Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro (pesquisa)
A pesquisa pretende conhecer a incidência de abordagens policiais nas ruas da cidade do Rio de Janeiro nos diferentes grupos geracionais, raciais e territoriais, a qualidade dessas interações e as opiniões de diferentes setores da população sobre a polícia.
Autoria: Silvia Ramos, Itamar Silva, Diego Francisco e Pedro Paulo da Silva, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
A publicação "Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro" (2021) é a primeira de uma série e lança novas perspectivas conceituais que animam o projeto empírico, quase 20 anos depois da primeira pesquisa “Elemento Suspeito” realizada em 2003. Os números sobre a realidade atual e as comparações com resultados do levantamento anterior aparecerão nos próximos documentos.
Síntese da pesquisa[editar | editar código-fonte]
Em 2003, a primeira pesquisa Elemento Suspeito, realizada pelo Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) na cidade do Rio de Janeiro, buscou entender quais seriam os critérios de viés e seleção empregados pelas forças de segurança na realização de suas ações de abordagem. Em outras palavras, a proposta era compreender quais cidadãos estavam mais sujeitos a serem parados e revistados por policiais no dia a dia, ou seja, transitando pela cidade fora de ocorrências policiais.
Combinando elementos quantitativos e qualitativos, naquela primeira edição, os resultados da pesquisa confirmaram que jovens do gênero masculino, negros e pessoas de menor renda eram desproporcionalmente mais abordados pela polícia. Além disso, este grupo considerava tais abordagens mais agressivas do que outros perfis de pessoas também abordadas. Na sua segunda edição, realizada em 2021 - quase 20 anos e muitos eventos depois, tais como uma intervenção federal e uma pandemia mundial - a pesquisa visava entender se houve alteração das abordagens policiais no dia a dia da cidade, e se teria mudado a percepção da população carioca com relação a elas.
“Entre uma pesquisa e outra passaram-se cinco governos estaduais (Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Wilson Witzel e Cláudio Castro) e 14 comandos diferentes na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), que patrulha as ruas da cidade e realiza a maioria das abordagens. Ocorreram, ainda, várias experiências em segurança pública. Houve tempo suficiente para a polícia mudar. Durante esse longo período, também, as câmeras de videomonitoramento, oficiais e particulares, multiplicaram-se em escala nas ruas do Rio e foi testado um sistema de reconhecimento facial de pessoas, entre outros modelos de policiamento” (p.5)
O desenho da pesquisa[editar | editar código-fonte]
A partir da realização de grupos focais, entrevistas aprofundadas, e com o apoio do Datafolha, empresa especializada na realização de pesquisas no Rio de Janeiro, a partir da condição básica de todos os participantes terem tido experiência prévia com abordagens policiais, foram agrupados membros dos seguintes grupos sociais: jovens negros moradores de favelas; jovens negras, travestis e transexuais moradoras de favelas; entregadores que trabalham com motos ou bicicletas; motoristas de aplicativos de ambos os gêneros; jovens brancos; estudantes negros universitários e praças negros da Polícia Militar.
Além disso, nos dias 4, 5 e 6 de maio de 2021, equipes do Datafolha realizaram 3500 entrevistas em pontos de fluxo da cidade, onde 739 pessoas responderam ao questionário completo, sendo uma amostra representativa dos moradores da cidade que já foram abordados pela polícia.
Principais Resultados[editar | editar código-fonte]
Em termos de distribuição por raça ou cor, a maior parte das pessoas abordadas eram consideradas negras (pretas e pardas). No que se refere às experiências, um dado que chama atenção é o de que 50% dos 739 entrevistados “teve parente ou amigo preso ou detido pela polícia”, e 46% “presenciou pessoalmente policiais agredindo as pessoas” (Gráfico 2, p. 10).
A maior parte das abordagens acontece em carro próprio, seu ou de outra pessoa, a pé na rua ou na praia e no transporte público (ônibus, BRT, trem ou metrô).
Comparando o perfil geral dos abordados pela polícia com o perfil da população carioca, a pesquisa concluiu que aqueles são mais homens do que mulheres, mais negros do que brancos, mais pobres, mais jovens e mais moradores de favelas e bairros de periferia do que a média da cidade. Analisando os que foram abordados mais de 10 vezes, esses números se potencializam: 94% eram homens, 66% eram negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, enquanto 33% moravam em bairros de periferia e 58% ganhavam de zero até três salários mínimos.
Tal realidade deu origem ao indicador IGCCT, cuja sigla é formada pelas iniciais dos marcadores Idade, Gênero, Cor, Classe e Território.
A discrepância entre a distribuição de cor da população carioca e dos que foram parados mais de 10 vezes é chocante e confirma o fato de que especialmente jovens negros do gênero masculino são abordados excessivas vezes, particularmente quando circulam a pé na rua, em transporte público ou em motos. Se nos casos de abordagens da Lei Seca, de Uber ou carros pessoais, muitas vezes a polícia só demanda apresentação de documentos ou revista nos veículos, em cerca de 50% das abordagens acontece a revista corporal, reservadas para indivíduos que policiais suspeitam que podem estar portando armas ou drogas. Dentro desse grupo, a pesquisa verificou que 84% eram homens, 69% eram negros (lembrando que apenas 48% dos cariocas são negros), e 70% eram moradores de favelas e bairros de periferia.
