Cabeça de Porco (cortiço)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Antes do surgimento das favelas enquanto as conhecemos, o cortiço era a forma de habitação considerada "típica" das populações menos abastadas, em grande parte vítimas de uma abolição da escravatura sem quaisquer políticas integração da população de negros livres ao mercado de trabalho e à vida urbana digna. Este verbete aborda a história da queda do Cabeça de Porco maior e mais famoso cortiço da era dos cortiços no Rio de Janeiro e no Brasil.

Autoria: Matheus de Moura

SOBRE[editar | editar código-fonte]

O Cabeça de Porco foi o cortiço mais famoso do Rio de Janeiro. Sua derrocada é o símbolo máximo da mudança do urbanismo das grandes metrópoles da Nação, ansiosa, à época, pelo reconhecimento enquanto centro moderno do Novo Mundo. A elite brasileira clamava pela validação de seus pares europeus na ideia de que agora seríamos um país civilizado, além do passado bárbaro de ex-colônia. E o Cabeça de Porco era o muro que precisava cair para esse processo começar de vez.

O MEDO PÓS ABOLIÇÃO[editar | editar código-fonte]

Com definição flutuante de acordo com os interesses dos políticos e intelectuais burgueses do findar do século XIX para o início do século XX, cortiços eram estalagens compostas por casebres e quartos pequenos, onde moravam majoritariamente pessoas muito pobres, normalmente quem proletários com acesso apenas ao mínimo e/ou indivíduos que viviam de bicos e pequenos crimes e contravenções. O cortiço era a moradia dos desafortunados num país que desde meados do século XIX vinha fazendo uma lenta abolição da escravatura sem qualquer política de integração, deixando os negros libertos às margens do mercado de trabalho e, portanto, às margens da possibilidade de moradias dignas (com espaço, algum acesso a saneamento etc.).

Desde antes da assinatura da abolição pela princesa Isabel, os cortiços eram tidos como mais do que meras moradias; no interior daqueles apinhados de casas e quartos residia o medo máximo da burguesia e aristocracia branca que fundaram este país: negros libertos e proletários revoltados com a exploração. O combo de preconceito de raça e classe (e suas intersecções) fazia com que essas habitações fossem perseguidas pelas polícias e por meio de políticas públicas agressivas que travestiam — embora não muito — viéses racistas das elites de uma roupagem de preocupação com o "avanço da modernidade" do Brasil e a higiene pública das cidades.

A busca dos fluminenses pela aproximação estética e estrutural entre o Brasil e o ideário puramente idealista de uma Europa avançada e "civilizada" que nunca existiu dentro dos moldes imaginados foi o mote das reformas urbanas que colocaram o Rio de Janeiro numa fase de Belle Époque tardia, começando no fim da década de 1870 e acabando por volta de 1922 aquilo que na Europa, em especial na França, perdurou do começo da década de 1870 até o ano de 1914. O preço dessa busca viralatista pelo ideal do colonizador foi o recrudescimento da violência direta, estrutural e institucionalizada contra negros e pobres.

Os cortiços são retirados do Centro da capital, forçando as primeiras ocupações maciças em morros. O acesso à cidade começa aí a se tornar cada vez mais escasso para os estrato indesejado da sociedade da época. Engana-se quem acha que a população negra era alienada a sua luta por direitos. Desde as primeiras leis abolicionistas, os ex-escravizados e seus descendentes lutavam por direito à moradia e qualidade de habitações na região central. Isso incomodava a corte e depois o governo republicano. A união em cortiços fazia com que muitas vezes os residentes se solidarizaram em ajudar um escravizado a comprar sua alforria. Como descreve Chalhoub: “Em outras palavras, a decisão política de expulsar as classes populares das áreas centrais da cidade podia estar associada a uma tentativa de desarticulação da memória recente dos movimentos sociais urbanos (...)  o que estou querendo sugerir é que o tempo dos cortiços no Rio foi também o tempo da intensificação das lutas dos negros pela liberdade e isto provavelmente teve a ver com a histeria do poder público contra tais habitações e seus moradores.”

O fim dos cortiços é, no ponto de vista das elites, um ato de inúmeros sentidos; pois representa um empecilho na união popular pela reinvidicação por direitos ao mesmo tempo que abre espaço físico para a transformação da capital do Brasil à época, o Rio de Janeiro, em uma pseudo-Europa.

O CABEÇA DE PORCO[editar | editar código-fonte]

Segundo uma descrição do Jornal do Brasil, o Cabeça de Porco era um cortiço de cerca de 200 metros e extensão e mais ou menos 300 casas pequenas, mantendo uma média de 2000 pessoas por mês. Em Cidade Febril, o historiador Chalhoub descreve que, em seu apogeu, a estalagem comportou 4000 residentes. Seu endereço era na Rua Barão de São Félix 154, nas imediações da Central do Brasil.

Sendo o maior de todos os cortiços, com inúmeros boatos quanto à origem de seu proprietário, o Cabeça de Porco recebia ameaças mensais da polícia e dos setores de higiene da cidade, sempre no empenho de fechá-lo de vez. Todavia, nenhuma representação do município ou do estado era suficiente para contra o colosso que era o cortiço.

Até chegar o Cândido Barata Ribeiro.

Médico baiano com título de doutor adquirido em 1877, com a tese "Quais as medidas sanitárias que devem ser aconselhadas para impedir o desenvolvimento e propagação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro". Nela, ele descreve medidas para combater a crise sanitária do país naquela época. Como? Focando na erradicação dos cortiços, que, segundo um excerto separado por Chalhoub, era um tipo de lugar onde havia "miséria andrajosa e repugnante, que faz da ociosidade um trono".

Para ele, o Cabeça de Porco era o símbolo de uma era que, como devaneou em sua tese, precisava acabar. Novamente citando a tese: "Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demoção de todos eles".

O FIM DE UMA ERA[editar | editar código-fonte]

26 de janeiro de 1893.

Seis da tarde.

A primeira aglomeração ao redor do cortiço Cabeça de Porco explicita visualmente o que está por vir: o fim de uma era.

Sete e meia da noite.

Uma tropa do primeiro batalhão de infantaria invade o cortiço e a regra é clara: ninguém sai nem entra. Aos poucos o cerco policial ganhou corpo com membros da prefeitura e da Empresa de Melhoramentos do Brasil. Trabalhadores todos com marretas e picaretas.

Como Chalhoub descreve: "Várias famílias se recusavam a sair, se retirando quando os escombros começavam a chover sobre suas cabeças. Mulheres e homens que saíam daqueles quartos 'estreitos e infectos' iam às autoridades implorar que os 'deixassem permanecer ali por mais 24 horas'. Os apelos foram inúteis, e os moradores se empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outros objetos de uso."

Os expatriados do Cabeça de Porco pararam no Morro da Providência, considerada a primeira favela nos moldes de hoje.

REFERÊNCIAS[editar | editar código-fonte]

Chalhoub, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Rio de Janeiro: Cia das Letras. 2020, 289p.

Jornal do Brasil. Há 40 anos: "A Cabeça de Porco". 28/01/1930

FESSLER, Lilian Vaz. Os cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos — a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Análise Social, Quarta Série, Vol. 29, No. 127, HABITAÇÃO NA CIDADE INDUSTRIAL 1870 - 1950 (1994), pp. 581-597

PRADAL, Fernanda Ferreira. A "justiça de transição” no Brasil: o caso do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro. Tese