Chacinas e policiamentos - Os casos de Belém e do Complexo do Salgueiro
A série de cadernos publicada pelo Reconexão Periferias explora a questão das chacinas e o papel das forças de segurança nesse contexto. A pesquisa “Chacinas e a politização das mortes no Brasil” analisa dois casos emblemáticos de assassinatos múltiplos perpetrados por agentes do Estado: a Chacina de Belém, de 2014, e a Chacina do Complexo do Salgueiro, de 2017. Esses exemplos evidenciam que a violência policial não é um desvio isolado, mas um padrão sistêmico que reflete o racismo que também estrutura as instituições de segurança pública do país.
Autoria: Sofia Helena M. T. Costa (organização) / Alexandre Julião, Belle Damasceno, Claudio Aparecido da Silva, Pablo Nunes, Paulo César Ramos, Ruan Bernardo e Thais Custódio (autores/as dos artigos).
Prefácio[editar | editar código-fonte]
Este caderno vem a público em um momento importante, no qual a sociedade brasileira enfrenta problemas profundos com suas instituições de defesa da vida, da ordem e da propriedade. Um estudo feito com a coragem e o frescor de jovens pesquisadores que, além do seu rigor técnico, também possuem uma consciência crítica apurada, porque viveram na universidade da academia e na “universidade” das periferias, trazendo o melhor de cada lugar. Isto exigiu deles um gigante desafio ético e intelectual, mas a entrega pode ser considerada completa. Enfrentaram dados primários, dezenas de entrevistas, milhares de notícias de jornais e dados oficiais para compor dois estudos de casos emblemáticos que são muito didáticos da vida das periferias do Brasil; esteja em que estado estiver, periferia é periferia – em qualquer lugar. Por isso, foram escolhidos dois casos: um do centro midiático do Brasil – Rio de Janeiro – e outro de uma região pouco lembrada nos debates públicos – Belém, sendo mais uma vez felizes, pelo equilíbrio. Isto permitiu mostrar a amplitude do compromisso dessa pesquisa e da complexidade do nosso desafio enquanto sociedade.
Todos sabemos que as instituições policiais precisam ser defendidas, bem como seus trabalhadores e trabalhadoras precisam ser defendidos, valorizados e acolhidos numa sociedade cada vez mais complexa. Isto significa que suas vidas precisam ser protegidas, com doutrinas que enfatizem mais o trabalho de inteligência, tirando espaço do confronto como única perspectiva, em que nem mesmo a vida dos policiais é poupada – aliás, precisa ser dito: entre essas vidas policiais que não são poupadas, também estão jovens, negros e periféricos.
Por isso esta pesquisa dá um passo importante no sentido de ampliar a compreensão política sobre o significado profundo dos episódios em que três ou mais pessoas são assassinadas, pela mesma motivação em um determinado espaço de tempo, chamados de chacinas. Isto tem importância por mostrar não apenas o episódio em si, mas a estrutura social que provocou esta ocorrência, e nos faz perguntar o porquê disto ocorrer tantas vezes e ocorrer sempre em lugares com as mesmas características sociais, onde vivem pessoas pobres, negras em sua maioria, com vítimas que tiveram poucas oportunidades. Em outras palavras, a pesquisa ajuda a tirar as chacinas da zona de normalização e naturalização das mortes. Mais do que isso, é preciso desnaturalizar a ideia de que a eficiência policial se concretiza com a produção de mortes, porque isso nada tem de racional, de humano ou de democrático. Aliás, essa ideia nunca dialogou com princípios fundamentais da segurança pública, como servir e proteger, por exemplo, nem mesmo com o que diz a nossa Constituição Federal no seu artigo 5º, que traz a vida como bem inviolável em primeiro plano, inclusive.
Em uma democracia que preze a vida, em primeiro lugar, não pode haver tolerância com práticas de grupos que assumem a produção da morte com interesse político nas suas disputas por poder, influência, visibilidade, legitimidade, espaço, território, mercadores, recursos naturais etc.
