Encarcerados por reconhecimento fotográfico e a seleção penal que condena inocentes

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Texto de Dani Monteiro*, publicado originalmente no Jornal O Dia, em 13 de outubro de 2021.

Autoria: Dani Monteiro.

Sobre[editar | editar código-fonte]

O tempo médio de prisão, tendo o reconhecimento fotográfico utilizado como único elemento de prova, foi de 277 dias. Mais de nove meses, imagine se fosse com você.

Jefferson, Gabriel, Ângelo, Raoni. Quatro homens, quatro histórias de prisões arbitrárias com base apenas em reconhecimento fotográfico. Há mais. A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj tem recebido e acompanhado pelo menos sete casos de encarceramento que se confirmaram injustos. Além das vítimas, sofrem as famílias, padece o Estado, que, ao não resguardar o devido direito à presunção de inocência, permite que parte dos seus cidadãos agonize sem sequer saber como suas fotografias passaram a integrar o álbum de suspeitos da Polícia Civil.

Segundo dados levantados recentemente pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), o Rio é o epicentro da injustiça causada pelo reconhecimento por foto. Mais que isso, o estudo demonstra veementemente que classe social até pode variar, mas a raça, nunca. Em 80% dos casos, são presos por reconhecimento fotográfico homens negros e sem passagem pelo sistema prisional. Metade desse contingente nunca tinha tido passagem pela polícia, ainda assim, suas fotografias estavam entre os suspeitos. Nesses casos, o tempo médio de prisão, tendo o reconhecimento fotográfico utilizado como único elemento de prova, foi de 277 dias. Mais de nove meses, imagine se fosse com você.

A criminalização, está mais do que demonstrado, não atinge da mesma forma todos os corpos, uma vez que é impossível para o Estado, através das agências do sistema penal, fiscalizar e criminalizar todas as condutas tipificadas, já alertava o juiz argentino Raul Zaffaroni, referência no assunto. Por isso mesmo, o Estado obriga-se a escolher quais condutas efetivamente serão passíveis de criminalização. Seguindo esse viés, não há aleatoriedade nas escolhas do Estado, existe, sim, uma orientação para um política criminal com fundamentos racistas e classicistas.

O projeto de criminalização de corpos negros, como nem mesmo o tempo nos deixa esquecer, iniciou-se ato contínuo à abolição da escravatura, momento em que foram criadas normas penais que destinadas exclusivamente aos negros. Reconheçamos, de uma vez por todas, que o fim da escravidão como modo de exploração de mão de obra não significou o fim do ideal racista. Pelo contrário, é o que estruturou a sociedade brasileira e permanece em pleno funcionamento ainda hoje, tratando de posicionar grupos específicos como responsáveis pela perpetração da violência no país e consolidando estereótipos negativos associados às pessoas pretas, sobretudo à juventude que está nos territórios de favela.

E assim chegamos ao ponto em que a prisão ou a morte desses que são tratados como “inimigos” não despertam sequer empatia de boa parte da sociedade. Trocando em miúdos, para quem ainda não entendeu a gravidade do que está posto, as práticas policiais se mantêm racistas e violentas, ainda que não se fale aqui de individualizada, deliberada e convicta. Mas fato é que o racismo opera por meio das instituições e estrutura o sistema de Segurança Pública.

Discutir o reconhecimento fotográfico exige, portanto, ir à sua raiz e encarar as verdades como elas são na realidade: o sistema de Segurança Pública e de Justiça não é igual para todos, assim como a democracia racial não existe. Resta saber se estamos dispostos a conceder o benefício da dúvida a nós mesmos.


*Dani Monteiro é deputada estadual (PSOL-RJ) e presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ.