Dos esquadrões da morte aos escritórios do crime - uma análise histórica sobre a presença desses grupos no Rio de Janeiro
Os grupos de extermínio, como tem sido chamados este tipo de organização criminosa, existem pelo menos desde a década de 1950. No entanto, pouco temos explorado a historicidade do processo de formação desses grupos, acompanhando suas continuidades e transformações desde sua concepção até os tempos atuais. O presente verbete foi construído buscando realizar esse exercício de rever o fio histórico deste tipo de organização, para uma melhor compreensão dos contextos atuais.
Autora: Emmanuelle Torres Costa
O Esquadrão da Morte[editar | editar código-fonte]
No final da década de 1950 se deu o aparecimento de um dos primeiros grupos de extermínio do Rio de Janeiro, o Esquadrão da Morte, ligado diretamente ao Serviço de Diligências Especiais, que funcionava junto ao gabinete do Chefe de Polícia, de acordos com os jornais do período[1].
Naquele contexto, o grupo era identificado, como “grupo de policiais que eliminam marginais considerados irrecuperáveis”Idem., e tinham suas atividades ilícitas aceitas pela sociedade, de acordo com o que podemos verificar na imprensa da época, uma vez que estava justificada toda e qualquer morte produzida por este tipo de grupo paramilitar pelo padrão “irrecuperável” que as vítimas apresentavam. Neste sentido, era comum encontrar falas que associassem a criação deste tipo de grupo a uma “vingança de colegas tombados no cumprimento do dever”[2] em favelas e em perseguições policiais, como foi o caso do detetive Le Cocq.
O detetive de polícia, Milton Le Cocq de Oliveira, era considerado um “temível” integrante do “Esquadrão da Morte”[3]., que contava com outros agentes da polícia, uma vez que o grupo havia se forjando no seio da polícia militar, e entendido, por isso, como uma extensão de seu poder na sociedade. Os jornais do período trataram de revelar casos emblemáticos associados ao grupo, como o da Rodovia Rio-Petrópolis, em que um grupo de homens foi executado, aparentemente pelo grupo.
Poucos meses após o golpe civil-militar de 1964, o detetive Le Cocq acabou sendo morto durante uma perseguição policial. Ao que tudo indicava, o detetive havia sido morto por aquele sujeito que perseguia, Manuel Moreira, vulgo Cara-de-Cavalo, no entanto, moradores da localidade e investigações futuras indicaram que o detetive Le Cocq, na realidade, foi alvejado por um colega de farda no momento do confronto, em que tentava prender Cara-de-Cavalo.
Com a morte do Detetive, policiais parceiros de Le Cocq juraram vingança ainda no Instituto Médico Legal, e de fato uma caçada por Cara-de-Cavalo foi iniciada. De acordo com o jornal, a “polícia partiu com metralhadora para a grande caçada” do homem até então acusado de matar o detetive de polícia.
A década de 1950 e o surgimento dos esquadrões da morte[editar | editar código-fonte]
De acordo com Misse, é neste período em que o jargão “bandido bom é bandido morto” surge nas páginas dos impressos, estabelecendo a ideia de pena capital para indivíduos que tivessem cometido infrações ou estivessem à margem da sociedade. É neste contexto que as primeiras candidaturas de parlamentares utilizando este jargão chegaram ao cenário político, contando com amplo apoio das classes médias e dominantes. O sociólogo chamou a atenção para a criação da Scuderie Le Cocq, em homenagem ao detetive Le Cocq, morto numa troca de tiros na Favela do Esqueleto por outro policial em perseguição a Manoel Moreira, vulgo Cara-de-Cavalo.