“Mesmo quando focalizamos apenas a população que já foi abordada pela polícia (sem contar os que nunca foram abordados), existem os super abordados, os freios de camburão, os mestres do enquadro. Aqueles que responderam terem sido “parados mais de 10 vezes” (e muitos desse grupo já foram parados centenas de vezes) compõem um setor da sociedade que representa quase um quinto dos já abordados (17%), que são alvo reiterado do olhar de incriminação prévia por agentes da lei. Sentem-se vistos como criminosos, sentem medo quando avistam policiais, pressentem e, de alguma forma, vivenciam as abordagens mesmo quando elas não acontecem”.
“Dia que não sou parado, chego em casa e acho até que aconteceu algo estranho.” Jovem negro, entregador de moto
“Eles tentam imprimir que a gente é o suspeito. A gente acaba até duvidando da própria honestidade.” Frase de jovem negro entrevistado durante a pesquisa
Para os pesquisadores, a primeira grande contribuição da pesquisa atual está em apontar elementos que confirmam uma dimensão traumática de quem é comumente considerado “elemento suspeito”, e, portanto, alvo preferencial das abordagens policiais cotidianas - ou seja, fora de contextos de ocorrências criminosas. Em teoria, esses procedimentos planejados e realizados por profissionais da segurança não deveriam ser temidos ou associados a medo, sentimento de impotência, ódio ou repulsa por parte das pessoas abordadas. Segundo o boletim com os resultados da investigação: “percebemos a presença de um novo personagem marcante na vida do Rio, que surgiu entre essas duas décadas: a consciência e o reconhecimento do racismo, por parte significativa de negros e brancos, como sendo o ‘elemento suspeito’, estruturante da atividade policial.” (p. 11)
“Saber que aquela não é a última vez... A angústia de saber que você tá propenso a sofrer aquilo todo dia...” Jovem negro entrevistado
Aprofundando a dimensão da angústia e do trauma coletivo gerado pelo reconhecimento do racismo estrutural como ponta de lança das abordagens policiais no Rio de Janeiro, a pesquisa pôde identificar alguns comportamentos recorrentes dos agentes públicos de segurança para com determinados grupos sociais. No caso das mulheres e mulheres trans, apesar de menos abordadas, a revista das bolsas e mesmo dos cabelos (penteados afro ou com tranças) à procura de drogas e outros objetos é um procedimento recorrente e invariavelmente constrangedor. Em 28% das abordagens mais recentes os entrevistados relataram terem tido armas apontadas para si ou para seus acompanhantes, além da violência verbal com o emprego de bordões ou xingamentos. A repetição contínua desses padrões de abordagens fazem com que os entrevistados, especialmente os que sofrem influência do índice IGCCT - aumentando a probabilidade de serem abordados por policiais - preocupem-se continuamente em sair às ruas com roupas e cortes de cabelo que não chamem atenção desses agentes, bem como sempre portar documentos pessoais e que comprovem a posse de veículos e objetos (como celular e computadores) que estejam portando consigo. Para esses “elementos suspeitos” por sua cor, idade, gênero, classe e território, o direito de ir e vir sem ser constrangido por forças de segurança passa por uma tensão e preocupação constantes. Um dado interessante que a pesquisa mostra a partir da análise dos resultados por grupos focais é que os moradores de favelas e periferias e os entregadores que usam motos ou bicicletas atribuem as violências e desrespeitos que sofrem nas abordagens de rua ao racismo da polícia, enquanto motoristas de aplicativos e os próprios policiais não enxergam no racismo uma variável relevante nesses contextos.
“Eu já fui parado na Lagoa. Estava com um amigo negro. O tratamento foi completamente diferente, muito racista.” Jovem branco participante dos grupos focais “Quais são os critérios? O racismo é latente no Brasil. Se a gente estiver num grupo de negros, a gente vai ser minoria, mas eles não vêm pra cima da gente. Nós não sabemos o que é uma abordagem escrota porque não somos negros.” Jovem branco participante dos grupos focais
Por fim, em termos de avaliação dos agentes de segurança, a Polícia Militar é a força com pior avaliação pelos que já foram abordados, considerada por 60% dos entrevistados muito corrupta e muito pouco eficiente (64%).
“as pessoas deveriam agradecer por serem paradas, porque mostra que a polícia está nas ruas trabalhando para segurança delas” fala de policial militar participante da pesquisa
Em resumo, vinte anos depois da primeira investigação, a pesquisa aponta que a proporção geral das abordagens no conjunto da população se manteve relativamente em percentuais semelhantes.
“As abordagens se intensificaram em certas modalidades (por exemplo: motos), focalizaram mais a população negra (negros são maioria em todas as modalidades de abordagens) e se tornaram mais violentas. Foram relatadas muito mais experiências de ameaça e intimidação e muito mais armas apontadas diretamente para o abordado, levando em conta apenas a última abordagem. As revistas corporais, experiência mais constrangedora e assustadora nas abordagens, aumentaram significativamente. O quadro geral é de radicalização do foco no elemento suspeito. Os super parados, aqueles predominantemente negros, mais pobres, moradores de favelas e periferias, do gênero masculino, cresceram de 8,2% para 17%.” (p.26)
No documento final com resultados da pesquisa, disponível abaixo, é possível ler, ainda, análises críticas elaboradas pelos pesquisadores Pedro Paulo da Silva, Diego Francisco e Itamar Silva, vinculados ao Cesec.
Veja também[editar | editar código-fonte]
- Elemento suspeito aqui, ali e acolá: a violência policial nas favelas (live)
- Armadura institucional e legitimação da violência policial: Um olhar a partir de São Paulo em tempos de pandemia
- Entre altos e baixos: dinâmicas da violência letal no Espírito Santo e Minas Gerais entre os anos 2000 e 2020 (artigo)