Dialogando com a raiva - Falar sobre si mesma é um ato político

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Reflexões sobre as possibilidades de romper com a raiva e o silêncio, socialmente construídos, em torno das vidas de mulheres não brancas e lésbicas. Citando Audre Lorde: Quais são as palavras que você ainda não tem? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas ainda em silêncio?

Autoria: Agatha 1990 

Sobre[editar | editar código-fonte]

A partir da reflexão da citação supracitada de Audre Lorde (LORDE, 2020, p. 53), referência de mulher negra e lésbica, mãe, militante, poetisa e ancestralidade que guiou nossos passos até aqui, esse texto se apresenta: é uma intenção de romper com os silêncios gravados no imaginário social construído sob a ótica de homens ricos e brancos e heterossexuais. Aqui, peço licença para falar sobre mulheres com algumas especificidades: a de ser mulher, a de não ser branca, e a de ser lésbica. Objetivo buscar uma reflexão sobre as possibilidades de romper com a raiva, com o silêncio, com as barreiras que impedem a raiva de ser um sentimento dito, posto sobre a mesa.

Sim, é sobre raiva. Raiva que minhas ancestrais carregam já não sei há quanto tempo, pois me perco nas contas assim como também perco-me em minha árvore genealógica: acredito que foi queimada, destruída, não me foi apresentada. Pergunto-me se foram mortas, estupradas, perseguidas, escravizadas. Há também a raiva de ser lésbica. Não, não é raiva por ser lésbica, eu amo ser lésbica. Se eu morrer hoje só aceito reencarnar nesse esboço de mundo como uma mulher lésbica não branca.

Sobre a raiva por ser lésbica, creio que ela vem junto com a raiva de ser não branca. E aqui eu ressalto: não é raiva de ter esse corpo; é a raiva do olhar que lançam para meu corpo. É a raiva de como vejo minhas pares violentadas todos os dias, em micro e macro espaços sociais. São violências que perpassam nossas existências desde o nascimento até a morte emocional, espiritual, física e estrutural. Essas palavras estão carregadas de raiva quando me lembro de Luana Barbosa, quando me lembro de mim. Encontro-me à margem e encontro o significado disso ao ler Grada Kilomba: “[...] a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos”. (KILOMBA, 2019, p. 68). E é por isso que hoje escrevo essas linhas.

A raiva grita quando eu tento falar com meus pares não brancos sobre o fato de eu ser uma mulher lésbica: por favor, não me fetichizem. Não me persigam. Não me vejam como um objeto. Peço por gentileza e raiva que percebam que a minha luta também é sua. A raiva ecoa quando eu tento falar com meus pares LGBTQIAP+ brancos; vocês não conseguem perceber que eu sou a única mulher lésbica não branca aqui? Não conseguem perceber que esse grupo que luta por direitos de dissidentes de gênero e sexualidade não alcançam ainda o debate sobre as relações raciais e o genocídio promovido pela branquitude patriarcal colonial? Vocês também são brancos! A raiva me adoece quando eu tento falar, mas não me escutam. Sinto que há um tampão nos meus ouvidos, pego essa não escuta ao que falo e retorno para mim, me carregando de culpa, afinal eu só posso estar falando errado. Não é possível que vocês não consigam me escutar... É?

Senti raiva e alegria quando pude ler os pensamentos de Grada Kilomba em “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”. Quando essa grandiosa mulher nos apresenta outra grandiosa mulher, Patricia Hill Collins, fiquei pensando quando a subalterna pode falar. Quando deixam a subalterna falar? Você deixa a subalterna falar? A subalternidade, como aponta Kilomba (2019) é herança colonial que coloca o colonizador como fonte de todo poder de fala. Se eu posso tomar uma licença poética aqui, diria que o poder do colonizado é o de escuta. Mas a escuta com os lábios cerrados. É onde querem que a/o outra/o se posicione. Kilomba (2019, p. 41) nos apresenta esse fenômeno da seguinte forma: “por que a boca do sujeito negro deve ser amarrada?”. Sinto a minha boca atada em muitos espaços. Há muito a ser dito. Muito a ser distribuído. Relembrado. Dividido.

Penso em tudo que já amarrou a minha fala. São processos de não se perceber igual. E ainda que diga que ser diferente é uma qualidade, eu não acredito que ser enxergada como exótica seja. Ter odiado meu cabelo. Ter odiado a minha boca. Não ter sorrido para fotos na minha fase de pré-adolescência e adolescência e ainda algumas vezes na vida adulta, foi contribuindo para que minha boca fosse cerrada. Em paralelo, tem o deslocamento de ser diferente das meninas que amavam os meninos. Que queriam os meninos. Que falavam de meninos. Preciso falar aqui do tamanho da violência que é quando uma pré-adolescente não consegue viver a descoberta do tesão e do que ela pensa que seja amor? Isso me faz pensar nas vezes que ouvi que precisamos derrubar a ideia de que mulheres são princesas, de que somos frágeis, dóceis, amáveis. Mas me recordo, de um tempo não muito distante, talvez semana passada, que precisei ser forte e não chorar. Precisei abraçar a minha raiva. Nunca tive a opção de ser frágil, essa opção nunca me foi dada. Quis ser princesa toda vez que certa vizinha branca ria da aparência do meu cabelo que era muito volumoso.

