Comunicação e favelas - ontem, hoje e perspectivas para o amanhã
Comunicação e favelas - ontem, hoje e perspectivas para o amanhã, escrito em 2022, retoma justamente este momento para falar sobre como favelas e comunidades aparecem nos meios de comunicação, nas falas cotidianas, nas trocas de mensagens e nos posts de redes sociais - e falar/escrever sobre isso se faz uma tarefa inglória. Em primeiro lugar, porque o ano está marcado desde o seu início pela corrida eleitoral, eivada das práticas mais abjetas de espalhamento de mentiras e construção das chamadas “narrativas” que nada mais são do que uma realidade paralela. Por outro lado, o fato de que os meios de comunicação tradicionais assistiram uma tímida mudança no ambiente de concorrência, não significou, ao menos na percepção mais generalizada, um aumento de temas e, principalmente, de atores ouvidos nas coberturas jornalísticas cotidianas. É bem verdade que esses desafios, de maneiras distintas, já se impunham no cenário comunicacional brasileiro. Mas se torna cada vez mais difícil de se enxergar usos benéficos das formas de comunicação atuais para a vida nas favelas e periferias.
Autoria: Pablo Nunes
Comunicação e Favelas[editar | editar código-fonte]
O cenário informacional mudou drasticamente nas últimas décadas. Os séculos em que a impressão reinou como suporte principal de circulação das informações cristalizaram a figura do controlador do que seria ou não publicado. A invenção de Gutemberg no século XV significou um avanço indiscutível no número de pessoas atingidas pelos livros, folhetos e jornais produzidos na época, mas também significou o surgimento de controladores do que poderia ser publicado ou não.
A história é antiga, mas importante para compreender o mundo moderno. Pelo menos nas suas primeiras décadas. A lógica de controle do acesso de quem e o que aparecerá na imprensa se manteve com a massificação dos veículos. Jornais, rádios e TVs invadiram os lares das famílias criando um sistema de informação de massa. A expansão do alcance da imprensa tradicional, apesar de ter rompido os limites do público consumidor, que antes era restrito a classe burguesa, ainda mantinha concentrado o controle do que era produzido. A ideia de uma comunicação de “poucos para muitos” se mantém até hoje como um fator inescapável do ponto de vista da produção e circulação de informações.
Essa é a história oficial. Ocorre que longe dos grupos do poder, em periferias e entre minorias não representadas nos veículos tradicionais, surgiram formas alternativas de produzir, circular e consumir informações. O caso das favelas cariocas pode ser tomado como exemplo.
Pelo menos desde a década de 1980, diversos veículos comunitários surgiram no Rio de Janeiro. O jornal União Maré, de 1982, foi um marco na história do complexo de favelas da Zona Norte, e a primeira experiência de produção de informações por moradores para moradores[1]. Foi apenas o início. Anos mais tarde surgiram os jornais O Cidadão e, mais recentemente, o Maré de Notícias, que permanece até hoje.
Muitos desses jornais e rádios comunitárias se incluíram celeremente no ambiente digital. Já no começo dos anos 2000, diversas organizações e projetos sociais de favelas, escolas de samba e agências de notícias populares, se inseriram nos meios digitais a partir de websites, rádios online e presença em fóruns e blogs[2].
Hoje, em um mundo onde as informações são consumidas basicamente por meio das redes sociais, maneiras criativas de utilização dessas ferramentas permitiram com que novas formas de comunicação surgissem. As páginas hiperlocais de Facebook são uma das expressões desse tipo de uso inventivo das mídias controladas por grandes corporações. A ideia de transformar páginas (que originalmente foram desenhadas para serem veículos de marcas e empresas) em pequenos jornais de bairro, permitiu com que iniciativas importantes surgissem nos últimos anos.
Hoje, no Rio de Janeiro, contam-se às centenas o número de páginas no Facebook dedicadas a bairros dos municípios fluminenses. Feitas por moradores e para moradores, esses canais se dedicam, de maneira geral, aos seguintes temas: prestação de serviços (vacinação, vagas de emprego, inscrições em cursos etc.); promoções de comércios locais; casos de roubos e furtos de carros; tiroteios e disparos; operações policiais; violência contra a mulher; e outros temas variados.
Um dos aspectos mais interessantes é o engajamento do público consumidor com a postagem publicada pela página. Diferente do modelo tradicional de comunicação de “poucos para muitos”, nas mídias sociais pela primeira vez foi possível construir uma comunicação de “muitos para muitos”, sendo a página de bairro muitas vezes apenas uma plataforma de reunião dos moradores interessados no que acontece na região. Não é raro encontrar postagens onde os comentários são mais importantes que a postagem em si. Os tipos de publicações mais frequentes, que demonstram esse uso de maneiro exemplar, são os chamados publicados em páginas dedicadas à favelas. O “fala morador” normalmente é compartilhado em momentos de operações policiais violentas no território. Ao convidar os moradores a trazerem informações, há um engajamento dos usuários em identificar e produzir um quadro amplo e diversificado do que está acontecendo naquele momento em diversos pontos da favela.
Esse tipo de engajamento se dá de maneira mais frequente quando o assunto é violência urbana. Seja identificando áreas de trocas de tiro, ou ruas onde assaltos têm sido recorrentes, ou até mesmo o compartilhamento de fotos de carros roubados com intuito de encontrar informações sobre o possível paradeiro. A postura ativa de “auto-proteção comunitária” se dá no vazio do Estado em sua tarefa de garantir segurança e fazer valer a lei em áreas periféricas.
A descrença no Estado também alimenta um dos efeitos mais preocupante nesse tipo de comunicação. Em 2017 um casal foi linchado em Campos (Rio de Janeiro) por conta de um boato que circulava na página da região dando conta de que estavam à procura de crianças para rituais de magia. Um caso de 2014, relembrado pela novela “Travessia”, da Rede Globo, chocou a população de Santos (São Paulo). Fabiane foi acusada de sequestrar crianças e foi linchada até a morte. A família tenta responsabilizar o Facebook na justiça pela morte de Fabiane.
Em um contexto em que o pior das mídias sociais está no foco das atenções da população, governantes e academia, pensar em usos positivos da comunicação pelas ferramentas digitais parece indicar uma certa inocência ou incapacidade de leitura do contexto. Acredito que é justamente nesses momentos em que outros olhares que vão em direção contrária ao consenso estabelecido são mais necessários. Desinformação, manipulação e até mesmo crimes graves são parte dos efeitos que o uso de mídias sociais trouxeram para o cotidiano de todos nós. Mas em meio a esse caos informacional, ainda resistem iniciativas criativas e positivas que desafiam o esquema tradicional de controle dos conteúdos, multiplicando os emissores e colocando em foco os problemas e potencialidades das favelas.
O ecossistema perene e resistente de comunicação local, que se inicia nos primeiros jornais de bairro, passando pelas rádios e desaguando nas mídias sociais, impôs uma nova agenda de interesses e questões pautadas nas conversas e debates locais. O que é definido como “interesse público” passou a ser cada vez mais permeado pelas preocupações e temas de interesse dos territórios de favelas. Esse movimento não dá mostras de recuo, mas o desenvolvimento das plataformas digitais, suas possíveis regulações e avanços tecnológicos podem impor novos desafios. A história permite dizer que, independente dos obstáculos, novas formas disruptivas de comunicação comunitária surgirão.