizado que existe no Brasil. O seu bairro tem algum nível de organização para enfrentar a pandemia? No meu, as pessoas nem se cumprimentam. A sociedade está inteiramente desmobilizada, não participa de nada, mas este não é o caso das favelas. Elas têm um nível de organização cultural, social, religioso, que é muito diferenciado em relação ao resto da população brasileira. Isso vai ficar patente na maneira como eles estão enfrentando a pandemia”, assegura.

Sonia também comenta o enfrentamento da crise no Rio de Janeiro, onde o governador Witzel e o prefeito Crivella politizam a situação. “Crivella, que é um prefeito repudiado pela maioria da população, está tentando se associar ao discurso do presidente Bolsonaro para ver se aumenta a sua capacidade para concorrer à eleição municipal, porque, por si só, ele não tem a menor capacidade de se reeleger”, diz. E lamenta: “Quem vai sofrer com essa situação é a população; ninguém tem a menor dúvida disso, principalmente porque o Rio de Janeiro é uma cidade que tem muitas favelas, com altíssima concentração populacional. Algumas são maiores do que muitos municípios, mas sem a autonomia e os recursos de um município para enfrentar essa situação”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-LineSonia Fleury pontua que a pandemia de Covid-19 acentuou a tensão entre as áreas sociais e a área econômica, em curso desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, que limita o teto dos gastos nas próximas duas décadas. Na avaliação dela, a crise, de outro lado, também ressalta a importância do Sistema Único de Saúde - SUS. “Ficou claro para a sociedade brasileira, pela primeira vez, a importância do sistema de saúde. Ele não é apenas um atendimento de atenção médica para pobre, mas é responsável pela saúde pública do Brasil inteiro, de pobres, ricos, pelas ações de vigilância sanitáriaepidemiológica”, assinala.

CONFIRA A ENTREVISTA COMPLETA!

 

Os erros e acertos de Mandetta na Saúde, em duas análises[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado no Nexo Jornal, em 15 de abril de 2020.

Ao 'Nexo' os professores Mário Scheffer e Sônia Fleury avaliam a gestão do ministro da Saúde, que ganhou projeção e entrou em confronto com Bolsonaro durante a pandemia.

A saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, principal responsável pelo enfrentamento à pandemia do novo coronavírus no governo federal, voltou a ser cogitada na terça-feira (15). Segundo informações de bastidores publicadas pela imprensa, o presidente Jair Bolsonaro já procura um substituto para o ministro, que admitiu estar em “descompasso” com o Palácio do Planalto em termos de diretrizes para o combate à doença.

A gestão de Mandetta tem sido tumultuada. Nos últimos meses, o ministro alcançou a aprovação da maior parte da população, segundo pesquisas de opinião, pela adoção de critérios científicos na condução da pasta. Seguindo orientações da OMS (Organização Mundial de Saúde), ele defende medidas de isolamento social e ressalta que não existem medicamentos com eficácia comprovada contra a doença.

Os argumentos, no entanto, contrariam seu chefe. Jair Bolsonaro já chamou a covid-19 de “gripezinha” e vem reiteradamente descumprindo os pedidos para evitar aglomerações. O presidente também prega a manutenção da atividade econômica e divulga como cura para a doença um remédio que não tem eficácia comprovada, a cloroquina.

Em 6 de abril, o presidente ameaçou demitir Mandetta, mas recuou sob pressão de ministros militares, do presidente do Senado e presidente do Supremo Tribunal Federal. Mas uma entrevista de Mandetta ao programa Fantástico, da TV Globo, no domingo (12), mudou o cenário. Nela, criticou Bolsonaro por ir a uma padaria e disse que a população não sabe se escuta o ministro ou o presidente.

A permanência de Mandetta no cargo voltou a ser colocada em dúvida na quarta-feira (15) com o pedido de demissão do secretário de vigilância em saúde, Wanderson Oliveira, que decidiu se antecipar a uma possível mudança de comando do órgão. O ministro não aceitou o pedido e Oliveira continuou no cargo, assim como o próprio Mandetta. Nos bastidores, no entanto, o ministro já estaria se despedindo.

Duas análises sobre a gestão de Mandetta[editar | editar código-fonte]

Para avaliar a gestão de Mandetta frente ao Ministério da Saúde em meio à pandemia, o Nexo ouviu dois especialistas em saúde.

Mário Scheffer, doutor em ciências da saúde, é professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) na área de política, planejamento e gestão em saúde.
Sônia Fleury, especializada em medicina social, é doutora em ciência política e pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).


Como avalia a gestão de Mandetta no combate à covid-19?
MÁRIO SCHEFFER Acho que é uma gestão muito dificultada pelo duplo comando, muito tumultuada, embora cercada de uma capacidade técnica e de medidas adequadas do ponto de vista das evidências internacionais. É descoordenada, pouco unificada. Esse duplo comando interno dentro do governo federal, do presidente e dele, dificultou uma gestão coordenada e unificada entre os três níveis de governo e, ao mesmo tempo, a conexão entre a gestão de serviços, a vigilância epidemiológica e a produção de insumos. A questão do número de casos e óbitos de forma centralizada foi um ponto positivo, mas a gestão entre os três níveis de governo e a gestão dos serviços está absolutamente atrasada. Só ontem [terça-feira, 14] o ministério anunciou que vai fazer um censo hospitalar da capacidade e da disponibilidade real de leitos. Isso, para mim, é uma deficiência. ​

Tem medidas muito adequadas, mas acho que perdemos tempo [no começo da epidemia]. Nós tínhamos um benefício de uns dois meses [desde o início do surto de casos na China e na Europa]. Acho que teve um começo das ações no momento adequado, mas mais medidas poderiam ter sido tomadas. Por exemplo: há, de novo, a questão da real capacidade da oferta de leitos. E de não ter aproveitado o tempo e titubeado na questão do fornecimento de insumos e principalmente da testagem. Só culpar o não fornecimento internacional é muito simplório. Há outras alternativas que não foram tomadas. Obviamente, isso tem que ser compartilhado com estados e municípios, mas a gestão dos profissionais de saúde é um ponto crítico na resposta.

Um outro ponto que o ministério não fez foi uma adequada articulação com o setor privado. Talvez até pela proximidade do Mandetta com o setor privado, o que a gente está percebendo é uma total desobrigação dos planos de saúde e dos hospitais privados em relação à pandemia. Eles não se apresentaram. Isso exigiria uma gestão unificada. Vários países, como a Espanha e a Irlanda, excepcionalmente neste momento, unificaram os esforços público e privado. Por outro lado, numa ação direta do Mandetta com a ANS [Agência Nacional de Saúde], eles praticamente editaram um pacote de benefícios para o setor dos planos de saúde, de flexibilidade, de desregulação, de acesso a fundos excepcionais sem contrapartida.

Não se sabe nem qual é hoje a capacidade da rede privada que poderia estar à disposição de uma gestão única de vagas para casos graves, por exemplo. O setor privado está ocioso, em parte, porque perdeu uma clientela importante com a crise econômica antes da pandemia, e foi desobrigado de atendimento eletivo. Uma das medidas da agência e do Ministério da Saúde foi autorizar os planos de saúde a cancelar todos aqueles procedimentos eletivos. Eles estão economizando muito nesse momento. Qual é a capacidade deles que está hoje destinada para o atendimento do novo coronavírus? Em locais onde tem muitos casos, como São Paulo e Rio, é onde o setor privado é muito presente. Na capital de São Paulo, 50% das pessoas têm plano de saúde, e mais da metade, 62% dos leitos de UTI estão nas mãos do setor privado que não atende o SUS hoje. Essa capacidade vai ser disponibilizada?

SÔNIA FLEURY Eu creio que as medidas do Ministério da Saúde foram adequadas porque eles adotaram um modelo que a OMS [Organização Mundial de Saúde] esteve todo o tempo recomendando, de isolamento. Essa é a parte boa do ministério, de dar uma orientação do isolamento, trazer dados epidemiológicos, mostrar que aquilo tinha uma base e não era achismo. E, ao mesmo tempo, fazer estudos sobre o Brasil foi muito importante. ​

Creio que, na parte da gestão do SUS [Sistema Único de Saúde], ela não foi tão boa. Por exemplo, ali nas entrevistas, a não ser na primeira vez que tinha o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, os estados e municípios, que são os que estão enfrentando a pandemia, não apareceram esse tempo todo. O ministério tomou para si toda a projeção, quando isso é uma pactuação que deveria estar constantemente sendo negociada para que cada um não fizesse o que bem entende. Muitas das críticas dos governadores e prefeitos diziam que os recursos não estavam chegando. Recursos do ministério, transferidos de uma área para outra, não chegaram rapidamente. Do ponto de vista da comunicação, o ministério foi muito bom, dando as orientações técnicas. Mas o sistema de saúde envolve três níveis de governo. E essa gestão deixou muito a desejar.

Outro ponto fragilizado é o fato de que essa pandemia vai ter consequências em toda a sociedade. Propugnar um pouco mais uma coordenação que envolvesse o Ministério da Agricultura para não ter desabastecimento, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] para investir na reconversão das indústrias, são questões que vão afetar a saúde da população. Isso está além da capacidade dele [ministro da Saúde], mas ele poderia ter sido um estimulador disso.

O grande furo de tudo isso, não só do ministro mas de todos os governadores e prefeitos, é que a favela e as periferias só apareceram no discurso muito tempo depois. Ou seja, todas as recomendações iniciais desconheciam para que Brasil você estava falando. Era um Brasil de classe média. Ficar em casa, fazer home office, lavar a mão não sei quantas vezes, usar álcool em gel. E as pessoas apinhadas nos trens, nos ônibus, tendo que trabalhar para tal classe média fazendo o home office? As empregadas domésticas foram as primeiras que pegaram o vírus e levaram para casa, sem um projeto, um plano de contingência emergencial para as periferias.

Depois de muitas entrevistas, ele [Mandetta] disse que foi na Rocinha, e que dava parabéns para o pessoal que estava se mobilizando e que estava pensando num plano-piloto para negociar com os traficantes e milicianos. A população da favela está reunida, organizada, o lema é "nós por nós", porque o governo não deu a menor importância sobre essa questão em nenhum dos níveis de governo até a doença pegar. E nem outras autoridades de outros níveis tiveram o olhar para onde está a população. Falaram para uma classe média como se o Brasil fosse um país de classe média. Não é.

No começo do ano, como a epidemia não estava aqui ainda, o ministério não levou em conta a necessidade de criar uma infraestrutura de recursos humanos e de equipamentos para isso. O ministro Mandetta foi também alguém que se opôs ao programa Mais Médicos, representando a classe médica que era contra isso. Mas a contratação, o treinamento de pessoas para saber como lidar com isso na própria atenção primária, essa parte não foi bem-feita. Outros países foram mais rápidos nisso, com a criação de testes, compra de equipamentos, tudo isso que era sabido que o país não tinha. A autoridade máxima não desconhecia isso. Então, foi bom para comunicar, dar recomendações, mas como gestor do sistema, faltou chegar dinheiro na ponta, faltou equipamento, faltou tomar as providências de UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e tudo mais a tempo, como a reconversão da indústria para fazer aqui os respiradores. Tudo isso não foi no tempo necessário.

Qual o impacto de uma troca do ministro em meio à pandemia?
MÁRIO SCHEFFER Acho que, de alguma forma, em função desse duplo comando e dessa descoordenação dentro do próprio governo federal, isso fez com que respostas estaduais e municipais se firmassem, por exemplo, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Aqui em São Paulo, o alinhamento da prefeitura com o governo do estado garante uma continuidade de tentar uma resposta local mais adequada. Isso, de alguma forma, atenuaria [uma troca de comando agora no ministério], mas óbvio que esperamos que essa mudança não comprometa parte dos esforços técnicos que o ministério vinha fazendo. ​

Vai depender muito da opção [de substituto]. Pode ser uma opção mais técnica que preserve algumas medidas que são de fato muito adequadas e respaldadas por conhecimento científico, como a vigilância epidemiológica em tempo real com total transparência de casos, a não adoção de, por exemplo, tratamentos sem evidências científicas mais definitivas, como a cloroquina, e claro, a não adoção de medidas de relaxamento. Se a opção for por uma radicalidade e por um perfil que passe por cima desse acúmulo, acho que os estados e municípios vão ter um papel ainda mais importante com a autonomia que eles têm.

Cabe ao Ministério da Saúde diretrizes, o repasse de recursos, mas estados e municípios têm redes próprias, têm orçamentos próprios, capacidade técnica própria, e como estamos falando de uma epidemia que se expressa de forma muito distinta nas regiões e nos estados, teremos também essa relevante resposta estadual e local. Isso poderia amenizar um pouco, caso a opção seja por uma ruptura com as decisões técnicas, baseadas em evidências.

O SUS estadual e o municipal têm essa capacidade. Mas não é o ideal, porque as diretrizes e recomendações são do ministério. São Paulo, que tem características que favorecem respostas locais, tem recursos em grande volume, tem alinhamento político entre prefeito e governador, mesmo assim tem fragmentação, dificuldade de coordenação. Se estamos falando da possibilidade da epidemia se pulverizar pelo resto do país, tem estados e municípios que dependem muito do ministério. Não é homogêneo.

O comando único é algo que nós aprendemos com os outros países – precisa ter uma gestão coordenada e unificada de resposta e isso precisa ser feito pelo Ministro da Saúde. Seja para reduzir a transmissão da doença, para reforçar o distanciamento social, para solucionar a questão da testagem. Por exemplo, hoje, as compras, quanto mais centralizadas no Ministério da Saúde, melhor. Imagine, com a dificuldade de comprar insumos, testes, as compras sendo feitas por municípios, por estados, organizações. Por isso precisa do ministério, para ações não só de vigilância sanitária, mas da produção de fornecimento de insumos. Quanto mais centralizada for, melhor pode ser a capacidade de resposta.

SÔNIA FLEURY É ruim porque você desorganiza uma linha de trabalho que pode ter deficiências, mas que estava funcionando e que podia corrigir as deficiências. Agora, vai começar com outra cabeça, outra equipe? É claro que o Ministério da Saúde tem sua base técnica, assim como o sistema de saúde todo tem. Não era o ministro que fazia aquilo tudo. Ele é a figura que aparece, mas você tem a base. Não sei quem pode vir no lugar dele. Não podemos imaginar que possa vir um Osmar Terra [deputado federal que nega os riscos do vírus], que acha que tem que estar todo mundo na rua tomando cloroquina. Ele é alguém que está adotando um discurso bárbaro, do próprio presidente. Isso seria a pior das hipóteses. ​

Pode ter uma solução que seja um dos diretores que estão no próprio Ministério da Saúde, o que teria menos consequências. Vai ter uma consequência política, claro. Uma pessoa que está com uma aceitação dessa, que está sendo visto como um "salvador da pátria" diante da barbárie que estamos vivendo. Vai ter uma consequência política bastante séria nesse arranjo e tensão entre o presidente e os ministros. Mas o presidente faz as apostas dele. Ele governa provocando conflitos e não buscando consensos. O único problema é que tem que ter uma solução federativa para enfrentar uma pandemia. O Brasil é uma federação. Não pode cada um fazer o que bem entende e o presidente fazer o contrário. A atitude dele não ajuda em nada e depende muito de quem vai estar no ministério para ver se consegue alinhar e dar continuidade ao que tinha sido feito e tentar superar o que não foi feito ainda.

 

[Podcast] Pandemia devasta periferias. Que fazer?[editar | editar código-fonte]

Entrevista publicada originalmente em 20 de abril de 2020, no blog Outras Palavras.

Tiaraju Pablo D’Andrea em entrevista a Rôney Rodrigues, no Tibungo. Acompanhe o Tibungo pelo streaming.

Coronavírus já mata mais nas favelas. Morador de Itaquera, professor da Unifesp analisa: só com propostas radicais (e viáveis) e organização popular poderemos resistir à crise — e construir novo mundo solidário. Mas Estado precisará agir.

As periferias de São Paulo já concentram o maior número de mortes suspeitas de coronavírus, segundo dados divulgados pela Secretaria Municipal da Saúde. O sistema de Saúde público está à beira do colapso. Faltam hospitais, testes, campanhas e kits de higienização e prevenção. Os prometidos 600 reais da renda básica emergencial tardam. Enquanto isso, as contaminações aumentam, especialmente nessas áreas populosas, com habitações insalubres e sem saneamento básico. Milhares poderão morrer nas próximas semanas. Os governos sequer articulam planos emergenciais levando em conta a realidade das periferias e favelas. 

Agora que o vírus se propagou pelas periferias, militares, em diversos estados, checam a capacidade de cemitérios – e um colapso funerário, como o do Equador, é possibilidade real no Brasil. A pandemia extrapolará o extermínio da população empobrecida e negra das periferias. Mas será possível resistir? A autogestão das comunidades e as redes solidárias poderão mitigar essa catástrofe? Aumentará a repressão e o controle nos arrabaldes da metrópole sob justificativa do confinamento?

Nessa edição de Tibungo, conversamos com Tiaraju Pablo D’Andrea, professor da Universidade Federal de São Paulo no Campus Zona Leste e coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP), que reúne moradores de bairros fora do centro de São Paulo que produzem conhecimento e incidir sobre a realidade onde vivem. No começo de abril, o CEP formulou 23 propostas instigantes e viáveis para combater o coronavírus nas periferias. Entre elas, congelar preços do botijão de gás e da cesta básica, suspensão dos aluguéis e contas de luz e água e a montagem urgente de hospitais de campanha nas escolas e terrenos ociosos da periferia.

Ações emergenciais, como essas e outras propostas, são cruciais para evitar que a pandemia devaste os arrabaldes das metrópoles, principalmente em um momento em que perfil das mortes por covid-19 parece ter mudado. Se antes era marcadamente de classe média e alta, pessoas que viajaram para fora do país e estiveram em contato com estrangeiros, agora são os moradores das periferias e favelas. 

Confira abaixo as medidas emergenciais propostas pelo CEP:

• Montagem urgente de hospitais de campanha nas escolas e terrenos ociosos das quebradas;

• Distribuição de água com a disponibilização de caminhões pipas para regiões que não tem saneamento básico;

• Distribuição gratuita de kits de higiene, limpeza e prevenção (álcool gel, álcool líquido, sabonetes, toalhas, escovas de dente, pastas de dente, máscaras);

• Suspensão da cobrança de contas de água e luz;

• Suspensão da cobrança de parcelas e juros de financiamentos em geral, incluindo as famílias com dívidas com a Caixa;

• Suspensão da cobrança aluguéis residenciais e comerciais;

• Congelamento do preço do botijão de gás e dos alimentos da cesta básica;

• Compra de itens de primeira necessidade dos comércios de bairro, por parte do poder público, para distribuição gratuita nas quebradas;

• Rápida liberação dos recursos da renda mínima para trabalhadores/as informais e desempregados;

• Manutenção da distribuição de merendas nas escolas nas regiões mais pobres;

• Campanha de conscientização mais amplas, com carros de som, músicas e vídeos que dialoguem com as quebradas;

• Não à policialização da situação, evitando o aumento do encarceramento;

• Não ao isolamento vertical. Nas periferias, diversas gerações da mesma família dividem a mesma casa ou o mesmo quintal com frequência. Quem tiver a obrigação de sair pra trabalhar, vai certamente trazer o vírus para casa;

• Reforço às medidas de proteção para quem trabalha em setores essenciais, como transportes, supermercados, feiras livres, farmácias, fábricas, abastecimento, entre outros;

• Transferência de pessoas que fazem parte dos grupos mais vulneráveis para quartos adequados de hotéis disponibilizados pelo poder público.

• Descentralização dos kits de testagem do centro para os bairros de periferia em UPAs e UBS, com orientação e insumos para o gerenciamento de casos menos graves. Essa medida evitaria também deslocamentos desnecessários;

• Ampliação da rede de wi-fi grátis nas periferias;

• Estabelecimento de fluxo para o abrigo de mulheres em situação de risco de morte com a desburocratização imediata do acesso às Casas-Abrigo para as mulheres, dispondo de um número público que disponha de vagas para o abrigo emergencial em caso de violência, além do acolhimento das demais demandas divulgadas em Nota pela Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da Zona Leste

• Não fechamento do atendimento no hospital de referência em aborto legal, tendo em vista que são procedimentos que não podem esperar e que devem sofrer um aumento de demanda durante o período de confinamento, junto com a violência doméstica;

• Não à diminuição da quantidade de trens e metrôs, evitando assim aglomeração no transporte de trabalhadores de serviços essenciais;

Como medidas para conter a crise, o Centro de Estudos Periféricos recomenda também:

• Taxação das grandes fortunas e vinculação desses recursos ao SUS;

• Suspensão imediata do pagamento dos juros da dívida pública;

• Fim do teto de gastos para saúde e educação;

 

Como o Brasil, com favelas e desigualdade social, deveria responder ao coronavírus, por Jornal GGN[editar | editar código-fonte]

Originalmente publicado por Jornal GGN, no dia 12 de maio de 2020.

"Não dá para entender porque ainda não estamos fazendo um planejamento para usar a atenção básica nessa resposta", diz especialista.

Jornal GGN – Márcia Castro, professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard, explicou em entrevista ao virologista Átila Iamarino, o que o Brasil poderia ter feito para enfrentar o coronavírus desde o começo da pandemia, em vez de apenas copiar medidas adotadas em países europeus e asiáticos que têm condições socioeconômicas diversas da realidade brasileira.

Para a especialista em doenças infecciosas, o Brasil vacila em não usar as equipes de saúde da família como “detetives”, para mapear e rastrear os casos de coronavírus e, assim, viabilizar o monitoramento da quarentena de quem precisa, freando a propagação da doença.

“O benefício, ele é tão amplo que não dá para entender porque ainda não estamos fazendo um planejamento para usar a atenção básica nessa resposta”, disse.

Associada a essa medida, nas regiões de alta densidade populacional e condições precárias de moradia, ela propôs que os governos locais firmem parcerias com o setor privado para alugar quartos de hotéis ociosos, e hospedar temporariamente as pessoas com suspeita ou confirmação de COVID-19 que dividem a casa com muitos outros familiares. Seria uma forma de viabilizar o distanciamento social nas favelas, bolsões de pobrezas que não conferem com a realidade de países europeus que optaram pelo lockdown.

“O Brasil teoricamente tinha a chance de dar uma das melhores respostas durante a pandemia. O País conta com um sistema universal de saúde, tem um dos maiores programas de atenção básica do mundo – o programa Saúde da Família atende 75% da população brasileira”, comentou Castro, para quem o País “está deixando passar a oportunidade de usar os programas que já têm.

”O papel dos agentes comunitários tem sido “mínimo”. “Não há prevenção em campo. O foco do Ministério da Saúde foi no atendimento clínico”, avaliou. “A gente tem alguns times de saúde trabalhando que dependem das lideranças locais, e não de uma diretriz nacional”, criticou.

Para ela, o Brasil não só perdeu a oportunidade de fazer uso da rede de atenção básica que já dispunha, como ainda vem pecando por causa do discurso desajustado de Jair Bolsonaro, que leva parte da população a duvidar da ciência e não obedecer às recomendações sanitárias.

 

Epidemia além do SUS, por Cátia Guimarães[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado em EPSJV/Fiocruz, em 13 de maio de 2020.

Para combater o coronavírus e minimizar seus efeitos sobre a população de rua, moradores de favela, idosos em situação de asilo e outros segmentos vulneráveis, especialistas e militantes destacam a importância de políticas integradas de proteção social.

De que adianta proteger a própria saúde se o preço disso é não conseguir colocar comida na mesa? Com versões variadas, frases como essa têm permeado o discurso de empresários, gestores e entidades que reivindicam o fim do isolamento social como estratégia de controle do coronavírus no Brasil. O dilema parece real. A saída é que merece ser discutida: afinal, há quem garanta que, mais do que evitar a oposição entre saúde e economia, como tem sido defendido, o caminho é recuperar a articulação originária da saúde com outras políticas sociais. Desempregados, trabalhadores informais, população de favela, moradores de rua, idosos em abrigos: é grande e variada a parcela da população brasileira que vive numa situação de vulnerabilidade que a epidemia agravou – e escancarou. “Essas pessoas agora são chamadas de invisíveis, mas a gente encontra com elas na rua todos os dias”, diz Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz e coordenadora da plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Quando definiu a saúde como parte da Seguridade Social – que inclui também a previdência e a assistência social –, a Constituição brasileira já reconhecia que, sozinho, mesmo um sistema público e universal como o SUS não daria conta de garantir as condições necessárias a uma vida realmente saudável. E isso independentemente de qualquer contexto de pandemia. Ivanete Boschetti, assistente social e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que isso remete à importância de um sistema de proteção social, composto por um conjunto de políticas que tem a seguridade como seu “núcleo duro”, mas que precisa ir além. “Estamos falando da necessidade de um Estado Social que intervenha, que tenha uma ação ativa na regulação das ações econômicas e sociais, de modo a proteger a sociedade, mas sobretudo a classe trabalhadora, dos efeitos da desigualdade”.

Salta aos olhos a carência de várias outras políticas de “infraestrutura”: moradia, lazer, saneamento básico, acesso digital, entre outras

Por isso, ela destaca que uma das medidas mais importantes desse sistema de proteção social que hoje faz tanta falta no Brasil é exatamente a garantia de trabalho e emprego com direitos – o oposto do cenário que a epidemia encontrou por aqui. Batendo recordes históricos, na virada do ano, o país já somava 12 milhões de desempregados e 38 milhões de trabalhadores informais. “Não adianta criar um recurso emergencial de R$ 600 durante três meses se essas pessoas continuarão nesta condição quando a epidemia acabar”, alerta Ivanete. Em seguida, ela cita a importância das políticas de educação formal e não formal, destacando como a desinformação neste momento pode prejudicar a adesão às formas de prevenção da doença, o que se torna um obstáculo a mais, além das dificuldades concretas que essa parcela da população já enfrenta para cumprir o isolamento.

E é aqui que salta aos olhos a carência de várias outras políticas que a professora caracteriza como de “infraestrutura”: moradia, lazer, saneamento básico, acesso digital, entre outras. “Definir como principal medida o isolamento social sabendo que 40% a 50% da população brasileira não tem condição para isso é viver no mundo da fantasia”, resume Sonia Fleury. E a crítica não é voltada ao isolamento, mas à falta de uma ação coordenada pelo Estado e articulada com a sociedade civil. “Nenhuma prefeitura, que eu saiba, fez um plano de contingência específico para quem não pode se isolar, para quem não tem água [para lavar as mãos] nem dinheiro para comprar álcool gel”, diz, referindo-se às três medidas mais promovidas no controle da contaminação. E completa: “A pessoa não pode trabalhar, não pode sair, não tem dinheiro porque é [trabalhador] informal. Não pensaram em uma internet livre, por exemplo, para que as pessoas pudessem ficar melhor em casa. Não pensaram em dar comida, não pensaram em fazer chegar o auxilio emergencial às pessoas sem que elas precisassem ir para a fila. Não pensaram na realidade dos pobres do Brasil”.

A carência nas ruas

Foi pela redução das ações solidárias, e não por qualquer iniciativa dos governos, que parte desses “pobres do Brasil”, a população em situação de rua, descobriu que havia uma pandemia por aqui. Quem conta é Vania Rosa, ex-moradora de rua que hoje promove um projeto chamado Juca, Juntando os Cacos pela Arte, e integra o Fórum Permanente Sobre População Adulta em Situação de Rua do Rio de Janeiro. Ela conta que, já no início de março, a população de rua do município começou a perceber que Organizações Não-Governamentais (ONGs), projetos sociais e voluntários em geral que, cotidianamente, distribuem comida e promovem outras ações semelhantes, começaram a desaparecer. Num esforço de se antecipar à tragédia, ainda no dia 17, o Fórum, junto com outras entidades, emitiu uma nota em que lista dez propostas que buscam minimizar os efeitos da epidemia sobre essa população. “A principal medida para se combater o coronavírus é o isolamento social. Contudo, só na capital, quase 20 mil pessoas não têm casa para morar”, explica o texto – embora, de acordo com Vania, ao longo desses quase dois meses de epidemia esse número tenha aumentado, com a migração de moradores de rua de outras cidades para o centro.

