Favela-Bairro em Vigário Geral: com a voz, a comunidade (programa)
Autoria: Valeria Rosa Bicudo; Sonia Fleury; Lenaura Lobato; Rosangela Alves; Andrea Assis
Introdução[editar | editar código-fonte]
O chamado Parque Proletário de Vigário Geral – mais conhecido como Favela de Vigário Geral – foi uma das comunidades estudadas pelo Programa de Estudos sobre a Esfera Pública - PEEP/FGV, em 2004, no escopo das áreas atendidas pelo Programa Favela Bairro/PROAP, desenvolvidos pela Secretaria de Habitação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Ficou conhecida, internacionalmente, como centro de uma das maiores chacinas na periferia da cidade, ocorrida em agosto de 1993 e que vitimou 21 pessoas. Depois disso passou a integrar a lista das áreas prioritárias do programa urbanístico e social da prefeitura do Rio de Janeiro. Supostamente, este fato se configura como elemento definidor de uma identidade construída pelos moradores da comunidade. A chacina é um marco na história de Vigário Geral e, conforme o depoimento de um dos moradores locais, “foi preciso acontecer a chacina para que a gente daqui fosse lembrada”.
Como se sabe, a problemática da habitação popular na cidade do Rio de Janeiro remonta ao início do século XX, com as práticas de remoção, passando pelos anos 1980 com o Projeto Mutirão e chegando aos anos 1990 com a proposta de “integração” da favela à cidade através de melhorias urbanísticas e sociais, com o Programa Favela-Bairro. Aqui destacamos a especificidade desta tentativa em Vigário Geral e sob a análise dos próprios moradores. A partir de estudos e uma pesquisa de campo, reunimos alguns dos resultados por meio de três recortes analíticos: a história da comunidade; a presença do Programa Favela-Bairro na comunidade e a voz de lideranças e moradores locais.
Histórico do Parque Proletário de Vigário Geral[editar | editar código-fonte]
O Parque Proletário de Vigário Geral está localizado na fronteira nordeste do município de Rio de Janeiro, compreendido na XI Região Administrativa – Penha – na área de planejamento AP.3 e Unidade Espacial de Planejamento 23. Este parque está concentrado em uma área de fronteira entre os municípios do Rio de Janeiro e Duque de Caxias, à margem direita do rio São João de Meriti. A XI Região Administrativa é integrada pelos bairros da Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil, Parada de Lucas, Vigário Geral e Jardim América.
O principal acesso (via pedestre) à comunidade é a “passarela verde” (expandida no formato de rampa, como reivindicação dos moradores durante a implementação das obras do Programa) que desemboca logo de frente à sede da Associação de Moradores do Parque Proletário de Vigário Geral (fundada em 1962), com entrada pela rua Antonio Mendes – a principal rua da comunidade. Nas ruas onde o fluxo de pessoas é mais intenso, localizam-se as variadas formas de comércio (bares, botequins, salões de beleza, pequenas quitandas, loja de materiais de construção, entre outros). Também, nestas mesmas ruas, encontram-se os locais de esporte e lazer disponíveis, como a quadra do Barroso e o Campo/Palco/Drive-In, na Rua Antônio Mendes, e a quadra do CIEP Mestre Cartola na Rua Leopoldina, em fronteira com Parada de Lucas. A rua que leva até a fronteira com Parada de Lucas ficou conhecida e relatada no livro “Cidade Partida” de Zuenir Ventura, como “Vietnã”. Há mais de uma década as duas comunidades foram inimigas na disputa pelo domínio do tráfico de drogas. Salvo em momentos pontuais, a exemplo do pós chacina, as duas facções rivais estabeleceram trégua. De acordo com relatos locais, a direção do tráfico em Vigário Geral pertenceu, por longo tempo, ao Comando Vermelho e em Parada de Lucas ao Terceiro Comando (para alguns analistas, este foi uma dissidência do primeiro e com participação de policiais que entraram para o mundo do crime. Para outros, o Terceiro Comando teve origem a partir da Falange Jacaré, já na década de 1980). Atualmente, depois de uma espécie de acordo entre os Comandos rivais, o Terceiro Comando assumiu o domínio também de Vigário Geral.
Outra forma de acesso à comunidade de Vigário Geral é pelo viaduto Naildo Ferreira. Este nome foi uma homenagem prestada pelos moradores do bairro a um ilustre morador que, conforme se soube, dedicou parte significativa de sua vida a Associação de moradores – foi presidente durante dezessete anos e membro do Partido Comunista, fazendo escola política na comunidade, construindo na época “quadros” expressivos de militância do Partidão.
