Feminicídio Político - Um estudo sobre a vida e a morte de Marielles (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Artigo produzido por Renata Souza, conceituando o termo "feminicídio político", como parte de sua pesquisa de pós-doutorado pela Universidade Federal Fluminense. Renata é cria do conjunto de favelas da Maré, formada em jornalismo, mestre e doutora em Comunicação e Cultura.

Autoria: Renata Souza

Artigo na íntegra[editar | editar código-fonte]

Resumo[editar | editar código-fonte]

A ocupação das mulheres na “linha de frente” da política brasileira se dá a passos lentos e estéreis, ainda que o país tenha eleito a sua primeira presidenta em 2010, com a chegada de Dilma Rousseff ao poder. A dominação social e histórica do patriarcado sobre os corpos, vontades e desejos das mulheres gestou uma política infecunda aos propósitos de equidade de gênero em todas as esferas de poder. Assim, o artigo em questão trata da apresentação da pesquisa desenvolvida no pós-doc do âmbito do Programa de Pós-Graduação Mídia e Cotidiano da UFF. Pretende-se desvendar e articular os processos de luta política das mulheres, em especial das mulheres negras na tomada de poder. Além disso, estabelecer parâmetros empíricos e teóricos para a compreensão da política de visibilidade e/ ou invisibilidade social e midiática que tanto podem proteger quanto vulnerabilizar a própria existência dessas mulheres. Por isso, propomos a formulação e conceituação da inédita expressão “feminicídio político” para caracterizar, categorizar, denominar e classificar a execução sumária da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018. Uma mulher, favelada, feminista negra, LGBT, em ascensão política, que ousou desafiar os podres poderes das máfias existentes no Rio de Janeiro. Para tanto, abordaremos como método científico a autoetinografia, uma vez que a autora desta pesquisa é uma mulher, feminista negra, cria da favela da Maré, que trilhou sua trajetória política por cerca de 20 anos ao lado de Marielle Franco. Além disso, capturaremos a rotina e o cotidiano político a partir das narrativas discursivas da minha vivência, meu conhecimento empírico, como a mulher mais votada da esquerda do estado, com 63.937 votos, que ocupa o cargo de deputada estadual e é a primeira mulher negra presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

Introdução[editar | editar código-fonte]

A República Brasileira proclamada em 15 de novembro de 1889 apresentou contornos políticos com vistas à democracia, mas as mulheres se mantiveram alienadas dos seus direitos políticos. Entre eles, o direito de votar e ser votada. Em 130 anos, há apenas 87 anos, com o sufrágio universal, as mulheres puderam participar do processo político escolhendo seus representantes. Os mais de 40 anos apartadas das principais discussões políticas deixaram marcas profundas na construção dessas mulheres enquanto “sujeita política”. De acordo com o estudo “Estatística de gênero – indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 192 países, o Brasil ocupa a posição de 151ª em representatividade feminina no Parlamento, ficando atrás de países como Senegal, Etiópia e Equador. Segundo a ONU Mulheres, na América Latina e Caribe, dos 33 países, o Brasil amarga a 32ª posição no que diz respeito ao número de mulheres parlamentares. O Congresso Nacional atualmente tem 10,5% de mulheres parlamentares, ainda que por força de lei, desde 1997, os partidos tenham que reservar 30% do orçamento e do horário eleitoral para as mulheres.

Esse cenário demonstra, ainda no século XXI, a dificuldade de inserção das mulheres na política institucional. Seja por conta da construção de uma sociedade com base no patriarcalismo e no machismo, que submeteu as mulheres ao cuidado exclusivo do lar e da família, seja porque a sua inserção no mercado de trabalho também se revelou quase que um apêndice para o próprio homem. Além, é claro, do sexismo cotidiano que impede que essas mulheres sejam reconhecidas como sujeitos políticos e acaba por engajá-las no processo político como objeto, utilizada apenas em momentos táticos. Algo muito experimentado pelas feministas em partidos políticos. Mas, graças a elas, a ocupação da política por mulheres foi problematizada e a tentativa de incluí-las de maneira subserviente é por vezes questionada.