“Se você sentar com um morador de rua para conversar, vai ver toda a falta de política pública concentrada ali, naquela pessoa"
Vania Rosa

Entre as medidas sugeridas, há mudanças mais estruturais – como a suspensão da Emenda Constitucional 95, que instituiu um teto de gastos para o governo federal, e a interrupção dos obstáculos ao recebimento do Bolsa Família e do BPC, Benefício de Prestação Continuada, voltado para idosos e deficientes de baixa renda. Mas a maior parte das ações propostas eram de efeito imediato e de responsabilidade do governo local. Disponibilizar pias e banheiros químicos para facilitar a higiene, ofertar pequenos abrigos – com prioridade para o acolhimento de idosos, que são grupo de risco da Covid-19 –, distribuir tickets para almoço nos restaurantes populares e contratar novas equipes dos Consultórios de Rua são algumas das propostas que, de acordo com Vania, não se tornaram realidade.

Segundo ela, a única medida concreta anunciada foi a construção de um abrigo no sambódromo do Rio. Com a denúncia de entidades e movimentos sociais – inclusive o próprio Fórum – de que as 460 vagas inicialmente prometidas não caberiam no espaço com as devidas condições de proteção, elas foram reduzidas para 180, sem que novas alternativas fossem providenciadas. “Nossa proposta era utilizar estádios, escolas que estavam fechadas e outros prédios públicos como abrigo, em vez de construir”, diz Vania. Ivanete completa: “A assistência poderia organizar espaços de acolhimento, abrigos abertos para essas pessoas dormirem, tomarem banho, se alimentarem, mesmo que durante o dia elas trabalhem na rua. Muitos trabalham como catadores, por exemplo, mas não têm como voltar para casa, porque é muito longe ou porque não têm família”.

Especificamente no caso do Rio de Janeiro, no dia 8 de maio, uma ação da Defensoria Pública junto com o Ministério Público Estadual resultou na determinação de que o estado e o município, além da empresa responsável pelo abastecimento na região, a Cedae, devem garantir acesso à água e condições de higiene durante a pandemia à população de favelas e moradores de rua. Neste último caso, a decisão orienta a “instalação de pontos de água ou pias e torneiras comunitárias em praças e logradouros públicos”.

Promovendo ações cotidianas para a população em situação de rua durante todo esse tempo, no momento em que esta reportagem era finalizada, Vania comemorava que ainda não tinha se deparado diretamente com nenhuma morte por coronavírus nas ruas do Rio. “Mas eu estou vendo um povo assustado”, diz. Além disso, ela não tem dúvida de que as condições já precárias em que eles viviam se agravaram com a epidemia, com a redução ainda maior dos Consultórios de Rua e das ações solidárias que passam ao largo do poder público. “O que tinha antes se tornou dez vezes pior”, lamenta.

Como se não bastasse, essa população tem muita dificuldade de acessar a principal medida concreta de assistência social que foi implementada em função da epidemia, o auxílio emergencial de R$ 600. “Eles não têm celular, muito menos computador”, exemplifica, ressaltando ainda que existem outras barreiras, já que “muitos não têm documentos” e o cadastro requer que se informe o CPF. “Como garantir o auxílio emergencial das pessoas em situação de rua se você não tem, por exemplo, equipamentos de proteção individual e coletivos para chegar até elas?”, reforça Ivanete. Segundo Vania, a Defensoria Pública do Rio tem buscado formas de reduzir esses obstáculos e iniciativas voluntárias da sociedade civil organizada têm tentado ajudar parte dessa população a se cadastrar e receber o recurso, mas isso se dá de forma pulverizada, sem qualquer centralização ou coordenação do poder público. “Se você sentar com um morador de rua para conversar, vai ver toda a falta de política pública concentrada ali, naquela pessoa”, resume.

Assistência social em crise

Um dos espaços mais procurados por essa e outras populações vulneráveis são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), mas aqui novamente se esbarra num conjunto de deficiências que vêm de muito antes da epidemia. Para se ter uma ideia, descontando-se o Bolsa Família e o BPC, que são as duas principais ações estruturantes e nacionais empreendidas pela área, o orçamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) previsto para 2020 foi quase metade do de 2012, oito anos antes. E, de acordo com Ivanete, excetuandose o auxílio emergencial, que é considerado uma ação da assistência, nacionalmente não foi divulgado qualquer recurso extra para as políticas sociais de combate aos efeitos da epidemia. No desenho orçamentário da assistência, a maior parte dos recursos – que vêm escasseando – são transferidos pelo governo federal.

Espera-se o investimento próprio dos municípios e estados mas, diferente da área da saúde, não existe aplicação mínima para cada ente federado prevista em lei. “Não tem como manter as condições que o serviço social exige nessa pandemia, não há recursos para garantir esses serviços socioassistenciais que são muito mais demandados agora. Então a gente está vendo situações terríveis: as pessoas buscam os CRAS e eles estão fechados ou tem uma pessoa lá atrás do vidro para dizer que não estão atendendo”, alerta Ivanete.

Nessa combinação de uma carência que vem de longe com os agravos da epidemia, são vários os problemas sociais que acabam sendo invisibilizados. Ivanete lembra que uma ação “muito concreta” dos CRAS é  voltada para crianças e famílias vítimas de violência doméstica ou sexual. “Nessa pandemia, os trabalhadores não têm nem condições de fazer esse trabalho”, denuncia. E completa: “A gente não sabe o que está acontecendo com essas pessoas durante o isolamento social. Está-se falando do aumento da violência contra a mulher, mas e quanto à criança e o adolescente? [A preocupação é] tanto a violência física e simbólica quanto a própria exploração sexual, que muitas vezes acontece dentro de casa, na família”.

Também não se tem informações precisas, embora já apareçam notícias nos principais meios de comunicação, sobre casos, mortes e mesmo surtos de Covid-19 em asilos para idosos em diversas cidades. No final de abril, a maior parte dos casos que tinham vindo a público referiam-se a instituições privadas. Mas isso não reduz a preocupação com os asilos públicos, que, segundo Ivanete Boschetti, acumulam um histórico de desfinanciamento. De acordo com a professora, a carência chega ao ponto de ter lugares que pedem contribuição aos idosos para a sua manutenção, o que, além de flexibilizar o caráter público desse serviço, ainda cria barreiras de entrada, porque acaba-se priorizando, por exemplo, usuários que recebem o BPC e portanto têm alguma renda para colaborar. “Se você não tem condições adequadas neste momento, isso vai impactar diretamente no aumento das pessoas contaminadas, seja as que estão nos abrigos de assistência, seja aquelas que estão em casa, mas em moradias com pequenos cômodos e alta concentração de moradores”, diz a professora. E, sem ações concretas para esses espaços, o discurso da prevenção acaba se descolando da realidade. “Como é que você vai falar para uma pessoa se isolar num quarto da Rocinha onde não tem nem janela?”, questiona Sonia Fleury, referindo-se à maior favela do país, localizada no Rio de Janeiro.

Nas casas e ruelas da favela

Esse é o caso de 13,6 milhões de pessoas que vivem em favelas no Brasil, segundo dados de uma recente pesquisa desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva. No último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, esse número era de 11,4 milhões. Já segundo Geovana Borges, presidente da Central Única de Favelas (Cufa) de São Paulo, essa população hoje beira os 16 milhões. “O que o IBGE chama de aglomerados subnormais nós chamamos de favela”, explica.

De acordo com Geovana, é preciso levar em conta que a realidade da favela é completamente diferente da do asfalto. “É um território aonde nada chega”, diz. E exemplifica: toda a população está tendo que mudar – e intensificar – hábitos de higiene, mas como fazer isso num espaço que não tem saneamento básico? O distanciamento físico é outro desafio, num território em que, segundo ela, vivem de seis a nove pessoas por metro quadrado. Exatamente pelas condições de moradia, em vários pontos do Brasil, as favelas se destacam, inclusive, na quantidade de casos de tuberculose, uma importante comorbidade da Covid-19. Isso sem contar o papel dos moradores dessas comunidades na economia e na prestação de serviços em geral das cidades brasileiras. “Para que o asfalto faça quarentena, a favela tem que trabalhar”, lamenta.

"Se houvesse um plano de contingência feito onde as pessoas estão, ele necessariamente envolveria os agentes comunitários de saúde, os CRAS e toda a área assistencial que está localizada junto à população. São essas pessoas que conhecem os pobres"
Sonia Fleury

É por isso que, entre tantas coisas de que esses territórios precisam neste momento, na avaliação de Geovana a mais urgente é renda. “As mães das favelas são as mais prejudicadas. Muitas tiveram que deixar seus empregos para ficar com os filhos”, conta, alertando que, seja por falta de informação ou de acesso à tecnologia, entre outras razões, nem o auxílio emergencial criado durante a epidemia tem conseguido chegar devidamente a essas comunidades. “Tem gente que não tem internet, que não tem conta bancária... E falta informação. Esse processo não tem sido didático na favela. O resultado são aglomerações nas portas da Caixa Econômica. Tem gente que nem se cadastrou e está na fila achando que vai resolver”, explica. Em compensação, por meio de doações de empresas e pessoas físicas, a própria Cufa conseguiu fazer o pagamento de 50 mil mães de favelas distribuídas pelo Brasil. A estratégia foi dupla: um sistema online para quem tinha internet e, para quem não tinha, a entrega de tickets pessoalmente, a cada mulher, com a ajuda de lideranças locais. “Se houvesse um plano de contingência feito onde as pessoas estão, voltado para as pessoas e não para os burocratas, ele necessariamente envolveria os agentes comunitários de saúde, os CRAS e toda a área assistencial que está localizada junto à população. São essas pessoas que conhecem os pobres, a maneira que eles vivem, o que eles precisam”, diz Sonia Fleury.

Logo que a epidemia chegou por aqui, a Cufa produziu um documento com 14 recomendações ao poder público para reduzir o impacto do coronavírus nas favelas. Algumas delas acabaram se concretizando com foco na população em geral. É o caso da demanda pela criação de uma renda mínima e do apoio para que empresas de água, luz e gás suspendessem o pagamento das contas por até 60 dias – o que aconteceu só parcialmente e mesmo assim foi objeto de batalha jurídica. Exemplos de outras propostas, que não foram implementadas, são a ampliação das equipes de Saúde da Família nas favelas, o aluguel de pousadas e hotéis para idosos e grupos vulneráveis e “apoio específico” para famílias cujas crianças não estavam podendo frequentar a creche e com pessoas portadoras de deficiência. 

Os ‘sem-tecnologia’

Nessa mesma lista produzida pela Cufa, duas recomendações se referiam ao acesso à informação. Uma sugeria o “financiamento para as redes de comunicação próprias de cada favela”, como jornais, sites e rádios comunitárias. Outra defendia a liberação de pontos de internet “para garantir acesso universal à rede”. E essa é outra bandeira que vem sendo empenhada por entidades e movimentos tanto do campo da democratização da comunicação quanto da área de educação. Isso porque a solução encontrada principalmente pelas secretarias estaduais de educação para superar o fechamento das escolas durante o isolamento social tem sido a oferta de ensino remoto, o que esbarra na dificuldade de acesso que parte da população mais pobre tem à internet, entre outros problemas (sobre isso, leia mais aqui aqui). “As pessoas não têm internet livre e não vão gastar o pouco de dinheiro que têm comprando planos de dados maiores”, alerta Sonia Fleury, ressaltando que esse acesso é importante também para facilitar o isolamento. “Os jovens não aguentam ficar trancados sem internet”, diz.

Por tudo isso, ainda em março o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social protocolou um requerimento para que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) emitisse uma “liminar proibindo a suspensão de serviços de conexão à Internet móvel ou fixa por 90 dias, incluindo o bloqueio da navegação em caso de atingido o limite da franquia”. A iniciativa teve apoio de parlamentares e várias entidades científicas e sindicais. “Neste cenário, a garantia de acesso à conexão é fundamental para garantir que os cidadãos possam ficar em casa e seguir, na medida do possível, com suas atividades, especialmente as produtivas”, diz o site do Intervozes. Na mesma direção, a Coalizão Direitos na Rede, composta por 38 organizações da sociedade civil e pesquisadores, enviou ao Congresso Nacional um ofício em que pede, “como medida emergencial”, a aprovação de um projeto que garanta o “acesso da população aos serviços de telecomunicações e, em especial, à conexão à Internet fixa e móvel, mesmo em caso de atraso de pagamento, eventual inadimplência ou atingido o limite da franquia, sendo alternativa adequada a redução da velocidade, até o final efetivo da crise”.

4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, o equivalente a 17% dessa população, vivem em casas sem acesso à internet no Brasil. Nas áreas rurais, a exclusão chega a 25% dessa faixa etária

E os números apresentados no documento não deixam dúvidas sobre a necessidade. Citando dados da pesquisa TIC Domicílios, de 2018, o ofício mostra que 33% das residências brasileiras não têm conexão com a internet, número que sobe para 59% nas classes D e E. Mesmo entre os “domicílios conectados”, 27% do geral e 47% das classes D e E só acessam a internet pelo celular. Por fim, de acordo com a Anatel,
55% dessas conexões móveis se dão na modalidade pré-paga, com baixos limites de tráfego de dados, o que se repete nos chamados clientes “controle” que têm planos pós-pagos.

Dados preliminares da pesquisa TIC Kids Online 2019, divulgados agora no dia 12 de maio atualizam esse cenário. De acordo com o estudo, 4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, o equivalente a 17% dessa população, vivem em casas sem acesso à internet no Brasil. Nas áreas rurais, a exclusão chega a 25% dessa faixa etária. Ela é maior também nas regiões Norte e Nordeste (21%) e entre as classes D e E, em que chega a 20%. Além disso, a pesquisa mostra que 11% dessas crianças e jovens não tinham acessado a internet nem em casa nem em qualquer outro espaço nos três meses anteriores à entrevista, o que as classifica como uma parcela da população não usuária da rede. “Em tempos de coronavírus e isolamento social, a rede se torna ainda mais importante para garantir a continuidade da aprendizagem, manter contato com amigos e cuidar da saúde mental, se proteger contra a violência e ter acesso a informações confiáveis”, afirma o texto da Unicef Brasil, propondo que o governo federal e as empresas de telefonia “invistam para prover o acesso livre à internet para todas as famílias vulneráveis”. A entidade propõe, concretamente, que todas as famílias beneficiárias do auxílio emergencial ou que tenham renda percapita mensal menor que R$ 178 tenham garantido acesso gratuito à internet.

Tudo junto e misturado

Tudo isso ajuda a compor o retrato de um país cuja desigualdade social já era alarmante muito antes de a pandemia chegar por aqui. Dados do FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas, divulgados em agosto do ano passado mostravam que, nos últimos cinco anos, a renda per capita do 1% mais rico da população cresceu 10,1% acima da inflação enquanto a dos 50% mais pobres caiu mais de 17%. “Nunca tivemos um sistema de proteção social amplo, universal, que tivesse de fato um comprometimento responsável, permanente e regular com a redução das desigualdades sociais”, lamenta Ivanete, ressaltando que nenhuma iniciativa nesse sentido se sustenta “só com saúde, previdência e assistência”. Ainda mais quando essas políticas sofrem um longo processo de subfinanciamento.

“O que a pandemia está fazendo é revelar para o Brasil uma condição de desigualdade, de falta de acesso e de inexistência desse sistema de proteção social que as pessoas que pesquisam e estão mais vinculadas a movimentos de defesa dos direitos humanos já vinham avisando há muito tempo"
Ivanete Boschetti

A chegada da Covid-19 tem todos os elementos para agravar ainda mais esse cenário. Primeiro na expressão da própria doença e da sua letalidade – já que nas aglomerações das favelas, dos asilos, dos ônibus lotados e outros espaços semelhantes, o vírus encontra condições mais favoráveis de transmissão. Segundo, pelo agravamento de uma crise econômica que é anterior à epidemia e já castigava os mais pobres. Ivanete resume: “O que a pandemia está fazendo é revelar para o Brasil uma condição de desigualdade, de falta de acesso e de inexistência desse sistema de proteção social que as pessoas que pesquisam e estão mais vinculadas a movimentos de defesa dos direitos humanos já vinham avisando há muito tempo”.

 

Pode haver ministério da Saúde sob Bolsonaro?, com Sonia Fleury[editar | editar código-fonte]

Publicado em 19/05/2020, no blog Outras Palavras.

Pesquisadora da Fiocruz questiona papel do ministro, em governo de pensamento único. Pasta, historicamente pautada pela ciência, é empecilho ao presidente — que conta com aval grotesco do CFM. Agora, “só teremos saúde com a democracia”.

Sonia Fleury em entrevista a Maíra Mathias, no Tibungo

OUÇA A ENTREVISTA COMPLETA AQUI, no Tibungo.

Nelson Teich não durou nem um mês no ministério da Saúde. Sua saída, anunciada na última sexta-feira, abriu espaço para que um general assumisse o comando da pasta. Eduardo Pazuello é uma figura totalmente estranha à Saúde. Nomeado por Jair Bolsonaro para tutelar o ex-ministro e não deixar se repetir uma atuação como a de Luiz Henrique Mandetta, visto como insubordinado pelo Planalto, o general levou consigo dezenas de fardados, numa verdadeira ocupação militar do Ministério – algo que não aconteceu nem mesmo na ditadura.

Não sabemos por quanto tempo Pazuello será ministro, mas ele tem uma missão clara: redigir um novo protocolo nacional sobre a cloroquina que agrade Bolsonaro. O presidente, que tinha aparentemente se esquecido da substância, voltou à carga total na semana passada. A exigência de que o Ministério da Saúde orientasse seu uso aos menores sintomas da covid-19 foi a gota d´água para Teich. Mas toda a história demonstra algo muito mais grave: no meio da pior pandemia que várias gerações já viram, a autoridade sanitária nacional não tem autoridade nenhuma.

Para discutir como tudo isso pode afetar o futuro do SUS convidamos alguém que participou da redação do capítulo que criou o Sistema Único na Constituição. Nossa analista da semana é a sanitarista Sonia Fleury.

O Brasil abriu a semana ostentado mais um número preocupante. Com 254 mil casos, ultrapassamos o Reino Unido e passamos a ocupar o terceiro lugar no ranking dos países com mais infecções confirmadas no mundo. Tudo isso parece ser um pequeno detalhe para o governo Bolsonaro que se empenha mesmo em distrair a população da tragédia e animar sua base de apoio nas redes sociais.

Assim, o presidente parece não ter pressa para substituir o general no comando do Ministério da Saúde. E pode entrevistar para o posto figuras tão bizarras quanto o youtuber Italo Marsili, discípulo de Olavo de Carvalho talhado para a radicalização política virtual com suas reinações de que mulheres votam porque são seduzidas pelos candidatos. Tudo isso distrai das falhas no envio de respiradores para estados, do atraso na sanção do pacote emergencial para estados e municípios, do caos que é o sistema de cadastro para o auxílio emergencial de R$ 600, e do loteamento de cargos para o Centrão – que vai abocanhar uma parte do Ministério da Saúde, inclusive.

 

Articulação das favelas reacende luta social, com Preto Zé (CUFA)[editar | editar código-fonte]

Entrevista originalmente publicada no blog Outras Palavras, em 22 de maio de 2020.

Uma das marcas mais negativas do Brasil são as desigualdades, e diante da pandemia da covid-19 novas faces dessas desigualdades se manifestam. A doença entra no país pelas classes média e alta, mas é na periferia que morrem mais pessoas. Não obstante, a vida na favela definha diante do isolamento social que é necessário para frear o contágio. Sem nenhum apoio, o morador dessas zonas, que já vive com tão pouco, está entre os riscos da contaminação e a emergência de trazer comida para a mesa. “Estamos num mesmo mar, numa mesma tempestade, mas nem todo mundo está no mesmo barco. Alguns estão de jet ski, outros de lancha e muitos sequer com uma boia”, observa Preto Zezé, um dos articuladores da Central Única das Favelas, a Cufa. O grupo, que já vinha atuando nas periferias brasileiras, diante desse cenário de desespero teve de mudar o foco. “São situações emergenciais, é um naufrágio e nós estamos levando boias para que as pessoas não morram afogadas”, completa.

O  IHU buscou esse contato com Preto Zezé via WhatsApp para tentar compreender como a Cufa tem se articulado. Bem ou mal, enquanto a comida demora a chegar via ações estatais e ações do governo geram filas e mais desespero na porta de bancos, a ONG de Preto Zezé consegue recolher, separar e distribuir alimentos, além de apoio psicológico e financeiro. “O que nós estamos fazendo é tomar consciência de que estamos agora construindo o futuro. Ninguém sabe o que será da favela no pós-covid. O que nós sabemos agora é que já começamos a ter problemas seríssimos”, destaca. Por isso, a Cufa quer ser rápida nas ações, ligando quem precisa com quem quer ajudar. “A sociedade civil e empresas têm construído uma coisa inédita no Brasil nesse momento de polarização e de divisão do país: é uma agenda em torno do combate à desigualdade e de ajuda emergencial”, reforça.

Ao longo de toda a entrevista, Preto Zezé detalha como está sendo o trabalho, os desafios, mas principalmente relata como é viver em tempos de pandemia na favela. “A pessoa não tem como ficar em casa. Na busca pelas necessidades básicas, sai para a rua, correndo o risco de pegar o vírus, pois a outra opção é ficar em casa com fome e sem dinheiro”, relata. Aliás, essa experiência de atuação desde dentro da favela é que traz um diferencial para a Cufa, que vê na hora o que é de fato mais emergente na comunidade. “Por isso, defendo que se deveria apostar em frentes de emergência nas favelas. A Cufa montou uma logística em mais de cinco mil favelas, com mais de 100 mil voluntários. O Estado deveria botar grana nisso, fortalecer isso, linkar isso a políticas de saúde, de prevenção e de monitoramento e tudo isso lá na ponta”, sugere.

No entanto, numa leitura mais apressada, pode-se concluir que pelas vias do chamado terceiro setor, de ONGs, voluntários e empresas privadas, Preto Zezé defende uma redução do Estado. Afinal, esse terceiro setor se mostra mais conectado com a realidade e com maior capacidade de resposta rápida. Mas não é isso que defende. Para ele, a experiência da pandemia tem de servir para que pensemos numa outra agenda política. “É necessário agora, com essa crise, ver que temos a possibilidade de reconstruir a luta social que, ao invés de ser pautada pela política, pode ser pautada por esses grupos que estão inseridos nesses ambientes de periferia”, aponta. E enfatiza, indicando que o momento “é propício para fazer essa virada de página, a retomada dessa agenda”.

Para a Cufa, há relação com apoio não só de parceiros, mas do próprio Estado. É por isso que defendem também a ideia de renda básica universal, por exemplo. “Defendemos que a renda básica emergencial que está aí agora seja permanente, porque ela começa a apontar perspectiva de organização na cabeça das pessoas. Se a gente tira a perspectiva delas, se a gente não atender e não abrir possibilidade, não acredito que pais e mães vão ficar olhando seus filhos chorarem de fome, morrerem de fome, enquanto olham para prateleiras lotadas de comida em outros lugares. Aí é o caos e o colapso, é anomalia, não gosto nem de pensar nisso”, reflete.

Preto Zezé é presidente global da Central Única das Favelas – Cufa. A Cufa é uma organização brasileira reconhecida nacional e internacionalmente nos âmbitos político, social, esportivo e cultural. Foi criada há 20 anos, a partir da união entre jovens de várias favelas, principalmente negros, que buscavam espaços para se expressarem ao seu modo. Tem o rapper MV Bill como um de seus fundadores, além de Nega Gizza, uma forte referência feminina no mundo do rap, e o produtor Celso Athayde, hoje coordenador geral. Durante a pandemia da covid-19, a Cufa tem se destacado em ações de apoio que levam alimentos, materiais de higiene e orientações sobre prevenção da doença para cinco mil favelas nas 26 capitais dos estados, além do Distrito Federal e outras cerca de 440 cidades do interior do Brasil. Também tem se mobilizado em frentes para geração de renda para pessoas que ficam sem trabalho durante esse período de isolamento social.

Confira a ENTREVISTA COMPLETA.

Preto Zezé, da Central Única das Favelas, em entrevista ao IHU Online.

 

Witzel pede que operações policiais no RJ não aconteçam durante ações sociais nas comunidades, por Chico Regueira[editar | editar código-fonte]

Entrevista realizada para reportagem do jornal G1, publicada em 23 de maio de 2020.

Nesta semana, dois jovens foram mortos durante operação policial no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, e no Morro da Providência, no Centro.

Depois de uma semana de violência nas comunidades do Rio de Janeiro, com a morte de dois jovens, o governo do estado pediu que as polícias evitem fazer operações quando as comunidades estiverem com algum tipo de ação social acontecendo.

Na segunda-feira (18), o adolescente João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, foi morto durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Na quinta-feira (21), Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, foi baleado durante uma operação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Morro da Providência, no Centro. O tiroteio interrompeu uma ação de distribuição de cestas básicas no local.

Entidades que atuam nessas regiões criticaram duramente as operações e pedem a criação de um protocolo para as ações.

Daniel Hirata, professor de sociologia da UFF

"Essa ação ela tem por objetivo dar mais transparência e mais formalidade para as operações policiais aqui no Rio de Janeiro. Então, o uso de helicópteros, blindados, a ocorrência de operações no perímetro escolar, tem uma série de questões que são fundamentais pra gente ter mais transparência, mais controle e menos violência nessas operações que estão acontecendo aí de forma mais intensiva nas últimas semanas."

Ibis Pereira, coronel da reserva da Polícia Militar

"A polícia, numa democracia, tem que ter controle. Controle das instituições judiciárias e do Ministério Púbico e controle de uma política pública. No Brasil, a gente não tem isso. Ou tem controle por parte do Ministério Público e dos órgãos judiciários restritos a uma dimensão, a uma única dimensão, a um único aspecto da atuação policial e muito pouco do outro."

Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional do Brasil

"Nós da Anistia Internacional já temos assinalado às autoridades do Rio de Janeiro, ao Governo do estado e ao Ministério Público do Rio de Janeiro há muito tempo que essas operações, essas incursões policiais, principalmente a Polícia Militar nas favelas, só tem trazido um saldo de morte, de sofrimento e de dor e não tem se mostrado um instrumento eficaz de polícia de segurança pública, muito pelo contrário.

Julita Lemgrunber, socióloga

"São jovens negros pobres matando outros jovens negros pobres. A gente precisa entender que a lógica por trás da guerra às drogas está nos levando a números absurdos que não são aceitos em lugar nenhum do mundo. E em alguns momentos danos que na guerra são chamados de danos colaterais e que já houve momentos que as autoridades defenderam. Nós, enquanto sociedade, não podemos aceitar danos colaterais nem podemos aceitar que a polícia."

O governo do estado disse que o governador Wilson Witzel se reuniu duas vezes essa semana com entidades e parlamentares que defendem os direitos humanos e determinou que as polícias se comuniquem mais com os líderes comunitários para evitar que as operações aconteçam no mesmo horário dos projetos sociais.

 

Rio: Pandemia, PM e milícias contra as favelas, por José Cláudio Alves.[editar | editar código-fonte]

Entrevista concedida a IHU On-Line e publicada no blog Outras Palavras, em 26 de maio de 2020.

Projetar como será a realidade nas periferias e favelas cariocas pós-pandemia “é um exercício de imaginação”, mas a tendência é que sejam reforçadas “as estruturas de poder da face ilegal do Estado, tanto no tráfico quanto nas milícias”, afirma José Cláudio Alves à IHU On-Line. Segundo ele, a atuação do tráfico para garantir as medidas de isolamento nas periferias e se autoproteger e, de outro lado, das milícias, para manter o funcionamento do comércio e benefícios a aliados para continuar arrecadando dinheiro, vai projetar tanto milicianos quanto candidatos apoiados pelo tráfico nas próximas eleições municipais no Rio de Janeiro. “Essa estrutura tende a se projetar porque vai lançar mão dos recursos do clientelismo para beneficiar aqueles que são seus aliados nesses espaços”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, o sociólogo relata como tem sido a atuação do tráfico, das milícias e de setores que detêm o monopólio de serviços em municípios do interior do Rio de Janeiro durante a pandemia. “Na cidade de Caxias existe uma única funerária, que tem o monopólio dos enterros e, agora com as mortes pelo coronavírus, essa funerária cobra valores altíssimos para a população: algo em torno de 2.500 reais pelo enterro, com caixão simples. É uma coisa estapafúrdia. Hoje, essa funerária faz um jogo de disputa de poder com a prefeitura, dizendo que o preço do enterro popular que a prefeitura quer pagar não corresponde à realidade. Então, a funerária não quer fazer esses enterros e a prefeitura diz que não pode pagar pelos enterros porque os valores cobrados são altos”, informa. 

