Direitos humanos e mulheres pretas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Artigo que aborda a relação entre mulheres negras e direitos humanos.

Autora: Pâmella Passos[1][2].
Escadaria em homenagem a Marielle Franco, no bairro de Pinheiros em São Paulo (Claudia Barbosa/Pexels)

Dos tratados aos traçantes[editar | editar código-fonte]

Falar sobre mulheres negras e direitos humanos requer uma localização geográfica. Falo com os pés fincados no Brasil e olhos voltados para uma nação escravocrata, que, para usar as categorias de Grada Kilomba em relação ao processo de conscientização coletiva, vive ainda hoje um intenso momento de negação (KILOMBA, 2020, p.11), vide recentes episódios racistas presenciados no país.

Porém, em diálogo com a importante produção da autora, reconheço que inúmeras iniciativas dos movimentos sociais apontam para um setor, cada vez mais forte e organizado da população brasileira, atuando no reconhecimento e reparação do racismo estrutural em nosso país. E é olhando para esses setores que pretendo refletir sobre mulheres negras e direitos humanos no Brasil.

Começo então com os versos do samba campeão do Carnaval de 2019, no qual a Mangueira afirma “Brasil, chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.

E foi assim, ouvindo, apreendendo com as mais velhas, que pude somar minhas leituras como historiadora, professora, pesquisadora e as vivências de mulheres negras na luta por direitos neste país.

Dos tratados aos traçantes: de que direitos humanos estamos falando?[editar | editar código-fonte]

Ao falar de direitos humanos em espaços formativos é comum ter como marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Um importante tratado para humanidade assinado no período pós Segunda Guerra Mundial quando o mundo ainda estava perplexo com as barbaridades do nazismo e seus campos de concentração.

Porém, é fundamental compreender a declaração em seu contexto histórico e uma primeira pergunta é: o que acontecia no continente africano em 1948 enquanto os países da ONU assinavam a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Um continente invadido e repartido para atender aos europeus na Conferência de Berlim (1884-1885) tentava sobreviver à intensa exploração econômica de seus colonizadores lidando com diversos conflitos étnicos gerados como consequência de uma divisão territorial arbitrária, feita a partir da ganância europeia.  

Esse fato nos diz muito sobre o conceito de direitos humanos para a população negra. Os tratados são fundamentais, porém, eles se efetivam na luta política, assim como a independência dos países africanos arduamente conquistadas, em grande maioria, décadas após a declaração de 1948.  

Para ilustrar o que digo gostaria de compartilhar o relato de um momento histórico que tive a honra de presenciar. Outubro de 2019, auditório da Anistia Internacional Brasil lotado de mulheres negras, lideranças na luta contra o racismo e contra o patriarcado. A convidada da noite era Angela Davis, uma grande referência no tema da interseccionalidade, árdua defensora da urgência de se observar os entrelaçamentos das opressões de gênero, raça e classe.  

A anfitriã, Anielle Franco, atual ministra da Igualdade Racial, outra mulher negra, alçada à condição de defensora pela brutal execução de sua irmã, Marielle Franco. Um auditório potente, repleto de dores e alegrias, lutas e sonhos. Angela Davis inicia dizendo querer ouvir pois compreende que ali está com irmãs de luta.

Algumas lideranças se inscrevem apresentando análises de conjuntura. Destaco aqui o relatado que mais me marcou nesse dia: o episódio da Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no ano de 2015. Na capital federal, uma marcha de mulheres negras antirracistas é atacada com tiros de dois policiais civis.

Atentas e com seus corpos impactados, pois muitas que ali ouviam o relato em 2019 estavam entre aquelas que correram dos tiros em 2015. As mulheres negras no auditório se mantinham firmes, ainda que com olhos marejados. Angela Davis, com semblante indignado, ouvia a luta daquelas que ela própria chamara de irmãs de luta. Como relatado, horas após os tiros, a marcha se (re)organizou e seguiu seu curso: a luta contra o racismo estrutural neste país.  

Essa é a realidade das mulheres negras e os direitos humanos neste país. Naquele auditório, repleto de defensoras, não ficamos teorizando sobre conceitos ou tratados, importantes para garantir marcos legais, mas falamos de nossos mortos e da urgência de seguir mesmo quando nossa vida está constantemente ameaçada.  

Compreender essa conjuntura é fundamental para entender o conceito de direitos humanos a partir do ponto de vista de mulheres negras. As defensoras negras conceituam e explicam os direitos humanos a cada dia quando apresentam que direitos humanos é a luta intransigente pela dignidade humana, o direito à água potável, à alimentação, à moradia, à terra, à saúde, à educação, à igualdade racial e de gênero, ao julgamento justo de crimes cometidos. Todas essas pautas são os direitos humanos.  