Há um outro vetor histórico importante para compreendermos esse processo de ocupação de feministas negras na política, sem por óbvio ignorarmos a fundamental luta dos movimentos feminista e negro. A sociedade burguesa, fundada no patriarcado branco, permite espaços, pequenas fissuras no seu sistema, para acomodar e melhor controlar as suas vítimas. São fissuras que funcionam como uma espécie de “pacificação dos conflitos”. Em outras palavras, quando se consegue furar as barreiras e estar nos espaços de poder, de alguma forma o legitima, e o próprio poder age para neutralizar estas tensões sociais. Sendo assim, a pertinência da pesquisa proposta se revela como um importante estudo sobre as mulheres na política e na sociedade de classes.

Os objetivos da presente pesquisa de pós-doutorado são o de desvendar os mecanismos engendrados na sociedade de classes, que impõe desafios quase que intransponíveis para a ocupação das mulheres nos espaços de decisão e poder. Pretende-se dessa forma avaliar como a política de invisibilidade e/ou visibilidade social e midiática são capazes de atuar tanto para desvelar o protagonismo das mulheres na política quanto para submetê-las a uma espécie de política de “segunda classe”. Isso porque, muitas vezes, as mulheres só são acionadas para ocupar o debate político quando os temas expressos na opinião pública correspondem às pautas ditas “identitárias”, como as questões de gênero e raça. Ainda que sejam temas fundamentais, que estruturam a sociedade de classes, os outros temas relativos à política econômica e financeira, e outras de caráter estruturantes como saúde, trabalho e renda, educação e segurança pública, as mulheres dificilmente são solicitadas a estarem na formação discursiva e política de tais debates.

Busca-se, desse modo, avaliar também o quanto a invisibilidade também vulnerabiliza a vida das mulheres à frente de processos políticos. Para tanto, objetivamos conceituar, caracterizar, denominar e classificar a inédita formulação da expressão “feminicídio político”, uma avaliação que se propõe compreender os elementos políticos e sociais que transformam a vereadora Marielle Franco, defensora intransigente dos direitos humanos, como um corpo matável na política brasileira. Nesse sentido, ainda que o nosso estudo de caso seja a execução sumária de Marielle Franco, não negligenciaremos as outras mulheres à frente de processos políticos, ainda que não institucionalizados, que também tombaram na luta por dignidade humana como, por exemplo, a irmã Dorothy Stang, que desafiou coronéis latifundiários no Pará. É importante notar que o Brasil é o país que mais mata defensores e defensoras dos direitos humanos no mundo. Em 2016, foram assassinados 66 ativistas no país de acordo com dados da Anistia Internacional.

Desse modo, objetiva-se ainda encontrar no cotidiano e na rotina parlamentar da pesquisadora que vos escreve, enquanto uma mulher, feminista negra e favelada, como os dispositivos de coação, invisibilização e silenciamento se processam quando uma mulher negra ocupa o espaço de poder. No caso, o parlamento do estado do Rio de Janeiro.

Abordagem teórica e metodológica[editar | editar código-fonte]

“Erguer a voz” é uma expressão da transição da mulher negra de objeto para sujeito - a voz liberta, de acordo com Bell Hooks. Particularmente, ignorava essa expressão até o lançamento do livro de Hooks: “Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra”, nesse ano de 2019. A formulação de uma teoria feminista negra na política é fundamental para a base teórica da presente pesquisa de pós-doutorado. Entretanto, aportaremos o debate teórico sobre as mulheres na sociedade classes e o racismo estrutural a partir de pensadores e pensadoras como Bell Hooks (2019), Sueli Carneiro (2019), Heleith Saffioti (2013), Judith Butler (2019), Angela Davis (2016), Ana Maria Gonçalves (2018), Grada Kilomba (2019), Silvio Almeida (2019), Muniz Sodré (2019), Stuart Hall (2003), entre outros.