Nas áreas onde o “Estado já opera matando”, ressalta, se observa uma sobreposição. “As áreas onde as pessoas morriam por conta do confronto com o aparato policial, com a milícia ou com as facções do tráfico, estão sendo recobertas também pelo maior número de mortos em decorrência da pandemia. Então, existe uma continuação da necropolítica em outra dimensão, que acaba sendo uma face da mesma moeda: a moeda da violência, que reprime e recai sobre esses conjuntos segregados, racialmente discriminados, que são mantidos à margem da pobreza, sem acesso a recursos, à escolaridade”, observa. 

José Cláudio Alves lembra ainda que as eleições municipais deste ano “são decisivas para deputados e senadores se perpetuarem em 2022, então, a Câmara de Deputados e o Senado não têm o menor interesse em tocar os processos de impeachment abertos contra o presidente. O interesse deles é outro: é distribuir renda desse governo para as suas bases eleitorais se protegerem contra a pandemia e, consequentemente, para as pessoas os verem como benfeitores e votarem nos seus aliados eleitorais nos locais onde eles estão”. 

Na entrevista a seguir, ele diz que o futuro pós-pandemia será ainda mais difícil para aqueles que vivem nas periferias. “Como será a realidade da saúde pública nessas áreas depois da pandemia? Vai ser melhor? Tudo indica que não, porque os recursos estão sendo destinados de uma forma inadequada e o SUS, se virou herói nacional, foi por mera contingência, porque não tinha outro sistema que pudesse dar conta desse sofrimento e dessa pandemia. O SUS apareceu num cenário de crescimento e expansão, mas isso não foi nada planejado e o pós-pandemia não garante que o SUS possa receber algum tipo de aporte para, nessas áreas de periferias e favelas, melhorar a condição de atendimento”, lamenta.

José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo – USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Como as milícias e o tráfico estão atuando no Rio de Janeiro neste período de pandemia?

José Cláudio Alves – Houve uma informação inicial de que tanto a milícia quanto o tráfico estariam atuando na manutenção do distanciamento social para impedir o avanço da pandemia nas periferias. No entanto, esse comportamento, se de fato ocorreu, foi substituído por relatos de que o tráfico de drogas estava determinando o isolamento social, inclusive, às vezes, de forma violenta, com discursos de que iriam punir as pessoas que não cumprissem o isolamento. De outro lado, documentários curtos mostram a atuação do tráfico neste período, com traficantes ajudando a comunidade, distribuindo álcool em gel, máscaras, tentando, de alguma forma, colaborar.

Os relatos relacionados à atuação da milícia neste momento começam a se modificar. Na Baixada Fluminense há relatos – alguns veiculados pela ONG local, chamada Iniciativa Direito e Memória à Justiça Racial – de que tanto na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quanto na Baixada, os milicianos estariam obrigando o comércio a reabrir para obter ganhos pela extorsão e cobrança de taxas de segurança. A avaliação mais crítica que faço está relacionada à cidade de Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro que, neste cenário de pandemia, apresenta o quadro mais grave: é a região que, proporcionalmente, tem mais mortos do que a cidade do Rio de Janeiro, no cálculo por 100 mil habitantes. Duque de Caxias tem um histórico muito longo de relacionamento com grupos de extermínio que, por sua vez, estão na origem e na construção das atuais milícias. Esse vínculo político da cidade com as milícias é histórico, construído lá nos anos de 1980, 1990, nos antigos matadores. O atual prefeito vem de uma linhagem que já tinha vínculo com essa estrutura. Agora, neste segundo momento, ele se alia muito mais ao grupo que atua na venda de terrenos da União. Essa é a relação que se estabelece com a cidade e com esses milicianos que hoje são vereadores e personalidades públicas na cidade. Portanto, o comportamento do prefeito Washington Reis está muito vinculado a essa estrutura de poder. O Ministério Público Federal tem atuado, tentando coibir os negócios de venda de terrenos nessas áreas, e a prefeitura, pelo contrário, nunca atuou nisso. Ao contrário, faz de tudo para que esse esquema continue funcionando. Por mais que se diga que o prefeito baixou um decreto para fechar o comércio, na prática, isso nunca aconteceu porque o comércio sempre continuou na cidade de Caxias, porque os interesses escusos continuam.

Monopólio dos enterros

Na cidade de Caxias existe uma única funerária, que tem o monopólio dos enterros e, agora com as mortes pelo coronavírus, essa funerária cobra valores altíssimos para a população: algo em torno de 2.500 reais pelo enterro, com caixão simples. É uma coisa estapafúrdia. Hoje, essa funerária faz um jogo de disputa de poder com a prefeitura, dizendo que o preço do enterro popular que a prefeitura quer pagar não corresponde à realidade. Então, a funerária não quer fazer esses enterros e a prefeitura diz que não pode pagar pelos enterros porque os valores cobrados são altos. Na verdade, isso é um jogo de poder e interesse entre eles, porque essa funerária sempre teve o monopólio e sempre manteve uma estrutura de poder muito grande. Essa funerária poderia até ser chamada de uma milícia antes mesmo da presença da milícia na região, por ter surgido anteriormente.

Os milicianos, a partir de sua estrutura política junto à prefeitura, também controlam os acessos dos exames médicos e as consultas nos hospitais públicos da cidade. Até o hospital estadual acaba sendo influenciado por essa estrutura de poder. Além disso, toda a rede evangélica pentecostal que apoiou a eleição do prefeito e que, junto com ele, fez vários vídeos anunciando que as igrejas ficariam abertas, dá apoio e quer manter o seu serviço aberto. Alguns chegaram a dizer que as orações – e o próprio prefeito disse isso – das igrejas é o que iria curar o coronavírus. Mas quando o prefeito foi contaminado, ele foi para o hospital particular mais caro do Rio de Janeiro e lá ficou por 13 dias, até sair curado. Esse prefeito, que tem tanta fé e quer que as Igrejas curem o coronavírus, ao invés de ir para o Hospital Adão Pereira Nunes, de Saracuruna, foi para o melhor hospital da Zona Sul do Rio de Janeiro. No hospital público de Saracuruna, as pessoas estão morrendo em quantidade, porque não têm acesso a respiradores, à UTI, os leitos estão todos comprometidos e há uma fila de espera.

Então, durante a pandemia, este é o quadro que permanece na cidade: o comércio continua aberto, funcionando, porque há um interesse dos milicianos em manter essa situação política imediata entre o prefeito e o governo federal, que querem manter a economia funcionando. Mas essa economia local, especificamente, interessa principalmente aos grupos milicianos que dominam essa região. Se a população morre, para eles, isso têm pouca importância.

Qual o significado disso? Enquanto o traficante tenta proteger a comunidade porque está, ele próprio, confinado, estigmatizado, segregado naquela área e depende do tráfico para sobreviver – é ali que estão seus parentes, seus amigos e aqueles que com ele trabalham – e tenta preservar essa população do coronavírus com medidas de distanciamento social, a milícia não tem esse comprometimento. Ela usa dos espaços urbanos, extrai os seus ganhos através do monopólio dos serviços, dos negócios e dos bens que ela detém. A diferença é que os milicianos não moram nessas regiões e, se ficarem doentes, vão para os melhores hospitais do Rio de Janeiro, porque eles têm muito dinheiro. Esta é a diferença básica entre a milícia e o tráfico: o tráfico está confinado, é de outra classe social, são os lascados e pobres deste país arrebentado. A milícia é de uma classe social diferente, tem articulação política e pode se beneficiar disso. Claro que os milicianos vão se vender como heróis, salvadores, os que matam os bandidos, mas eles são os próprios bandidos. Mas nesta pandemia, o herói pode ser aquele que consegue um hospital melhor, aquele que consegue furar a fila do hospital público, que consegue um respirador para a população mais pobre, alimentando assim o clientelismo, já que este também é um ano eleitoral.

IHU On-Line – A pandemia pode reconfigurar as relações do Estado com os poderes paralelos, como o tráfico e a milícia?

José Cláudio Alves – Não trabalho com a ideia de que existe um poder paralelo. Tanto a milícia quanto o tráfico têm relações diretas com o poder do Estado. O tráfico é regulado pelas operações policiais, pelo suborno, pelo tráfico de armas e conta com a presença da polícia. É ela quem recebe o “arrego”, que regula as facções dentro dos territórios, que interfere no cenário de disputas, enfim, é ela quem exerce o papel decisivo do Estado no tráfico de drogas. É a partir da atuação dos agentes públicos de segurança que se dá a configuração do tráfico hoje no Brasil. Na milícia, a ação é direta e feita sob a administração e gerenciamento do próprio agente de segurança pública, que é o miliciano e é quem vai operar. Então, nos dois casos, não há poder paralelo. 

Com a pandemia, diminuiu o número de confrontos entre o tráfico e a polícia, mas eles não deixaram de existir. As milícias, como sempre, não enfrentam grandes dificuldades para atuar. O tráfico, como é confinado em áreas de favelas e periferias, é segregado e controlado pelas políticas de execuções sumárias, de confrontos e mortes permanentes. Nesse sentido, o tráfico está mais reduzido e tentando se proteger nessas áreas porque não tem para onde ir. Portanto, ao se proteger contra a covid-19, o tráfico protege também a comunidade. Já o comportamento da milícia é de retomada dos seus negócios, focando na abertura do comércio, do não distanciamento social, na volta dos seus empreendimentos a todo vapor, na taxação dos comerciantes, que precisam abrir seus negócios para serem taxados. Enfim, a volta da economia, para a milícia, é melhor e ela não sofre nenhum controle ou combate por parte do Estado porque os milicianos são os próprios agentes de segurança. Esse cenário tem se mantido e tem sido reforçado. 

Pandemia favorece as milícias

O coronavírus favorece a estrutura das milícias, que saem beneficiadas e acumulam uma quantidade razoável de dinheiro, que neste momento é importante por conta do processo eleitoral. Os traficantes não são candidatos, embora possam apoiar pessoas próximas a eles, enquanto os milicianos são candidatos e é por isso que defendem a reabertura do comércio e o funcionamento da economia, porque precisam lançar suas trajetórias políticas eleitorais, buscando a vitória e o fortalecimento do seu poder. A milícia tem interesse nesse projeto, porque se beneficia muito.

Neste momento, o coronavírus está trazendo sofrimento e redução de dinheiro para a população mais pobre, que não tem como trabalhar ou que perdeu o emprego e depende do auxílio emergencial. Muitas pessoas não conseguem nem acessá-lo e, mesmo as que conseguem, vão ter dificuldades para sobrevier. Essa situação favorece a lógica do clientelismo e da milícia, que neste momento quer dar algum tipo de benefício para essas comunidades e, com isso, angariar votos mais à frente. Então, o velho clientelismo vai voltar muito forte neste momento de crise. 

IHU On-Line – Que regiões periféricas do Rio de Janeiro estão sendo mais atingidas neste momento?

José Cláudio Alves – A pandemia está atingindo principalmente as áreas em que, normalmente, a face ilegal do Estado mais atua matando. Costumamos dizer que é a face do que Achille Mbembe chama de necropolítica, ou seja, a capacidade do Estado de determinar quem vai viver e quem vai morrer, uma bionecropolítica. A covid-19 tem atingido mais duramente as áreas mais pobres que não têm acesso à proteção social, à renda mínima para sobreviver, não têm acesso à rede de saúde adequada nem à água, recursos de higiene, limpeza e alimentação e, portanto, não possuem um estado imunológico fortalecido para enfrentar a pandemia. Essas são as áreas em que o Estado normalmente já opera matando e há, agora, uma sobreposição: as áreas onde as pessoas morriam por conta do confronto com o aparato policial, com a milícia ou com as facções do tráfico, estão sendo recobertas também pelo maior número de mortos em decorrência da pandemia.

Então, existe uma continuação da necropolítica em outra dimensão, que acaba sendo uma face da mesma moeda: a moeda da violência, que reprime e recai sobre esses conjuntos segregados, racialmente discriminados, que são mantidos à margem da pobreza, sem acesso a recursos, à escolaridade. Agora, essas populações estão vivendo outro drama: o da falta de acesso à saúde, que foi degradada nessas áreas.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação das ações adotadas pelo Estado para enfrentar a pandemia nas favelas e periferias cariocas?

José Cláudio Alves – As ações em relação à pandemia feitas pelo Estado são absolutamente inapropriadas, sem capacidade de ajudar a população, com discursos e práticas contraditórios. No âmbito federal, por exemplo, há um discurso irresponsável, assassino, negacionista. O discurso de Bolsonaro é o discurso de que não existe uma pandemia, de que é uma gripezinha, e de que a morte de doentes e idosos é natural. Esse é um discurso que vários empreendedores do mundo capitalista gostam, porque significa dizer que morrem as pessoas e a economia segue funcionando. O presidente faz esse discurso a partir de uma concepção de que está protegendo a população pobre, que não pode deixar de trabalhar, porque tem que movimentar o país e sustentar suas famílias. Ele simplesmente ignora e não põe em prática nenhum plano de proteção dessa população – o auxílio emergencial aprovado, foi a contragosto dele e as pessoas encontram dificuldades para acessá-lo. Além disso, o sistema de distribuição do auxílio obriga as pessoas a se aglomerarem em filas nos bancos, aumentando ainda mais o risco de contaminação. O quadro é muito duro e o presidente trabalha com o deboche, o sarcasmo e o cinismo. Dizer “e daí?” que morreram tantas mil pessoas, simplesmente é um deboche e um escárnio na cara da população que vai morrer.

O mais duro de tudo isso é que essa mesma população vê no presidente alguém que vai ajudá-la. Essa população, sem acesso a informações que a proteja, acredita nessa liderança. O presidente foi eleito como uma liderança e empurra todos os seus seguidores para o abismo. Os que vão para o abismo, vão acreditando que estão sendo salvos, mas estão sendo vitimados e morrendo. É um comportamento muito humilhante, degradante, triste e sério por parte de um presidente da República que não vai ser atingido e não vai ser responsabilizado.

IHU On-Line – Como a pandemia pode influenciar o cenário eleitoral nos municípios e como a perspectiva das eleições tem influenciado a atuação do Congresso em relação ao enfrentamento desta crise?

José Cláudio Alves – Este é um ano eleitoral, de eleições municipais, e toda a base do Congresso está se movimentando para favorecer as suas bases eleitorais nos municípios. As eleições de 2020 são decisivas para deputados e senadores se perpetuarem em 2022, então, a Câmara de Deputados e o Senado não têm o menor interesse em tocar os processos de impeachment abertos contra o presidente. O interesse deles é outro: é distribuir renda desse governo para as suas bases eleitorais se protegerem contra a pandemia e, consequentemente, para as pessoas os verem como benfeitores e votarem nos seus aliados eleitorais nos locais onde eles estão. Os pedidos de impeachment não serão analisados porque este é um momento chave do processo eleitoral e abrir um impeachment neste momento seria acabar com o famoso clientelismo e a famosa barganha do “toma lá dá cá” dos currais que vão depender de emendas parlamentares e de distribuição de recursos para o SUS e para os hospitais públicos. Essa destinação de recursos vai acompanhar os vínculos desses deputados e senadores com o governo federal, com as políticas públicas que este governo ainda realiza, apesar de todas as contradições no discurso bolsonarista. Pelo menos o Ministério da Saúde ainda tenta fazer algo, especialmente os médicos e enfermeiros que estão na linha de frente.

Bolsonaro não é mito algum. Ele seria mito se contraísse o coronavírus e viesse para o Hospital Adão Pereira Nunes e tentasse se tratar numa enfermaria com mais de 50 pessoas, sem distanciamento de leitos e tentasse enfrentar uma fila para ter acesso a aparelhos respiratórios, à UTI. Se ele fizesse isso e sobrevivesse, de repente poderia ser mito. Mas como ele não vai fazer, aliás, nenhum dos políticos vai fazer, a exemplo do prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis. Esses homens só têm interesse em propagar as suas estruturas de poder e, neste exato momento, eles não farão nada contra o governo federal porque seria atingir o seu próprio interesse, a sua forma de fazer política e a sua base eleitoral. 

Contradições

A contradição do governo federal leva a contradição para todos os estados. Os governadores que tentam fazer alguma coisa são tratados de forma desqualificada por Bolsonaro, que aprova normas que rompem com o distanciamento social. Os governadores são obrigados a entrar na Justiça para se protegerem de medidas provisórias do governo federal. Os governos aliados fazem o jogo do presidente porque não tiveram situações tão graves nos seus estados, mas os que estão sentindo duramente os efeitos da pandemia, estão lutando para tentar sobreviver. 

Nos governos municipais, a situação é mais contraditória ainda. Na Baixada Fluminense, a pandemia está em estado crescente e governos aliados ao governo federal estão adotando uma posição negacionista e um discurso religioso de que as igrejas evangélicas irão curar as pessoas através da fé. Esses discursos se propagam nas populações mais pobres e nos municípios da periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro, e têm provocado mortes e sofrimentos. 

A meu ver, as atividades do Estado estão comprometidas pelo dissenso e confronto entre as várias instâncias, pelas ações nefastas, degradantes e cínicas. O Ministério da Saúde vive numa corda bamba e o ex-ministro [Luiz Henrique] Mandetta, que tentou fazer alguma coisa, foi defenestrado. O ex-ministro [Nelson] Teich não disse a que veio, não disse coisa com coisa e não assumiu atos. Não sei como chegamos a esse estado neste país. Ainda não temos luz no fim do túnel para avaliar tudo isso.

IHU On-Line – É possível projetar um cenário pós-pandemia nas favelas e periferias cariocas?

José Cláudio Alves – Projetar um cenário pós-pandemia nas áreas de favelas e periferias da Baixada Fluminense é um exercício de imaginação. Ainda não temos um quadro muito preciso de como será. Pelo que eu disse até agora, a tendência é reforçar as estruturas de sofrimento das pessoas e as estruturas de poder da face ilegal do Estado, tanto no tráfico quanto nas milícias, assim como a estrutura de poder político que se elege a partir do crime organizado. Essa estrutura tende a se projetar porque vai lançar mão dos recursos do clientelismo para beneficiar aqueles que são seus aliados nesses espaços. É claro que existe resistência e nem tudo está perdido. Ainda temos grupos de movimentos sociais e organizações comunitárias e espaços de discussão crítica e solidariedade que estão funcionando nessas áreas. Se eles não existissem, o quadro seria muito mais grave. Essas instituições também estão lançando mão das suas capacidades de apoiar essa população e conseguem fazer isso. Mas eu vejo que a estrutura maior do crime organizado tem mais condições de apoiar e proteger essa população e tem conseguido fazer isso em função dos recursos, do controle militarizado que eles têm, da violência que exercem, em função do apoio político que recebem dos que estão hoje no poder nos governos federal e estadual. Esses grupos têm como se projetar bastante. 

Pós-pandêmico será pior  

O pós-pandêmico para essas áreas será muito duro. Como será a realidade da saúde pública nessas áreas depois da pandemia? Vai ser melhor? Tudo indica que não, porque os recursos estão sendo destinados de uma forma inadequada e o SUS, se virou herói nacional, foi por mera contingência, porque não tinha outro sistema que pudesse dar conta desse sofrimento e dessa pandemia. O SUS apareceu num cenário de crescimento e expansão, mas isso não foi nada planejado e o pós-pandemia não garante que o SUS possa receber algum tipo de aporte para, nessas áreas de periferias e favelas, melhorar a condição de atendimento.

A área de educação também será bastante atingida e a discussão sobre o ensino a distância sequer tem sido significativa. Falam em como pôr em prática o ensino a distância em muitos municípios, mas as crianças que estão trabalhando dessa forma sofrem um estresse tremendo junto às suas famílias e não há um trabalho de qualidade sendo feito nesse sentido: não há plataforma nem acesso à internet para trabalho remoto. As pessoas não têm aparelhos e equipamentos que lhes possam garantir qualidade nesse acesso, ou seja, tudo é muito precário. É o precariado da educação que está sendo posto em prática para se dizer que se está fazendo alguma coisa e, no meio de tudo isso, os estudantes ainda farão o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem. Quem vai ter condições de participar disso se as aulas a distância são de baixa qualidade e os serviços tão precários? Vai se beneficiar quem tiver mais recursos, mais acesso e quem tem condições. Os mais pobres e os moradores de periferias, como sempre, vão ser prejudicados.

O pós-pandêmico será muito pior do que o pré-pandêmico, porque vai reforçar e ampliar o fosso social e vai destruir mais ainda as políticas públicas já existentes. O futuro exige uma mudança absoluta na destinação de recursos pelas leis orçamentárias para destinar projetos no campo da educação e da saúde nessas comunidades. Mas não é isso que observamos no âmbito federal; se vê destinação de recursos para aqueles que são os credores do Estado, com os quais o Estado tem dívidas: empreiteiros, banqueiros e o agronegócio são os destinatários dos recursos públicos. Eles são os que continuam ganhando e o governo federal quer mantê-los ganhando porque são os que financiaram a campanha do próprio governo federal. Nesse sentido, não vejo uma mudança significativa da destinação de recursos públicos para políticas públicas que protejam a população mais vulnerável. Não vejo que esse é o sinal que está sendo dado. A tentativa de retomada do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC da era petista é uma piada de mau gosto, porque não tem expressão efetiva e vai ser inexpressivo em termos de aporte. O programa vai depender de como a pandemia vai se desenvolver para ser implementado. Isso não é suficiente e precisaria de algo mais significativo em termos de políticaspúblicas. O cenário vai ser muito mais duro do que o que estamos vivendo agora.

 

Antes de atingir a saúde, Covid-19 já destruiu a economia da favela, avalia Preto Zezé (CUFA)[editar | editar código-fonte]

Entrevista originalmente publicada no jornal Diário do Nordeste, em 27 de maio de 2020.

Dirigente da Cufa relata situação de preocupação nos aglomerados urbanos de Fortaleza a partir do avanço do coronavírus, mas ressalta as ações que estão sendo implementadas e como a periferia vai conseguir sair da pandemia

Desde que a pandemia da Covid-19 passou a se disseminar em Fortaleza, a periferia da Capital tem sido a mais atingida pelos seus efeitos. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), a maioria dos óbitos em decorrência da infecção viral ocorreu entre moradores que viviam em bairros com baixo ou muito baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Dado que evidencia, de forma crua - e cruel -, o grande fosso existente entre ricos e pobres em uma das maiores metrópoles do Brasil. É pensando na necessidade da periferia, que sucumbe pela nova doença, violência, desemprego e dificuldade até em receber auxílio, que a Central Única das Favelas (Cufa) vem desenvolvendo atividades para garantir o básico de higiene pessoal e alimentação. Quem está à frente tem nome e sobrenome da favela: Preto Zezé, natural das Quadras, para as periferias do mundo.

Como é ver a sua periferia passando pela pandemia do novo coronavírus?

O que a gente tá vendo é que uma parte da favela tem que manter os serviços essenciais rolando, então essa parte não tem nem como escolher, o cara que limpa a rua, a pessoa que tá no caixa do supermercado, o cara do posto de gasolina. As pessoas não têm como ter direito a se submeter ao isolamento social. Não tem condições de infraestrutura e nem tem amparo econômico, nem alimentar, essa é parte que tá preocupando mais a gente porque são as pessoas que estão indo se expor pra pegar o vírus. Parte dela inclusive nem acredita devido às informações desencontradas que acontecem todo tempo. Isso é um quadro muito preocupante. Por isso, quando surgiu a pandemia, a primeira coisa que a gente fez foi sugerir aos governos e empresários essas frentes de emergência, baseadas em comida, em questões de higiene e limpeza, e a parte de recursos financeiros pra poder a gente fazer uma redução dos impactos dos danos sociais da Covid nas favelas.

Então significa dizer que a situação é bastante preocupante?

Muito. Hoje, a gente tá preocupado com o problema de saúde, mas antes de virar um problema de saúde, a Covid já destruiu toda a economia que tinha na favela. Era o cara que vendia quentinha no lado da areninha, outro que vendia churrasco, outro que tinha uma feirinha de verdura, essa galera toda quebrou, né, cara? Porque o vírus chegou como problema econômico primeiro. Se você olha para as mães, que são as principais atingidas dentro das favelas, que são as mulheres, a questão é mais preocupante ainda porque têm os filhos em casa porque a escola parou e ela não pode sair pra trabalhar, aí não tem como pagar contas.

Como está ocorrendo o debate e a troca de informações com as lideranças comunitárias desses locais?

No nosso caso, é todo dia. Somos uma rede de favela, a gente já estava na favela, não é só uma ação por causa do coronavírus. Pra nós, todo dia amplia a rede de colaboradores, de pessoas que querem somar, querem ajudar. Então, só em Fortaleza são 174 favelas. A gente toma cuidado pra não ter liderança atrelada a aspecto político, mas pessoas que realmente tenham trabalho com aspectos sociais, um perfil mais coletivo e engajado no território. Hoje, além de Fortaleza, tem mais Sobral, Juazeiro do Norte e Maracanaú, que se envolveram também.

Há um problema imenso de disseminação do vírus na Regional I, especialmente no Grande Pirambu, que é uma das maiores favelas do Brasil. A Cufa está atenta a essa realidade?

A gente está atuando nas várias frentes ao mesmo tempo, na frente de alimentos, então nós já entregamos muitas cestas básicas lá, botijão de gás, material de higiene e limpeza. Vamos fazer outra rodada de território, Estamos ampliando a rede de lideranças lá a cada dia. Agora nós entramos com uma campanha publicitária com informações mais acessível às pessoas. Porque, se elas não têm acesso a água e sabão, elas nem vão saber o que é pandemia ou comorbidade. A grande comunicação está sendo feita também de uma maneira que não é de acesso à maioria das pessoas.

Quais são os principais entraves nas periferias para que seja possível seguir o isolamento social proposto pelo governo?

Primeiro que a qualidade dos serviços públicos é precária nesses lugares. Se você olhar, a área da Regional I é um dos menores IDH da cidade. Lá tem moradia precária, questão de infraestrutura, saneamento básico, acesso a equipamentos públicos de saúde e assistência social que, quando comparados ao número de moradores daqueles territórios, são extremamente frágeis. Vamos sugerir para o governador e para o prefeito a criação de comitês de frente de emergência nas favelas, porque essa tecnologia que a Cufa está montando com essa rede pode ser amplificada nas favelas se o governo apoia. Isso vai fazer com que chegue mais rápido, vai empoderar a sociedade, vai fortalecer a opinião popular porque o governo sozinho não consegue.

As políticas de higiene com utilização de álcool em gel são possíveis de serem seguidas nas periferias?

Quando a gente botou o item higiene pessoal como central da nossa campanha de emergência, foi porque 47% das pessoas na periferia nem água regularmente têm. A outra não tem nem sabonete, imagine o álcool em gel. Então, a comunicação pensada do álcool em gel é pensada para quem tem dinheiro pra comprar, a maioria não tem nem sabão direito. Agora vamos fazer uma nova distribuição, em que os kits alimentares vão ter kits de higiene junto. E um livro didático, porque livro também alimenta.

Além da Covid-19, Fortaleza tem um alto número de homicídios nas periferias, com dominação e disputa de territórios por facções criminosas. Durante a pandemia, os índices não cederam. Como também sobreviver à violência?

