Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos (resenha)
Resenha sobre a tese de doutorado de Rafael Godoi[1], doutor e mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), na qual são apresentados os principais argumentos do trabalho, além da crítica sobre o texto.
Autoria: Carmen Rosane Costa.
Sobre[editar | editar código-fonte]
Rafael Godoi, Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU). Concluiu pós-doutorado no Departamento de Sociologia da USP; especialização em Investigação Etnográfica, Teoria Antropológica e Relações Interculturais na Universidade Autônoma de Barcelona; bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Áreas de interesse de pesquisa em sociologia da punição, sociologia do direito, sociologia urbana, teoria sociológica e métodos qualitativos de pesquisa. Em 2016 recebeu prêmio de reconhecimento como melhor tese de doutorado defendida em 2015 pelo PPGS-USP e posteriormente tornou-se um livro publicado pela editora Boitempo. Em 2020, iniciou graduação em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul, UNICSUL.
Principais argumentos[editar | editar código-fonte]
Na apresentação, Rafael Godoi aponta o objetivo do trabalho de tese sobre as prisões em São Paulo. Compara a abordagem como uma triangulação cujos vértices são a prisão; em outro vértice, o conjunto de lugares, de extensões variadas e intersecções múltiplas – o estado de São Paulo, suas regiões, sua capital, seus bairros; e no outro, a
contemporaneidade e sua história recente.
A tese “Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos” através do que o pesquisador denomina por “deslocamentos” busca perquirir a compreensão sobre as prisões no espaço e no tempo. Rafael conceitua “deslocamentos” como mecanismos presentes na tessitura da tese e que se articulam ao longo dos diversos capítulos e seções da pesquisa. Os desdobramentos são empregados nos recursos metodológicos e no escopo de objetos empíricos a serem observados.
A prisão como objeto de pesquisa não é tomada por Rafael Godoi apenas como uma instituição de confinamento. Ele investigou também o funcionamento da “prisão em tempos (e lugares) de governamentalidade neoliberal – quando (e onde) o desafio que ela se
coloca é o de administrar grandes agregados populacionais, mais do que disciplinar indivíduos” (p.20). Portanto, é o encarceramento em massa o principal intuito perseguido
em sua tese. Além dos mecanismos textuais e das estratégias metodológicas utilizadas pelos desdobramentos, Godoi lança os suportes teóricos pautados , como exemplos,
autores como “Foucault e os conceitos sobre o poder disciplinar e o poder governamental”, e Deleuze, uma vez que soberania, disciplina e governamentalidade não se sucedem no decorrer da história, mas se articulam e se transformam no tempo e no espaço”.(pp.19-20)
“Marcos Gerais do Dispositivo Carcerário Paulista”.
Onde tudo começa. Os desdobramentos que sucedem a partir desse capítulo revelam-se como uma denúncia sobre a realidade no que diz respeito ao sistema processual penal brasileiro. O circuito que perfaz o sistema inquisitorial tem como ponto de partida o inquérito pelo qual se determina todas as demais partes dos processos e que mudará toda vida dos envolvidos pela “suspeita/acusação”. O primeiro agente é o policial civil que ao registrar a ocorrência e ,de acordo com a tipificação penal, ou o policial lavra um termo circunstanciado, que substitui o auto de prisão em flagrante e o inquérito policial, e encaminhar o acusado/suspeito para o Juizado Especial Criminal, ou formaliza a prisão em flagrante. Instaurado inquérito, em casos determinados como sendo prisão em flagrante, outros agentes do sistema de justiça entram no circuito, são os juízes, promotores e defensores. O inquérito policial, uma vez concluído, é encaminhado para o Ministério Público, que pode ou não formalizar a denúncia, e encaminhar a um juiz criminal, marcando assim o início da fase processual.
Dado prosseguimento ao processo, outro sistema se configura, o do sistema público de defesa, um dos objetivos que Rafael Godoi persegue ao longo da pesquisa, visto que o encarceramento em massa está diretamente relacionado a essa fase processual, visto que o acusado/suspeito quando não dispõe de advogado, nomeia-se um pelo Estado. A precariedade da estrutura da defesa pública potencializa tensões no campo prisional, uma vez que mais de 90% dos presos paulistas dependem desses serviços públicos
desempenhados pelos advogados e defensores públicos. Os Defensores são acionados por presos, familiares e por entidades assistenciais que atuam na esfera penal, como a Pastoral Carcerária.
O autor revela que na maioria das vezes, a prisão temporária ao ser confirmada pelo juiz, quase automaticamente, converte-se em prisão provisória sem prazo definido. Nesta fase, após instaurado o inquérito, o acusado é encaminhado para um Centro de Detenção Provisória(CDP), gerido pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Rafael Godoi evidencia que nessa fase do circuito, o CDP é visto como sendo o espaço no sistema penitenciário que possibilita diversas negociações das mais variadas mercadorias políticas e que podem ser transacionadas.
Configurando-se a condenação, o acusado é transferido para o Centro de Progressão Penitenciária para cumprimento de pena. No CPP, a pena pode ser estabelecida para
regime inicial semiaberto ou para uma penitenciária, quando é fechado, e o processo encaminhado a uma Vara de Execuções Criminais – em São Paulo, comumente chamada de VEC. O preso condenado continua tendo direito a um advogado de defesa para atuar em seu processo de execução penal; porém, nesta fase da sua trajetória, é o advogado da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) que geralmente atua. A FUNAP possui poucos advogados para a alta demanda dos presos, como consequência, os prazos processuais são desrespeitados ficando por anos parados.