O despertar para esta temática se deu a partir da experiência durante todo o processo de campanha eleitoral de 2018, em especial na reflexão feita em meu primeiro pronunciamento público, enquanto candidata, ao afirmar: “as mulheres negras estão deixando de ser objeto da política para tornar-se sujeito da política, e não sujeitas à política. E o nosso primeiro obstáculo é o pragmatismo político”. À época, analistas políticos mais experimentados diziam sem pudor: “Vocês, mulheres negras, são a mesma coisa”; “Mulher, negra, da favela disputam o mesmo voto da pauta identitária” - repetiam convictos por vezes negligenciando a luta de classes contida nas nossas bandeiras e reproduzindo o machismo, o racismo e o classismo característicos da nossa sociedade. Eis que nós, feministas negras, erguemos a voz e a cabeça - como fizeram nossas ancestrais Anastácia, Dandara e Aqualtune -, em um tempo de política do medo e da barbárie. Em um tempo em que é urgente e necessário formular, conceituar e classificar teórica e empiricamente o “feminicídio político” que vitimou Marielle Franco.

Importante notar que já na primeira eleição em que as mulheres puderam votar e ser votadas, em 1934, foi eleita uma médica chamada Carlota Pereira de Queiroz como deputada federal por São Paulo. Ela não surgiu do movimento feminista, mas participou da Revolução Constitucionalista em 1932, foi autora do projeto para criação dos serviços sociais. A feminista Bertha Lutz, eleita suplente, com a morte de seu titular, ocupou a vaga de deputada federal antes do Estado Novo. Antonieta de Barros foi a primeira mulher negra eleita deputada estadual no Brasil. Mulher, negra, jornalista, fundou e dirigiu o jornal A Semana, entre 1922 e 1927. Os eixos de sua campanha eleitoral, em 1934, traziam como elementos fundamentais a democratização do acesso à educação, a valorização da cultura negra e a emancipação da mulher. Ainda assim, a ocupação das mulheres na política se manteve estagnada, de 1934 até 2014, as mulheres só chegaram a 10% de ocupação no Congresso Nacional.

Esse cenário é mais dramático quando nos referimos às mulheres negras. De acordo com a intelectual Sueli Carneiro (2019), a relação entre mulheres negras e poder se configura como um “ensaio sobre a ausência”. Não há investimentos políticos e partidários para a ocupação dessas mulheres nos espaços de poder. Mas, quando há uma exceção na regra de exclusão das mulheres negras do poder, muitas vezes a visibilidade midiática aposta em estereótipos, no racismo, direcionando ad aeternum ao “não lugar”. Há que citarmos como exemplo a ocasião em que Benedita da Silva tornou-se governadora do Rio, em 2002. Carneiro chama atenção para as seguintes manchetes jornalísticas: “Mulher negra ex-favelada assume pela primeira vez o governo do Rio de Janeiro”; “Primeira governadora negra se muda com o marido para o palácio construído no século passado pela família Guinle, a mais tradicional representante da elite carioca”. Para Carneiro, “Benedita aparecia como ‘fora de lugar’”.

“Mais expressivas ainda foram as reações em relação à montagem de sua equipe de governo. Diziam as manchetes: ‘Governadora coloca sete negros no primeiro escalão’. Outra alardeava: ‘Priorização da escolha pela raça’. Na verdade, eram apenas sete pessoas negras nomeadas por Benedita num conjunto de 36 secretários, mas ainda assim esses sete foram considerados demais. As reações foram imediatas. Um dos leitores do jornal O Globo exigiu explicações sobre o critério cor negra da pele adotado pela governadora para a escolha de seu secretariado e acrescentou: ‘Certamente, se alguém afirmasse ter feito semelhante escolha priorizando a cor branca da pele, já teria sofrido toda sorte de retaliações’. O racismo é assim, cruel”. (CARNEIRO, 2019, 279).