Enquanto lutam para que seus filhos e filhas não sejam mortos por traçantes e balas que de perdidas nada têm – já que nesse país pessoas negras são alvo –, nós, mulheres negras, escrevemos com nossos corpos uma outra declaração dos direitos humanos. Forjado a partir de nosso sangue, esse documento se atualiza a cada dia quando uma de nós se levanta para dizer “Parem de nos matar!”  

Em seu livro infantil A vida não me assusta, Maya Angelou de forma poética mostra a força das mulheres negras ao enfrentar os perigos da vida. Em outro conhecido texto da autora, dirigido ao público adulto, ela afirma que mesmo após tantos golpes da vida e do racismo, “Ainda assim eu me levanto”.

Nós, mulheres negras, nos levantaremos sempre contra as opressões que nos atingem. Não esperem de nós a docilidade dos acordos e tratados, sabemos fazê-los, mas escutem e respeitem nossa dor e raiva. É o mínimo a se esperar de alguém que realmente almeja romper com um passado colonial, patriarcal e escravocrata.

Raivosas como uma categoria de (des)qualificação: mulheres negras respondem ao racismo[editar | editar código-fonte]

No Brasil ocupar a política não é algo fácil para as mulheres, mas para as mulheres negras essa tarefa é ainda mais árdua, como aponta a pesquisa do Instituto Marielle Franco Violência Política contra Mulheres Negras. Para além do racismo estrutural repleto de ódio vindo de inimigos históricos saudosistas do tempo das senzalas, muitas mulheres negras ao ocupar a política enfrentam desqualificações de companheiros e companheiras acostumados com uma forma tradicional, leia-se branca, hétero e classista, de fazer política.

Nesse contexto, a discordância política, ao incomodar, é desqualificada, nomeada de imaturidade, falta de habilidade e reduzida à “raiva”. Recorro aqui às palavras de Audre Lord: “Minha raiva me causou dor, mas também garantiu minha sobrevivência, e antes de abrir mão dela vou me certificar de que exista algo pelo menos tão poderoso quando ela” (LORDE, 2019, p.165).

No livro Irmã Outsider, a autora dedica um capítulo inteiro para discutir os usos da raiva no combate ao racismo. O cenário político brasileiro precisa dessa leitura, é urgente que o campo progressista do país compreenda a mensagem da autora quando ela afirma que “minha raiva não serve de desculpa para que você não lide com a sua cegueira, nem de motivos para que você se esquive das consequências de seus próprios atos” (LORDE, 2019, p.165).

Respeitem a raiva das mulheres negras! Destaco ainda que respeitar não é concordar, é trazer para a arena política diferentes argumentos e experiências de leitura da conjuntura. No Brasil, os úteros negros sangram mais que todos os outros, que possamos de fato ouvir, enquanto estão vivas, as “Marias, Mahins, Marielles, malês”.

Poucos minutos antes de ser brutalmente executada, Marielle Franco, hoje um nome internacional dos direitos humanos brasileiro, encerrou sua atividade na Casa das Pretas dizendo sair de lá com o corpo, o coração e a mente fortalecidos para as batalhas que viriam. Minutos depois nossa companheira tombou, mas ela não foi e não será interrompida, pois era semente. Encerro este texto com a mesma frase que ela escolheu para terminar o que seria seu último discurso: “Não sou livre enquanto qualquer outra mulher for prisioneira, ainda que as amarras dela sejam diferentes das minhas” (LORDE, 2019, p.167). Direitos humanos para as mulheres negras é quebrar grilhões e destruir amarras.

  1. Pâmella Passos é mulher e mãe preta, defensora dos direitos humanos, professora titular de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em História pela UFF, possui dois estágios de pós-doutorado, o primeiro pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ e o segundo pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFF. Coordenou pesquisas e projetos sobre direitos humanos com financiamentos nacionais e internacionais. Atualmente compõe o conselho do Instituto Marielle Franco.
  2. Originalmente publicado no Jornal Le Monde Diplomatique, com o título "Dos tratados aos traçantes", em 27 de junho de 2023. Acesse ao original clicando aqui.

ANGELOU, Maya. A Vida não me assusta. Ilustrações de Jean-Michel Basquiat. Organizado por Sara Jane Boyers; Tradução de Anabela Paiva. Rio de Janeiro: DarkSide Books,2018.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo,2016.  

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação- Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.  

LORD, Audre. Irmã Outsider. Tradução Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Como mulher negra, eu me levanto (artigo)

Deus é uma mulher negra - O tanto de Rosa Egipcíaca que trazemos na vida-avenida

Direito e Contra Direito nas Periferias