Tanto sujeira como a selvageria estão inscritas em cada pergunta: “Como você lava seu cabelo?”, porque ele está sujo, e “Você o penteia?”, porque ele parece indomável. Um alinhamento ofensivo de pensamentos coloniais: lavar/sujo; pentear/indomável. (KILOMBA, 2019, p. 124). Volumoso é um adjetivo que eu odiei grande parte da minha vida. Nas prateleiras de supermercados os cremes procurados eram os de “redução de volume”. Acredito que esse tolhimento de volume foi me colocando numa posição de auto-ódio que até hoje eu luto contra. Certa „colega‟ -outra- vizinha branca uma vez riu dos meus lábios junto com outras colegas‟, diziam que eu não tinha formato de boca para passar batom. E nossa, como eu odiei a minha boca. Muito. A ponto de não querer sorrir. Relembrando esse fato, penso que meu silêncio começou a ser construído assim: muitas doses de redução de volume e um batom que não podia chegar até a minha boca.

Minha reação ao racismo é a raiva. Tenho vivido com essa raiva, ignorandoa, alimentando-me dela, aprendendo a usá-la antes que relegue ao lixo minhas visões, durante boa parte da minha vida. Houve um tempo que eu fazia isso em silêncio, com medo do fardo que teria de carregar. Meu medo da raiva não me ensinou nada (LORDE, 2020, p.155). Lembro que uma vez eu fui pra cima dessa outra colega que riu da minha boca. Ela não aceitou perder para mim em um jogo de futebol. Na verdade foi a segunda vez que ela perdeu para mim. Ela nunca aceitou. Eu fui pra cima e lembro-me de sentir muita raiva. Eu queria bater. Muito. Mas me contive. Ia pra casa e chorava. Bem, éramos crianças, bater era coisa que acontecia e logo tudo era resolvido. Mas com essa outra colega eu nunca me resolvi. “Existe um medo apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, a/o colonizadora/or terá de ouvir. Seria forçada/o a entrar em uma confrontação desconfortável com as verdades da/o “outra/o” (KILOMBA, 2019, p.41).

Percebo que as outras da minha infância representam a branquitude que silenciou a mim, que silenciou minhas ancestrais, que silencia outras iguais. Saindo das lembranças da minha infância, me vejo na adolescência novamente quieta. Algo estava fora de cenário. Esse algo era eu. Novamente a raiva não manifestada. Não sabia o nome que eu podia dar aquilo que me inquietava. Qual era o motivo de eu me sentir a outra das outras colegas? Os meninos. Eles apareciam e eu não entendia. Via mulheres e também não entendia. A TV, a escola, as dinâmicas sociais só me apresentaram uma forma de relação afetiva e/ou sexual, e definitivamente eu não me encaixava nela. A atração que eu sentia por minhas iguais e que depois eu descobri que muitas das minhas iguais se tornariam as minhas outras, me colocava em estado de exaustão, eu não queria, eu repreendia e sentia repulsa. Eu já usava creme de redução de volume nos cabelos e não sorria para fotos! O que mais eu podia fazer para que não fosse mais a outra das minhas outras? Já não era demais ter que aprender a aceitar que meu corpo jamais seria igual o da menina mais bonita da minha rua, eu não teria aquela boca, nem o cabelo, nem os olhos claros. A pele; tão branca. Eu só queria esfregar a minha até que a água saísse suja e eu clareasse ao menos um pouco.

Suja. Foi assim que me senti quando me vi sentindo tesão por uma mulher. Suja e confusa me senti quando aconteceu meu primeiro beijo, aos 17 somente, e foi uma mulher. Mas devo dizer, se essa cena fosse colocada em um filme, nos tempos atuais, renderia bons „likes‟ e „views‟. Foi numa cachoeira. Minha mãe Oxum permitiu que eu me conhecesse ali-disso só soube anos depois-. Ao chegar a casa o choro foi inevitável. Aquilo era o certo. Mas era o errado. Eu queria de novo. Mas querer de novo significaria ser um corpo completamente fora de pelo menos algum tipo de aceitação social; o de ter o corpo heterossexual. Ressalto aqui que não considero que a heterossexualidade de mulheres seja algo que as tire de situações de violências. Não é isso. É sobre passar por violências por ser lésbica. E eu passei. Psicológica. Doméstica. Sexual. Baixo rendimento escolar. Na verdade péssimo. Eu era péssima estudante. Eu não conseguia me ver nesse espaço. Estudos não eram minha prioridade. Minha prioridade era fugir de mim. E a chance que eu tinha era de que a eu lésbica desistisse de mim. Eu implorei pela cura. Fui atrás. Em troca ganhei mais marcas de abuso e violência. Por consequência mais silêncio sobre as minhas raivas. E isso me deu medo.