Esses exemplos ilustram a maneira racista com que uma pessoa negra na política é exposta discursivamente nos espaços de visibilidade, em especial o midiático, em uma sociedade do espetáculo como a definida por Guy Debord (1997). Como Foucault (2012), defendemos que o discurso é poder e há uma fabricação na ordem discursiva caracterizada pelo direito de fala destinados a alguns e negado para muitos. É sabido que a dominação do discurso midiático é hegemônica para a manutenção do poder daqueles que herdaram o direito de fala. Estamos de acordo com a reflexão de que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2012, 10).

É importante notar que o racismo faz parte de uma estrutura gestada no seio da sociedade. Sendo assim, o conceito de racismo estrutural nos apresenta elementos fundamentais para que não o reconheçamos como algo isolado e individual. É o sintoma de uma estrutura de poder. “As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. (...) as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2019, 47).

A revisão bibliográfica é um dos instrumentos fundamentais do estudo em questão, porque há uma aposta na descolonização da produção intelectual e teórica do pensamento crítico. Para tanto, há o investimento de uma atenção orientada para as formulações feitas por pessoas negras e mulheres, em especial pelas feministas negras. O nosso estudo é dedicado a desarticular o epistemicídio. A filósofa Sueli Carneiro (2005) define a configuração do epistemicídio pela invisibilização e negação dos negros enquanto sujeitos do conhecimento. Desde a omissão da diáspora africana como à imposição do embranquecimento, há deslegitimação da contribuição dos negros na cultura da humana. Um apagamento orquestrado pela supremacia branca.

Desse modo, definimos como aporte metodológico desta pesquisa o estudo autoetnográfico. É de suma importância reconhecer o seu caráter científico e crítico para a produção de conhecimento autoetnográfico uma vez que se expressa enquanto gênero da etnografia e método de pesquisa qualitativa. As bases empíricas a serem abordadas nesta pesquisa de pós-doutorado partem das inquietações e experiências concretas da autora enquanto uma mulher negra na linha de frente da política brasileira. O exercício de autorreflexão, em um caráter propriamente de pesquisa-ação nos impõe um desafio epistemológico, intelectual e teórico. No entanto, o desenvolvimento da pesquisa em termos de memória, testemunho e ação direta são capazes de potencializar novas miradas do processo investigativo e procedimentos analíticos. Uma forma de documentar de maneira inédita as experiências políticas e sociais de uma parlamentar negra no exercido de seu mandato.

A autoetnografia é caracterizada por um “modelo triádico” (CHANG Apud SANTOS, 2017), por óbvio, com três determinações: “a) dos fatores vividos (a partir da memória), b) aspectos relacionais entre o pesquisador e os sujeitos (e os objetos) da pesquisa, e c) dos fenômenos sociais investigados; e por último a orientação do conteúdo” (SANTOS, 2017, 218). Desse modo, essas características são reconhecidas como “equilíbrio triádico da etnografia”. Tais mecanismos podem possibilitar a reflexão crítica que transita entre as relações “pessoal e político, sujeito e social, micro e macro”.

Sendo assim, a investigação em curso incorpora a experiência política da pesquisadora com uma memória testemunhal articulada no antes, durante e depois de ser eleita a deputada estadual mais votada da esquerda do Rio de Janeiro para ocupar a Assembleia Legislativa (Alerj), em um tempo de polarização e barbárie política. Como método, observou-se a visibilidade midiática no período, analisando sua linha discursiva e os pronunciamentos feitos no plenário da Alerj.

Resultados e discussões[editar | editar código-fonte]

“Erguer a voz e a cabeça” para as mulheres negras na política não é só um ato de resistência, de coragem, é também o comprometimento com a luta contra as desigualdades de gênero, raça e classe. Em todos os ritos nas casas legislativas, há olhares e expressões corporais ameaçadoras, os nossos corpos negros são tratados como invasores que devem ser anulados. Tanto que as ações conduzidas no fazer político sofrem represálias ao extremo. Quando denunciei o governador do Rio, homem branco e ex-juiz, à ONU e à OEA, por utilizar helicópteros como plataforma de tiros para snipers com ordens expressas de “mirar e atirar na cabecinha”, em operações policiais nas favelas, fui perseguida e ameaçada de cassação. É simbólico que o mesmo governador que participou da ação de quebra da placa da Marielle, tenha a arrogância de ordenar a seus correligionários que cassem e interrompam o meu mandato de deputada estadual na Assembleia do Rio, ignorando a autonomia dos poderes e o Estado Democrático de Direito. Em 130 anos de história da República, há apenas 87 anos, as mulheres letradas conseguiram o seu direito ao voto, ou seja, as negras não alfabetizadas votam há menos tempo. E, deixando ainda mais evidente as marcas de exclusão, foi a primeira vez que um governador ordenou publicamente que uma parlamentar fosse cassada. Só não foi novidade, no entanto, que uma represália política punitivista e severa recaísse sobre a base da pirâmide social: mulher, negra e pobre.

