Do Rio de Janeiro à Palestina: a militarização dos territórios (entrevista)
Cria do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a jornalista Gizele Martins tem refletido há anos sobre a militarização do Estado destinada aos corpos de pessoas negras e faveladas. Em 2017, ela também pode ver de perto os pontos que unem as favelas do Rio à Faixa de Gaza na Palestina.
Autoria: Jéssica Moreira
Texto publicado originalmente em: "Nós, mulheres de periferia[1]"
Do Rio de Janeiro à Palestina[editar | editar código-fonte]
O convite veio a partir de uma articulação entre o Movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que luta pelo fim da opressão contra palestinos e pressiona o Estado de Israel a respeitar o direito institucional, e o movimento de favelas e de mães do Rio de Janeiro que perderam seus filhos para a violência estatal.
“Foi o período em que as famílias sofreram com mais invasões das unidades de polícia pacificadora (UPPS), do Exército. Sofremos remoções e muitas das empresas que financiam o apartheid junto ao Estado sionista israelense na Palestina também estavam negociando sua entrada durante os mega eventos do Brasil”, explica Gizele.
A região, que vive um conflito histórico, teve o confronto ampliado depois da Suprema Corte de Israel dar uma ordem de despejo a famílias palestinas que vivem em Jerusalém Oriental. Antes mesmo do dia 10, a população contrária à expulsão dos palestinos já saía às ruas de bairros majoritariamente árabes de Jerusalém, sofrendo com a repressão da polícia de choque israelense.
Até o cessar-fogo anunciado em 21 de maio, 232 palestinos haviam sido mortos. Desse total, ao menos 63 crianças eram crianças e 36 mulheres. Do lado israelense, 12 pessoas morreram. Os dados são da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente).
Após um longo processo de articulação, foi realizado um convite para o movimento de favelas ir para a Palestina junto ao movimento BDS do Brasil em 2017. Gizele foi a pessoa nomeada por todo o movimento de favelas. “Já que eu falo muito sobre militarização da vida, também por ter sofrido com a invasão do exército na Maré, durante 2014. A ideia era ver presencialmente e tentar juntar a luta deles à nossa”. Confira a entrevista na íntegra abaixo!
Entrevista completa com Gizele Martins[editar | editar código-fonte]
Nós, mulheres da periferia: Quais foram suas descobertas neste processo? Há relação entre a realidade do Rio de Janeiro com a Palestina?
Gizele Martins: Indo à Palestina, eu descobri que a gente tem muita coisa em comum. Que lá é um laboratório da política da morte, de uma política racista, sionista e uma política de apartheid. Os territórios palestinos e a população palestina são feitas de laboratório de uma política de militarização. Ali há inúmeras empresas que fabricam o caveirão, que fabricam helicópteros, câmeras de vigilância e fabricam técnicas militares de matar. Após essas técnicas serem experimentadas no território e na população palestina, elas são vendidas para o mundo.
Não por acaso, o Brasil faz há 10 anos a realização de uma feira de armas, o que chamamos de feira da morte. Nessas feiras, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, são apresentadas as armas mais vendidas e aquelas armas experimentadas contra o povo palestino. Foi na Palestina também que aprendi que não existe guerra ali, pois na verdade o que eles vivenciam é um massacre, assim como o que a gente vivencia nas favelas do Rio de Janeiro.
Nós: Quais são as outras semelhanças que você notou?
Gizele Martins: A gente tem muita coisa em comum. O muro que temos na Favela da Maré, que chamamos de Muro da Vergonha, é espelhado nos muros do apartheid na Palestina. Os primeiros caveirões que chegaram nas favelas do Rio de Janeiro vieram do apartheid da África do Sul. Os novos caveirões vêm do apartheid da Palestina. As armas experimentadas no corpo palestino são as mais vendidas no Brasil e na América Latina.
As técnicas militares utilizadas pelo exército israelense na Palestina são vendidas para todo mundo. Não por acaso a polícia militar brasileira, a carioca, durante os mega eventos no Brasil foi até a Palestina fazer treinamento. Ou seja, são muitas relações que o estado terrorista brasileiro com o estado terrorista israelense têm comerciais e em detalhes. Eles financiam o apartheid na Palestina e financiam o genocídio da população negra moradora de favelas e periferias no Brasil.
Nós: Por que devemos utilizar o termo ‘massacre’ e não ‘guerra’ na Palestina?
Gizele Martins: Assim como existe uma guerra na Palestina, o que existe ali é um massacre, pois guerra seria se existisse forças militares e políticas em comum. Isso não existe. O exército israelense tem todas essas forças nas mãos, assim como o Governo brasileiro também. O que a gente vivencia na favela não é uma guerra, é um massacre.
É uma forma de controlar as populações e povos que os Estados ricos querem empobrecer. Os povos que eles querem usar para treinamento militar e bélico.
Nós: Institucionalmente, qual é o posicionamento do Brasil no que envolve Palestina e Israel?
