Dinâmicas econômicas e pandemia no Complexo da Maré (RJ)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Durante a pandemia de COVID-19, muitos pesquisadores e pesquisadoras, em diversas áreas do conhecimento, escreveram sobre os seus múltiplos efeitos a diferentes populações. Em diferentes contextos e nas favelas, a pandemia foi vivenciada de múltiplas formas, revelando como a questão sanitária estava vinculada diretamente às questões econômicas mais amplas. Um fato que esteve presente em noticiários e nas redes sociais foi o de que muitas pessoas passaram por dificuldades financeiras, tendo que lidar com a inflação e o aumento do custo de vida, desenvolvendo estratégias para superar os momentos de crise.

Este é o tema abordado no artigo “Desalinhamentos: dinheiro da casa e experiências inflacionárias”[1] (publicado em 2023 na International Sociology, com o título Misalignments: House money and inflationary experiences[2]) dos professores Federico Neiburg e Eugênia Motta. O estudo, já premiado[3], de Neiburg e Motta trata de como moradores de favelas do Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, vivenciaram o aumento de preços em despesas essenciais, no contexto da pandemia de COVID-19.

Neste texto, procuro descrever os principais aspectos do referido artigo, que foi realizado no âmbito do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC - UFRJ) em parceria com a Organização Redes da Maré (reunindo uma equipe de 15 pesquisadores e a realização de 140 entrevistas remotas, entre dezembro de 2020 e março de 2022). Interessante pontuar que, em 2024, uma segunda fase dessa pesquisa está em andamento, através do projeto “Dinâmicas Econômicas e Culturas Alimentares na Maré”[4], que envolve moradores de localidades mareenses. Nesse contexto de pesquisa, três tipos de despesas aparecem com destaque nos orçamentos familiares: alimentação, pagamento de dívidas e serviços residenciais.

Como as pessoas, no cotidiano, experenciaram e perceberam o aumento dos preços em produtos considerados essenciais, como os de alimentação e de energia para a produção de comida (gás de cozinha), durante o período de 2021 e 2022, ainda no contexto pandêmico? Essa é uma questão central aos autores, que evocam o conceito de “alinhamento (e seus derivados, como desalinhamento e realinhamento)” para analisar “as diferentes formas de navegar no aumento do custo de vida, através da acomodação de mudanças materiais e perspectivas futuras em diferentes escalas: desde os ideais de uma vida boa desejada pelas pessoas e famílias a decisões que precisam ser tomadas imediatamente ou num futuro próximo” (MOTTA & NEIBURG, 2023).

O trabalho de alinhamento[editar | editar código-fonte]

A noção de trabalho de alinhamento (alignment work) se refere às atividades diárias realizadas pelas pessoas e famílias, para lidar com as instabilidades de renda, variação nos fluxos de dinheiro, as restrições impostas pela inflação e a manutenção de vínculos, que podem sofrer alterações diante da crise. Ao buscarem praticar esse “alinhamento”, mareenses demonstraram constantemente que realizam avaliações sobre as diferenças de preços, reclassificando despesas e mudando a forma de compra e venda de produtos. Mudanças nos hábitos alimentares e culinários, por exemplo, são diretamente afetadas pelo aumento dos preços de insumos, alimentos e do gás. Destaco a perspectiva dos autores: “o trabalho de alinhamento é a combinação de formas de imaginar, calcular, projetar e conviver articuladas em avaliações sobre o que, como, onde e por que comprar ou vender”.

Ao coordenarem uma pesquisa coletiva com moradores e comerciantes do Complexo da Maré, Motta e Neiburg demonstram como existem formas variadas de alinhamento diante das turbulências da inflação. Salientam como os espaços de favela não são socialmente homogêneos, mas marcadamente diversos e desiguais. Desta forma, identificam como o aumento geral dos preços intensifica desigualdades preexistentes e cria novas. Ao mesmo tempo, a falta de regulação estatal dos territórios das favelas abre possibilidades, como transformar edifícios para abrir e alterar negócios.

Para algumas pessoas, a inflação e a perda de renda acentuaram um sentimento de excepcionalidade e preocupação. Para outros, o aumento dos preços representou a abertura de um campo de novas possibilidades. Essas situações, à luz do artigo, reportam diferenças nos alinhamentos feitos entre os participantes do estudo. No âmbito das famílias estudadas, o rendimento é categorizado como instável e irregular, decorrente de atividades informais no comércio e na prestação de serviços, além da ajuda governamental. Outro ponto influente é a influência de grupos armados ligados a mercados ilegais, acentuando o controle do mercado de alguns produtos (como o gás de cozinha) e a interrupção comum das rotinas diárias, diante da violência entre facções e instituições policiais.

Os pesquisadores também salientam como a experiência inflacionária, e o processo de rotinização da crise, atingiu as casas de múltiplas maneiras. Nesse sentido, os realinhamentos geraram reajustes específicos (entre a realidade das economias domésticas, rotinas e expectativas), promoveram mudanças nos hábitos alimentares, redefinindo prioridades para o que se considera “despesas básicas” e que alteram a relação de gastos com as casas.