Vencer a disputa no partido de pretensa eficiência de um pragmatismo político às avessas, ainda que seja relevante, está longe de ser o passo mais difícil. No Rio de Janeiro, provamos o equívoco de tais análises, inclusive, elegemos quatro feministas negras. Talíria Petrone, como deputada federal; além de Mônica Francisco, Dani Monteiro e eu como deputadas estaduais. Mas o cotidiano nesses espaços dominados pela elite política, econômica e branca revela o quanto os herdeiros da Casa Grande não suportam a nossa cara preta, a cara de povo. Afinal, só percebiam a presença de mulheres negras a partir da sua cabeça abaixada atrás das panelas da cozinha ou lavando o banheiro.

Na Alerj, por exemplo, os reflexos do machismo e racismo atravessam ações cotidianas, seja quando tentam impedir Dani e Mônica de usarem o elevador exclusivo para deputados, ou mesmo na tentativa de desqualificação de nosso discurso no plenário. Eu, por exemplo, ao enfrentar os detratores dos direitos humanos de forma incisiva e assertiva, sou adjetivada como “metida”, “cheia de marra” e “nariz em pé”. A fala destemida, ousada e afiada é considerada insolente para a branquitude que sempre submeteu as mulheres negras ao violento silêncio. Ainda que muitos desses homens brancos não saibam a diferença entre “nariz em pé” e “cabeça erguida”, como o próprio deputado que quebrou a placa da Marielle e a emoldurou como troféu exposto em seu gabinete, hoje denunciado por práticas incompatíveis à atividade parlamentar. Por isso, a cada pronunciamento no púlpito do Parlamento, a primeira ação é erguer a voz e a cabeça.

Por isso, quando dizemos que ocupamos o Parlamento, a palavra “ocupar” não é à toa. Esse será nosso instrumento e ferramenta para fortalecimento das lutas sociais. “Ocupar” deixa nítido como esse espaço nos é refratário e também como devemos estar atentos ao seu processo de burocratização que tenta nos adaptar para limitar as lutas. Não podemos ceder à lógica do cafezinho, das conversas de corredor e das negociatas. Se, por um lado, ser parlamentar exige acordos com adversários, respeito às diferenças e concessões. Por outro, quando se pretende transformadora, não pode nunca ceder ao toma lá dá cá e as supostas benesses com as quais pretendem nos aniquilar.

Para concretizar a luta por uma sociedade que não se desumanize com base nas desigualdades sociais, é necessário a interseção entre teoria e prática, entre o Parlamento e a rua, alicerçada na luta para e pelos nossos: mulheres, povo preto, pobre, trabalhador, LGBTQI+. Se é importantíssimo estar nos espaços de poder, e certamente o é, só venceremos o racismo, o sexismo e o autoritarismo com o poder das ruas, do povo. E, em tempo de feminicídio político de Marielle Franco, “erguer a voz e a cabeça” para uma feminista negra é um ato de sobrevivência, mas também é um exercício de cura para a liberdade humana, a felicidade subversiva e a esperança revolucionária.