A favela de Vigário Geral, por sua localização de baixada de fundo de baía, está assentada em terrenos alagáveis, sobre solo de aterro heterogêneo que vai diminuindo de espessura e densidade na medida em que se aproxima das áreas alagadiças ou do canal de controle do Rio Meriti. (Diagnostico SMH/IPLAN-Rio). Vigário Geral, segundo os textos da Secretaria Municipal de Habitação, “está ‘ilhada’ em um local úmido e insalubre conquistado ao manguezal junto à foz do Rio São João de Meriti”. Como grande parte da favela era constituída de brejo, as casas eram construídas acima de estacas de palafitas, bem como as passarelas que lhes davam acesso. Aos poucos, foi-se fazendo o aterro com lixo e entulho que os moradores jogavam no quintal de suas casas, até as ruas tornarem-se estáveis e o mangue desaparecer. O mangue, por iniciativa e esforço braçal dos próprios moradores, gradativamente foi sendo aterrado e, conseqüentemente, ia-se ampliando a área, permitindo assim a vinda de novos moradores; estes que se assemelhavam na condição de pobreza, escassez e no sonho de construir uma vida nova. Além disso, Vigário Geral concentra-se em uma favela plana, cortada ao meio por dois muros altos, isolando-a da Linha Férrea da Leopoldina e conectada por passarelas de acesso à favela.
O Parque Proletário de Vigário Geral é o resultado de grandes transformações urbanas ocorridas no Estado do Rio de Janeiro, durante o processo de industrialização do Brasil que geraram migrações internas do campo à cidade, assim como a construção das primeiras ferrovias – no final do século XIX – o que favoreceu a existência de núcleos suburbanos em torno das estações.
A primeira movimentação planejada para a ocupação do Parque Proletário de Vigário Geral se deu por volta de 1910 quando, na faixa de terra às margens da linha do trem que pertencia à Leopoldina, foram parcelados lotes de 10x20 m, destinados à construção de casas para os seus funcionários, que pagavam uma quantia mensal pela cessão. Com o tempo deixaram de pagar, sendo ocupado até hoje por funcionários aposentados ou herdeiros. Segundo um morador local, no ano de 1949, a companhia ferroviária alugava terrenos a seus funcionários, que foram os primeiros moradores de Vigário Geral, onde só existia matagal. Entre os anos 1940 e 1950, outros moradores foram chegando aos poucos e a comunidade começou a crescer.
O Parque Proletário de Vigário Geral também é o resultado das grandes remoções que, segundo os moradores, aconteceram a partir de 1952. Os novos moradores foram pessoas removidas do Morro Azul (atual Cidade Alta), Morro de Santo Antônio (atual Av. Chile), Aterro da Glória e outros locais. Segundo moradores, a Prefeitura fornecia madeiras aos removidos para fazer seu barraco e colocou três guardas municipais para organizar, traçar e fiscalizar a comunidade, tomando algumas características dos Parques Proletários instalados na zona sul da cidade.
No governo de Brizola iniciaram-se as obras de canaletas, para as quais foram indenizadas algumas famílias, a fim de alargar as ruas para permitir a circulação de máquinas e materiais para a obra. Posteriormente em 1985-1986, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social promoveu, em mutirão, a construção do atual sistema de canaletas de drenagem e de esgotamento sanitário, que tentou diminuir o problema de esgoto (Diagnostico SMH, IPLAN-RIO, p.18).
Nos anos 1980, o problema das favelas aumentou com a presença de grupos “paraestatais”: os banqueiros do jogo de bicho e os grupos dedicados ao tráfico de drogas. A população de Vigário Geral ficou sob o controle do tráfico de drogas, como conseqüência do fenômeno da violência e da disputa de territórios e pontos de vendas de drogas entre grupos de traficantes das favelas e a ação das forças armadas e policiais – o que gerou terror e medo à esta população. Assim, o Parque Proletário de Vigário Geral foi cenário da violência na cidade, quando na madrugada do dia 30 de agosto de 1993, a favela foi invadida por um grupo armado de policiais civis e militares (cerca de 40) encapuzados, que saíram arrombando casas e atirando para todos os lados; como represália pela morte de 4 policiais ocorrida na Praça Catolé do Rocha – próxima à favela – no dia anterior. Testemunhas contam que o chefe do tráfico de drogas mandou matar os policiais, pois esses haviam assassinado seu irmão e sua cunhada por conta de dívidas de propinas relacionadas ao tráfico de drogas (Processo de Vigário Geral, vol.3, folhas 527 e 528 in Rodrigues, 2002).