Se a gente não fortalecer os núcleos comunitários, outras redes vão se criar no local. É fundamental fortalecer esses núcleos no território, que é pra que a violência não seja a única forma de impor ordem ou de movimentar esses lugares. Na medida que eu tenho grupos ativos, fortalecidos, intervindo naquele território, a violência tende a diminuir. A medida que eu não tenho políticas públicas integradas nesse território, a tendência é ver esses índices. E olhe que todo o discurso era de que tinha controlado a violência, e tudo isso estava sob controle... E está provado que não está. Então, é preciso investir em algo mais do que munição, efetivo, viatura e cadeia.

Como é que você espera que as favelas passem por essa pandemia?

Nós vamos aumentar o movimento de autoajuda da favela, tem que se autoajudar, tem que pedir para a galera ir para dentro, tem que limpar as ruas, cuidar dos lixos, dos idosos, proteger os vulneráveis, temos que trabalhar essa consciência coletiva e de ajuda mútua, isso urgente. Isso para reduzir os danos, porque a estrutura social desigual já mostrou que, embora o Meireles tenha grande número de contágio, os óbitos maiores são na Barra do Ceará, no Jangurussu, Vicente Pinzón, essas pessoas que vão perder a vida literalmente porque têm menos condições de se proteger.

 

Pandemia torna mais explícita desigualdade étnico-racial no Brasil e moradores de favela se organizam coletivamente para sobreviver, com Palloma Menezes[editar | editar código-fonte]

Entrevista publicada no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz), em 11 de junho de 2020.

Em entrevista para o blog CEE-Fiocruz, Palloma Menezes, professora do departamento de Ciências Sociais da UFF e coordenadora de produção de verbetes do Dicionário de Favelas Marielle Franco, fala sobre o racismo estrutural no Brasil e de que forma a pandemia intensificou a desigualdade étnico –racial. A socióloga explica, ainda, quais estratégias de ação coletiva os moradores de favelas do Rio de Janeiro têm colocado em prática para sobreviver à pandemia.

Por Andréa Vilhena

Aqui como nos EUA, a violência policial contra negros é muito maior do que contra brancos. Considerando-se a violência um problema de saúde pública, constata-se que a vulnerabilidade da população negra no campo da saúde está ainda maior no contexto da atual pandemia. Dados do Ministério da Saúde indicam que no Brasil a Covid-19 tem sido mais letal entre negros do que entre brancos. A que podemos atribuir essa maior vulnerabilidade no Brasil?

Os dados indicam que a Covid-19 tem sido mais letal entre os negros do que entre os brancos. Um ponto de partida essencial para debater essa vulnerabilidade maior é reconhecer a desigualdade estrutural presente na sociedade brasileira. Levantamento do IBGE, de 2018, mostra que 75% dos mais pobres no país são negros. Portanto, a condição socioeconômica é fundamental no combate à pandemia, e mais, na garantia da vida.Sabemos que um dos pressupostos para a não contaminação pelo coronavírus é conseguir fazer o isolamento social. Só que sabemos também que as condições para que esse isolamento ocorra não são iguais para todos. Sabemos que a Covid desorganizou de maneira bastante intensa a economia, o país de modo em geral, e, especialmente, as favelas, uma vez que muitas pessoas não tinham trabalho formal, viviam na informalidade, ou com os próprios negócios, ou com bicos e trabalhos que não eram fixos. Com a falta de renda para se manterem em casa, as pessoas precisam sair para trabalhar e, muitas vezes, se contaminam e morrem mais.

Um ponto importante a se destacar é o quanto a pandemia tornou essa desigualdade de renda, étnico-racial, mais explícita no Brasil, e o quanto temos pouca sensibilidade para pensar nisso. É necessário lembrar que só em abril, um mês e meio depois do primeiro caso de Covid-19, o Ministério da Saúde passou a separar os dados considerando cor, gênero e bairro de moradia das pessoas que estavam morrendo por causa da pandemia.

Violência e letalidade da população negra

Outras dimensões relevantes da questão racial no Brasil estão associadas ao debate sobre violência. De modo geral, a violência, principalmente a estatal, é muito mais letal para os negros no Brasil: 80% dos mortos por policiais no primeiro semestre de 2019 eram negros e pardos. Durante a pandemia vemos, então, uma sobreposição de fatores que levam ao adoecimento e à letalidade da população negra: a questão socioeconômica já mencionada, e, além dela, a violência, que agrava a situação. Vale sempre se lembrar demuitos jovens mortos nesse período, o João Pedro é um caso emblemático por ter sido assassinado por um agente estatal dentro de casa.

Outro ponto, ainda, incontornável ao se pensar nas desigualdades raciais no Brasil refere-se ao cárcere, às prisões no Brasil. Os presídios apresentam contaminação por Covid-19, e não existe uma política mais estruturada, séria para o combate à doença. E sabemos que a maior parte da população carcerária é composta por pessoas negras, o que ajuda a explicar o fato de a letalidade ser muito maior entre elas.

Vulnerabilidade das mulheres negras

Cabe ainda nessa análise outra dimensão da desigualdade étnico racial: que é a de gênero. Nos últimos anos, se o número de pessoas encarceradas no país cresceu enormente, o número de mulheres encarceradas cresceu ainda mais. Nessa população feminina, o número de mulheres negras é muito significativo. Muitas dessas mulheres encarceradas estão em situação de vulnerabilidade extrema, por sofrerem ainda mais abandono do que os homens. Esse debate racial precisa ser interseccional; é preciso fazer o debate sobre raça junto com o debate sobre gênero, sexualidade, população LGBT e sobre mães negras, pobres, moradoras de favelas, que perdem seus filhos, vítimas da violência estatal.

Uma das cenas mais fortes das últimas manifestações foi a de mães que perderam seus filhos e que há anos estão na luta para tentar garantir a vida de outros jovens negros. Essa luta que não começou agora está ganhando mais visibilidade. Por outro lado, a gente sabe que não é uma opção para elas estarem nas ruas, porque para conseguirem sair do luto tiveram que entrar numa luta intensa. Vale consultar alguns dos verbetes do dicionário criados pela Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência que enfatiza muito a luta dessas mulheres negras em relação à justiça, em relação à memória dos filhos assassinados.

Muitos dados mostram que as mulheres negras são mais vulneráveis ao assédio, ao estupro, à violência doméstica, ao feminicídio no Brasil

Retomando a dimensão socioeconômica, junto à de gênero, vale destacar a atuação das mulheres negras no país como empregadas domésticas. O Brasil é recordista de domésticas no mundo. Muitas delas não conseguiram parar durante a pandemia, pois patrões e patroas não garantiram seu salário para que continuassem tendo uma renda e pudessem ficar em casa em segurança. Um caso emblemático de como a questão da raça é determinante na garantia da vida ou na chegada da morte precoce é o de Mirtes, mãe do menino Miguel, morto por culpa da patroa negligente, que o deixou entrar sozinho no elevador, enquanto Mirtes passeava com seu cachorro.É um caso que gerou muita repercussão por escancarar essas desigualdades sociais e raciais do Brasil que matam a população negra todos os dias muito mais do que a branca.

Mais um ponto sobre a questão de gênero que não dá para ser ignorado é a violência contra a mulher, violência doméstica especialmente. Vários dados estatísticos mostram que ela cresceu muito durante o período de pandemia, em que as pessoas estão confinadas, com mais dificuldades de sair de casa, seja para fugir da pessoa agressora, geralmente o homem é o agressor, seja para fazer uma denúncia. Muitos dados mostram que as mulheres negras são mais vulneráveis ao assédio, ao estupro, à violência doméstica,ao feminicídio no Brasil.Nos últimos anos embora algumas taxas de feminicídio para mulheres brancas tenham reduzido, as de mulheres negras continuam muito alta e vêm até crescendo em muitos estados.Nesse momento o aumento da violência doméstica é algo trágico para as mulheres de um modo em geral, mas para as mulheres negras se constitui em mais um fator de risco que coloca suas vidas ainda mais vulneráveis.

Essa vulnerabilidade está relacionada à saúde pública de uma maneira permanente.Nesse momento a dificuldade de acesso ao hospital, a uma consulta médica,é latente. A população negra por ter menos renda, tem mais dificuldade de acessar o serviço privado e o público por conta da super lotação. Mas de uma maneira estrutural, mesmo em outros períodos, sabemos que o tratamento que negros e brancos recebem no sistema de saúde no Brasil não é o mesmo, tanto no público como no privado.Há muitas denúncias de que mulheres negras sofrem, por exemplo, muito mais violência obstétrica. Nos partos, de modo em geral,elas recebem menos anestesia do que as mulheres brancas devido ao mito de que são mais fortes eresistentes. Então há uma dificuldade de tratamento, dificuldade não, uma desigualdade, no tratamento dessas mulheres no sistema de saúde. Agora isso se intensifica ainda mais.

Nenhum plano mais abrangente, mais estruturado foi criado e colocado em prática para as favelas e periferias do Brasil

No Brasil, a síntese de indicadores sociais de 2018, do IBGE, mostra que as condições de moradia da população preta ou parda são muito piores do que as da população branca. Essa situação decorre da associação entre indicadores de moradia e pobreza e da sobrerrepresentação da população preta ou parda na população pobre. Diante dos problemas sanitários agravados pelas condições de moradia nas favelas e periferias urbanas, a Covid-19 é uma ameaça ainda maior nesses locais. Como o Estado tem reagido à pandemia nesses locais e que instrumentos de ação coletiva para enfrentar a pandemia você destacaria?

Esse é um ponto bastante crítico porque nenhum plano mais abrangente, mais estruturado foi criado e colocado em prática para as favelas e periferias do Brasil. Existe o auxílio do governo federal, mas é importante ressaltar que esse auxílio tem atrasado constantemente. Muitas pessoas não conseguiram se cadastrar para receber. Além disso, é um valor insuficiente para garantir a sobrevivência. Dependendo do local de moradia, especialmente nas capitais, é um valor que não dá conta de as pessoas conseguirem garantirsua subsistência. Assim, elas tiveram que se organizar de múltiplas formas nas favelas e nas periferias.Tenho visto nas favelas que acompanhamos, especialmente aqui do Rio de Janeiro, que as pessoas têm recebido muito mais auxílio das próprias associações de moradores, dos coletivos formados no local, de ONGs do que do próprio governo, do que do próprio poder público.

Essas organizações locais têm organizado diferentes dinâmicas para garantir a subsistência das pessoas, para que essas pessoas não passem fome. Distribuição de cesta básica, de material de limpeza, de pequenos auxílios para compras, vales e tickets para comprar alimentos, masa organização vai muito além dessa dimensão do combate à fome.

De que forma?

Os moradoresde muitos desses territórios têm se organizado com diferentes estratégias também para tentar prevenir a disseminação do vírus. Muitas favelas, por exemplo, criaram coletivos de comunicação comunitária para, nesse momento, se comunicar melhor com os moradores e explicar, de forma simples, as recomendações da OMS. Além disso, têm outras iniciativas que tentam dar conta, não só das instruções do que deve ser feito, mas das condições materiais. Então, hádistribuições de máscaras, luvas, e iniciativas de sanitização. Pessoas que estão se organizando para limpar a própria favela com produtos recomendados por especialistas. Na Santa Marta, por exemplo, teve uma experiência pioneira que mereceu até um verbete no dicionário: sanitização da favela, usando os mesmos produtos que estavam sendo usados na China para poder desinfetar as ruas e vielas, uma vez que o próprio poder público não vem fazendo isso.

É interessante notar ainda a troca de tecnologias entre favelas que vem ocorrendo. Os moradores têm se comunicado e trocado experiências nesse momento. Esse projeto (de sanitização) que começou na Santa Marta, por exemplo, depois foi levado para a Babilônia por meio dointercâmbio entre os moradores. Agora já está começando no Chapéu Mangueira e em outras favelas da Zona Norte e Zona Oeste. Isso é muito potente e importante. Osmoradores têm também se organizando para conseguir médicos, conseguir orientações de profissionais para terem serviço de tele consulta. Issojá vem ocorrendo no Alemão e na Santa Marta.

É interessante notar ainda a troca de tecnologias entre favelas que vem ocorrendo. Os moradores têm se comunicado e trocado experiências nesse momento. Esse projeto (de sanitização) que começou na Santa Marta, por exemplo, depois foi levado para a Babilônia por meio do intercâmbio entre os moradores. Agora já está começando no Chapéu Mangueira e em outras favelas da Zona Norte e Zona Oeste

Outra iniciativa que vem sendo desenvolvida em várias favelas é a iniciativa de mapeamento e monitoramento comunitário da pandemia. A gente sabe que os dados oficiais já vinham sendo subnotificados. Então os moradores, entendendo que o poder público não dá conta de contabilizar o número de pessoas infectadas nas favelas e o número de mortos que vem ocorrendo emvários desses territórios,estão se organizando para fazer mapeamentos próprios. Essas experiências estão ocorrendo em vários territórios com metodologias diferentes, com o apoio, também, de pesquisadores. Estão sendorealizadas com visitas locais, como é o caso da Previdência; porwhatsapp, como acontece noBorel e na Santa Marta ou ainda com mapeamentos mistos, tanto presenciais como remotos, no caso do Alemão e de outros complexos. Esses dados produzidos pelos moradores mostram o quanto os casos de coronavírusestão se multiplicando nas favelas. Isso ainda não está tão presente nas estatísticas, uma vez que as pessoas não conseguem ter seus testes.Então não são considerados casos confirmados, casos oficiais.

Nós por nós

É muito importante ver como a população está se mobilizando neste momento,usando novas tecnologias e as redes de articulação que já existiam anteriormente nessas favelas. O trabalho que essas pessoas estão realizandoenvolve tanto a prevenção, como o diagnóstico da situação nesses locais. O diagnóstico é realizado a partir de pesquisa e mapeamento próprio feito pelos moradores, uma vez que o grande lema que se reforça nesse contexto é o do nós por nós. Eles sabem que não podem esperar dopoder públicoum plano voltado para as favelas. Então, eles estão correndo atrás e fazendo por eles mesmos. Por outro lado, no entanto,isso não apaga a crítica e a demanda que vem sendo apresentada ao poder público. Muitos desses grupos têm elaborado,em parceria com universitários, pesquisadores e professores, planos de ação, indicando o que o governo deveria fazer.

Essas organizações locais têm tido um papel muito importante, de crítica à situação atual por um lado e da apresentação de soluções por outro. Então, se houvesse representantes do governo dispostos a ouvir o que vem sendo dito e a observar o que vem sendo feito, teríamos muitoo que aprender dessas organizações locais. Elas estão dando uma aula de organização, que é fruto de associações e mobilizações já existentes há muito tempo, mas também da urgência do momento, da necessidade de fato que as pessoas têm.

Essas organizações locais têm tido um papel muito importante, de crítica à situação atual por um lado e de apresentação de soluções por outro. Então, se houvesse representantes do governo dispostos a ouvir o que vem sendo dito e a observar o que vem sendo feito, teríamos muito o que aprender delas

O poder público,em muitos dos casos,por não ter um plano específico para asfavelas, acaba atrapalhando o combate que vem sendo feito pelos próprios moradores em seus territórios. Foram freqüentes os casos em que distribuição dealimentos estava sendo feita e teve que ser parada por ocorrência de tiroteio. Por conta disso umas das lutas principais de vários movimentos de favela era a interrupção das operações policiais nesses locais nesse momento, agora garantida oficialmente pelo STF.Os moradores precisam continuar vigilantes, gritando pela própria sobrevivência porque sabem que ficarem calados não é uma opção, uma vez que muitas vezes não têm renda para poderem ficar em casa parados, precisam correr atrás e ao fazer isso colocam suas vidasem risco.

Fale um pouco sobre o Dicionário de Favelas Marielle Franco no contexto da Covid-19.

Queria convidar a todospara visitar a página do dicionário (https://www.wikifavelas.com.br). No dicionário Marielle Franco criamos, desde o início da pandemia, uma área reservada ao debate sobre o coronavírus nas favelas. Nela fazemosum levantamento de vários aspectos do impacto do Covidnessas áreas. A primeira demanda que surgiu dos moradores, nossos interlocutores, integrantes de favelas que fazem parte do projeto do Dicionário, foi que mapeássemos e déssemos visibilidade às ações que vêm ocorrendo nesses territórios em tempo de coronavírus. O primeiro verbete do dicionário sobre coronavírustrata de como ajudar as favelas.Já temos um número enorme, mais de 150 formas de ajuda, diferentes tipos de ação. Além disso,estamos reunindo na plataforma notícias sobre o coronavírus, que incluem tanto matérias publicadas na grande mídia, como reportagens e outros materiais produzidos pelas mídias comunitárias. São textos, materiais gráficos e audiovisuais produzidos pelas favelas e para as favelas para difundir informação.

Tem, ainda, outro verbete com análises e propostas em relação ao combate do coronavírus nesse momento. Isso é bem interessante porque reúne uma sériede manifestos e propostas feitas por moradores e grupos de favelas em relação à forma como o poder público deveria atuar, e críticas à falta de atuação mais direta em relação aos territórios de favelas nesse momento. Reunimos também numa página chamada Coletivos em ação contra o coronavírus a trajetória de alguns grupos mais atuantes nesse momento e os tipos de ação que eles estão fazendo, que incluem ações de comunicação, prevenção e prestação de contas, mostrando como os recursos arrecadados vêm sendo gastos. É interessante para quem quiser ajudar, saber como ajudar e depois acompanhar como é que essa ajuda está sendo investida.

Outro verbete que vale a pena ser consultado é sobre o painel a respeito docoronavírus em favelas com dados produzidos pelos moradores. Há ainda o verbete prisões e coronavírus que reúne uma série de materiais quemuitos moradores de favelas e periferias, mas tb pesquisadores, vêm acumulando sobre o tema. É um debate bem amplo sobre as prisões, que têm uma interface com o debate sobre favelas, mas tb sobre gênero. Enfim, envolve múltiplas dimensões que a gente vem tratando aqui.

Por último, temos uma categoria temática no dicionário de relações étnico-raciais no qual reunimos vários verbetes sobre o tema, verbetes tanto de coletivos como Cara Preta Coletiva, mas, também, experiências e ações coletivas como a Feira Preta. Enfim, políticas públicascomo a política nacional de saúde, integração à população negra ou ainda debates mais acadêmicos sobre a questão da raça como o verbete sobre necropolítica e adoecimento da favela. O dicionário tem muito material sobre essa temática da raça e, especialmente nesse momento da pandemia,sobre os impactos que essa desigualdade no país geram para as populações de favelas e periferias.

 

[Podcast] Anthropológicas: Periferias urbanas e COVID-19, com Gabriel Feltran[editar | editar código-fonte]

O que a COVID-19 nos diz sobre as periferias urbanas no Brasil? Essa pergunta estrutura o décimo nono programa da série Anthropológicas. Nele, Francisco Sá Barreto, Hugo Menezes e Alex Vailati, professores do PPGA-UFPE, entrevistam Gabriel Feltran (PPGS-UFSCar). Periferias, facções, urbanização brasileira e gestão da violência são alguns dos temas que guiaram a conversa. Este e todos os outros programas estão disponíveis nas diversas plataformas para podcast, bem como em nosso perfil nas redes sociais.

Museológicas Podcast é um programa de extensão da UFPE com fomento da FACEPE.

OUÇA AQUI!

 

Contextualizar o desmonte é essencial, por Fábio Araújo, Fábio Mallart e Paula Gaudenzi[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado originalmente noLe Monde Diplomatique Brasil, em 29 de junho de 2020.

Corte de gastos públicos, precarização das condições de trabalho, desmantelamento da Estratégia de Saúde da Família e uma política de desinformação por parte do Poder Público. Esses são alguns dos problemas com os quais se defrontam as trabalhadoras e os trabalhadores que enfrentam a pandemia na ponta do setor de saúde.  Confira a entrevista com médicos da clínica da família Maria do Socorro, situada na favela da Rocinha. <article> O Sistema Único de Saúde (SUS), promulgado na Constituição de 1988, é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Estruturado a partir do princípio da saúde como um direito universal, é composto por uma extensa rede de Atenção Primária à Saúde (APS) que, a partir do modelo de atenção da Estratégia de Saúde da Família (ESF), possui contornos específicos. Grosso modo, a ESF, ao pautar as necessidades das pessoas em seus contextos sociais, propondo a atenção contínua e multiprofissional com foco comunitário e territorial, é a mola propulsora da reorientação na Atenção Primária à Saúde, constituindo-se como porta de entrada do SUS. Desde a sua implementação, ainda que haja dificuldades no acesso e na continuidade da atenção, nota-se a melhoria significativa das condições de saúde da população.

Com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95, em dezembro de 2016, na gestão de Michel Temer (MDB), o orçamento para a área da saúde despencou. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), somente em 2019, a perda de investimentos foi de R$ 20 bilhões, o que significa a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com o setor.

No município do Rio de Janeiro, os investimentos na ESF, que ganharam força a partir do ano de 2009, têm sofrido sucessivos cortes. As políticas de precarização e desmonte são ainda mais claras na gestão do atual prefeito Marcelo Crivella (do Partido Republicanos). Em 31 de outubro de 2018, na edição 155, Ano XXXII, do Diário Oficial do município, foi publicada a proposta da Secretaria Municipal de Saúde de “reorganização” da Atenção Primária à Saúde. Dentre outras mudanças, propunha-se a extinção de 184 equipes da Estratégia de Saúde da Família e 55 equipes de saúde bucal, resultando na eliminação de mais de 1.400 postos de trabalho; além da desabilitação de 30 equipes do NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família)[1]. Apenas em 2019, em meio à crise da saúde no município, Crivella assinou um decreto com um corte de mais de R$ 400 milhões no orçamento da área, mais de 8% do montante previsto para o ano.

Com efeito – e essa não é propriamente uma novidade –, a saúde é mais um campo da vida social gerido de acordo com a gramática neoliberal, o que resulta, por exemplo, na precarização do trabalho. Os serviços prestados por meio das Organizações Sociais de Saúde (OSS) evidenciam o caminho que a saúde está trilhando há tempos. Datada de 15 de maio de 1998, a lei nº 9.637 dispõe sobre a qualificação de entidades privadas, sem fins lucrativos, como organizações sociais, cujas atividades sejam dirigidas à cultura, à saúde etc. Em termos práticos, trata-se da terceirização do SUS, baseada em discursos de flexibilização e desburocratização da gestão pública. Na “ponta”, a lei desdobra-se na precarização de trabalhadoras e trabalhadores, na alta rotatividade dos profissionais e no repasse do dinheiro público para as empresas privadas, já que as OSS têm contrato com o poder público, mas compram insumos e serviços do setor privado.

Nessa direção, também destaca-se as mudanças introduzidas pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), de 2017, a qual evidencia que o desmonte da APS não passa só pelos cortes brutais no financiamento, mas também por reorientações no modelo de atendimento. O novo documento, além de relativizar a cobertura universal e promover a segmentação do acesso, sugere alterações na composição profissional e na distribuição da carga horária dos trabalhadores, fundindo, por exemplo, as atribuições dos ACS e dos Agentes de Combate às Endemias (ACE), junção que possibilita o corte de custos e a diminuição dos postos de trabalho. Sob a retórica da responsabilidade fiscal, da reorganização dos serviços e da flexibilização do trabalho, o que emerge é a dissolução de um sistema que – por questões políticas – jamais pôde ser totalmente público.

Diante desse contexto, como pensar o papel da ESF durante a pandemia? Além de reduzir a pressão sobre os hospitais e melhorar a vigilância em saúde, os profissionais conhecem os grupos populacionais do território e possuem um vínculo mais próximo com os moradores, podendo propor medidas eficazes de prevenção. Ademais, essa atuação pressupõe abordar problemas relacionados com a precarização da vida social e econômica que se acentuaram com a pandemia, tais como sofrimentos psíquicos, violências – sobretudo doméstica –, agudização de casos crônicos etc.

No cenário atual, em que se observa a falta de coordenação entre as instâncias federal, estadual e municipal, bem como a iniciativa deliberada, principalmente por parte do poder executivo, em não divulgar e/ou maquiar todo o tipo de informações, encontramos em um grupo de médicos de saúde da família uma referência e, mais do que isso, uma parceria para compreender o desmonte na área da saúde – sobretudo ao longo dos últimos quatro anos –, assim como as dificuldades e os dilemas enfrentados por aqueles e aquelas que atuam na “ponta”. Conversamos sobre os impactos da pandemia com Bernardo Lago Alves, Bruno Alves Brandão, Carolina de Sousa Tóffoli, Eberhart Portocarrero Gross, João Victor Bohn de A. Alves, Letícia Renck Bimbi, Marcos Adams Goldraich, Moisés Vieira Nunes e Luiza Cochemore da Silva, que atuam na clínica da família Maria do Socorro, situada na favela da Rocinha.

De partida, gostaríamos de destacar três questões-chave que surgem da conversa reproduzida adiante. Primeiramente, o fato de que a pandemia afeta de maneira desigual diferentes parcelas da população, colocando em evidência as desigualdades sociais e, nesse sentido, intensificando a precariedade das condições de vida dos pobres. A pobreza é um dos mais importantes determinantes sociais de doença e mortalidade, de modo que as características de transmissão, o acesso a insumos e cuidados, os desfechos dos casos e as chances de sobreviver são tão díspares que, como destacam os nossos interlocutores, quando se considera moradores do Leblon e da Rocinha, estamos diante de pandemias diferentes. Ademais, mesmo quando se observa apenas o que se passa na comunidade, há que se levar em conta estratificações internas. Especificidades locais do território, tais como as condições de infraestrutura da casa, ventilação, fornecimento de água, mofo e umidade são centrais na disseminação e no enfrentamento da Covid-19.

Não bastasse as dificuldades inerentes ao combate do novo coronavírus – e esse é o segundo ponto que destacamos –, a atuação do poder público em seus vários níveis, seja em decorrência das suas ações ou omissões, é mais um obstáculo. Se por um lado, a construção dos fluxos de trabalho, dos atendimentos e do manejo de casos suspeitos foi elaborada pelos próprios profissionais, sem nenhuma orientação explícita por parte da prefeitura (o que demonstra que os fluxos podem surgir da “ponta” e só depois serem sistematizados em normativas), por outro lado, as políticas e orientações esdrúxulas do governo federal impactam no cotidiano dos serviços. É desse modo que o incentivo ao uso da hidroxicloroquina, sem qualquer comprovação científica, fomentou conflitos entre pacientes e médicos da clínica, que não estavam prescrevendo tal medicamento. Como resultado, além da redução nos atendimentos, houve casos de moradores que optaram por arcar com os custos de consultas em hospitais privados, na busca pela prescrição de fármacos cujo uso não têm nenhum fundamento científico.

Essas considerações nos conduzem ao terceiro ponto que importa remarcar: a produção sistemática de uma política de desinformação, que maqueia os dados, esconde os mortos e, recentemente, incita à invasão de hospitais. Contra isso, os médicos nos ensinam que é preciso produzir provas contra o Estado, se contrapondo às verdades oficiais e desvelando a ocultação produzida pela maquinaria estatal. A partir de um trabalho de vigilância em saúde – cotejando informações de prontuários médicos, dos agentes comunitários de saúde que transitam pelo território e de dados das agências governamentais –, outras evidências emergem. Se em determinado momento, o número de óbitos divulgado pela prefeitura era cerca de cinco vezes menor do que o fornecido pelo “Painel de Monitoramento da Rocinha”, no instante da entrevista, realizada em 22 de maio de 2020, quando os médicos anotavam 51 óbitos, a prefeitura havia retirado os dados sobre as mortes de seu painel oficial. Tal iniciativa ressoa pelos quatro cantos do país. Seja o movimento indígena, por meio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), seja a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), a contagem dos mortos refuta a política negacionista. Não é de hoje que a produção da verdade estatal deve ser posta em xeque. Porém, atualmente, ao reforçarem mais um campo de combate contra as diversas arbitrariedades do Estado, esses esforços tornam-se vitais.

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA AQUI.

 

"A pandemia não é a mesma para todos", diz a presidente da Fiocruz[editar | editar código-fonte]

Entrevista originalmente publicada no blog da UOL, em 6 de julho de 2020.