Desse modo, é urgente fundamentar a formulação de um novo conceito a partir da execução sumária de Marielle Franco, o feminicídio político. É relevante o empreendimento desse esforço de categorização da expressão “feminicídio político” uma vez que, em jargão jurídico, aquilo que não se denomina não existe. E o assassinato de lideranças femininas à frente da política é algo real em nossa sociedade e, em especial, no Brasil, mas pouco visibilizado e problematizado na mídia. O patriarcado deixou o legado de invisibilização das mulheres em vida e em morte. E não seria diferente com aquelas que ousaram, e ousam, estarem na linha de frente da política, seja essa institucional ou não. O feminicídio político traz consigo uma das faces mais cruéis da vulnerabilidade da mulher na vida política.

Ainda que não se pretenda tecer um estudo jurídico, como método, é importante tecer algumas considerações sobre a caracterização do próprio feminicídio, que se tornou um debate nacional apenas quando foi reconhecido por lei como um crime em 2015. Segundo as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres, o feminicídio denomina as mortes violentas das mulheres em razão de gênero, ou seja, por sua “condição” de mulher. No Brasil, há 13 assassinatos de mulheres ao dia, e a maioria é de mulheres negras, segundo o Atlas da Violência de 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo aponta o crescimento em 20,7% da taxa nacional de feminicídio entre 2007 e 2017. Em uma década, aumentou em 60% o índice de assassinatos de mulheres negras, enquanto o de mulheres não negras aumentou em 1,7%. Nesse sentido, o assassinato de Marielle Franco pode ser incluído nos índices de aumento de feminicídio negro no país. Sem dúvida o machismo e o racismo são gatilhos letais para as mulheres negras.

Considerações finais[editar | editar código-fonte]

A conceituação de feminicídio político parte da observação inquietante do papel da mulher na política e o contexto sobre o qual ocorre a execução sumária de uma mulher preta, favelada, LGBT em carreira política ascendente no parlamento brasileiro. Marielle foi eleita por 46.502 pessoas que compreenderam que toda a sua luta contra as desigualdades sociais, em especial as de gênero, raça e classe, é necessária para que a humanidade não se desumanize. Em mapeamento prévio, observou-se que a interrupção de sua escalada política se justifica porque Marielle ameaçou os podres poderes aliados às máfias. Algo que também custou a vida da juíza Patrícia Acioli, ao prender milicianos em São Gonçalo, em 2011; e da Irmã Dorothy Stang ao denunciar fazendeiros latifundiários no Pará, em 2005.

Uma das perguntas inquietantes é: Um parlamento com mulheres negras deixa de ser machista, racista e sexista? O nosso estudo nos leva a crer que a simples presença de mulheres negras no poder não acaba com o machismo e o racismo, mas pode pôr em xeque a misoginia e o preconceito racial ao possibilitar o reconhecimento de sua existência, da sua humanidade. Desse modo, a ocupação física de mulheres negras, por si só, visibiliza essas tensões. Isso porque a lógica desumanizadora machista e racista também está na sua capacidade de se camuflar e “pacificar conflitos”, papel feito com excelência pela suposta democracia racial difundida no Brasil.

É importante considerar ainda que as feministas negras têm um papel central no reencantamento para a luta política no país. A despolitização da política é uma estratégia articulada há tempos pelos grupos de extrema direita que chegaram ao poder em 2019, repactuando sua relação com a elite econômica privatista brasileira. Desse modo, a execução sumária de Marielle Franco reorientou os movimentos de mulheres, organizados ou não, para a ocupação dos espaços de poder. Uma vez que Marielle tornou-se símbolo e ícone mundial da luta das mulheres contra as desigualdades sociais, em especial de gênero, raça e classe.

Ao “erguer a voz”, uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito, de acordo com Bell Hooks, conclui-se que Marielle Franco desafiou os poderes políticos e econômicos dos homens da elite branca brasileira. Portanto, a busca por uma formulação que trafegue entre a práxis e a teoria para que possa qualificar, caracterizar, denominar e categorizar, enquanto feminicídio político, o que de fato representa a execução sumária de Marielle Franco para a sociedade é urgente. É uma questão de vida, de renascimento histórico, político e epistemológico de uma mulher preta.

Referências[editar | editar código-fonte]

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Ver também[editar | editar código-fonte]