Segundo testemunhas, os policiais disseram que, para cada policial assassinado, 10 moradores morreriam. “Num ato de violência exorbitante foram exterminadas 21 pessoas e outras 4 foram atingidas, sem chances de defesa, incluindo mulheres, homens e crianças. Muitos foram exterminados dentro de um bar, alguns apresentaram documentos como forma de demonstração de que eram trabalhadores, mas de nada adiantou. Outros foram chacinados pelas vielas da favela, aleatoriamente, e dentro de uma casa, que fora a casa do ex-chefe do tráfico de drogas; uma família de oito pessoas foi brutalmente assassinada, atingindo, adultos e crianças” (Rodrigues, 2002).
Como consequência disto, o Estado que, até então, atuava de forma exígua com políticas sociais para a favela, começa a canalizar recursos para atender àquela população que além de ser vítima de uma tragédia, passa a exigir respostas concretas e responsabilidades das autoridades. Foi a repercussão da tragédia de 1993 que tornou possível a implementação de projetos sociais (até então desconhecidos pelos moradores locais), mas não diretamente pelo Estado. Foi através da atuação de diversas organizações não governamentais (contratadas pela prefeitura) que tais ações emergiram na comunidade, no âmbito do Programa Favela-Bairro. Entretanto, o tempo de existência de tais ações e do próprio Programa foi bastante delimitado (em função da própria natureza dos contratos e dos objetivos estabelecidos).
O Programa Favela-Bairro em Vigário Geral[editar | editar código-fonte]
No Parque Proletário de Vigário Geral, o Programa Favela-Bairro teve início aproximadamente em julho de 1997 com o Diagnóstico das comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas e as pesquisas socioeconômicas realizadas entre 1997 e 1999, cujas informações servem de insumo para o projeto urbano e o PASI - Programa de Ação Social Integrada -, que só foi terminado em junho de 2000.Todo esse diagnóstico foi feito com recursos do PROAP-I.
Em 21 de janeiro de 1999 foram iniciadas as obras de construção do viaduto e concluídas um ano depois, dando um ingresso próprio à favela. Foi orçado em R$ 8.795.00, como parte do Programa Favela-Bairro, com recursos do PROAP-I (SMH, 2002). Anteriormente à obra, as únicas entradas para veículo estavam localizadas próximo à Parada de Lucas, ambas na Av. Brasil. Uma por baixo do viaduto, chegando à pista em direção ao Centro do Rio e outra na direção da BR 316 (Rodrigues, 2002).
O projeto aprovado para o Parque Proletário de Vigário Geral estava orçado em R$ 7.323.231,07 para a execução das obras de urbanização. Neste projeto contemplava-se a construção de uma creche, praças e áreas de lazer e esporte, obras de infraestrutura viária, iluminação, abastecimento de água, infraestrutura de esgoto e drenagem, coleta de lixo e limpeza pública, reflorestamento e arborização, além de edificações complementarias como a oficina da Comlurb. Uma obra solicitada pela população foi a construção de rampas nas principais passarelas de acesso à Favela, erguidas sobre escadas extremamente altas, o que não permitia a circulação de deficientes físicos (Rodrigues, 2002).
Iniciadas as obras, verificou-se a necessidade de reformular o projeto contemplando o projeto de macrodrenagem do rio Meriti, não considerado no projeto inicial. Segundo o engenheiro de obra, durante a primeira fase da obra foi construída a creche, parte da infraestrutura de esgoto e drenagem (construção de um dique, a recuperação de uma comporta para evitar as frequentes enchentes no local e a dragagem do rio, com abertura de calha) e pavimentação. A área contemplada ia desde o viaduto de acesso até Vila Nova.
As obras só foram recomeçadas após um ano e meio, aproximadamente, no ano de 2002. Nesta segunda fase se contemplou a construção de toda a infraestrutura de esgoto, pavimentação de Vila Nova até a divisão com Parada de Lucas, no CIEP, drenagem (com a construção do outro dique, a recuperação da segunda comporta - ambas haviam sido construídas pela Marinha, e, inclusive a galeria de drenagem celular principal das ruas Onze Unidos e Bulhões Maciel), a construção das praças, o escritório da Comlurb – sede dos garis comunitários do Parque Proletário de Vigário Geral, e a “Beira Canal”, como afirma o engenheiro de obra. Na Beira Canal foi necessário realocar as pessoas que moravam na beira do rio.