A importância do “dinheiro da casa”[editar | editar código-fonte]

Ao visibilizarem as casas como lócus de reprodução da vida e por serem entidades inseridas em redes, os autores fundamentam a fertilidade de se pensar a partir do conceito de “dinheiro da casa” (house money) como chave para descrever dinâmicas domésticas durante o período de inflação, particularmente no contexto do aumento dos preços de produtos alimentares e do gás. O conceito de “dinheiro da casa” (MOTTA, 2023)[5], acrescentam, permite identificar os significados do dinheiro e das práticas monetárias do ponto de vista dos espaços domésticos. As suas palavras são explicativas: “O conceito de dinheiro da casa designa um nexo moral e prático entre pessoas, dinheiro e casa(s), que valoriza os bens comuns ou necessidades comuns para a manutenção da casa como um espaço processual vivo, evocando despesas de natureza obrigatória e regular, como aluguel, serviços e alimentação” (MOTTA & NEIBURG, 2023).

Ademais da noção de trabalho de alinhamento, dinheiro da casa, a análise de temporalidades e territorialidades aparece em diferentes momentos e parece ser um bom achado de pesquisa. Uma paisagem em turbulência, composta por temporalidades sobrepostas, é evidenciada: a temporalidade das vidas dos moradores das favelas e suas famílias, a temporalidade das múltiplas crises desencadeadas pela pandemia, a temporalidade espasmódica e incerta das políticas públicas. Essa percepção possibilita uma crítica do próprio conceito de inflação. Para isso, estruturam o artigo em quatro partes, mobilizando evidências da pesquisa.

A primeira parte aprofunda o entendimento sobre o conceito de “dinheiro da casa” e sua relação com a dinâmica de produção dos alimentos em um contexto inflacionário. Demonstra como o processo inflacionário afeta as finanças domésticas e desequilibra relações entre pessoas, casas e dinheiro. O “dinheiro da casa” se refere a uma parcela de dinheiro destinada para pagar as contas essenciais da casa, que diz respeito à coletividade que coabita dentro dela, geralmente entendida como “família”. São despesas caracterizadas por seu caráter obrigatório, previsibilidade e regularidade: pagamento de aluguel, luz, água, gás, internet, produtos de limpeza e higiene e alimentos. Mais do que uma forma de categorizar despesas, o dinheiro da casa articula vários meios de ganhar e gastar dinheiro, formas de calcular, avaliações e moralidades, além de hierarquias atreladas ao gênero, à geração e ao parentesco.

Considerando que, no Brasil, os gastos com alimentos são maiores quanto menor a renda das famílias (fato vinculado à relevância do aumento dos preços), os autores afirmam como o “dinheiro da casa” possibilita examinar “o alinhamento entre despesas obrigatórias, regulares e despesas eventuais, além do dinheiro certo e esperado”. Por outro lado, o desalinhamento, desajuste de tal relação, desvela a “incompatibilidade da situação inflacionária, vivida como perturbadora”. O caso de uma moradora da Maré, por exemplo, que conseguiu emprego fixo logo após os preços começarem a subir é apresentando, para ressaltar como o fato de ter rendimentos fixos acima das despesas constantes suaviza a relação com a crise.

A inflação e a hierarquia das despesas[editar | editar código-fonte]

A segunda parte trata das moralidades das necessidades que foram alteradas pelo aumento dos preços e pela atmosfera de incerteza em tempos de pandemia. O argumento, nessa parte, é de que o desajuste inflacionário torna evidente valores morais ligados à casa, às pessoas e às diferenças de gênero. Desta maneira, avalições morais sobre as despesas, o que pode ser dispensado, substituído e o que é essencial povoam os ambientes domésticos, além de cálculos relacionados à compra e troca de alimentos. Outras despesas, com efeito, assumem um caráter secundário (como gastos individuais com roupas e sapatos), vistos como moralmente contrários à comida e supérfluos na luta pela sobrevivência.

Notadamente, a hierarquia de despesas em tempos de inflação afeta a avaliação das pessoas e de suas ações, engendra julgamentos e análises morais que alteram a dinâmica das relações. Ademais, a ajuda é outra modalidade de doação ressaltada como algo central nas casas do Complexo da Maré, traduzida como necessidade e obrigação entre os que são próximos (ajuda entre pessoas de diferentes casas ou da mesma casa, afetam as despesas individuais). As ajudas, trocas e circulações de bens e pessoas, envolvem julgamentos íntimos sobre a necessidade, o imperativo e o conforto moral de ajudar (troca de alimentos, cuidados com as crianças, reparos ou construções de casas), fluxos que constroem e expressam relações de obrigação, gratidão e respeito entre casas. Nos termos dos antropólogos autores: “As relações entre as casas ajudam algumas pessoas a enfrentar a crise, mas complicam a vida de outras pessoas que necessitam partilhar recursos escassos”.