"A pandemia não é a mesma para todos os países, nem a mesma para todos dentro de um mesmo país ou da mesma cidade. Muitos dizem que estamos todos no mesmo barco, mas não é bem assim. Estamos todos passando pela mesma tempestade no mesmo mar. Mas é como se alguns estivessem em transatlânticos, outros em iates, outros em barcos a vela ou mesmo canoas", reflete a presidente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Nísia Trindade Lima. Para a socióloga, a primeira mulher a ocupar a cadeira da presidência nos 120 anos da instituição que atua na linha de frente do combate à pandemia no país, o alastramento da Covid-19 é uma emergência sanitária e humanitária multidimensional. Enfrentá-la de modo efetivo só é possível com a reafirmação da importância científica e o alinhamento dos conhecimentos vindos de todas as áreas da ciência. Num país com muitas desigualdades, o vírus pode evidentemente atingir a qualquer um, mas uns podem se resguardar melhor do que outros, visto que milhões de brasileiros sequer têm acesso a água limpa e encanada e que, para muitos, evitar aglomerações soa como uma utopia.

Em entrevista a Ecoa, Nísia alerta sobre a possibilidade de emergência e reemergência de outras pandemias, algo que deve se intensificar com o aumento da circulação de pessoas e os impactos climáticos e ambientais, a necessidade de se fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) e o processo de desenvolvimento de uma vacina, entre outros assuntos. Ela também fala de lições tiradas do enfrentamento a epidemias anteriores - a Fiocruz, mais destacada instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina, surgiu como reação à peste bubônica, varíola e febre amarela.

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Pesquisadoras refletem sobre Covid-19 nas favelas, com Sonia Fleury e Mariana Nogueira[editar | editar código-fonte]

Por Joyce Enzler, no site oficial da ENSP, publicada em 14 de julho de 2020.

Contribuindo com o debate sobre a crise sanitária, social e política gerada pelo coronavírus, agravada pela omissão do governo federal, e que irrompe com virulência nas favelas e periferias, o RESP-AL conversou com as pesquisadoras da Fiocruz Sonia Fleuri e Mariana Nogueira.

As entrevistas fazem parte da série Pandemia nas favelas e periferias: um prognóstico políticoe visam refletir sobre o contexto atual da Covid-19 emáreasabandonadas pelo poder público. Além disso, busca pensar emergencialmente estratégias coletivas de combate ao coronavírus nos bairros pobres.

Quase metade das mortes no mundo ocorreu nos EUA, no México e no Brasil, países que tiveram em comum o atraso das autoridades em agir e a insistência na cloroquina como solução única e quase mágica. Confira as entrevistas a seguir e leia a matéria 'Pesquisadoras, estudantes e lideranças enfrentam Covid-19 nas favelas'.

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA AQUI.

 

“Pandemia causará um desencanto que chegará às ruas”, diz Mike Davis[editar | editar código-fonte]

Entrevista publicada no jornal El País, em 05 de agosto de 2020.

Por Pablo Ximénez

Na sociologia de Los Angeles do final do século XX existe um autor imprescindível, Mike Davis, que dissecou o futuro das grandes cidades por meio dos desastres da grande cidade californiana nos livros Cidade de quartzo: Escavando o futuro em Los Angeles (1990) e Ecologia do medo (1998). Em 2005, depois agripe aviária, escreveu um ensaio sobre o perigo de que um desses vírus que passam de animais para seres humanos pudesse causar uma pandemia catastrófica. Chamava-se O monstro bate à nossa porta e é uma leitura visionária nos tempos de covid-19. Esta pandemia, a de verdade, exigia uma nova versão. Agora está sendo relançado em versão ampliada com o título de The monster enters. O historiador marxista analisa as condições que tornaram impossível detê-lo e aumentaram seus efeitos. Davis tem 74 anos. Falou por telefone de sua casa em San Diego, Califórnia, onde mora com a esposa mexicano-americana e dois filhos adolescentes. Desde que a pandemia de coronavírus começou, vive confinado na garagem com seu cachorro e bebendo pints de cerveja Guinness. “Tive dois cânceres. Meu sistema imunológico está praticamente destruído. Basicamente, considero isso uma sentença de morte. Vejo muito poucas possibilidades de ter uma vida normal novamente.”

Pergunta. O senhor previu que uma pandemia com estas características viria. O que esta tem que não se viu chegar?

Resposta. A pandemia segue as linhas do que se esperava e para o que estávamos preparados em geral. Muitos países tinham planos de resposta. Estamos avisados há gerações. Talvez a maior surpresa seja que este vírus é muito diferente do da SARS e da MERS. Estes são muito mais mortais. Mas a SARS só se transmite quando você está doente e com sintomas há algum tempo. Em janeiro, o doutor Anthony Fauci (epidemiologista da Casa Branca) disse que nenhuma epidemia foi disseminada por pessoas contagiosas assintomáticas. Essa era a opinião ortodoxa. Agora vemos estudos que mostram até 60% de infectados assintomáticos. Esse é um perigo que não havia sido previsto. Como Fauci disse, é uma tempestade perfeita. É uma doença que talvez esteja 10 vezes mais disseminada do que acreditávamos. Como não causa danos a crianças e jovens, o comportamento imprudente está garantido. Mas para outros é mortal e, além disso, é mortal de uma maneira espetacular. Além dos pulmões, ataca o coração e os rins e agora também estamos vendo danos cerebrais. É um pesadelo de vírus. E existe a possibilidade de que se torne endêmico como a gripe.

P. O livro argumenta que o sistema econômico impede que haja incentivos para o desenvolvimento de vacinas. Isso continua sendo igual?

R. A própria equipe econômica de Trump divulgou um relatório dizendo que as grandes empresas farmacêuticas não poderiam responder a isso porque não investem em pesquisa e desenvolvimento para novos antibióticos, antivirais ou vacinas, e que isso exigiria bilhões em subsídios do Governo. Por outro lado, você tem uma infinidade de pequenas empresas de biotecnologia que estão aproveitando os avanços em biodesign e sequenciamento genético, mas não têm dinheiro. O capital de risco não é atraído por essas empresas. Havia um consórcio que incluía um laboratório hospitalar do Texas que fez uma vacina candidata para a SARS, mas não conseguiu financiamento para desenvolvê-la porque a SARS parecia ter desaparecido. Especialistas em vacinas apontaram que, se houvesse uma vacina contra a SARS, seria uma plataforma perfeita para desenvolver uma vacina contra o coronavírus, porque o SARS-CoV-2 (vírus da covid-19) compartilha cerca de 80% do seu genoma com a SARS. Poderíamos estar meses mais adiantados.

P. Mas agora existe um poderoso incentivo capitalista para desenvolver uma vacina em tempo recorde.

R. Sim, mas se acontecer em tempo recorde será por duas razões. Uma, pela revolução no design de vacinas. E outra, por uma colaboração internacional sem precedentes entre pesquisadores. Em um período em que a economia parece estar se desglobalizando e em que os Estados Unidos estão decididos a entrar em uma nova guerra fria com a China, no nível científico existe uma única comunidade de pesquisa. Com todo o mal que aconteceu na China, seu Governo divulgou o genoma do vírus em janeiro. Essa comunidade de pesquisadores, e não as farmacêuticas, é a que lidera. E as grandes empresas farmacêuticas entram em ação ao receberem subsídios do mundo inteiro.

P. Em seu livro o senhor previa que, em qualquer cenário, a pandemia não teria compaixão pelos pobres. Estamos vendo isso com os trabalhadores essenciais nos países ricos. São os que estão atuando na linha de frente.

R. Evidentemente. Trabalhadores pobres, pertencentes a minorias e que, além disso, são afetados pelas condições em que vive neste país. Milhões de pessoas não têm plano de saúde, mais os milhões que o perderam ao perder o emprego, portanto, de certa forma, era previsível que o peso das doenças graves e da morte cairia desproporcionalmente sobre os imigrantes e as pessoas de cor. Isso também acontece nos países europeus, onde os serviços mal pagos dependem do trabalho dos imigrantes. Os dados são os mesmos, principalmente no Reino Unido. Mas neste país, os chamados trabalhadores essenciais foram completamente abandonados. É como A escolha de Sofia. O trabalhador essencial norte-americano tem que decidir entre perder a casa ou pagar o aluguel, mas colocando em risco a família, em casas onde convivem várias gerações, algo comum entre a população imigrante. Existem milhões de pessoas com este dilema e ninguém lhes ofereceu uma única recomendação. Além disso, o Departamento do Trabalho se recusou a fazer uma regulação obrigatória sobre segurança no trabalho. É literalmente negligência criminal. Você tira a responsabilidade do Governo federal e a coloca sobre os ombros dos trabalhadores. Vou ao armazém hoje para poder pagar as contas? E se for, acabarei matando a vovó? Esse é o tipo de dilema que as pessoas enfrentam.

P. Existe uma coisa que o senhor não poderia prever faz 15 anos. Que tudo isso aconteceria com Donald Trump como presidente.

R. Sem dúvida. O que estamos vendo desde janeiro não é apenas má gestão. Desde o primeiro minuto no poder, tentou cortar os gastos em saúde pública. Vimos sua cruzada para destruir o Obamacare e tirar milhões de pessoas de qualquer forma de seguro saúde. Desmantelou a equipe de especialistas em pandemia do Conselho de Segurança Nacional. Era um dream team montado por Obama e ele os demitiu alguns meses antes disto tudo começar. Retirou o financiamento do programa USAID Predict, uma equipe que trabalhava com o laboratório de Wuhan na detecção precoce de vírus antes que passassem para os seres humanos. Mas Donald Trump não é o problema. É todo o Partido Republicano. O que eu não pude prever e jamais poderia esperar é como, imediatamente após a eleição, iria controlar o partido e expurgar os conservadores tradicionais para torná-lo a seita de 30% da população. E desde abril vem minando a resposta à pandemia usando as redes do Tea Party para mobilizar os loucos pedindo a reabertura, ou desacreditar a ideia de usar máscaras. Trump se tornou por si mesmo um vetor de uma doença mortal.

P. Quais consequências econômicas da pandemia o senhor vê a longo prazo em cidades como Los Angeles, que estudou tanto?

R. Muitas. Provavelmente a mais importante é o dano aos meios de subsistência dos trabalhadores pobres desempregados. São as condições que provocaram os distúrbios de 1992. A maioria dos presos então não era negra, eram imigrantes mexicanos e salvadorenhos. Foi por causa da recessão daquele ano e pelo fato de as pessoas não terem nenhuma rede de segurança. Essas condições estão se reproduzindo agora em uma escala muito maior. Isso é pior do que aquela recessão e do que a de 2008 e ainda não vimos todo o seu impacto. No nível micro, o das famílias, as pessoas não estão recebendo nenhuma informação sobre como encarar decisões como mandar as crianças para a escola, como planejar o futuro. O que nunca deve ser esquecido sobre o sul da Califórnia é o enorme preço que a população migrante pagou para realizar seus pequenos e modestos sonhos. E quando isso for tirado dela, se verá raiva e desespero. Veremos um desencanto em nível nacional que chegará às ruas.

 

"O que é normal lá fora, na favela é privilégio", diz Rodrigo Felha em entrevista[editar | editar código-fonte]

Entrevista/reportagem publicada originalmente na Revista Piauí, em 02 de outubro de 2020.

No dia 5 de junho, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, proibiu operações em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Em agosto, o plenário da Corte referendou a liminar de Fachin, autorizando ações policiais somente em casos excepcionais. Com a determinação, os índices de letalidade das intervenções policiais despencaram no estado do Rio. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), agosto registrou queda de 71% nas mortes em operações se comparado ao mesmo período de 2019. Situação semelhante aconteceu em julho, quando houve uma queda de 74% em relação ao mesmo mês do ano passado. Morador da Cidade de Deus, na Zona Oeste carioca, o cineasta Rodrigo Felha vê da janela o que os números sugerem – os dias na favela estão mais tranquilos após a decisão do Supremo. Diretor do documentário Favela Gay, Felha narra como é viver essa nova rotina – que inclui coisas simples como ir para casa a qualquer hora ou não se ver cercado pela polícia no caminho para o trabalho – , mas já está  preocupado com o que pode acontecer quando a decisão do STF for suspensa.

(Em depoimento a Matheus Rocha)

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“Em maio, a gente estava fazendo uma ação social na Cidade de Deus, numa localidade chamada Pantanal. Quando entregávamos as últimas doações, o caveirão entrou exatamente onde a gente estava. O desastre foi total. Todas as pessoas da ação ficaram à mercê de um tiro. Cada um conseguiu se esconder em casas diferentes. Ficamos por lá entre cinco e dez minutos, que pareciam intermináveis, porém uma pessoa que não estava com a gente foi baleada e morreu. Descobrimos depois que ela tinha algum envolvimento [com o tráfico]. Tem gente que pode falar: “Ah, mas, se tinha algum envolvimento, a operação foi Ok.” Lógico que não. A polícia não está ali para matar nem levar risco à vida de ninguém. Houve risco à vida de pessoas que estavam ajudando outras pessoas, fazendo um serviço que o governo não fez. Em vez de ajudar, atrapalham.

A gente também precisou alugar um galpão fora da Cidade de Deus por medo de que as entregas para a Frente CDD fossem canceladas. Esse temor se confirmou no primeiro dia. A gente estava recebendo uma grande remessa, e rolou uma ação da polícia. Se o galpão não tivesse sido alugado fora da comunidade, a entrega com certeza não teria sido feita. Depois disso, houve várias operações desastrosas em outras favelas, e aí veio a proibição por causa da pandemia. A partir daí, passamos a trabalhar com muita tranquilidade. A gente pode chegar às localidades a hora que desejar sem medo de uma operação policial, que era a única coisa que poderia nos atrapalhar.  

Agora, os pais têm a certeza, ainda que não absoluta, de que podem deixar seus filhos na rua a hora que bem entenderem. A gente vê a favela feliz. O morador pode sair para o trabalho sem pensar: “Poxa, vou chegar atrasado porque a polícia vai entrar.” Ele não precisa mais ligar para o patrão, dar desculpa ou sair mais cedo de casa. São vários os benefícios que só quem está no território sabe.

O entendimento sobre as operações precisa ser restabelecido, porque a gente já sabe os resultados: o sangue derramado. Ninguém da classe média alta vai trocar a vida de seu filho ou a sua vida pela apreensão de um fuzil. Mas é o que acontece nas operações daqui. “Morreu um inocente, mas apreendemos dez fuzis.” Outros dez fuzis voltarão, mas aquela vida perdida nunca mais vai voltar.

Vêm os seguidores do Bolsonaro e perguntam: “Vocês preferem os traficantes andando com armas?” A gente vive na Cidade de Deus há mais de cinquenta anos e nunca a operação policial acabou com as armas. Não vai ser o caveirão entrando três vezes ao dia que vai acabar com isso. O que vai acontecer é a morte de mais crianças. Foram 28 baleadas e oito mortas [só nos últimos doze meses]. Se essas ações da polícia não tivessem acontecido, elas estariam vivas na praça. Muitos acham que somos coniventes [com o crime] pelo simples fato de morarmos em um território onde existem pessoas à margem da legalidade. Só que também existem pessoas do alto escalão que estão sendo presas, mas não falamos que seus vizinhos são coniventes com o crime. A gente não é conivente com o que acontece na favela. A gente convive. Com a polícia, não conseguimos conviver. 

A memória mais antiga que tenho de uma operação é o chamado Muro da Vergonha. Um morador conseguiu uma câmera, já que não havia acesso a celular ainda, e filmou cenas de agressão policial. A polícia colocou moradores contra um muro e começou a agredir todos eles. Esse muro fica em frente à minha casa, e eu poderia ter estado nele. Eu circulava pela favela o tempo todo e chegava em casa tarde da noite. Eu já estava em casa naquele dia. Caso contrário, teria sido abordado e, possivelmente, agredido. Tenho certeza que sofreria agressão só pelo fato de morar ali. Isso ficou na minha cabeça. 

Já fui parado dezenas de vezes pela polícia, apenas por morar aqui. O episódio que mais me marcou aconteceu um dia antes de eu ir para o Festival de Cannes, em 2010. Eu estava saindo para ir à casa de um amigo que havia organizado um jantar com outras pessoas para comemorar minha ida ao festival. Saindo, fui abordado no muro de casa. Nunca tive medo de abordagem policial, porque sei que não estou errado e sei até onde eles podem ir. O agente pediu para eu colocar a mão na parede. Ok. Prontamente atendi. Ele tentou abaixar as minhas calças e eu neguei. Falei que fazia um trabalho social na Cidade de Deus, que o comando dele me conhecia, sabia do meu trabalho. Ele insistiu. Isso gerou um debate, um atrito rápido, mas eu não deixei. Saí andando.

Naquele momento, eu estava com uma visibilidade boa por conta do filme 5x Favela: Agora por Nós Mesmos, do qual fui um dos diretores. Quando levei isso para a imprensa, muitos moradores vieram me agradecer, porque esse policial já estava fazendo aquilo com outras pessoas: mandar abaixar as calças e fazer abordagens constrangedoras. Os moradores não tinham a quem recorrer. Ele me considerou um inimigo só por eu estar no território. Estar aqui é ser visto como inimigo, mas a gente está quebrando esse paradigma por meio da arte e da cultura.  

Para mostrar que a minha câmera tremida é uma linguagem, não uma falha, demorei muito tempo. A câmera tremida do estudante de cinema da PUC é a linguagem, mas a minha câmera tremida não é vista assim. A gente é a anormalidade dentro do setor. Por meio de uma bolsa, eu estudei na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, instituição com a qual tive e ainda tenho boas relações. Estudar lá foi transformador. No meu primeiro dia de aula, o professor pediu para a gente falar o nome e de onde a gente vinha. Sentei lá atrás. Havia dois franceses, um espanhol, gente do Espírito Santo e de São Paulo. Quando o professor perguntou, eu respondi: “Sou Rodrigo Felha e moro na Cidade de Deus.” Todo mundo olhou para trás. Eu era um corpo estranho. “Quem é esse cara?” “Cidade de Deus?”

Existem muitas coisas no nosso cotidiano ricas do ponto de vista de roteiro e de fotografia. Isso está muito claro para a gente, mas essas histórias não estão tão claras para quem não mora neste território. Morar na favela traz esse olhar apurado se você estiver atento e com o coração aberto. Não é fácil. A gente absorve muita coisa. É preciso dividir o que a gente absorve de positivo e o que deve ser descartado. Sou um cineasta que gosta de luz quente. A favela tem essa luz quente: o sol brilha igual para todos, mas, quando bate no tijolo, a coloração é diferente.  

Aqui na favela está tudo mais tranquilo. Do comércio à rotina dos moradores, que podem ir trabalhar sem medo de levar um tiro. As pessoas conseguem andar livremente, e é nessa normalidade que a gente deseja viver, com as crianças nas ruas e os moradores podendo voltar para casa a hora que eles quiserem. São coisas normais, comuns a pessoas de classe média alta, mas o que é normal lá fora é privilégio para a gente. Por uma decisão atípica, estamos tendo esse direito, mas ele vai acabar. É isso o que já está me doendo. Eu já sou alguém ansioso e que sofre pensando na volta das operações.”

 

 

 

Planos de ação e documentos[editar | editar código-fonte]

Carta-Manifesto das filhas e dos filhos de empregadas(os) domésticas(os) e diaristas[editar | editar código-fonte]

Manifesto divulgado no site Change.org, no dia 17 de março de 2020, junto a um abaixo-assinado.

Esta carta manifesto tem como objetivo acionar a política do bem comum, em que ações individuais são primordiais para o bem-estar da coletividade. Levamos em consideração que, segundo a OMS, estamos inseridas(os) em uma pandemia, com recomendações internacionais de ficarmos em isolamentos e quarentenas voluntárias, sendo necessária, momentaneamente, a restrição do convívio social.

E ao constatarmos que nossas familiares que são empregadas domésticas e diaristas continuam trabalhando normalmente, salientamos a EMERGÊNCIA de atender à quarentena estipulada pelas autoridades e reivindicamos a DISPENSA REMUNERADA das empregadas domésticas e diaristas pelos empregadores para que, assim, cumpram com as exigências de precaução no combate à propagação contagiosa do COVID-19.

O isolamento social é crucial e vai muito além da relação trabalhista. É uma maneira eficaz de evitar a exposição à aglomeração em transportes públicos e outras situações que favorecem a contaminação em massa, levando ao contágio comunitário, como já vem acontecendo. Fato que traz riscos aos empregadores e aos empregados.

Em Miguel Pereira, sul do Estado do Rio de Janeiro, uma senhora de 63 anos veio a óbito infectada pelo novo coronavírus. A mesma continuou a trabalhar como empregada doméstica na casa de sua empregadora, no RJ, que já havia sido diagnosticada com o COVID-19, ao voltar de uma viagem à Itália.

As empregadas domésticas pertencem a uma categoria de trabalhadoras que representam o Brasil. Segundo o IBGE, profissionais que prestam serviços domésticos - o que pode incluir jardineiros, caseiros, empregadas domésticas e diaristas - representam um total de 6,3 milhões de trabalhadores. Todos esses profissionais estão economicamente ativos no País.

Desse grupo, 1,5 milhão trabalham com carteira assinada. Outros 2,3 milhões de trabalhadores atuam sem carteira assinada e 2,5 milhões são diaristas, o que as torna um grupo vulnerável diante do cenário atual.

A situação de pandemia indica que o maior número de trabalhadores neste momento (de grande risco de contágio) estão desamparados por leis trabalhistas. As diaristas estão em situação ainda mais precária e vulnerável, sem contratos legais que possibilitem, por exemplo, negociar adiantamento de férias. Por isso, encontram ainda mais obstáculos em se manterem e garantirem a segurança de seu coletivo familiar, pois recebem por dia trabalhado.

Há anos nossas mães, avós, tias, primas dedicam suas vidas a outras famílias, somos todas (os) afetadas (os) por essa “relação trabalhista” de retrocesso e modos escravistas. Tivemos nossas vidas marcadas por esse contexto, que precisa ser repensado por toda sociedade, sobretudo, pelos empregadores. Nesse contexto, nós, filhas e filhos de empregadas domésticas e diaristas, vivenciamos os incômodos relatados por nossas parentes:

“No meu caso, minha vó trabalhou anos em uma casa de família. Ela tinha seus 63 anos, chegava lá às 6h duas vezes na semana, depois passou a cozinhar, a passar, a lavar terraço… Ganhando apenas R$100, sem a passagem. Em janeiro ela veio a óbito e a mensagem recebida pelo whatsapp foi “ Dona Conceição, arrumei outra pessoa para pôr no seu lugar, já que a senhora não veio mais, a minha casa tá toda suja porque as paredes foram pintadas.”
Nicole Nascimento, Japeri/RJ

“Minha mãe trabalha desde os 6 anos de idade como doméstica e diarista, e a vi muitas vezes ir trabalhar doente para manter seus compromissos. Mesmo falando sobre os riscos do Corona, ela não tem como faltar com risco de ser demitida. As domésticas estão correndo grandes riscos e também são uma grande possibilidade de contágio, principalmente nos transportes nas metrópoles”.
Marcelo Rocha – Mauá/SP

“ Mainha é diarista todo dia uma casa diferente, nesta
segunda feira quando explodiu o lance do coronavírus meu irmão me manda um zap dizendo que a nossa mãe não queria entrar em casa pois a patroa teria dito a ela que estava com febre e que era para minha mãe ficar atenta. Esse episódio fez mainha tomar um banho de álcool em gel, não por desinformação era por DESESPERO de alguém que ela ama dentro de casa pegar o coronavírus.
Yane Mendes, 28 Anos- Totó-Recife PE

“Me recordo de várias histórias, do trabalho excessivo, da sobrecarga e ainda presencio ela trabalhando com 66 anos de idade mesmo aposentada. Uma vez aconteceu uma situação, uma não, várias vezes, ela precisou se ausentar do trabalho por motivo de doença e pediu para que ligasse avisando da sua falta, assim fiz e ouvi: “Mas quando sua mãe vai voltar?” Na hora minha resposta foi certeira: “Simples, quando ela melhorar!”.
Laura Cristina, 29 anos- Santa Luzia/MG

Dito isto, apresentamos medidas concretas que podem e precisam ser cumpridas pelos empregadores, visando o bem comum, sendo elas:

Dispensa remunerada imediata de domésticas, com carteira assinada ou informais, e de diaristas;
Adiantamento das férias em sua totalidade ou de forma parcial;
Caso o empregado more na casa do empregador e esteja em grupo de risco, o mesmo não poderá ser colocado em situações de risco de contágio, como: ir a supermercados, farmácias, shoppings e demais espaços públicos, evitando assim, quaisquer tipo de aglomerações.

Esta carta é assinada por filhas e filhos de empregadas domésticas e diaristas que prezam pela saúde, cuidado, coletivo e para além de tudo a vida de suas mães!

Brasil, março de 2020
#QuarentenaRemuneraJa
#PelaVidadasDomesticas
#PelaVidadeNossasMães

 

CUFA: Propostas de medidas para reduzir os impactos da pandemia de Covid-19 nos territórios das favelas brasileiras[editar | editar código-fonte]

Texto originalmente publicado no site da CUFA, em 18 de março de 2020.

Considerando a enorme desigualdade social brasileira, a alta taxa de desemprego e a crescente informalidade do trabalho à qual estão expostas muitas famílias;

Considerando que a crise gerada por essa pandemia irá somar-se a uma situação já delicada, que causará um enorme impacto econômico e social, principalmente para as populações que sempre tiveram seus direitos de cidadania vilipendiados;

Vimos, por meio desse documento, propor medidas para reduzir os impactos da pandemia de Covid19 nos territórios das favelas brasileiras:

Sabemos que são necessários bem mais ações e que este conjunto de medidas visa alcançar um público que ficou fora das medidas formais adotadas até aqui. Em particular, os que se encontram economicamente fragilizados e habitantes em territórios de desigualdade. Os números, que nos ajudam a focalizar estas medidas, são: 77 milhões de pessoas estão no cadastro único; 66 milhões de pessoas de renda muito baixa (menos de ½ SM per capita); 41 milhões no bolsa família; 11 milhões com renda não muito superior a ½ SM.

Diante do exposto, sugerimos as seguintes propostas e deixaremos no ar, durante uma semana, para colhermos sugestões de todos para compor este documento, que será levado até os poderes públicos executivos e legislativos responsáveis pelas decisões políticas do país:

a- Distribuição gratuita de água, sabão, álcool 70º em gel e água sanitária em quantidade suficiente para cada morador das favelas brasileiras.

b- Organização em mutirões do Sistema S e das Centrais de abastecimento para a distribuição de alimentos durante os meses de março, abril, maio e junho, meses em que são esperadas muitas pessoas infectadas pelo novo Coronavírus. Essa distribuição de alimentos, principalmente para as famílias que tenham crianças, idosos ou pessoas com maior risco de contraírem a Covid19, é uma medida humanitária urgente: tanto para manter a alimentação para as crianças que não estarão frequentando a escola, quanto para manter a integridade imunológica das pessoas mais suscetíveis ao vírus.

c- Aluguel de pousadas ou hotéis para idosos e grupos vulneráveis com estrutura para repouso; nas favelas, na maioria dos lares, não há possibilidade de isolamento, o que compromete a saúde de todos.

d- Parceria com agências locadoras de veículos ou com operadores de transportes de passageiros (vans e ônibus) para a locomoção imediata de pessoas infectadas para centros de saúde, quando houver indicação médica.

e- Instituição do Programa de Renda mínima para as famílias já inscritas no Cadastro Único e adicional de renda para os cadastrados no Bolsa Família. Aumento do apoio financeiro para famílias já inseridas no programa de tarifas sociais.

f- Decreto apoiando economicamente as micro e pequenas empresas que tenham autorizado seus funcionários a permanecerem em casa (sem desconto no pagamento).

g- Apoio às empresas de água, luz e gás que isentarem o consumidor do pagamento durante 60 dias, para famílias com renda de até 4 salários mínimos.

h- Incentivo para que a população compre dos pequenos comerciantes, mais frágeis frente aos problemas econômicos advindos da pandemia.

i- Liberação de pontos de internet junto às empresas de fibra ótica para garantir acesso universal à rede. Isso é primordial para a comunicação de medidas de prevenção e cuidados para a população.

j- Financiamento para as redes de comunicação próprias de cada favela: rádios comunitárias, sites, jornais impressos ou virtuais, TVs.

k- Apoio financeiro específico para as famílias das crianças que estarão impedidas de frequentar as creches.

l- Apoio financeiro específico para famílias com pessoas portadoras de deficiência.

m - Criar uma rede de comunicação com apoio técnico do Ministério da Saúde para filtrar e fazer verificações, em tempo real, das informações compartilhadas em redes sociais para as favelas.

n - Ampliação das equipes de saúde da família para prevenir e informar as favelas, para que se evite lotação nos hospitais.