Em nome do silêncio, cada uma de nós evoca a expressão de seu próprio medo – o medo do desprezo, da censura ou de algum julgamento, do reconhecimento, do desafio, da aniquilação. Mas, acima de tudo, penso que tememos a visibilidade sem a qual não vivemos verdadeiramente. (LORDE, 2020, p.53). Sempre carreguei comigo o pavor de holofote. Significar estar no centro é igual estar mirada por olhares de estranheza. Organizar a raiva e o silêncio foi fundamental para que passos fossem dados em direção à manifestação das violências que internalizei durante todo um processo de construção de identidades. Auto reconhecimento e reconhecimento sobre minhas dores. Acolhida. Escuta. Entendi que se eu quisesse realmente quebrar o silêncio precisava antes escutar a mim. Entendi que meu corpo não poderia escolher travar uma luta somente. Precisaria muito esforço para ser resistente. Audre Lorde me ensinou. Disse que não existe hierarquia de opressões e com isso eu pude perceber que a saída única para realizar pequenos golpes no sistema no qual meu corpo e corpos iguais aos meus estão inseridos é da movimentação; falar até que alguém nos escute e escrever até que alguém nos leia.

Hoje, a mulher adulta de 30 olha para minha criança, olha pra minha adolescente e sente que precisa falar por elas e com elas: devo dizer que tudo ficou melhor, que as dores de abusos que foram construídos aos longos dos anos estão sendo sanadas devagar, lentamente. Encontramos outras mulheres que nos ajudaram nesse processo. Outras abusaram mais da gente. Abusamos também. Mas, temos motivos para sentir orgulho de nós! Hoje conseguimos falar. Conseguimos escrever. Ainda não estamos no centro, mas não é mais por escolha, é pelo fato de nosso corpo ainda não caber em muitos espaços. Disso eu estou correndo atrás por nós. Hoje percebo que merecemos estar escrevendo essas linhas. Não sei aonde iremos chegar. Aonde essa escrita chegará. Mas alguém vai ler. E isso significa que nós estamos falando, e alguém está escutando. Ah! escrevo também por minha mãe. Ela foi e é a mulher maior e mais forte que conheci. Tudo o que sou é por causa dela. Eu vi de perto o que o peso de ser uma mulher heterossexual tem. O peso de ser mãe solo. Peso de não ter descanso para que os 5 filhos só estudassem. Mesmo que o dinheiro fosse pouco. E tem também a minha irmã. Outra mulher heterossexual. Essa até hoje abre os meus caminhos e meus olhos.

Algo que essas mulheres têm em comum é o fato de não terem aceitado muito bem o fato de sermos lésbicas. Eu sei. Foi traumático ver nossa mãe tentando se matar. Parando de falar com a gente. Nossos irmãos virando a cara e dizendo que o que acontecesse com a mãe deles, seriamos as culpadas. E eu entendo, de verdade. E perdoo. E agradeço à Iansã por esse perdão ter vindo enquanto minha mãe ainda tinha o sopro de vida física. Só consegui ser quem eu sou quando tive certeza que não iria levar mais nenhum problema a ela: estava tudo bem quando eu ouvi a Senhora nos pedindo desculpas. A minha irmã, que até hoje é a única mulher que eu confio de olhos fechados. Mas que na nossa adolescência também não entendeu nosso jeito, nossa forma de amar e ser. E o que eu aprendi com essas mulheres é que hoje eu consigo estar no meio de tudo, ainda que invisível.

A vida me deu um olhar apurado de compreender que precisamos olhar para todos os lados. E acredito que seja por isso que eu consigo ser a mulher dentro da mulher negra dentro da mulher lésbica. É por isso que hoje escrevo essas linhas, como forma de me perdoar e de dizer que também perdoo aqueles que eu amo. E que não vou desistir. Isso não. Por mais que esse pensamento tenha passado pela nossa cabeça por uma vida inteira. Hoje é suportável ser nós. Não há mais pulso querendo se abrir e sangrar até a dor de ser quem se é passar. Para algumas de vocês que estão aqui hoje, talvez eu seja a expressão de um dos seus medos. Por que sou mulher, sou negra, sou lésbica, porque sou quem eu sou” (AUDRE, 2020, p. 53) – Eu Agatha uma Assistente Social, Educadora, Pesquisadora e Escrevivente – [...]fazendo o meu trabalho- então eu pergunto: vocês tem feito o trabalho de vocês? (IDEM).

O seu medo dessa raiva também não vai ensinar nada a você. LORDE, 2020, p.155.

QUE TODA PESSOA PERIFÉRICA, FAVELADA, LGBT+ ROMPA COM SEUS SILÊNCIOS E DIALOGUE COM AS SUAS RAIVAS. QUE POSSAMOS TER DIREITO À ESCRITA, AO DESABAFO E À POESIA.

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

NOTA WIKIFAVELAS: É necessário incluir as referências bibliográficas citadas neste verbete.

Ver também[editar | editar código-fonte]