Nas obras de macrodrenagem foi necessária a recuperação de duas comportas, a construção de dois diques (ambos visando acabar com as constantes enchentes que assolavam o local), assim como o desenvolvimento de um grande projeto de drenagem que previa, além da dragagem dos rios, a construção de uma ampla rede de galerias celulares de 2,30m de largura por 1,35 m de altura, sem levar em conta a necessidade de colocação de manilhas de drenagem tradicionais. Segundo o engenheiro de obra, “quando você vai executar a obra, vê quanta coisa é necessária e que não estava prevista”. Nenhuma outra obra no Favela-Bairro necessitou, até então, de um projeto dessa envergadura.
Em Vigário Geral seria necessário realocar 156 famílias para a implantação das intervenções; construindo-se 27 unidades habitacionais de 45 m² cada e as 129 famílias restantes seriam realocadas em moradias na própria comunidade ou indenizadas, isso entre julho de 2000 e julho de 2002 (PASI, 2000). A maioria das famílias removidas morava à beira do canal do rio Meriti.
Com o inicio das obras, alguns dos moradores que moravam em barracos de madeira construíram suas casas de alvenaria. Além das obras de urbanização e equipamentos, foram realizadas ações sociais contempladas no Programa Favela-Bairro. Foram oferecidos seis programas sociais: Bolsa Família, Meu Primeiro Emprego, Erradicação do Trabalho Infantil, Agente Jovem, Desenvolvimento Socioeconômico e Com Licença, eu Vou à Luta. Estavam previstos cursos de capacitação, qualificação profissional, direitos humanos e cidadania. Além disso, seriam disponibilizados/as dois/duas assistentes sociais, que acompanhariam a participação dos moradores nos programas, a fim de garantir o êxito da iniciativa da Prefeitura (Prefeitura, 2004).
A prefeitura também trabalhou em parceria com a Associação de Moradores do Parque Proletário Vigário Geral, que teve um papel importante na formação da favela e na luta pela infraestrutura local. Após a chacina, a Associação permanecera silenciosa por medo da violência e/ou porque os agentes do tráfico tomaram a diretoria.
Vozes da Comunidade[editar | editar código-fonte]
A maioria dos moradores entrevistados considera que a favela de Vigário foi beneficiada pelo Programa devido à chacina de 1993 e reconhece que suas ações na comunidade são uma estratégia eleitoral do representante político na Prefeitura:
[porque vocês acham que escolheram Vigário Geral para fazer o Favela-Bairro?] “Tinham fóruns, no começo as pessoas que compareciam tinham acesso. O primeiro ponto foi a chacina com certeza. Muita gente aqui dentro querendo ajudar ou se aproveitar. É um curral eleitoral. César Maia quer saber quem vai votar nele por causa do Favela-Bairro. Aqui ninguém fala muito dele”(L, grupo focal com mulheres).
Por outro lado, durante a etapa de obras, foram recrutados moradores da localidade para trabalhar na execução das obras. Isso foi considerado pelos moradores como um dos benefícios que trouxe o Favela-Bairro para a comunidade:
“Durante a obra houve um entrosamento muito grande do morador com o funcionário. A companhia forneceu muito emprego aqui dentro, quase todo o morador que queria trabalhar, trabalhou, tinha muito pouca gente de fora. No sentido de obra foi um grande trabalho em Vigário Geral. Forneceu muito emprego e um trabalho muito bem organizado. [...] Vigário Geral foi um dos bairros, mas bem organizados do Favela-Bairro. Não só na obra, como também muitas empresas ajudaram muita gente aqui dentro” (N, morador da favela).