Essas medidas, além de humanitárias e eticamente defensáveis, visam preservar o Sistema Único de Saúde (SUS) de um colapso frente ao contingente projetado de pessoas infectadas. Um colapso do SUS não interessa a ninguém, pois o Sistema Único de Saúde brasileiro é um patrimônio de toda a nossa sociedade.

Sem deixarmos de mencionar que a redução da demanda comercial, necessariamente, provocará um impacto econômico relativamente perverso. Esse impacto econômico não é trivial, que levará a uma desaceleração da economia como um todo. Causando um problema maior, principalmente, para a população das favelas.

 

Periferias e Pandemia: Plano de Emergência, já!, por Sonia Fleury e Paulo M. Buss[editar | editar código-fonte]

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, em 25 de março de 2020.

Comunidades onde mora a maior parte dos brasileiros requerem ações especiais contra a Covid-19. Enfrentam a precariedade. São solidárias e potentes. Ação do Estado precisa respeitar autonomia local. Eis algumas propostas:

A pandemia do Covid-19 chegou às favelas. Embora o vírus não discrimine por classe social ou raça, as condições socio-sanitárias serão determinantes para dizer quais estarão em melhores condições de sobreviver e quais estarão destinados a morrer.

Favelas e periferias enfrentarão a pandemia em condições mais adversas, decorrentes do descaso dos governos em prover condições adequadas de abastecimento de água, saneamento básico, coleta de lixo, habitação e urbanização, transporte público, atenção à saúde. Não se trata mais de falar na ausência de políticas públicas para esses territórios, mas de uma necropolítica, que condena ao extermínio pobres, negros e mestiços nas favelas.

Com a pandemia, torna-se imperioso que o poder público passe a coordenar ações estruturais e emergenciais que impeçam o extermínio massivo dessas populações. No entanto, autoridade não se confunde com autoritarismo e arbítrio, já que em situações de crises como essa, governantes são tentados a exacerbar o poder coercitivo, desrespeitando direitos humanos e sociais. Em uma pandemia o poder de coerção é fundamental, desde que a autoridade legítima atue em defesa da cidadania, compartilhando de forma transparente informações, mobilizando os recursos públicos e privados emergenciais e coordenando, de forma democrática e participativa, os esforços conjuntos para o enfrentamento da situação.

As favelas sofrem com um conjunto de carências, mas possuem enorme potência, no sentido de uma cultura de solidariedade, bem como um conjunto de organizações e atores: comunicadores, igrejas, templos e centros, associações de moradores, empresas locais e serviços, grupos musicais, coletivos de artistas e poetas.

Até recentemente o plano de contingência proposto para o combate à pandemia desconsiderou a realidade das favelas, com propostas voltadas à classe média, como isolamento social, trabalho em casa e medidas de higiene, circulação de ar, etc. impraticáveis em situações de falta de água, espaços insalubres e transporte coletivo em condições insuportáveis de aglomeração.

Agora que a mídia e as autoridades deram-se conta que a direção do contágio pode ser revertida, que medidas concretas precisam ser tomadas?

Renda básica de cidadania – Imediata aplicação da Lei nº 10.835, que institui a renda básica de cidadania, com um valor emergencial de 70% do salário mínimo. Sendo de caráter universal, evitará demoras na sua aplicação, ou a exclusão dos informais e autônomos não relacionados no Cadastro Único do governo e que serão duramente afetados. Aqueles que quiserem renunciar à renda básica poderão destinar os recursos ao Fundo Nacional de Saúde.

Teto de gastos sociais – Revogação imediata da Emenda Constitucional 95/2016, o que já acarretou perda de mais de R$ 10 bilhões para o orçamento da saúde. O teto de gastos e o contingenciamento de despesas não produziram melhorias econômicas e têm levado à deterioração dos serviços públicos hospitalares e da atenção primária.

Comissão nacional – Criação de uma comissão nacional, envolvendo governos e cientistas, visando propor soluções de enfrentamento da pandemia e suas consequências, em suas múltiplas dimensões: saúde pública, investimentos em produtos essenciais ao combate, frentes de trabalho e emprego nas cidades, favelas e periferias, plano habitacional nacional, estadual e local, obras de saneamento básico, transporte, logística etc.

Plano de contingência em favelas e periferias – Apesar das semelhanças em termos de carências de infraestrutura, cada território é singular e possui uma sociedade local diferenciada. Portanto, não se deve falar de favela como um genérico, mas de favelas, com suas capacidades e necessidades. O plano de contingência deve envolver aspectos sanitários, urbanísticos, habitacionais, logísticos e de infraestrutura, dentre outros.

Abastecimento de água, luz e coleta de lixo – Governos estaduais e locais devem usar seu poder legal para obrigar que as empresas concessionárias adequem o fornecimento de seus serviços imediatamente.

Preço do gás – Redução imediata do preço em 60%.

Fundo emergencial – Criação de fundos emergenciais estaduais e municipais, com recursos próprios, transferências da União, recursos do Sistema S e doações de empresários e da população, para serem usados em ações prioritárias definidas pelos comitês sanitários. Usar também os recursos destinados à merenda escolar e de outros serviços públicos que se encontrem paralisados.

Comitês sanitários – Em cada favela deve ser criado um comitê formado por técnicos do governo e da sociedade, como engenheiros, arquitetos, agentes de saúde, assistentes sociais e lideranças comunitárias, visando identificar as situações de maior vulnerabilidade em termos de moradias sem água, luz ou coleta de lixo, cômodos sem ventilação e com apenas um ponto de água para uso, pessoas com doenças e deficiências que exijam cuidados especiais, famílias em situação de fome e insegurança nutricional, dentre outras.

Levantamento dos recursos que a comunidade possui, como comunicadores comunitários, serviços de saúde e assistência social, escolas públicas e privadas, empreendimentos fabris e comerciais, coletivos e grupos de jovens etc. Definição de plano imediato de ação, com abertura de janelas, pontos de água, retirada de pessoas em situação de maior risco e sua alocação em hotéis, distribuição gratuita de cestas básicas e materiais de higiene e remédios, logística para transportar pacientes, dentre outros.

Testes em favelas – Priorizar em favelas a aplicação de testes para detecção de pessoas contaminadas e definição de estratégia de isolamento.

Comunicação – Utilizar os recursos da comunicação comunitária, de músicos e artistas locais, para mobilizar jovens, crianças e adultos para as medidas de prevenção, em especial a higiene e manutenção do isolamento.

Mobilização de recursos públicos e privados, com a requisição do uso de propriedades como hotéis e pousadas, espaços desocupados, empresas de transporte, distribuidoras de gás e outras, para atender às demandas locais.

Internet livre – Só será possível manter em isolamento os jovens e adultos se eles puderem ter acesso livre à internet, o que deve ser decretado, obrigando as empresas provedoras a liberação dos serviços nessas áreas.

Atividades escolares, culturais, religiosas e de exercícios físicos – Mobilização de professores, artistas, produtores culturais, religiosos e fisioterapeutas para desenvolverem programas de atividades para diferentes faixas etárias, disponibilizados pelo poder público com uso de meios privados e comunitários.

Fortalecer a atenção à saúde e à assistência – Reforço do SUS, com contratação de profissionais, treinamento e distribuição imediata de equipamentos de proteção para os profissionais, envolvendo agentes comunitários, profissionais do programa de saúde da família, assistentes dos CRAS e CREAS, unidades básicas e postos de saúde. Fortalecer a gestão do sistema de saúde, visando maior efetividade na transferência de pacientes para os hospitais e reduzindo a peregrinação e os riscos de contágio.

Enfim, a pandemia só pode ser enfrentada com mais SUS e mais democracia, ou seja, governo eficiente, transparente, respeitador da cidadania e dos direitos humanos, mobilizador da sociedade e distribuidor de recursos públicos para os que mais necessitam!

Sonia Fleury é Coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ (wikifavelas.com.br).
Paulo M. Buss é Professor Emérito da FIOCRUZ; Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.

 

Coletivo Juntos pelo Complexo do Alemão: Notas sobre o CoronaVírus nas favelas[editar | editar código-fonte]

CARTA ABERTA SOBRE O CORONAVÍRUS NAS FAVELAS

Por Coletivo Juntos Pelo Complexo do Alemão[59]

O processo de contágio pelo novo coronavírus está avançando fortemente sobre a linha de divisão de classes sociais e já chegou nas favelas. E como essa divisão já é definidora, historicamente, de quem merece ter direitos às políticas públicas que possam garantir minimamente o acesso às necessidades mais básicas para a garantia de uma vida digna, urge agirmos para que a situação atual não seja mais nefasta ainda para as(os) moradoras(es) de favelas e outras periferias.

Já faz bastante tempo que muitos de nós vêm denunciando que os dados oficiais sobre as favelas não reflete a realidade, são subnotificados, e existe a necessidade de se rediscutir as metodologias usadas para os espaços de favelas, ainda denominadas como aglomerados subnormais pelo principal instituto de pesquisa do país (IBGE). As subnotificações nas favelas e periferias impactam diretamente na aplicação de recursos públicos em políticas públicas, violando direitos básicos. Não seria diferente agora com as notificações da Covid-19 que é subnotificada no país todo e será menos notificado ainda nas favelas, sobretudo quando explodir o contágio. Portanto:

PRECISAMOS DE APOIO PARA PRESSIONAR O PODER PÚBLICO PARA QUE PROMOVA MAIOR QUANTIDADE DE TESTES NAS FAVELAS E ENCAMINHAMENTOS DEVIDOS DOS CASOS CONFIRMADOS.

Em relação à quarentena ou isolamento voluntários, se faz necessário olhar as favelas por dentro, pelo olhar da(o) morador(a). A dinâmica das favelas sempre foi de ter a rua como a extensão de suas casas, o seu quintal, a sua varanda. As(os) vizinhas(os) são a extensão de suas famílias, muitas vezes. Os locais de sociabilidade no cotidiano das favelas, onde também se negociam estratégias de superação dos problemas diários, são muito diferentes em relação ao restante da cidade. E convenhamos: são tantas as violações históricas de direitos que a galera favelada tem dificuldade, apesar do bombardeio de informações nas grandes mídias, em acreditar que um vírus fará tanto mal assim. Ou seja, estamos produzindo muitas informações, mas elas não estão tendo efeito real nas favelas. Precisamos chegar com informações que sejam assimiladas e isso só entendemos ser possível com comunicações específicas, feita por quem conhece as dinâmicas locais, com linguagens que possam alcançar públicos específicos dentro das favelas. Muitos coletivos estão se organizando localmente nas favelas, mas também nacionalmente (ver: #CoronaNasPerifas), criando estratégias de comunicação direta, feita por comunicadores locais com linguagens próprias para grupos específicos: cartazes informativos (inclusive em HQ), lambe-lambe, carros de som, faixas, além de material (cards) que possa circular nas redes internas de whatsapp. Para isso:

PRECISAMOS DE APOIO PARA REPRODUÇÃO DE MATERIAL E DE RECURSOS PARA CARROS DE SOM, FAIXAS E OUTRAS AÇÕES DE COMUNICAÇÃO.

Outra questão importante a ser considerada é que um número elevado de pessoas nas favelas exercem trabalhos informais. Como garantir o direito de fazer quarentena ou isolamento voluntários, se manter dentro de casa, sem ter acesso a renda mínima para seu sustento? Portanto:

PRECISAMOS DE DOAÇÕES DE CESTAS BÁSICAS COM ESPECIAL ATENÇÃO DE INCLUSÃO DE KITS DE HIGIENIZAÇÃO (sabão, papel toalha, lenços descartáveis, álcool, material de limpeza em geral), ALÉM DE ALIMENTAÇÃO, CLARO.

  • Doação de livros e jogos infantis também são importantes para manter as crinças em casa entretidas.

No Complexo do Alemão estamos atuando conjuntamente - grupos, organizações e pessoas - a partir do coletivo JUNTOS PELO COMPLEXO DO ALEMÃO, mas basicamente tudo que foi colocado acima está sendo feito em muitos territórios de favelas por todo o Brasil. Então, precisamos fortalecer esses coletivos de pessoas e organizações locais, considerando sua capilaridade local, conhecimentos produzidos a partir das vivências e ações locais, sobretudo a capacidade comunicacional específica tão necessária neste momento.

Outra questão relevante são as pautas gerais e de políticas públicas emergenciais para a população mais vulneráveis que estão postas e algumas até aprovadas faltando assinatura do executivo. Então:

PRECISAMOS PRESSIONAR E APOIAR PUBLICAMENTE:

    • Renda Básica de Emergência de R$300 por mês para todos os brasileiros mais pobres do país. Pressionar o congresso:rendabasica.org.br;
    • Exigir o cumprimento dos projetos aprovados na ALERJ em 18/03 relacionados à pandemia do coronavírus e seu impactos. E sancionado pelo governador em 23/03. Ver projetos:
      http://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/48468
      • LEI Nº 8768 - conceder bolsa-auxílio para as famílias responsáveis por estudantes da rede pública de ensino;
      • LEI Nº 9769 - Fica vedada a interrupção de serviços essenciais por falta de pagamento, pelas concessionárias de serviços públicos (luz e água). MEIs também estão inclusos;
      • LEI Nº 8772 - Renda mínima emergencial à empreendedores solidários cadastrados no CADSOL ou na Secretaria Estadual de Cultura
    • Apoiar o Manifesto das(os) filhas(os) de empregadas domésticas e diaristas pelo direito à quarentena ou isolamento social com dispensa remunerada. Apoiar:https://linktr.ee/pelavidadenossasmaes;

É necessário reafirmarmos essas pautas gerais e ficarmos atentas(os) para as emergências locais/pontuais, principalmente relativas à regularidade no fornecimento de água em algumas favelas encaminhando carros-pipas, se for o caso, assim como viabilizar a distribuição de suportes de armazenamento (baldes, caixas d’águas e outros) às(aos) moradoras(es) das áreas mais precárias nas favelas.

NÃO PODE FALTAR ÁGUA NAS FAVELAS. NEM ACESSO À MESMA.

Outro tipo de urgência que precisamos ficar atentas(os) são os casos de doenças que ocorrem como desdobramentos de contextos de forte pressão psicológica. No Complexo do Alemão já temos muitos casos de aumento substancial de doenças, algumas psicossomáticas, decorrente do contexto de violência extrema no cotidiano, tais como: ansiedade, depressão, problemas coronarianos, infartos, AVCs e diversos tipos de paralisias (permanentes, provisórias / parciais e faciais) como atesta a organização Instituto Movimento & Vida conduzida pela fisioterapeuta, Mônica Cirne, que cuida de parcela desses casos. Essas doenças tendem a aumentar no atual contexto do coronavírus. Portanto:

PRECISAMOS CRIAR CAMINHOS DE ATENDIMENTOS PSICOLÓGICOS PARA O TRATAMENTO DA POPULAÇÃO FAVELADA ANTES QUE SEJAM SOMATIZADAS (passem do psicológico para o físico).

E por último, mas não menos importante, devemos nos atentar para dois pontos importantíssimos como desdobramentos desse cenário caótico em tempo do coronavírus: AUMENTO DA REPRESSÃO DAS FORÇAS POLICIAIS e CULPABILIZAÇÃO DA FAVELA.

Foi reconhecido, com aprovação do congresso em 18/03/2020, o Estado de Calamidade Pública pelo governo federal que atinge excepcionalidades principalmente no campo dos orçamentos de Estados e Municípios, mas abre a possibilidade de termos outras exceções no atual contexto como o Estado de Sítio ou o Estado de Defesa. Se historicamente as favelas já são oprimidas sistematicamente à revelia das leis, imagine na situação atual, sobretudo num Estado de Exceção? A favela não precisa de maior repressão das forças policiais, nem de controle opressivo que possa dificultar ainda mais o acesso ao atendimento médico quando for necessário. Precisamos de políticas públicas eficientes que atenda as especificidades das favelas.

Também temos plena consciência que historicamente a falta de acesso à política de habitação para grande parcela da população e a falta de direitos básicos trouxe nossa população favelada a habitar nas condições que era possível e com os recursos próprios e disponíveis. Portanto a proliferação do novo coronavírus nas favelas deverá ser mais intenso pela proximidade das casas, falta de saneamento e outras políticas que pudessem amenizar essa situação. Logo crescerá a narrativa que a culpa da grande proliferação seja das favelas. Então vamos sinalizar, desde agora, o lugar das favelas e das(os) faveladas(os) nesta pandemia e como a falta de direitos básicos, que poderia garantir o mínimo de dignidade humana, para essa população as coloca como as maiores vítimas, fragilizadas e vulnerabilizadas. A sociedade em geral precisa assumir sua responsabilidade por colocar tantas irmãs e irmãos nessas condições de sobrevivência e colaborar para que possamos superar esse momento com mais solidariedade.

Desejamos que após superar esse momento possamos construir uma sociedade menos individualista, que perceba os privilégios de classe e entenda que todas e todos precisam estar incluídos, ou nada seremos.

JUNTOS PELO COMPLEXO DO ALEMÃO
Coletivo de grupos, organizações e pessoas voltadas para acompanhar, COMUNICAR, pressionar, exigir e denunciar questões relevantes para o desenvolvimento do Complexo do Alemão, desde de 2013.

Juntos mais uma vez, agora contra o coronavírus..


ATIVIDADES REALIZADAS

Página do JUNTOS PELO COMPLEXO DO ALEMÃO no facebook
facebook.com/juntospelocomplexodoalemao/

  1. Covid19NasFavelas

DOAÇÕES

Doações em dinheiro e em mantimentos.

 

 

Carta do Coletivo de Guias Turísticos do Santa Marta: suspensão das atividades[editar | editar código-fonte]

FicaEmCasaSM.jpeg

O coletivo de guias turísticos do Santa Marta vem por meio desta informar que suas atividades de guiamento na favela Santa Marta estão suspensas por conta da demanda do corona virus. 
Estamos suspendendo nossas atividades pelo período de 15 dias porque reconhecemos a importância de colaboramos pra conter a disseminação dessa doença. Então estamos parando nossos guiamentos e atividades turísticas a partir desse domingo, dia 15/03/2020.
É importante ressaltar que a demanda pelos tours não foi totalmente proibida em nossa cidade, então não temos nenhuma responsabilidade sobre guiamentos feitos por conta própria por moradores que estão aproveitando a oportunidade pra capitalizar e lucrar com esse momento delicado pelo qual todos passamos. 
O coletivo visa preservar e contribuir para que o corona virus não afete nossa comunidade e também ajudar e compartilhar os melhores procedimentos para que a população favelada fique segura e resguardada dos efeitos do corona virus.
Após esse período nos reuniremos para avaliar os caminhos a serem seguidos. Até lá seguiremos em atitude preventiva para que o virus não se propague no Santa Marta. 

Coletivo de Guias do Santa Marta: 

• Allan Basílio (guia local)
• Andréia e Paulo ( Santa Marta souvenirs 
• Barbosa MB ( Rio Favela)
• Elias Duarte (TouRio - Favela Santa Marta)
• Gilson (Favela Scene)
• Jean René Mandundu - M- Washiwa.( JR Tour).
• Jonatas Nogueira (guia local)
• Marco Antonio e Mario ( Favela Top Tour)
• Jose Carlos, Salete Martins e Veronica Moura ( Santa Tours)
• Sheila Souza e Roberta Souza (Brazilidade)
• Thiago Firmino (Favela Santa Marta Tour)

 

Carta Manifesto #CoronaNaBaixada, na Baixada Fluminense (RJ)[editar | editar código-fonte]

Somos uma articulação de grupos, coletivos, organizações, lideranças sociais, iniciativas e movimentos da Baixada Fluminense empenhada a combater a proliferação do coronavírus (COVID-19) e com propostas para enfrentar a crise nesse momento de pandemia.

A gente está trabalhando com três frentes:

1. Compartilhar experiências de solidariedade
2. Criar / disseminar uma estratégia para orientar as pessoas a ficarem em casa
3. Pautar a mídia e o poder público, analisando o que cada prefeitura está fazendo, quais medidas estão sendo tomadas e como está o dia a dia nos municípios para enfrentar os problemas.

Elaboramos uma carta manifesto com 7 propostas para garantir direitos à população da Baixada Fluminense.

VEJA AQUI A CARTA MANIFESTO E ASSINE!

 

As 23 propostas das periferias para combater a pandemia de coronavírus, por Centro de Estudos Periféricos (CEP)[editar | editar código-fonte]

Texto manifesto publicado no blog Periferia em Movimento, em 01 de abril de 2020.

A pandemia de coronavírus afeta a todos, mas de formas diferentes. Numa sociedade como a brasileira, marcada por desigualdades sociais e estruturada pelo racismo, o machismo e a lgbtfobia, os contrastes são potencializados. Por isso, a resposta à crise sanitária também precisa considerar diferentes realidades.

“As medidas importadas [de outros lugares pelo governo brasileiro] não são eficientes. O isolamento social é necessário, eficiente, porém a gente não consegue fazer com que pessoas permaneçam na casa e não morram se nessa casa não tiver água, saneamento básico, ou se as pessoas foram despejadas”

Nataly Ramos, educadora social, moradora do Jardim Julieta (Zona Norte de São Paulo) e integrante do Centro de Estudos Periféricos (CEP)

Há exatamente 03 semanas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou pandemia de coronavírus, acendendo o alerta em todo o mundo. Logo de início, a Periferia em Movimento listou 16 perguntas sobre o impacto a covid-19 na população de periferias e favelas Brasil afora.

No início desta semana, o CEP publicou uma carta com 23 medidas para conter a pandemia a partir da realidade das periferias de São Paulo. Composto por moradores e moradoras de bairros periféricos que produzem conhecimento e incidem sobre a realidade, o grupo de estudos é vinculado ao Instituto das Cidades/Campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Eu tô vendo a polícia passar com o carro de som e intimidando moradores, em vez da assistência social estar passando e conscientizando as pessoas”, observa Nataly.

Entre as medidas propostas pelo CEP, está a distribuição gratuita de kits de limpeza e higiene pessoal, a suspensão de cobranças de aluguel, água, luz e o congelamento nos preços de itens essenciais como a cestá básica de alimentos e o botijão de gás.

“A gente viu a necessidade de reafirmar medidas que já vem reivindicando faz anos”, ressalta Nataly. O CEP está em contato com parlamentares para pautar e efetivar as propostas.

Confira abaixo as medidas emergenciais propostas pelo CEP:

  • Montagem urgente de hospitais de campanha nas escolas e terrenos ociosos das quebradas;
  • Distribuição de água com a disponibilização de caminhões pipas para regiões que não tem saneamento básico;
  • Distribuição gratuita de kits de higiene, limpeza e prevenção (álcool gel, álcool líquido, sabonetes, toalhas, escovas de dente, pastas de dente, máscaras);
  • Suspensão da cobrança de contas de água e luz;
  • Suspensão da cobrança de parcelas e juros de financiamentos em geral, incluindo as famílias com dívidas com a Caixa;
  • Suspensão da cobrança aluguéis residenciais e comerciais;
  • Congelamento do preço do botijão de gás e dos alimentos da cesta básica;
  • Compra de itens de primeira necessidade dos comércios de bairro, por parte do poder público, para distribuição gratuita nas quebradas;
  • Rápida liberação dos recursos da renda mínima para trabalhadores/as informais e desempregados;
  • Manutenção da distribuição de merendas nas escolas nas regiões mais pobres;
  • Campanha de conscientização mais amplas, com carros de som, músicas e vídeos que dialoguem com as quebradas;
  • Não à policialização da situação, evitando o aumento do encarceramento;
  • Não ao isolamento vertical. Nas periferias, diversas gerações da mesma família dividem a mesma casa ou o mesmo quintal com frequência. Quem tiver a obrigação de sair pra trabalhar, vai certamente trazer o vírus para casa;
  • Reforço às medidas de proteção para quem trabalha em setores essenciais, como transportes, supermercados, feiras livres, farmácias, fábricas, abastecimento, entre outros;
  • Transferência de pessoas que fazem parte dos grupos mais vulneráveis para quartos adequados de hotéis disponibilizados pelo poder público.
  • Descentralização dos kits de testagem do centro para os bairros de periferia em UPAs e UBS, com orientação e insumos para o gerenciamento de casos menos graves. Essa medida evitaria também deslocamentos desnecessários;
  • Ampliação da rede de wi-fi grátis nas periferias;
  • Estabelecimento de fluxo para o abrigo de mulheres em situação de risco de morte com a desburocratização imediata do acesso às Casas-Abrigo para as mulheres, dispondo de um número público que disponha de vagas para o abrigo emergencial em caso de violência, além do acolhimento das demais demandas divulgadas em Nota pela Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da Zona Leste
  • Não fechamento do atendimento no hospital de referência em aborto legal, tendo em vista que são procedimentos que não podem esperar e que devem sofrer um aumento de demanda durante o período de confinamento, junto com a violência doméstica;
  • Não à diminuição da quantidade de trens e metrôs, evitando assim aglomeração no transporte de trabalhadores de serviços essenciais;

Como medidas para conter a crise, o Centro de Estudos Periféricos recomenda também:

  • Taxação das grandes fortunas e vinculação desses recursos ao SUS;
  • Suspensão imediata do pagamento dos juros da dívida pública;
  • Fim do teto de gastos para saúde e educação;

ACESSE AO DOCUMENTO COMPLETO AQUI!

 

Manifesto das favelas sobre o novo coronavírus, por Central dos Movimentos Populares[editar | editar código-fonte]

A pandemia do novo Coronavírus atinge a todos, mas de forma muito mais grave a população moradora das favelas e dos assentamentos precários!

Nós, das favelas e ocupações, filiadas à Central de Movimentos Populares (CMP) e à União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), vimos por meio deste Manifesto afirmar que estamos praticando ações concretas de solidariedade, organizando e estimulando pontos de arrecadação e distribuição de alimentos, bem como de materiais de limpeza e higiene para o povo que já está passando fome. Contudo, temos consciência de que nossa ação, embora seja muito importante, não é suficiente para a resolução do enorme problema social nessas comunidades. Por isso, exigimos ações urgentes do Estado Brasileiro no enfrentamento ao caos e à tragédia social em curso. Entendemos que são necessárias medidas imediatas por parte dos governos no combate à crise causada pelo novo coronavírus, que atinge as favelas e outras comunidades igualmente pobres em nossas cidades. Sem atitudes firmes e concretas corremos o risco de levar à morte milhares de pessoas e ao consequente aumento da fome, da miséria e do desemprego.

O mundo passa neste momento por uma crise de saúde pública com poucos precedentes na História da Humanidade. A epidemia do novo coronavírus se espalhou rapidamente por todos os continentes, atingiu de forma indistinta praticamente todos países do Norte e do Sul e vitimou milhões de pessoas. Estima-se que mais da metade da humanidade esteja em processo de isolamento social, o que tem provocado graves impactos humanitários, econômicos e socais. Especialmente para os países mais pobres ou de grande desigualdade social, como o Brasil.

No nosso País, milhões de pessoas moram de forma precária em favelas, cortiços e ocupações sem saneamento básico, com pouco ou sem nenhum acesso à água encanada que garanta condições mínimas de prevenção e proteção. Essa situação nos deixa em condições sem precedentes de emergência social, colocando em risco de transmissão do vírus milhões de pessoas que vivem em ambientes absolutamente inseguros.

No Brasil mais de 15 milhões de famílias – cerca de 60 milhões de pessoas estão em favelas, ocupações e loteamentos, em situação de risco social e em condições miseráveis de habitação.