Importante ressaltar que, a década de 1950, ainda que de forma mais disfarçada, já apresentava um processo de militarização dos cargos executivos, tendo como exemplo a presidência do General Eurico Gaspar Dutra, além disso, no caso do Rio de Janeiro, o Prefeito do Distrito Federal sendo um outro general, Angelo Mendes de Morais. Podemos verificar, de acordo com alguns trabalhos desse contexto histórico e de acordo com as fontes de jornais do período que, a presença policial se torna mais frequente nas favelas, grupos paramilitares com uma proposta de “limpeza da cidade” ganham espaço e apoio da imprensa, além do número de crimes por arma de fogo ter apresentado um aumento em relação às décadas anteriores[4]. O que fica evidente é que havia um aval da sociedade civil para a execução deste tipo de atividade por parte desses grupos, endossada principalmente pela imprensa comercial do Rio de Janeiro.
“O Esquadrão da morte está tomando fôlego, lubrificando as pistolas, corrigindo as pontarias”
(A Luta Democrática, 24 de janeiro de 1958)
Em 1960, o jornal A Luta Democrática, de Tenório Cavalcanti, admite que circulavam rumores de que o Esquadrão da Morte havia sido organizado pela Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, a fim de assassinar Jacó Simões, “Celdoca”, acusado de matar o investigador de polícia Zélio da Silveira Laino no interior de uma boate, em São Gonçalo. Os integrantes do bando, chegam ao local com um carro com a “chapa branca”, ou seja, sem identificação de placa, invadem a boate – que foi identificada também como um prostíbulo pelo jornal –, matam Celdoca e ateiam fogo no espaço. Esse episódio nos indica uma dinâmica de resolução de assassinato de agentes da polícia através de ações extra-judiciais, mas que no entanto, se amparam na ação de agentes do Estado, majoritariamente da polícia[5]..
Após a contratação de um soldado para matar um desafeto de um comerciante português de Nova Iguaçu, um funcionário da delegacia deste município afirmou existir um “esquadrão da morte” constituído por autoridades “graduadas naquelas dependências”[6]. A denúncia desse funcionário da delegacia revela que, tais práticas dentro da corporação são anteriores ao processo golpista que se deu em 1964, indo, por isso, de encontro à tese do sociólogo Michel Misse, que aponta para a década de 1950 como um período ápice da acumulação social da violência, que teve como ponto de partido o próprio processo de colonização e escravização dos povos indígenas e africanos neste território. Esse acúmulo de violência, teria encontrado na década de 1950 uma válvula de escape, principalmente dentro da estrutura da polícia fluminense, que passou, a definir, condenar e executar por leis próprias aqueles que deveriam ser mortos ou não.
Alinhado a isso, o discurso da segurança pública passava a se fortalecer junto à ideologia de um inimigo interno. Num primeiro momento, os inimigos internos foram representados nas figuras dos comunistas, ameaçadores da ordem e da moral vigente. Num segundo momento, os “malandros” se tornaram “marginais”[7], ameaçadores não só da ordem e da moral, mas principalmente da propriedade privada e do modo de vida burguês, que cada vez mais se estabelecia enquanto um modus operandi da sociedade fluminense.
O funcionário da polícia que expôs a existência do “esquadrão da morte” naquela delegacia não se furtou a apontar os nomes dos integrantes do grupo, um ex-delegado, Elmo Braga, o soldado Jorge Ferraz, “Naval”, um soldado de polícia que cumpriu pena, “Índio”, também ex-policial e ex-condenado. Além disso, o funcionário indicou a participação do que identificou enquanto “marginais”, Evódio e “Bigode”, os únicos que não tinham associação com a Polícia[8]. A fala do funcionário indica, sobretudo, que esse tipo de grupo era majoritariamente formado por homens que pertenciam ou haviam pertencido à Polícia,não se tratando por isso – quando comparamos ao cenário atual dos grupos de extermínio – de uma dinâmica atual, e sim de um modelo repetido pelo menos desde a metade do século XX, quando ignoramos as formações as milícias armadas ainda na período colonial do Brasil.