Uma avaliação bastante precisa sinaliza que o Programa Favela-Bairro em Vigario Geral, inicialmente projetado, não contemplava as obras de drenagem do rio Meriti, considerado um dos motivos do atraso da obra, tendo em vista a necessidade de obras de drenagem. Segundo os entrevistados, isso ocorreu porque o projeto não estava de acordo com a realidade do lugar; não teve um estudo de solos nem o conhecimento do lugar, como por exemplo, a presença de rochas na área de tratamento de esgoto, que não foi especificado no projeto. Isso denota uma falha no projeto desde sua origem:
“porque o esgoto ia ser jogado lá para fora e para a estação de tratamento de esgoto indo para Caxias. Encontraram duas rochas que parece que não puderam estourar, então parece que a engenharia não funcionou, porque se tivesse feito em 97 esse mapeamento descobriria como ia se fazer isso. Não é hoje, em 2004, dizer: ‘Olha eu estou com problema porque encontrei uma rocha’. Quando você faz um projeto você faz um projeto de montagem, principalmente de engenharia, não se constrói um projeto de uma hora para a outra, tem que ver o solo, fazer topografia, filmar, fazer a terraplanagem e não precisa ser engenheiro para saber que isso é preciso, isso é fundamental e isso não foi feito, foi feito de qualquer jeito [...]. Então, tem certas coisas que os caras querem fazer, mas querem fazer nas coxas. Nós não estamos brincando, nós estamos aqui fazendo presença e fazendo sério” (J, representante da ONG MOGEC).
Com a implementação do Programa Favela-Bairro, a avaliação geral é que a favela de Vigário Geral passou a contar com um bom sistema de água, iluminação, esgotamento, pavimentação (mesmo com alguns casos de reclamações sobre o estado das vias internas do bairro):
“Trouxe a água. Quando chove também não tem aquela lamaceira; a luz também, a iluminação tá dez [...]. Fora disso, a favela tá boa. [...]A luz, a água e também o asfalto” (I, moradora da favela).
Mas chama atenção a seguinte síntese das principais críticas ao Programa: “o Favela-Bairro é o mesmo que encapar a rua com papel de presente, mas a caixa continua podre” (L, grupo focal com mulheres).
As percepções sobre a própria comunidade e as alterações recentes variam em relação à faixa etária dos moradores. Em grupos focais de mulheres adultas a ênfase foi na solidariedade existente, enquanto no grupo de jovens o aumento do individualismo foi destacado:
“Então, agora uma das coisas que eu vou sentir muita falta se eu sair é isso, essa amizade que a gente tem aqui dentro. Um olha, cuida do outro, um ajuda o outro. Isso a gente tem” (T, grupo focal com mulheres).
“Aqui, o lado bom da comunidade é que quando alguém está em apuros, logo vêm os vizinhos saberem se está precisando de alguma coisa. É como mesmo se diz, é comunidade, todo mundo se ajuda, um corre e arruma um carro, como minha mãe mesmo ficou doente, correram e arrumaram um carro. Como não conseguiram atravessar, colocaram ela em uma cadeira e atravessaram para o lado de lá, paravam ônibus, isso é assim. E até hoje é assim” (R, grupo focal com mulheres)
“Mudou sim. As pessoas começaram ser mais individualistas. Eu acho que sim, começaram a viver muito as suas vidas e parar de olhar por próximo. Não em questão de religião, eu tô falando assim: Poxa, na minha esquina tem gente que passa fome, gente. Eu moro na Vila Nova. Tem gente que passa fome e outras pessoas não. A gente deixa de ver as outras pra se ver mais” (T, grupo focal com jovens)
“É tipo assim, ela precisa de ajuda, mas ninguém toma partido. Se ela não vem até a mim, eu jamais vou até ela pra ajudá-la, a não ser se eu tiver uma intimidade muito forte com ela, aí sim, se for vizinho que você tem intimidade. Se ela vier até mim, eu ajudaria, mas eu ir até ela, eu não iria” (grupo focal com jovens)
Com relação à participação em reuniões do Favela-Bairro, as opiniões se dividem entre não ter tomado conhecimento e críticas ao imediatismo dos moradores que só se mobilizam na condição de ganhar algo, como uma cesta básica e acomodação:
“(...) Olha, para ser sincera, eu acho que o povo brasileiro é muito sossegado, é muito relapso para algumas coisas. Eles não esquentam muito a cabeça não, sabe, porque se as pessoas se reunissem isso aqui já teria tido melhoras há muito tempo, mas são muito acomodados, eles não esquentam, não estão nem aí. Desde que melhorou um pouquinho, eles já se acomodam. Se todo mundo juntasse ... como eu mesma nunca fui dar opinião. E não é também a todo mundo que eles perguntam, aí fica assim” (R, grupo focal com mulheres).