Gizele Martins: Existem muitas relações entre o Estado brasileiro e o israelense. O Bolsonaro, inclusive, assim que ganhou a eleição, foi para Israel para fazer negociações; é um governo federal que apoia o Estado israelense e apoia a ideia de que Jerusalém não é capital da Palestina, que é capital de Israel. O Governo brasileiro hoje [2021] é um apoiador do estado israelense.
Nós: Você faz algum paralelo dessa militarização brasileira e palestina também na Colômbia, onde ativistas estão sendo violentados pelo Estado por reivindicarem seus direitos?
Gizele Martins: O que acontece na Colômbia também é muito parecido com o que ocorre no Brasil e com o que ocorre na Palestina. A população ali vem sendo massacrada. As forças militares utilizadas na Colômbia, na Palestina, nas favelas, são contra o povo negro e favelado.
Uma das formas de controlar e silenciar a gente é por meio das forças bélicas. Não à toa, esses estados têm suas ligações militares. O que ocorre na Colômbia é desaparecimento forçado, silenciamento e enorme violência aos protestos. Quando a população está na rua, é a mesma coisa que ocorreu no Brasil em 2013, é o que ocorre na Palestina quando tentam manifestar. São as mesmas forças militares.
Nós: Em que contexto ficam as mulheres, no Rio, na Palestina ou na Colômbia?
Gizele Martins: A questão das mulheres, seja no Rio, na Colômbia ou na Palestina, é que a militarização impacta o corpo da mulher de outras formas. Na Colômbia, há casos de mulheres que estão sofrendo violência sexual. Na Palestina, mulheres têm perdido suas casas. Há um processo de impacto psicológico.
Tem um impacto militar que atravessa a vida das mulheres e nas favelas do Rio de Janeiro também. O estado terrorista e militar brasileiro tem acabado com os filhos de mulheres negras, acabado com os filhos dessas mulheres que vão viver esse luto durante toda a vida por ter perdido seus filhos para a violência estatal, por um massacre colocado pelo Estado.
Delegação "Mundo sem Muros"[editar | editar código-fonte]
Publicado originalmente em 07 de agosto de 2023, no blog "Periferias em Movimento".
A Palestina é um laboratório da militarização, do racismo e do apartheid promovidos pelo governo israelente e que se reflete em todo o mundo. Essa é a conclusão da jornalista e comunicadora comunitária Gizele Martins, da Maré, na zona Norte do Rio de Janeiro. Gizele representou a articulação internacional Julho Negro na delegação “Mundo sem Muros”, convidada pela Campanha Popular Palestina contra o muro do apartheid de Israel, em visita à Palestina em 2023.
Outras representações dos movimentos favelados, periféricos, negros e indígenas do Brasil, Colômbia e Equador também somaram forças nessa viagem, no início de julho, para acompanhar a realidade de perto. O coletivo de comunicação Desenrola e Não Me Enrola representou a Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas, da qual a Periferia em Movimento também faz parte.
Entre os demais movimentos representados na delegação, estão o Movimento Negro Unificado (MNU), a Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, a articulação internacional Julho Negro do Rio de Janeiro e a Frente de Evangélicos pela Direita Estatal no Brasil, bem como a Confederação de Povos da Nacionalidad Kichwa no Equador (ECUARUNARI) e o Processo de Comunidades Negras (PCN) na Colômbia.
Cristiana dos Santos Luiz, do Movimento Negro Unificado, chama a atenção dos movimentos ao redor do mundo para a causa palestina. “Os direitos humanos da população palestina seguem sendo violados pelo Estado israelense. O mundo está fechando os olhos, precisamos da comunidade internacional e dos movimentos ao redor do mundo pautando a luta palestina. Nosso objetivo foi trocar experiências e transformar esses encontros em solidariedade concreta com o povo palestino e construir laços duradouros entre o povo palestino e nossas lutas locais”.
Já Fernando Cabascango, da Confederação de Povos da Nacionalidad Kichwa no Equador (ECUARUNARI), menciona sobre as medidas necessárias para alcançar soluções efetivas. “Demandamos a nossos governos que tomem ação concreta para responsabilizar ao regime de apartheid de Israel, começando com um embargo militar imediato. Pedimos que apoiem ativamente o chamado palestino para que as Nações Unidas reconheçam que Israel comete o crime contra a humanidade de apartheid e que reativem o Comitê Especial da ONU contra o apartheid”
Depois das delegações do México e dos movimentos negros, indígenas e latinos nos EUA, esta é a terceira delegação ‘Mundo sem Muros’, convidada pela Campanha Popular Palestina contra o Muro do Apartheid (Stop the Wall). A iniciativa surge não apenas de um reconhecimento do que “muros” físicos e imateriais de injustiça estão crescendo rapidamente em todo o mundo, mas cria espaços onde levantar nossos olhares além das crises cada vez piores que os povos em todo o mundo estão enfrentando.
Ver também[editar | editar código-fonte]
Julho Negro: Contra o Racismo, a Militarização e o Apartheid (documentário)
- ↑ Acesse o artigo em: Nós, mulheres da periferia