Há quase 40 anos, foi cunhada a frase: “bandido bom é bandido morto” no Brasil. Desde então, temos ouvido variações desse ideal de morticínio. Atualmente, a modernização da tal frase se dá através do: “CPF cancelado”. Percebam que, em todo o Brasil, essa lógica é aplicada, porém a eficácia disso não se revelou em quase quatro décadas. Hoje, mais do que nunca, estamos inseguros e percebemos isso no comportamento cotidiano das pessoas, que não se sentem seguras nem dentro de suas próprias casas. Uma demonstração de falência de um modelo que jamais deveria ter sido experimentado em nosso país. Vou além: jamais experimentamos uma perspectiva de segurança pública que leve em conta o conjunto das nossas construções em direitos humanos, para a sociedade e para nossos policiais – o sujeito que não tem seus direitos humanos percebidos, terá dificuldade em reconhecer os direitos das pessoas.
Que essa leitura nos traga reflexões sobre esses desafios.
Apresentação[editar | editar código-fonte]
A violência letal no Brasil continua sendo parte constitutiva da realidade de grandes parcelas da população, mesmo após mais de 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã. A persistência de dezenas de milhares de mortes todos os anos, muitas causadas por policiais, é um problema que impacta profundamente a sociedade brasileira. Nas favelas do Rio de Janeiro, nas comunidades do Pará, nas periferias de São Paulo e da Bahia, as operações policiais rotineiras interrompem vidas e desestabilizam comunidades. A normalização dessas ações violentas cria uma percepção equivocada de que o trabalho policial está diretamente relacionado a incursões armadas, trocas de tiros e mortes.
A série de cadernos publicada pelo Reconexão Periferias explora a questão das chacinas e o papel das forças de segurança nesse contexto. A pesquisa “Chacinas e a politização das mortes no Brasil” analisa dois casos emblemáticos de assassinatos múltiplos perpetrados por agentes do Estado: a Chacina de Belém, de 2014, e a Chacina do Complexo do Salgueiro, de 2017. Esses exemplos evidenciam que a violência policial não é um desvio isolado, mas um padrão sistêmico que reflete o racismo que também estrutura as instituições de segurança pública do país.
Lidar com esse tema não é simples como deveria ser. As chacinas cometidas durante ações de policiamento não são encaradas como uma prioridade e há até mesmo os que resistem a enquadrá-las como um problema. Em outros países, ações policiais que resultam em mortes levam a investigações rigorosas, coletivas de imprensa e pedidos de desculpas formais. No Brasil, que se formou sobre pilhas de corpos de homens e mulheres negros sequestrados de África, o registro de mortes em ações policiais não é um desvio, mas faz parte do método.
E esse moinho segue moendo gente porque há outras instituições que não apenas acobertam casos de violência policial, mas também permitem que esse estado de coisas permaneça inalterado. O Ministério Público é o órgão quem tem, por dever e direito, a prerrogativa de fazer o controle externo da atividade policial, não só investigando e denunciando policiais que cometem crimes, mas também garantindo que as políticas de segurança pública caminhem no sentido de garantir direitos dos cidadãos. A certeza da impunidade é um dos principais fatores que explicam o porquê de termos tantas mortes cometidas por agentes do Estado. E o Ministério Público, quando se exime do seu dever, se coloca como uma importante engrenagem nessa máquina de produzir morte.
Enquanto houver no país corporações policiais como um dos principais agentes de letalidade violenta, estaremos longe de consolidar nossa jovem democracia. Por isso, a Fundação Perseu Abramo, a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD) e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) apresentam sua contribuição para a compreensão desse fenômeno. Compreender como chegamos até aqui é o primeiro passo para construirmos um futuro sem chacinas e com segurança para todos.
Relatório na íntegra[editar | editar código-fonte]