Ao mesmo tempo em que ressaltam que com o Favela-Bairro houve aumento da consciência e da participação, levando à criação do Fórum Comunitário e da revitalização da comunidade local, criticam a desmobilização provocada pelo não cumprimento das promessas do Programa:
“As praças públicas foram revitalizadas, o campo de futebol, a quadra de esportes ... o pessoal fica jogando aí até 11 horas [noite], meia noite. Tem briga para se brincar nessa área de lazer. As Ongs, o Affro reggae, o Mogec, o posto de saúde, a melhoria de vida melhorou bastante, essa situação toda. Com o crescimento, o movimento social empurrou essa situação toda” (L, grupo focal com mulheres)
“... das três vezes que eu participei da reunião, as pessoas que estavam direcionando as obras do Favela-Bairro desistiram de comparecer; a primeira reunião nós tivemos 35 pessoas, na segunda tivemos quase 80, na terceira teve 22 ... porque as pessoas se comprometiam que iam começar pelo menos topografia e nada disso acontecia e comunidade como um todo, as pessoas são desconfiadas, as pessoas acreditam no que acontece e não no que vai acontecer, nós já estamos escaldados de tanta promessa” (J, grupo focal com mulheres)
A falta de segurança é uma reclamação geral, a humilhação dos moradores provocada pelos traficantes e pelos policiais, a interferência nas rotinas e na vida cotidiana são reclamações constantes que denotam a incapacidade de um programa urbanístico dar conta da gravidade da situação social da comunidade:
“Hoje está sendo mais um passo para tentar, o que se pede é a paz para os moradores, porque eu tenho meus colegas em Lucas e não posso ir lá. Então tenho que marcar em um lugar fora daqui e o que está acontecendo é isso. E se pede a paz, mas a paz não é só para Vigário, paz para o mundo, porque o mundo está precisando de paz” (R, grupo focal com jovens).
As obras do Favela-Bairro foram vistas como muito importantes para melhorara da qualidade de vida e aumento de oferta de serviços, ainda que insuficientes na questão do saneamento e mesmo de habitações:
“Acho que todo mundo gostou. Ninguém gosta de ficar na lama. As pessoas gostam de ficar no asfalto, ainda mais quem trabalha e tem filho pequeno e que pode botar na creche” (K, grupo focal com jovens).
“São obras de maquiagem, que as pessoas com menos informações acham que é grande coisa e acabam votando nas mesmas pessoas. É tudo falta de educação” (M, grupo focal com jovens)
Por outro lado, há um forte sentimento de pertencimento e de que o que existe foi feito, fundamentalmente, pelos moradores: “Isso aí tudo, meu filho, foi eu que fiz” (A, morador de Vigário Geral).
A respeito do futuro também fica claro que, para os moradores, ele dependerá mais que tudo deles mesmos:
“Eu acho que vai ser melhor, porque se a gente não tivesse esse pensamento nós não estaríamos aqui nesse momento. Não estaria organização nenhuma aqui dentro. Não teria esse trabalho do MOGEC, do Afroreggae. Vai melhorar porque estamos aqui” (M, grupo focal com jovens)
No entanto, a percepção de discriminação e que vivem em um espaço segregado não foi alterada pelo Favela-Bairro, já que as alterações urbanísticas internas à comunidade não mudaram a percepção da sociedade sobre Vigário Geral:
“Então o que que acontece é o que a gente tem aqui dentro, é a discriminação, mais nada. E a gente ainda vive nisso fechado aqui. Olha aquela linha do trem, o muro da linha isola a gente da sociedade. É o que que acho” (C, grupo focal com jovens).
Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]
FLEURY, S (Coord.). Relatório Técnico do Projeto "Avaliação da Inovação Social em Políticas Públicas: Estudo dos Programas Favela-Bairro e Morar Legal". Rio de Janeiro: FGV, 2007.
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Disponível: http://www.rio.rj.gov.br/pcrj/destaques/vigario_geral.htm Acesso em: 20 de julho de 2004.
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO/ IPLAN RIO. Programa Favela-Bairro. Comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas.Diagnostico. Invento espaços, Anastassakis e associados. Mimeo.
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO/ IPLAN RIO. Programa Favela-Bairro. Comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas. Plano de Intervenção. Invento espaços, Anastassakis e associados. Mimeo.
RODRIGUES, Regiane Aparecida Almeida. Uma breve análise sobre as Políticas Sociais na Favela de Vigário Geral após a Chacina ocorrida em 1993. Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade Federal do Rio de Janeiro,Centro de Filosofia e Ciências Humanas,Escola de Serviço Social. Rio de Janeiro 2002/1.