Austeridade e territorialidades calculativas[editar | editar código-fonte]

A terceira parte do artigo aborda as relações entre austeridade alimentar e territorialidades calculativas, notadas em mudança de hábitos alimentares e no redesenho geográfico à aquisição de produtos alimentícios. Diante disso, visibilizou-se que as pessoas procuram alinhar a disponibilidade de dinheiro com o que precisam gastar a partir de estratégias variadas, como comprar em outras localidades fora do Complexo da Maré, ou substituir marcas e produtos considerados de menor valor (a carne deixou de ser amplamente consumida em muitas casas, por exemplo).

Muitas dessas estratégias envolvem deslocamentos pela cidade e a interrupção de outros deslocamentos, fazendo com que a busca pelo melhor preço ou a diminuição do poder de compra (austeridade alimentar) module novas ‘territorialidades calculativas’. Com efeito, além de alinhamentos temporais, notabilizam-se alinhamentos territoriais – pessoas que se deslocam, que mudam de casa, que viajam para outros bairros para comprar (em atacados, supermercados com promoções, ou em distribuidoras de gás mais em conta). O estudo demonstra como o trabalho diário de alinhamento entre ganhos e despesas articula práticas que tentam combinar cálculos matemáticos e morais (ajuda e comprar coisas aos familiares), conhecimento de diferentes preços e mercados e a disponibilidade de recursos não monetários e infraestruturas (veículos, locais de armazenamento nas casas, tempo).

A quarta parte do texto concentra-se nas perspectivas que idealizam ou materializam a precificação de produtos e serviços, do ponto de vista de muitos dos interlocutores, que não são apenas consumidores, mas também produtores e vendedores. Nas casas com vendas e comércios, as relações com preços são mais complexas – além de ocorrer o trabalho de alinhamento entre receita e despesa, há uma avaliação do valor do produto ou do serviço que vendem, levando em consideração as condições econômicas dos compradores. Neste aspecto, muitos optam por reduzir a sua margem de lucro para não perder a sua clientela, jogando com a manutenção de preços como forma de mitigar o sentimento de inflação dos consumidores e avaliando a disponibilidade de recursos dos clientes, influenciada por políticas estatais (como auxílios e benefícios, igualmente).

O Complexo da Maré e a experiência inflacionária[editar | editar código-fonte]

A leitura do texto de Eugênia Motta e Federico Neiburg (2023) apresenta diferentes experiências de moradores da Maré, que lidam com temporalidades e territorialidades marcadas pelos ritmos dos rendimentos e das variações inflacionárias, articuladas com acontecimentos na vida das pessoas (doenças, mortes, separações, casamentos, etc.) e com projetos de vida. As diferentes formas de navegar pelas crises e oportunidades ressaltam como pessoas e casas produzem diferentes capacidades para alinhar as suas condições materiais com aspectos espaciais e temporais. O estudo dos efeitos econômicos da pandemia em favelas, revela como o aumento do custo de vida não é apenas um indicador técnico-científico-político, mas também se imprime de forma diferenciada nos corpos. No contexto do Complexo da Maré, o trabalho de alinhamento e a sensorialidade inflacionária possuem contornos singulares que atravessam o cotidiano das casas e das vizinhanças.

O presente verbete, cabe dizer, não substitui a leitura do texto original, de suma importância aos estudos sobre dinâmicas econômicas nas favelas. Trata-se apenas de um convite, que sistematiza o porquê a obra em questão traduz questões centrais que estiveram presentes nas comunidades mareenses, durante e após a pandemia de COVID-19.

Palavras-chave: dinâmicas econômicas; pandemia de COVID-19; Complexo da Maré (RJ).[editar | editar código-fonte]
  1. Realizei a tradução do título e de algumas partes do artigo, na tentativa de torná-lo mais acessível ao leitor da língua portuguesa, mas buscando não substituir a leitura de sua versão original e completa, em inglês. O trabalho está disponível em:<https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/02685809231198004>.
  2. Motta, E., & Neiburg, F. (2023). Misalignments: House money and inflationary experiences. International Sociology, 38 (6), 610-626. Disponível em: <https://doi.org/10.1177/02685809231198004>.
  3. O artigo foi premiado como vencedor do Prêmio SAGE International Sociology de 2023, promovido pela Associação Internacional de Sociologia. O trabalho ficou destacado por sua solidez metodológica, contribuição conceitual e relevância temática.
  4. Mais informações sobre o projeto em: <http://www.nucec.net/decam.html>.
  5. Motta, E. "O que faz o dinheiro da casa", Horizontes Antropológicos [Online], n° 66, 2023. Disponível em: <http://journals.openedition.org/ horizontes/8204>.

Autoria: Bruno Guilhermano Fernandes (Pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia, NuCEC-UFRJ / Doutorando em Antropologia Social - PPGAS, Museu Nacional).