Dos esquadrões da morte aos escritórios do crime[editar | editar código-fonte]
Podemos verificar que este tipo de grupo e este tipo de dinâmica de atuação não se trata de uma novidade no Rio de Janeiro. Grupos paramilitares que executavam atividades ilícitas, ainda com envolvimento com a contravenção, existem e atuam livremente na cidade desde meados do século XX. Neste sentido, é importante historicizar este tipo de cenário, uma vez que temos uma tendência a apagarmos o nosso passado e perdermos o fio condutor que dá sentido às experiências dentro do tempo histórico. Trata-se, sobretudo, de uma análise de longa duração.
Se hoje observamos o envolvimento destes grupos em assassinatos, como o da vereadora Marielle Franco e outras tantas pessoas, é importante o apoio da história enquanto uma ferramenta não só de conscientização, mas sobretudo de atuação. A partir de experiências passadas podemos desenhar novas formas de lidar e combater dinâmicas que corroem nossos direitos civis e o modelo democrático.
O mais complexo, desde a década de 1950, em relação aos esquadrões da morte, que adotaram diferentes nomes como Invernada de Olaria, Scuderie Le Cocq, etc.., e os atuais grupos de extermínio – denominados dessa forma principalmente no final da década de 1980 com os episódios de chacinas que assolaram diversas favelas da cidade[9] – é a intrínseca relação com o Estado. Compreendemos aqui o Estado não de forma monolítica, e sim em suas múltiplas facetas, o que torna ainda mais próxima a relação desses grupos com agentes públicos. Recentemente, as investigações do assassinato de Marielle Franco levaram não somente à políticos envolvidos com o crime, mas também com Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil no Rio, que tratou pessoalmente do caso. O envolvimento de Rivaldo no crime impossibilitou que o andamento das investigações se desse de forma íntegra.
Atualmente, diversos estudos têm sido desenvolvidos, principalmente pelas Ciências Sociais, numa tentativa de compreender o desenvolvimento deste tipo de grupo, seus movimentos e transformações durante o tempo e os aperfeiçoamentos adotados para que se estabelecesse de forma tão entranhada nas estruturas do Estado. Dessa maneira, é importante que mais estudos se lancem nessa investigação, para que possamos não só tomar conhecimento desse cenário, mas principalmente cobrar uma atuação contundente do Estado em relação a isso. O caso de Marielle Franco escancara que, sem a pressão popular, as investigações não teriam se desenrolado, e ainda assim, seis anos de espera foram necessários para que se chegasse perto da descoberta da autoria do crime.
- ↑ “Fuzilado teve os olhos arrancados: mais três mutilados por tiros e pancadas. Última Hora, Rio de Janeiro”, 10 de outubro de 1968, p. 6..
- ↑ Abreu, Waldyr de. “Crime e Castigo”, Diário de Notícias, 24 de janeiro de 1961, p.1.
- ↑ “Le Cocq”, in “Zero Hora”, Última Hora, 28 de agosto de 1964, p. 2
- ↑ COSTA, Emmanuelle Torres. Morte e vida no Esqueleto: a construção social de um espaço marginalizado da cidade do Rio de Janeiro (1934-1965). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) - PUC-Rio, Departamento de História, Rio de Janeiro, 2023. MELLO NETO, D. M. “Esquadrão da Morte”:genealogia de uma categoria violência urbana no Rio de Janeiro (1957-1980). 2014. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. MISSE, M. Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
- ↑ “Esquadrão da morte para eliminar Celdoca”, A Luta Democrática, 11 de fevereiro de 1960.
- ↑ “Peitado para matar”, A Luta Democrática, 6 de dezembro de 1960.
- ↑ Mello Neto, D. M. de . (2021). “Esquadrão da Morte”, “Grupos de Extermínio” e os Movimentos Sociais: Mudanças em uma Categoria da “Violência Urbana". Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, (52). https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i52.a43290
- ↑ “Peitado para matar”, A Luta Democrática, 6 de dezembro de 1960.
- ↑ Mello Neto, D. M. de . (2021). “Esquadrão da Morte”, “Grupos de Extermínio” e os Movimentos Sociais: Mudanças em uma Categoria da “Violência Urbana". Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, (52). https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i52.a43290