Se de um lado o isolamento social recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) tem sido a maneira mais eficaz de diminuir – ou mesmo evitar a contaminação – e ainda não causar um colapso do sistema de saúde, de outro lado existem a preocupação sobre como estabelecer medidas para conter a disseminação do vírus entre as comunidades mais pobres, onde os moradores e vizinhos estão muito mais próximos uns dos outros.

Dados do IBGE de 2010 apontam que existem 6.329 favelas no País. Nelas está a maior parte dos cerca de 13,5 milhões de famílias que vivem na extrema pobreza, sendo que 72% da população de favelas não têm nenhum valor na poupança.

Outra preocupação está nos impactos do isolamento de milhões de trabalhadores e trabalhadoras que estão na informalidade. São ambulantes que, literalmente, trabalham pela manhã para alimentar suas famílias à noite. Quase 39 milhões de pessoas estão na condição de informais, 14 milhões encontram-se desempregadas e 29 milhões estão empregadas, ganhando até 3 salários mínimos.

Para que este enorme contingente de pessoas consiga ficar em isolamento é preciso que o dinheiro da renda básica aprovado pelo Congresso Nacional seja pago logo, juntamente com outras medidas de apoio emergencial, que possam, de fato, chegar às famílias moradoras das favelas. Por isso, estamos participando da campanha “Paga Logo Bolsonaro”. É urgente pagar já a renda básica de 600 a 1200 reais, por um período de 3 meses.

Bolsonaro é um genocida que tem se colocado contra a política de isolamento social. Age na contramão das orientações estabelecidas pela OMS e pelas autoridades sanitárias do País. Não lidera a Nação para enfrentar a pandemia. Ao contrário, sua única preocupação tem sido de produzir factoides que visam assegurar seguidores, com vista às próximas eleições presidenciais. Suas ações e falas são no sentido de passar a falsa ideia de que não é político; afirma ser contra e vítima do sistema político; se coloca até mesmo contra seus ministros, e constrói uma narrativa para se livrar da responsabilidade dos efeitos da crise.

A população moradora das favelas rejeita a proposta absurda do presidente Bolsonaro de relaxar ou pôr fim ao isolamento social. Pesquisa recente do Instituto Data/Locomotiva realizada em 269 favelas do País aponta que 80% dos moradores têm medo de que falte comida para seus filhos mas, mesmo assim, 71% se opõem ao fim do isolamento. A pesquisa revela ainda que, 8 entre cada 10 moradores tiveram queda de renda após o isolamento, apenas 13% têm mantimentos em casa suficiente para menos de dois dias e mais da metade para menos de uma semana. O levantamento mostra também que 56% do moradores acreditam ter que sair de casa daqui a uma semana para procurarem renda.

Ao se colocar contra o isolamento social, Bolsonaro cria uma enorme confusão, aprofundando a instabilidade política e fragilizando ainda mais a democracia. Seu objetivo é criar situações que venham favorecê-lo no futuro. Trabalha na linha de que, se o País conseguir evitar uma grande tragédia em virtude do isolamento, terá ganhos políticos. Por outro lado, acredita que se a crise da saúde pública não for evitada, também terá ganhos políticos. Grande oportunista que é, dirá que ficou contra o isolamento.

Nós, que atuarmos junto a diversas favelas, defendemos o investimento de bilhões de reais na área da Saúde e em medidas de proteção do emprego e da renda, com apoio ao pequeno e médio negócio, responsáveis pela maioria dos empregos.

Estamos participando das campanhas de solidariedade de doação de alimentos e materiais de higiene e limpeza promovidas pela CMP, UMM e as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Nossas favelas e comunidades estão criando centenas de pontos de solidariedade. No entanto, temos consciência de que isso só não resolve o drama, a fome, o medo e o desespero das pessoas. Mesmo praticando a solidariedade de classe, é preciso cobrar do Estado a resolução do problema. É responsabilidade dos governos adotarem medidas concretas e urgentes para o enfretamento da crise.

Neste sentido, é fundamental irmos além da solidariedade. Assim, exigimos que os governos cumpram suas obrigações e garantam condições para que o povo mais excluído possa enfrentar e sobreviver à esta situação de crise. Além do imediato pagamento da renda básica, exigimos a suspensão dos despejos por falta do pagamento de aluguel, suspensão de todas as reintegrações de posse, isenção de taxas de água e energia e Vale Gás. E, finalmente, defendemos a imediata suspensão do pagamento das prestações dos mutuários de quaisquer programas habitacionais.
Fora Bolsonaro!

Abril de 2020
União dos Movimentos de Moradia
Central de Movimentos Populares

ACESSE aqui o manifesto completo.

Confira também a live realizada pela Central de Movimentos Populares em 17 de abril de 2020 sobre o manifesto.

 

Combate à pandemia nas periferias urbanas, favelas e grupos sociais vulneráveis: propostas imediatas, por FNRU[editar | editar código-fonte]

Fórum Nacional da Reforma Urbana reúne 79 entidades, redes, coletivos e movimentos, incluindo o Dicionário de Favelas Marielle Franco, em documento que será encaminhado para órgãos públicos competentes com propostas de ações de combate ao novo coronavírus nas diversas periferias do país, na perspectiva do direito à Cidade e da justiça social.

A pandemia do Covid-19 trouxe para o Brasil uma gravíssima crise sanitária, econômica, política e social, com brutal piora nas condições de vida do povo, sobretudo dos mais pobres. Diante da demanda de concretas, um grupo de 79 entidades da sociedade civil elaboraram um documento político contendo diretrizes concretas para o enfrentamento da pandemia no curto e no médio prazo, com uma completa mudança na política econômica e social.

As propostas apresentadas no documento são voltadas prioritariamente para os habitantes dos territórios populares, nas periferias, nos assentamentos informais, nas ocupações, para a população em situação de rua, e outros grupos sociais vulneráveis. O documento destaca que as medidas relacionadas aos assentamentos informais têm que ser acompanhadas e articuladas a medidas de proteção social e econômica que precisam ser implementadas no País e que vão muito além de programas de renda mínima.

As medidas estão divididas em 13 frentes, que incluem:

  1. Elaboração de Planos Emergenciais pelos Governos da União, do Distrito Federal, dos Estados e Municípios.
  2. Garantia ao Acesso de Equipamentos e Serviços de Higiene e Alimentação
  3. Garantia do Acesso aos Serviços Básicos e Promoção da Universalização do Saneamento Básico
  4. Auxílio Financeiro às Famílias de Baixa Renda
  5. Fortalecimento das Ações Comunitárias e dos Espaços de Participação Social
  6. Campanhas de Informação e Comunicação.
  7. Promoção da Mobilidade em Tempos de Quarentena e Restrição à Circulação
  8. Direito Universal à Saúde Pública de Qualidade
  9. Segurança de Posse e Direito à Moradia
  10. Solidariedade à População em Situação de Rua e adoção do Programa Quarto de Quarentena
  11. Fim da Política de Militarização dos Territórios Populares
  12. Política de Prevenção do Covid-19 nas Prisões
  13. Por uma Nova Política Econômica Justa, Democrática e Sustentável

Apesar do seu impacto desigual, a pandemia deixou claro aquilo que profissionais de saúde e movimentos sociais denunciam há décadas: a necessidade de termos um sistema de saúde pública abrangente e universal com alto nível de qualidade, e mostrou a importância de todos terem acesso ao saneamento ambiental.

CONFIRA AQUI o documento político completo e a lista de entidades que subscrevem às recomendações.

 

Plano de ação para enfrentamento da Covid-19 nas favelas (RJ) [editar | editar código-fonte]

Publicado em 01/05/2020 - Por Vitor Abdala - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

Pesquisadores e lideranças comunitárias entregaram ao estado e ao município, um plano para combater a pandemia do novo coronavírus (covid-19) nas comunidades carentes do Rio de Janeiro. O documento traz 13 ações de prevenção, atendimento médico e apoio social para evitar novas infecções e reduzir o impacto da pandemia nos moradores das favelas.

A entrega foi feita de forma virtual durante uma videoconferência com a participação dos pesquisadores, moradores das comunidades e representantes do governo do estado e da prefeitura.

“Esse movimento surgiu de um sentimento de muita angústia e de urgência, e de uma percepção que vai ficando cada vez mais clara que estamos vivendo um momento novo na vida de todos nós. Isso faz com que nosso sinal de alerta esteja elevado, quando a gente pensa na consequência, na medida em que a covid chega às favelas e às periferias”, afirma o pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) Marcelo Burgos.

Construções irregulares

As favelas do Rio de Janeiro são caracterizadas por construções irregulares, com grandes aglomerações de residências e com mais pessoas dividindo uma mesma moradia.

Considerando-se apenas as comunidades que são reconhecidas como bairros pela prefeitura, já foram registrados mais de 200 casos e mais de 30 mortes nesses locais. A Rocinha lidera o ranking, com 71 casos confirmados e oito mortes.

“Muito nos preocupa a situação da Rocinha. A favela é um território que, historicamente, a gente percebe um tratamento de forma desigual. E nesse momento a desigualdade acaba atingindo o cotidiano da população”, disse Leandro Castro, do coletivo Rocinha Resiste. “Que possamos, de alguma forma, não medir esforços para que a população seja melhor atendida”, disse.

Ações de prevenção

Entre as ações de prevenção estão a veiculação de alertas para a população sobre os riscos da doença e a necessidade do uso de máscaras, as ações de desinfecção das favelas (como as que vêm sendo feitas pela prefeitura), teleatendimento (para tirar dúvidas) e a atenção a possíveis difusores (como mototaxistas).

Já nas ações de atendimento, figuram as propostas de criação de postos de atendimento exclusivo para covid-19, de espaços de quarentena assistida e de proteção às unidades básicas de saúde e assistência social.

Por fim, as ações de coordenação e proteção social incluem a racionalização dos equipamentos de saúde locais, a articulação do apoio social e o apoio e a agilização de sepultamentos.

LEIA O PLANO COMPLETO aqui.

 

Nota pública do Movimento Favelas na Luta contra a política de segurança de Wilson Witzel[editar | editar código-fonte]

Manifesto publicado em 21 de maio de 2020 nas páginas dos movimentos, como o Maré Vive.

A frente de militantes e moradores de favelas e periferias composta por integrantes de coletivos e movimentos que atuam na promoção de direitos, comunicação e acesso a políticas públicas nas favelas do estado do Rio vem a público para DENUNCIAR as contínuas operações policiais que sistematicamente tiram vidas de pessoas negras e faveladas em nossos territórios, que nos violam física e psicologicamente, que impedem que o trabalho social que realizamos seja efetuado e colocam nossa vida em risco.

Historicamente nossos territórios, favelas e periferias do estado, convivem com o projeto da ausência de políticas públicas como saúde, saneamento básico, moradia e educação. A lacuna da ausência de direitos, nestes espaços majoritariamente negros e não-brancos, se intensifica quando o único braço de amparo que o estado promove é o da militarização. Através de seus aparatos de controle, seus instrumentos bélicos, suas táticas militares de tortura e produção do medo (derivadas do passado histórico brasileiro) utilizam o discurso de “guerra às drogas” para eliminar seus alvos preferidos, moradores jovens de favelas e periferias.

Viemos por meio desta nota, mesmo ao limite de nosso esgotamento e forças, dizer que esta estratégia da morte não deve ser mais tolerada por nenhum morador ou moradora de favela, e que a sociedade de forma geral que também habita espaços de privilégio deve-se levantar contra o estado racista que nos viola cotidianamente.

Desde o início da pandemia de Covid-19, são os coletivos de favela e periferia que vem produzindo saídas para a garantia da segurança alimentar de milhares de moradores de favela do estado do Rio de Janeiro e a redução da curva de contaminação nesses espaços com a distribuição de kits de higiene e orientações de saúde. Tentamos produzir a política pública que não interessa ao estado fazer, porque enquanto nós tentamos matar a fome, o estado tenta nos matar. As operações policiais constantemente vem ocorrendo nos horários em que distribuímos cestas básicas e fazemos nossas ações de saúde pública.

Não toleraremos mais nenhuma morte.
A política de segurança do estado do Rio é um risco a vida física e a saúde, física e mental, de milhares de moradores e moradoras de favelas e periferias.

Witzel, a culpa é sua!

Frente Favelas Na Luta

Nota pública.jpg

 

Nota pública do Fórum Social de Manguinhos contra as operações policiais durante a pandemia[editar | editar código-fonte]

Manifesto publicado na página do Fórum Social de Manguinhos em 22 de maio de 2020.

Nós do FÓRUM SOCIAL DE MANGUINHOS convocamos você para essa reflexão URGENTE:

E SE FOSSE COM VOCÊ?

VOCÊ É PAI? MÃE? PADRINHO? TIO OU TIA?

E se você estivesse em casa cuidando da família, organizando a comida, os estudos das crianças, construindo um futuro cheio de esperanças junto com elas e, de repente, entrassem policiais armados dentro da sala da sua casa atirando direto na barriga do seu filho que jogava videogame com amigos? Sim, aquele adorado por todos e cheio de sonhos para o futuro...

E se sua casa fosse crivada de balas e nela fosse jogada até uma granada? E se esses mesmos policiais pegassem esse seu filho sem sua permissão e o colocassem em um helicóptero sem dizer nada e o levassem vivo para ser encontrado morto no IML sem explicação alguma?

João Pedro Matos Pinto, estudante de 14 anos, não viveu para realizar seus sonhos. Foi assassinado no dia 18 maio de 2020 na favela do Salgueiro em São Gonçalo, numa operação envolvendo a polícia civil e militar.

Não denunciamos um fato novo. No mesmo dia, Iago César dos Reis Gonzaga de 21 anos, foi morto numa operação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) na favela de Acari. Moradores denunciaram que Iago foi vítima de tortura com saco plástico na cabeça e faca. Seu corpo, assim como o de João Pedro, só foi encontrado no dia seguinte no IML do Rio de janeiro.

E se aqueles que fazem a segurança pública da cidade atirassem em sua filha de 8 anos dentro de um transporte público? Ágatha moradora do Complexo do Alemão, morreu em outubro de 2019, quando apenas começava a explorar a vida. Na mesma localidade, no dia 15 de maio de 2020, 13 pessoas foram assassinadas em nome da segurança pública.

Esses fatos são o retrato da rotina da dita “política de segurança” que um número imenso de famílias afrodescendentes enfrenta todos os dias, e que é sustentada pelos seus impostos no Rio de Janeiro.

Essa política se trata de um intenso genocídio de jovens e crianças pretas que morrem aos milhares nas favelas e periferias - sim, todos os dias! Esses dados não se destacam porque essa estatística também está escondida entre tantas mentiras dos dados oficiais.

E o que acontece com as instituições de segurança pública e militares? São protegidas de diversas formas tornando a vida das famílias que buscam por justiça uma tortura eterna, porque essas crianças e jovens são criminalizadas em processos absurdos que usam todas as artimanhas para disfarçar o genocídio como política de segurança. Perguntamos: Segurança de quem?

Só no Rio de Janeiro são milhões de moradores de favelas e periferias, trabalhadores que sustentam a sociedade com os mais diversos serviços. E o que recebem todos os dias? Tiros. Vivem na mira do fuzil. As políticas do Estado não permitem que suas filhas e filhos cheguem à idade adulta. Seu local de moradia é espaço para testagem de práticas cada vez mais violentas.

As fotos de nossas comunidades mais aparentam um cenário guerra, com dezenas de buracos de balas nas paredes. As técnicas de terror e morte adotadas pelos agentes do estado impressionam: além de blindados, as forças policiais usam lanchas e atiram granadas!

Enquanto escrevíamos essa nota, João Vitor Gomes da Rocha, de 18 anos, foi assassinado pela polícia enquanto moradores distribuíam cestas básicas na favela Cidade de Deus. Os familiares também denunciaram que o corpo de João Vitor apresentava marcas de esfaqueamento.

O Estado Brasileiro precisa responder por essas mortes! O governo do Rio de Janeiro precisa responder por essas mortes!

REPUDIAMOS AS OPERAÇÕES POLICIAIS QUE SE MULTIPLICAM AVILTANDO A QUARENTENA, PROVOCANDO DANOS INCOMENSURÁVEIS E NOSSA REVOLTA DIANTE DE UMA SOCIEDADE INJUSTA E VIOLENTA QUE ASSASSINA JOVENS E CRIANÇAS, PRINCIPALMENTE AS PRETAS!!!

NÃO ACEITAMOS QUE O DINHEIRO PÚBLICO FINANCIE O GENOCÍDIO DO POVO PRETO!

NÃO ACEITAMOS QUE NOSSOS IMPOSTOS FINANCIEM O ASSASSINATO DE CRIANÇAS!

CHEGA DE POLÍTICA DE MORTES E TORTURAS DAS FAMÍLIAS DAS FAVELAS E PERIFERIAS!

EXIGIMOS A RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DE TODOS OS QUE AUTORIZAM ESSES ASSASSINATOS!!!

Mortes operações pandemia.jpg

 

Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA, da Coalizão Negra por Direitos[editar | editar código-fonte]

Racismo e democracia.png

Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados, em Coalizão Negra por Direitos, viemos a público exigir a erradicação do racismo como prática genocida contra a população negra.

O Brasil é um país em dívida com a população negra – dívidas históricas e atuais. Portanto, qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Pratiquem o que discursam. Unam-se a nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir a democracia, organizada em nosso programa.

Esta convocação é ainda mais urgente em meio à pandemia da Covid-19, quando sabemos que a população negra é o segmento que mais adoece e morre, que amplia as filas de desempregados e que sente na pele o desmantelamento das políticas públicas sociais. Em meio à pandemia de Covid-19, o debate racial não pode mais ser ignorado.

Neste momento, em que diferentes setores se unem em defesa da democracia, contra o fascismo e o autoritarismo e pelo fim do governo Bolsonaro, é de suma importância considerar o racismo como assunto central.

“Estamos vindo a público para denunciar as péssimas condições de vida da comunidade negra.” Este trecho, retirado do manifesto de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, de julho de 1978, é a prova de que jamais fomos ouvidos e de que sempre estivemos por nossa própria conta.

Essa é uma luta que não começa aqui, mas que se materializou no pensamento e na ação de homens e mulheres que, em todos os momentos históricos em que a brutalidade foi imposta ao povo negro, levantaram suas vozes e disseram: NÃO!

Não há democracia, cidadania e justiça social sem compromisso público de reconhecimento do movimento negro como sujeito político que congrega a defesa da cidadania negra no país. Não há democracia sem enfrentar o racismo, a violência policial e o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Não há cidadania sem garantir redistribuição de renda, trabalho, saúde, terra, moradia, educação, cultura, mobilidade, lazer e participação da população negra em espaços decisórios de poder. Não há democracia sem garantias constitucionais de titulação dos territórios quilombolas, sem respeito ao modo de vida das comunidades tradicionais. Não há democracia com contaminação e degradação dos recursos naturais necessários para a reprodução física e cultural. Não há democracia sem o respeito à liberdade religiosa. Não há justiça social sem que as necessidades e os interesses de 55,7% da população brasileira sejam plenamente atendidos.

O racismo deve ser rechaçado em todo o mundo. O brutal assassinato de George Floyd demonstra isso, com as revoltas, manifestações e insurreições nas ruas e a exigência de justiça racial. No Brasil, nos solidarizamos com essa luta e com esses protestos e reivindicamos justiça para todos os nossos jovens e para a população negra. E, entre muitos que não podemos esquecer, João Pedro presente!

Em nosso passado, formamos quilombos, forjamos revoltas, lutamos por liberdade, construímos a cultura e a história deste país. Hoje, lutamos por uma verdadeira democracia, exercício de poder da maioria, e conclamamos aqueles e aquelas que se indignam com as injustiças de nosso país.

Porque a prática é o critério da verdade.

ASSINE O MANIFESTO AQUI!

 

Nota de apoio da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos à ADPF 635 - Favelas pela Vida[editar | editar código-fonte]

Nós, pesquisadores da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos declaramos nosso apoio à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 635, também conhecida como a “ADPF das favelas pela vida”. A Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos representa diferentes instituições de pesquisa sediadas no Estado do Rio de Janeiro com notório saber nesse campo temático e conta com a adesão de especialistas de diferentes áreas científicas e gerações, cujo conhecimento produzido ao longo das últimas décadas é reconhecido nacional e internacionalmente. A ADPF 635 é uma das mais importantes ações jurídicas já realizadas, que visa regrar o poder de polícia possibilitando transparência, responsabilização e prestação de contas públicas do seu exercício pelos agentes da lei, uma contrapartida obrigatória da investidura dos mandatos policiais no Estado Democrático de Direito. A ADPF é uma ação fundamental para conter o uso desproporcional de força pelas polícias do Rio de Janeiro contra as populações negras e pobres de favelas e comunidades em território fluminense. Por estas razões subscrevemos tanto os pedidos que constam em sua petição inicial, como também a decisão liminar proferida pelo Ministro Edson Fachin.

A escalada de mortes por intervenção de agentes do Estado chegou a patamares históricos únicos no Rio de Janeiro. Em 2018 foram registradas 1534 mortes por agentes do Estado e, no ano de 2019, esse número aumentou 18%, chegando a 1810 mortes. Do total de homicídios cometidos no Rio de Janeiro, o percentual das mortes que resultam de ações policiais e/ou militares também vem crescendo, passando de 14% até 2016 para 31% no ano passado, fato inaceitável em qualquer modelo mínimo de Estado Democrático de Direito. A taxa de homicídios por 100 000 habitantes do Rio de Janeiro não posiciona o estado entre os primeiros lugares frente ao conjunto federativo, mas a taxa de letalidade policial fluminense é a maior do país, respondendo por um quarto de todas as mortes por intervenção de agentes do Estado no Brasil.

As operações policiais são responsáveis pela maior parte dessas mortes. Realizadas de forma pouco transparente quanto à pertinência operacional dos seus fins, a propriedade técnica dos meios logísticos empregados e a adequação de seus modos táticos de atuação, tais ações não têm registro notacional oficial, o que as tornaria objeto de escrutínio público sobre suas bases legais e legítimas. Apenas recentemente, as polícias elaboraram instruções normativas para a constituição de protocolos para a realização de operações, mas raramente são elas seguidas. Depois de três décadas de operações cotidianas, facções de tráfico de drogas e grupos de milícias dominam territórios de favelas em extensão ainda maior. Assim, ainda que as operações policiais estejam no centro das ações de segurança pública, não há evidências concretasde sua eficiência no combate à criminalidade, na asfixia dos mercados ilícitos e no desmonte dos domínios armados nos territórios populares, alvos das tais operações. De acordo com os dados oficiais divulgados sobre a produção policial, os “saldos operacionais” das operações policiais são inferiores aos produzidos pelos policiamentos ordinários. Porém, restam comprovados os seus efeitos de violência, contrários à prioridade de defesa da vida, que fundamenta toda e qualquer missão segundo a doutrina policial profissional. As violentas operações policiais realizadas em favelas ao longo de mais de três décadas foram incapazes de proporcionar maior segurança aos habitantes fluminenses. Elas têm contribuído para a escalada de violência que coloca populações inteiras sob o fogo cruzado entre a violência do Estado e de grupos criminais armados. 

As populações negras, pobres e residentes em favelas e/ou periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e demais municípios Fluminenses são as mais afetadas pelas operações policiais. São elas que têm suas áreas de moradia tratadas como territórios hostis, e seus corpos considerados alvos, expostos a todo tipo de arbítrio durante as ações policiais. Suas rotinas são duramente afetadas pelas incursões policiais que interrompemos serviços públicos dirigidos a essas populações, como escolas e postos de saúde. As polícias devem intervir em situações críticas e cenários adversos reduzindo riscos e perigos reais a que estão expostos os cidadãos e os próprios policiais em sua ação. Não há missão policial legal e legítima que justifique expor pessoas ao risco de morte por arma de fogo no interior de suas próprias residências, como ocorreu com João Pedro, de 14 anos, adolescente negro morto por policiais enquanto brincava dentro de casa, em maio deste ano, no município de São Gonçalo, região que já registra 129 mortes por intervenção de agentes do Estado contra 120 registros de homicídios dolosos nos primeiros cinco meses de 2020. Nada justifica expor crianças ao risco de morte por arma de fogo a caminho da escola, como ocorreu com Marcos Vinicius, assassinado por policiais durante uma operação na Maré em junho de 2018. Nada justifica que policiais efetuem disparos de arma de fogo contra escolas, como os três projéteis de fuzil que atingiram a mataram a menina Maria Eduarda, dentro de uma escola municipal em Acari em março de 2017.

Durante o atual período de pandemia da Covid-19, quando os esforços policiais deveriam priorizar a vigilância sanitária, sua atribuição legal em convergência com outros agentes públicos para a defesa da vida, as operações policiais e as mortes por elas ocasionadas aumentaram no Rio de Janeiro, culminando nachacina de 15 de maio no Complexo do Alemão, com 12 mortes. Depois da liminar proferida pelo Ministro Edson Fachin no dia 5 de junho, o número de operações e, consequentemente, de mortes e feridos caiu de forma considerável. É, por isso, que a ADPF 635, ação que resulta da luta histórica dos movimentos de favelas e dos movimentos de familiares de vítimas e que conta também com apoio de ONGs, partidos políticos e órgãos estatais, vem em hora mais que oportuna. Somamo-nos, portanto, a esta mobilização pelo direito a vida das populações negras e residentes em favelas, solicitando aos demais ministros do Supremo Tribunal Federal que se sensibilizem e votem de forma favorável à ADPF 635.

Assinam:
1.    Adriane Maia – Fiocruz
2.    Alexandre Werneck – UFRJ.
3.    Ana Paula Miranda – UFF
4.    André Rodrigues - IEAR/UFF
5.    Avelina Addor – Unirio
6.    Bernardo Ferreira – UERJ
7.    Caíque Azael Ferreira da Silva - PPGP/UFRJ
8.    Carla Rodrigues – UFRJ
9.    Carlos Henrique Serra – UFF
10.    Carly Barboza Machado – Observatório Fluminense/UFRRJ
11.    Carolina Botelho - PUC-RIO/ENCE/IBGE
12.    Carolina Grillo – UFF
13.    Cecilia Minayo – Fiocruz
14.    Cezar Honorato – UFF
15.    Clara Polycarpo - IESP/UERJ
16.    Clarice Peixoto- UERJ
17.    Claudia Barcellos Rezende - UERJ
18.    Cristiane Andrade – Fiocruz
19.    Daniel Cerqueira – IPEA
20.    Daniel Hirata – UFF
21.    Daniel Misse – UFF
22.    David Anthony Alves – UFF
23.    David Maciel de Mello Neto – PPGSA/UFRJ
24.    Doriam Borges – LAV/UERJ 
25.    Edinilsa Ramos de Souza – ENSP/FIOCRUZ
26.    Edson Miagusko – Observatório Fluminense/UFRRJ
27.    Fatima Cecchetto – FIOCRUZ
28.    Fernando Rabossi – UFRJ
29.    Flavia Braga Vieira – Observatório Fluminense/UFRRJ
30.    Francisco Carlos Teixeira – CPDA/UFRRJ
31.    Frederico Policarpo – PPGJS/UFF
32.    Hebe Signorini Gonçalves - UFRJ
33.    Helena Bomeny - UERJ
34.    Ignacio Cano - LAV/UERJ
35.    Jacqueline Muniz – UFF
36.    Joana Domingues Vargas – UFRJ
37.    João Trajano Sento-Sé – UERJ
38.    José Cláudio Souza Alves – UFRRJ
39.    Juliana Martins – FBSP
40.    Julita Lemgruber – CESEC
41.    Kathie Njaine - ENSP/FIOCRUZ
42.    Katia Sento Sé Mello – UFRJ
43.    Klarissa Almeida Silva Platero – UFF
44.    Lana Lage da Gama Lima – UFF
45.    Leilah Landim – UFRJ
46.    Lena Lavinas – Instituto de Economia da UFRJ
47.    Lenin Pires – UFF
48.    Leonarda Musumeci – CESeC
49.    Lia Rocha – UERJ
50.    Luciane Patricio – UFF
51.    Luís Roberto Cardoso de Oliveira – UNB
52.    Luiz Antônio Machado da Silva – IESP/UERJ
53.    Luiz Eduardo Bento de Mello Soares – UERJ
54.    Manuela L. Picq – Amherst College
55.    Marcelo Burgos – PUC/RJ
56.    Marcia Leitão – UENF
57.    Márcia Leite – UERJ, CEVIS, CIDADES
58.    Marcia Maria Menendes Motta – UFF
59.    Marco Antonio Perruso – Observatório Fluminense/UFRRJ
60.    Marco Aurélio Goncalves Ferreira – Ineac/UFF
61.    Marcus Cardoso – UNIFAP
62.    Maria das Graças de Oliveira Nascimento – MIR
63.    Mayalu Mattos – Fiocruz 
64.    Michel Misse – UFRJ
65.    Miriam Abramovay – FLACSO
66.    Miriam Krenzinger – ESS/UFRJ
67.    Miriam Schenker – Claves/Fiocruz
68.    Nalayne Pinto – Observatório Fluminense/UFRRJ
69.    Orlando Alves dos Santos Junior - Ippur/UFRJ 
70.    Pablo Nunes – CESEC/UCAM
71.    Palloma Menezes – UFF
72.    Patrícia Constantino -Claves/ENSP/Fiocruz
73.    Paul Amar - UCSB
74.    Paula Poncioni – UFRJ
75.    Paulo Baía – UFRJ
76.    Paulo D’Avila Filho – UERJ
77.    Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Cunha - UFRJ
78.    Pedro Heitor Barros Geraldo – UFF
79.    Pedro Paulo Bicalho – UFRJ 
80.    Raquel Willadino - Observatório de Favelas
81.    Renata Neder – CESEC
82.    Renato Sérgio Lima - FBSP
83.    Ricardo Gaspar Müller – UFSC
84.    Ricardo Resende Figueira – UFRJ
85.    Roberto Kant de Lima – UFF
86.    Rodrigo Andrade – UFF
87.    Rogerio Dultra dos Santos – UFF
88.    San Romanelli Assumpção – IESP/UERJ
89.    Silvia Ramos – CESEC/UCAM
90.    Simone G. Assis – Fiocruz
91.    Sonia Fleury – Fiocruz
92.    Thais Lemos Duarte – PPGS/UFMG

 

Manifesto do Movimento Nacional das Favelas: "Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prende"[editar | editar código-fonte]

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Nós, ativistas, moradores de favelas, nos dirigimos aos irmãos e irmãs, que vivem nas favelas e nas periferias para propormos que nos unamos com o objetivo de construirmos um mundo, justo, fraterno e igualitário, que só nós, moradores das comunidades podemos construir!
Não é mais possível vivermos num território de vigilância e punição, onde somos vítimas da violência policial e o Poder Público só nos atende com o braço armado policial que até forja flagrante para justificar suas ações autoritárias. E por isso, a necessidade de nossa autodefesa, para que possamos garantir nossas vidas e nossa integridade física se torna mais que necessária!
Aqui tudo falta! Educação de qualidade, creches, postos de saúde, rede de água e serviços de saneamento básico, cabeamento de redes de internet e de energia elétrica que acabe com as perigosas “gambiarras”. Áreas de lazer e cultura, política cultural abrangente,
Os direitos básicos, mais simples, comuns nos bairros da elite e dos patrões aqui, é negligenciado. O Poder Público se exime de suas responsabilidades repassando às ONGs, OSs, igrejas e a própria comunidade, o atendimento da população. Fato agravado com a crise sanitária, provocada pela crise econômica, consequência do esgotamento do capitalismo que abandona os mais pobres e, ainda, coloca-nos em risco em transporte público lotados de péssima qualidade, sem o devido isolamento social, facilitando o contágio, condenando muito de nós à morte!
Nada mudará se não mudarmos, ao protegermos as crianças, garantimos o futuro da humanidade. É necessário atenção especial com o cuidado e apoio a elas. Famílias periféricas são em sua maioria chefiadas por mulheres, mães “solo”, Trabalhadoras informais e sem acesso a direitos tais como a licença maternidade (diaristas, por exemplo), dificultando o estabelecimento de vínculos/amamentação com os bebês porque não pode parar de trabalhar , ou deixando de ter renda, para cuidar do bebê, uma situação cruel que precisa ser combatida.
Nesse sentido a luta anticapitalista é fundamental para construirmos um mundo nosso, que atenda aos nossos anseios, direitos e reivindicações, ou seja, um governo de trabalhadores e trabalhadoras, para reaver, inclusive, nossos direitos trabalhistas e previdenciários.
O sistema carcerário não ressocializa os presos, mas, sim, trabalha como escola e faculdade do crime, sem proporcionar a tal ressocialização negando ao preso o direito de retomar sua vida de forma digna, assim como a juventude, em particular pobre e preta, que são os moradores de nossas favelas, que atuam no varejo do crime por absoluta falta de oportunidade, pois, o CEP determina o desemprego.
Ainda por cima, vivemos uma sociedade machista e fundamentada no racismo estrutural que explica que maioria do povo brasileiro não se vê representado em cargos de relevância da sociedade e na política!
Os piores trabalhos e a grande maioria dos trabalhadores precarizados estão entre os pretos
Nossas quebradas já vive o socialismo! Vive por conta da dividirmos um prato de comida quando o irmão da casa ao lado não tem o que comer. Vive o socialismo quando acolhemos uma criança de nosso vizinho quando é necessário ou no empréstimo de uma xícara de açúcar ou pedaço de pão!
Precisamos na verdade de muito pouco, nada além do nos nossos direitos. Só queremos justiça e dignidade!
A Revolução Socialista só poderá se dar à partir das favelas, pois, moram lá os que nada tem a perder a não ser os grilhões que os prendem.
- Por Uma Política Cultural Inclusiva e que crie e amplie espaços de valorização da cultura forjada nos becos e
nas quebradas tais como o hip-hop, os saraus, os slam, rodas de samba, os bailes funk, a pichação. Que
todas as artes periféricas sejam livres!
- Por um Sistema de Transporte Público eficiente e que não nos exponha a risco!
- Por Postos de Saúde, Escolas, Área de Lazer e Esporte Para nosso Povo e Nossa Juventude!
- Acesso Decente a Energia Elétrica, Rede de Internet, Água e Saneamento Básico!
-Pela erradicação das moradias precárias e insalubres!
- Pela Unidade Nacional das Favelas do Brasil!
- Por um Governo de Trabalhadores Para os Trabalhadores!
Alex
André Constantine – Mov. Favela Não se Cala & Babilônia Utopia - RJ
André Silva – Movimento de Defesa das Favelas – Vila Prudente - SP
Audino Vilão – Ativista Digital – Historiador – Campinas - SP
Biro – Morador e ativista do Jaguaré e outros regiões
Carolina Patrícia (Carol) - ativista na favela Brasília Teimosa Recife PE
Caroline Trindade - Moradora do Jardim Peri – membro da Gaviões da Fiel
Flávio Casimiro (Casimiro Oitenta) – Cultura Hip-Hop, Conselheiro Tutelar – SP – Jardim Peri - SP
Gaspar Du Norte – MC, Mov. Hip-Hop, Grafiteiro – Bairro da Terra Firme – Belém do Pará
Galo – Entregadores Antifacistas
Givaldo -
Igor Jorge Militante do Combate Pelo Socialismo – Estudante – Morador do Jardim Peri - SP
João Vitor – Militante do Combate Pelo Socialismo – Estudante – Morador do Jardim Peri - SP
Josi Nascimento – Ativista na Favela de Heliópolis – Secretária de Juventude do PT-SP
Luis – Militante do Combate Pelo Socialismo – Estudante – Morador do Jardim Peri - SP
LPR – Ativista morador de Barigui – Curitiba - Paraná
Marlene:
Natalie C. – Moradora e ativista na Plataforma Salvador – Bahia
Orpd – MC, Produtor Musical – SAES Lapa – Torcida Rasta Alviverde - SP
Professor Davi – Coletividade Periférica – Ocupação da Casa Hip-Hop do Jaçanã – Bloco de Ocupação Mov.
Cultural das Periferias
Professor Heitor – Professor do Macalão/Jardim Peri – militante do PT e do Combate Pelo Socialismo e
Conselheiro Estadual da APEOESP.
Vitória – Mutirão no Jaguaré - SP

 

Manifesto: A pandemia do racismo estrutural é tão letal quanto a da Covid-19, por ADELINAS[editar | editar código-fonte]

Artigo publicado no blog Alma Preta Jornalismo, por Nataly Simões, em 03 de setembro de 2020.

Em meio às inseguranças provocadas pela pandemia, temos de um lado a crueldade do presidente Jair Bolsonaro com suas declarações contrárias ao isolamento social, e, de outro, o braço armado do Estado, causando ainda mais terror contra a população alvo de violências sistêmicas.

Nós, integrantes do Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas - ADELINAS, vimos a público denunciar o genocídio antinegro que vitimiza cada vez mais mulheres negras neste contexto de pandemia da Covid-19, o novo coronavírus. Da mesma forma repudiamos os ataques do atual presidente da República Jair Bolsonaro contra grupos vulneráveis, sobretudo negros e indígenas em suas declarações públicas sobre a pandemia, que, apesar de não articular raça, classe e gênero, geo-localiza a população historicamente discriminada e alijada dos seus direitos de cidadania plena, como a população matável e aprofunda ainda mais as desigualdades sociais e o fosso abismal entre negros e brancos na sociedade.

Desde o início da pandemia, em março, o presidente se mostrou declaradamente contrário às recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e relativizou a pandemia como uma “gripezinha”, “histeria”, e ao ser confrontado sobre o exponencial crescimento das mortes, ele debochou das diversas famílias que perderam seus entes queridos, dizendo: “Sou Messias, não sou coveiro...E, daí?”.

Apesar da dificuldade de mensurar o alcance da pandemia no Brasil, atualmente o país perfaz o total de mais de 100 mil pessoas mortas e pelo menos mais de 3 milhões de infectados. Estudo da Unifesp e da USP revela que em São Paulo, por exemplo, negros são 2,5% mais infectados por coronavírus que brancos. Isso se estende pelo país, dada à ampliação do quadro de vulnerabilidades sociais em que negros e indígenas estão submetidos historicamente.

Dados de 2019 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que o recorte por raça/cor indica que é significativamente maior a participação da população negra em ocupações informais (47,3%) quando comparada com os trabalhadores brancos (34,6%). Estes mesmos dados apontam que a população negra representa parcela significativa de comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas, de pescadores artesanais, dos que vivem em situação de rua, das pessoas privadas de liberdade, das que vivem na extrema pobreza e em domicílios que não respondem aos padrões de habitabilidade, que não contam com abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário como nas favelas, daqueles que apresentam menores rendimentos ou sobrevivem da informalidade; dos que dependem do lixo de natureza reciclável; das empregadas domésticas; das cuidadoras de idosos, dos idosos negros, dos que estão em situação de insegurança alimentar; que têm dificuldades de acesso a serviços e equipamentos de educação, saúde e assistência social.

Somos vítimas históricas da pandemia do racismo estrutural, como já denunciado pelo MNU (Movimento Negro Unificado), Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez. O recrudescimento da barbárie, capitaneada pelas políticas de segurança pública, aponta que as dinâmicas de punição no Brasil, com foco na privação da liberdade de mais de 812 mil pessoas, aliada ao déficit de vagas que, atualmente, chega ao número de 312.125 nas unidades carcerárias e aprofunda ainda mais a crise generalizada no sistema prisional com o crescimento exponencial de mortes e a disseminação da pandemia da Covid-19.

O foco na privação da liberdade já expõe a população prisional como grupo de risco: superlotação que torna propícia às péssimas condições sanitárias, proliferação de doenças como tuberculose, pneumonia e HIV, tudo isso é terreno propício para a propagação e disseminação do coronavírus. Por exemplo, hoje uma pessoa presa tem 34 vezes mais chances de contrair tuberculose do que alguém fora das grades.

No meio de todas as inseguranças provocadas por esse contexto de pandemia, temos de um lado, a crueldade do presidente Jair Bolsonaro com suas declarações públicas contrárias ao isolamento social, e, de outro, o manejo do braço armado do Estado-policial, causando ainda mais terror contra a população alvo de violências sistêmicas. Agora, além de ser exposta ao vírus letal pelo chefe maior da nação, ela também morre pelas mãos da polícia. A violência policial não apenas aumentou na pandemia, mas ganhou novas proporcionalidades de terror nas abordagens ilegais, ameaças, uso desnecessário da força, invasões de domicílio, tortura, execuções extrajudiciais e desfazimento da cena do crime entre tantas outras violações de direitos humanos.

Solidarizamos com as mães que choram as mortes de seus entes familiares, vítimas da pandemia do racismo: a mãe do jovem Rogério, de João Paulo, João Victor, Guilherme e tantas Mães de Maio, de Osasco e Barueri, Mães em luto da zona leste, Mães de Manguinho, Mães da Baixada Fluminense/RJ, Mães contra as opressões das prisões, eufemisticamente chamadas de “Socioeducativo”; com as mulheres negras e indígenas desterradas, expulsas dos seus territórios, desde a América Latina a Palestina; com as mulheres vítimas do lesbocídio, do transcídio e dos assassinatos por forças paraestatais na chamada “guerra” contra as drogas que já causou uma crise humanitária no país.

Nós, ADELINAS, dos diversos territórios do país, falamos em diferentes vozes, em alto e bom som que somos as principais vítimas de doenças endêmicas e do sucateamento do sistema de saúde pública, da violência obstétrica, da cultura do estupro, das mortes prematuras por doenças curáveis e preveníveis e da violência doméstica. Assim, denunciamos a necropolítica perpetrada contra nós, nos quatro cantos do país. Desde as experiências de Sônia, com 60 anos, diarista e residente no bairro de Cosme de Farias, em Salvador/BA, que é obrigada a trabalhar mesmo com os sintomas do coronavírus, às afinidades de opressões nas experiências de Glória e Terezinha, ambas, moradoras de Brasilândia/SP, a dona Angélica e Maria, moradoras de Planaltina, em Brasília.

Estas mulheres negras, em diferentes territórios criminalizados, vivenciam estas experiências, aparentemente pessoais, mas com sinistras afinidades em seus corpos-coletivos, numa simbiose mortal entre pobreza, raça, classe e gênero, sob vários eixos de subordinação e vulnerabilidade. A expansão da pandemia no mundo e, especialmente no Brasil, redimensiona a sofisticação destas múltiplas opressões. Por isso, denunciamos o genocídio anti negro que é histórico e está explicitamente demonstrável com a pandemia do novo coronavírus na sociedade.

Texto publicado originalmente no blog do Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas - ADELINAS.

 

 

Carta Aberta do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas e Parceiros para Gestores Públicos Municipais e Estaduais do Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]

Publicada originalmente no dia 15 de março de 2021, no site da ComCat.

Prezada/o Gestor/a Pública/o,

O Painel Unificador Covid-19 nas Favelas—representado pelas 21 organizações e coletivos que o realizam—e 27 instituições parceiras, apresentam aos senhores e senhoras a seguinte carta aberta, na qual demandamos um plano imediato para vacinação prioritária nas favelas e para população de rua.

Hoje faz um ano desde que o país convive com a Covid-19. O Painel Unificador Covid-19 nas Favelas vem, desde julho de 2020, publicando dados sobre o alcance da Covid-19 nas favelas, na insuficiência de dados produzidos e publicados por parte das prefeituras ou do Estado, que trouxessem luz ao contexto específico das favelas. Sabemos que desde o começo da pandemia, as favelas são afetadas de forma desproporcional, porém as autoridades, em nenhum momento, realizaram políticas públicas de saúde ou assistência social voltadas especificamente para estes territórios. 

Com a chegada da vacina, precisamos dar um ‘basta!’ à política de negligência do Estado e das prefeituras. A população das favelas tem que ser priorizada no Plano de Vacinação contra Covid-19.

Seja pela falta d’água nas casas e de acesso pleno aos serviços de saúde, altos índices de servidores essenciais e informais para os quais o isolamento social é impossível, alta densidade intergeracional nas moradias, falta de informações adequadas e verificadas, e diversos outros fatores, o risco de contágio e exposição dos moradores de favela se torna maior e sua capacidade de enfrentamento é menor. É indiscutível que devemos priorizar os moradores destes territórios na política estadual e municipal de vacinação. 

Por todos estes motivos, em 10 de fevereiro, os coletivos e instituições que compõem o Painel Unificador Covid-19 nas Favelas lançaram a campanha “Vacina Pra Favela Já!” Hoje, após mais de um mês, estamos vivendo um novo aumento de Covid-19 com o Brasil, agora, sendo considerado o epicentro do mundo em novos casos diários. O estado do Rio de Janeiro, vem apresentando a maior letalidade por Covid-19 do país, segundo dados do painel CONASS Covid-19, o que pode representar tanto problemas no diagnóstico de casos como baixa cobertura e eficiência no acesso à saúde. Nas favelas da cidade, cada vez mais as pessoas estão morrendo, não só de Covid-19, mas de fome. Temos também relatos de aumento no número de suicídios. 

É urgente! Demandamos de imediato ações que garantam acesso às vacinas prioritariamente nas favelas e para população de rua. 

Como os Governos Podem Priorizar as Favelas?
1. Garantindo vacinas prioritariamente em postos e clínicas da família dentro e próximas às favelas e a devida infraestrutura para armazenamento e distribuição
das doses.
2. Disponibilizando vacinas para uma maior parcela da população adulta em áreas de favela.
3. Priorizando servidores essenciais e vulneráveis como motoristas, entregadores, seguranças, jardineiros, catadores, caixas, faxineiras, cuidadores, trabalhadores
de construção e informais.
4. Possibilitando outros pontos de vacinação em locais facilmente acessíveis, por exemplo próximos a terminais de trens e ônibus, desde que de forma organizada,
sem apresentar riscos de aglomeração ou impedimento do direito de ir e vir da população. Exemplos de locais sugeridos: ginásios esportivos, reativar hospitais
de campanha ainda não completamente desmontados, realizar parcerias com clubes, ONGs e afins.
5. Retorno do auxílio emergencial até que a vacina chegue a todos.
6. Garantindo vacinas prioritariamente aos professores da Rede Pública de Ensino Estadual e Municipal para um possível plano de volta às aulas com segurança
para profissionais do ensino, comunidade estudantil e as famílias.

Solicitamos um retorno imediato (até 19/março) do mandato em relação ao seu posicionamento com respeito a esta demanda, além dos próximos passos a serem
tomados para garantir que as vacinas cheguem de imediato nas favelas fluminenses. 

Desde já gratos pela sua atenção e pronto retorno,

Aganim Direitos Humanos A.M.I.G.A.S. AJA PACIÊNCIA Associação Conquista Social Associação Criar e Transformar - ZO Casa Fluminense Centro Comunitário Irmãos Kennedy Centro Cultural Xavier Santos Centro Social Fusão Coletivo Conexões Periféricas-RP Coletivo Martha Trindade Comunidades Catalisadoras (ComCat) Conselho Comunitário de Manguinhos Covid por CEP Data_Labe Eco Maré Espaço Cultural A Era do Rádio Fala Roça Família na Mesa Favela do Urubu Contra Covid Favela Vertical Fiocruz Fórum Grita Baixada Frente de Mobilização da Maré Instituto Educacional Araujo Dutra Instituto Raízes em Movimento LabJaca Maré de Notícias Maré Vive Mulheres de Frente Niyara Espaço de Acolhimento e Aprendizagem Observatório de Favelas Ocupa Tijuca ONG Artes & Musica WP - Zona Oeste PerifaConnection Portal Favelas Projeto B.A.S.E. Projeto Reflorestar Zona Oeste Projeto Tô Contigo Quilombo Moderno Rádio Comunitária Se Liga Salgueiro Redes da Maré Santa Marta Contra Covid-19 Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio de Janeiro - SARJ SOS Providência Terra Prometida Contra Covid TETO Brasil Dicionário de Favelas Marielle Franco (WikiFavelas) União Coletiva pela Zona Oeste

 

 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Inclui a bibliografia de todos os artigos desta página, em ordem numérica.

 

 

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. Mônica Cunha é fundadora do Movimento Moquele e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ.
  2. Bruno França, Caroline Rodrigues, Emanuelle Anastasoupoulos, Milla Gabrieli dos Santos Faria, Monica Oliveira e Rachel Barros.
  3. Dickson, Francesca. The Internationalisation of Regions: Paradiplomacy or Multi-level Governance? Geography Compass 8/10 (2014): 689–700, 10.1111/gec3.12152.
  4. Broto, V. C. (2019): Climate change politics and the urban contexts of messy governmentalities, Territory, Politics, Governance. DOI: 10.1080/21622671.2019.1632220
  5. [1]MACRON, Emmanuel. (2020), “Adresse aux Français”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  6. [2]TRUMP, Donald. “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN!” Tweet, 17 março 2020, 4:31 p.m. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  7. [3]RAWLISON, Kevin. “’This enemy can be deadly’: Boris Johnson invokes wartime language”. The Guardian, 17 março 2020, 19:38 GMT. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/17/enemy-deadly-boris-johnson-invokes-wartime-language-coronavirus
  8. [4]Macron, Johnson e Trump não foram os únicos a falar de “guerra”. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/lideres-adotam-discursos-de-guerra-contra-pandemia.shtml
  9. [5]VON CLAUSEWITZ, Carl. (2007), On War. Oxford World’s Classics, Oxford University Press
  10. [6]Ler, por exemplo, MAQUIAVEL, Nicolau (2010), O Príncipe. Rio de Janeiro: Penguin.
  11. [7]Ver: SIMMEL, Georg. (1992), On individuality and social forms. The University of Chicago Press
  12. [8]SENADO NOTICIAS. “Pandemia põe em xeque teto constitucional de gastos públicos”. 18 março 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/18/pandemia-poe-em-xeque-teto-constitucional-de-gastos-publicos
  13. [9]MOTA, Erick. “Congresso está atento pra Bolsonaro não decretar estado de sítio, diz Molon”. Congresso em Foco, 21 março 2020, 9:42 a.m. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/congresso-esta-atento-pra-bolsonaro-nao-decretar-estado-de-sitio-diz-molon/
  14. [10]MAGNOLI, Demétrio. “Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média”. Folha de São Paulo, 21 março 2020, 1 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2020/03/nos-esclarecidos-precisamos-pensar-fora-da-bolha-da-alta-classe-media.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR38pMgYrZbe15NCaPIjK56Zo7TjNTK5ks-d0C6X40c4tSv6uqOOws_N5XY
  15. [11]VAZQUEZ, Maegan; KLEIN, Betsy. “Trump again defends use of the term ‘China vírus’”. CNN Politics, 19 março 2020 08:05 GTM. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/17/politics/trump-china-coronavirus/index.html
  16. [12]JORNAL NACIONAL.
  17. [13]MISSE, Michel. “Violência: o que foi que aconteceu?”. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Violência%20o%20que%20foi%20que%20aconteceu.pdf
  18. [14]MISSE, Michel (1999). Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, Iuperj, Rio de Janeiro.
  19. [15]Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo e professor do Iesp-Uerj, levou mais adiante a proposição de Márcia Leite. Segundo ele, teria se consolidado mesmo uma linguagem da violência urbana, que confere intelegibilidade e prospecções sobre os conflitos urbanos. O “núcleo duro” da violência urbana radicaria no uso desenfreado da força sem justificação, desenvolvido em decorrência da “ausência do Estado” e em relação ao qual se disseminaria um medo generalizado. Ver: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2010), “’Violência urbana’
  20. [16]LEITE, Marcia. “Para além da metáfora da guerra. Percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2001.
  21. [17] Ver LEITE, Marcia. (2012), “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n.2, p. 374-389.
  22. [18]Ver: ARAUJO, Marcella. (2012), “Rio em forma olímpica: a construção social da pacificação no Rio de Janeiro”. In: Misse, Michel; Werneck, Alexandre. (Org). Conflitos de (grande) interesse. Rio de Janeiro: Garamond. Disponível em: https://www.academia.edu/12759030/Rio_em_forma_ol%C3%ADmpica_a_constru%C3%A7%C3%A3o_social_da_pacifica%C3%A7%C3%A3o_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro
  23. [19]Sobre as “figurações da ‘guerra urbana’”, ver dossiê organizado por , Vera Telles,
  24. [20].FARIAS, Juliana. (2014), “Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA. Disponível em: https://www.academia.edu/12412103/Governo_de_Mortes_Uma_etnografia_da_gest%C3%A3o_de_popula%C3%A7%C3%B5es_de_favelas_no_Rio_de_Janeiro
  25. [21]ALJAZEERA. “China sends essential coronavirus supplies to Italy”. 13 março 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/03/china-sends-essential-coronavirus-supplies-italy-200313195241031.html
  26. [22]Friso aqui que não emito qualquer juízo de valor sobre os regimes políticos chinês e cubano
  27. [23]VARGAS, Mateus. “Governo quer cubanos de volta ao Mais Médicos para enfrentar novo coronavírus”. Folha de São Paulo, 16 março 2020, 13:23 GTM. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-quer-contratar-medicos-cubanos-para-enfrentar-novo-coronavirus,70003235029
  28. [24]CUCOLO, Eduardo. “Coronavírus reacende discussão sobre papel do Estado na economia”. Folha de São Paulo, 15 março 2020, 1:00 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/coronavirus-reacende-discussao-sobre-papel-do-estado-na-economia.shtml
  29. Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros são, respectivamente, coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
  30. HARVEY, David. Política anticapitalista em tempos de Covid-19. Terra sem Amos: Brasil, 2020 (documento virtual, disponível em https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/03/coronavc3adrus-e-a-luta-de-classes-tsa.pdf).
  31. SPOSITO, Marília Pontes. A produção política da sociedade. In: MARTINS, José de Souza (org.). Henri Lefebvre e o retorno da dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.
  32. JAPPE, Anselm. A sociedade autofágica. Capitalismo, desmesura e autodestruição. Lisboa: Antígona, 2019.
  33. MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto e outros ensaios. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
  34. OLIVEIRA, Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2019.
  35. ARAGÃO, Luciano Ximenes. A Der-re-territorialização dos Migrantes Nordestinos na Comunidade de Rio das Pedras. 2004. 175 p. Dissertação (Mestrado em Ordenamento Territorial e Ambiental). Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2004.
  36. GALINDO, María. Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 119-128.
  37. DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155-161.
  38. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  39. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  40. ZIZEK, Slavoj. Coronavirus es un golpe al capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del comunismo. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 21-28.
  41. ZIZEK, Slavoj. Coronavirus es un golpe al capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del comunismo. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 21-28.
  42. LÖWY, Michael.
  43. DE SOUSA SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
  44. BICALHO, Pedro Paulo Gastalho. Ditadura e democracia: qual o papel da violência de Estado? In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL (Org.) Entre garantia de direitos e práticas libertárias. Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2013, p. 13-34.
  45. BOLSANELLO, Maria Augusta. Darwinismo social, eugenia e racismo
  46. DORNELLES, João Ricardo. Atualidade da Criminologia Crítica. Metaxy, 1 (1), 2017, p. 109-128.
  47. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
  48. BARROS, Regina Benevides Duarte; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana (Orgs). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.
  49. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH).
  50. GIL, José. O medo. Disponível em: https://n-1edicoes.org/001. Acessado em: 02 mai.2020
  51. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
  52. LÖWY, Michael.
  53. MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.
  54. LEITE, Márcia. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança v.6, n.2, 374-389, 2012.
  55. Idem.
  56. BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015
  57. EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017.
  58. Sonia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestra em Sociologia e doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Foi fundadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - NUPES. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES entre 2003-2006 e da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde - CNDSS. Atualmente coordena a Plataforma Digital do Dicionário de Favelas Marielle Franco Wikifavelas.
  59. O Coletivo Juntos Pelo Complexo do Alemão é uma articulação de movimentos locais do território. Conheça mais sobre na página oficial: facebook.com/juntospelocomplexodoalemao/ Os componentes são: MEAA - Mulheres em Ação do Alemão Coletivo Papo Reto Voz das Comunidades Solta Voz Morador Educap Ocupa Alemão Instituto Raízes em Movimento