Nas carceragens os presos comumente acionam os advogados ,através de bilhetes- as pipas, com “ajuda” dos Agentes de Segurança Penitenciários(ASPs). Desta maneira o vaso comunicante entre advogados e presos é facilitado pelos ASPs.
Aqui abro uma lacuna para explicar os “vasos comunicantes”. Os vasos comunicantes podem ser considerados toda forma, meio ou ocasião de contato entre o lado de dentro e o fora da prisão. São considerados vasos comunicantes as vias institucionalizadas, as vias da assistência religiosa, social ou judiciária; as previstas e reguladas pela legislação penal, além das vias informais e ilegais. Pelos vasos comunicantes ocorrem múltiplas negociações, determinações, poderes e disputas que operam a diferenciação do que entra e sai, dificultando ou facilitando acessos, registrando (ou não) as passagens e estabelecendo destinações, por isso o governo estadual realizou inúmeros investimentos para promover um maior controle sobre esse fluxo.
Fechada a explicação sobre os “vasos comunicantes” retomo a questão sobre “circuito” prisional.
Os presos na condição de provisórios não submetidos a julgamento aguardam na carceragem de delegacias, sob responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública
(SSP). As pesquisas de Rafael Godoi revelam que são nestas instituições as mais superlotadas e precárias do sistema e que oferecem piores condições de vida. Nelas,
milhares de pessoas perdem meses presas esperando julgamento nas prisões brasileiras. Em maioria são inocentes, ou condenadas a penas mais leves e, não raramente, quando condenados, já cumpriram, se não totalmente, boa parte da pena. Aí também encontram-se os já condenados que esperam por muito tempo a transferência, o “bonde”, para uma penitenciária. Supostamente as penitenciárias sugerem condições um pouco melhores do que os CDPs, principalmente, pelas escolas, cursos e oficinas de trabalho que algumas disponibilizam, ainda que de forma precária.
Dentro do sistema penitenciário existem ainda os espaços alternativos para segmentos específicos de presos, são os Centros de Ressocialização (CRs) unidades menores,
voltadas para presos considerados de baixa periculosidade e o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que vigora no Centro de Readaptação Penitenciária (CRP) de Presidente Bernardes, destinados aos presos considerados problemáticos, indisciplinados, onde ficam isolados em celas individuais e não desempenham nenhuma atividade
educativa ou profissional, ficam submetidos a rígidas restrições de visitação e comunicação. O CRP foi criado em reação à primeira megarrebelião do PCC e serviu de modelo para os presídios federais.
Vale abrir outro parêntese para explicar a distinção entre "presídio e penitenciária" que está relacionada ao tipo de pena que o acusado recebe. Nos presídios os réus possuem processos sem transitado e julgado e as penitenciárias abrigam presos já condenados pela justiça.
Por fim, no final do “circuito”, ao alcançar a liberdade seja via cumprimento integral da pena, livramento condicional ou progressão para regime aberto, no Estado de São Paulo, existem ainda outras unidades que fazem parte do sistema, são as Centrais de Atenção ao Egresso e Família (CAEFs). Somando-se ao sistema como um todo, esta fase também revela insuficiência da estrutura frente à demanda do fluxo penitenciário.
Ao sistema penitenciário paulista, não podemos esquecer que há também quatro unidades hospitalares, geridas pela Coordenadoria de Saúde (CS) da SAP.
Outros dados relacionados a população carcerária, modelos arquitetônicos e gestão prisional refletidos por Rafael Godoi enriquecem ainda mais a pesquisa sobre o sistema
prisional.
Godoi demonstra que a população carcerária paulista, segundo o DEPEN (2014), em dezembro de 2012, das 195.695 pessoas encarceradas , 97,5% estão alocados nas
dependências da Secretaria de Administração Penitenciária- SAP; sendo 93,5% homens. De acordo com o grau de escolaridade, apenas 9,6% têm o Ensino Médio completo e 1,1% chegou a cursar o Ensino Superior (completo ou não). Quanto à faixa etária, a população carcerária do estado de São Paulo é bastante jovem e em relação à cor, embora os dados sejam inconsistentes, como no caso da escolarização, a quantidade total de presos reportada por cor de pele/etnia são em maioria afrodescendentes.
Sobre a estrutura física, os modelos arquitetônicos seguem certos padrões utilizados pelo sistema carcerário paulista e que dispõe quanto à organização interna do espaço prisional. É na parte do raio da estrutura prisional que a maior parte da experiência do preso se desenvolve. Nele estão as celas, a quadra para o futebol e para o banho de sol, a barbearia, os tanques e varais para as roupas, aparelhos improvisados de musculação, etc. Quando o preso não está em trânsito está no raio, dentro ou fora da cela. Além do raio existem três outros espaços onde o preso cumpre sua pena. No castigo, no seguro ou na enfermaria. Entre o trânsito e o raio há as celas de Regime de Observação – ROs – onde os recém-chegados, depois de passarem pela inclusão e antes de serem integrados ao convívio, passam uma temporada confinados.
Já o modelo de gestão da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) é a estrutura organizacional piramidal cujo poder é delegado de cima para baixo e fortemente
hierarquizado. Nesse tipo de gestão os principais cargos distribuídos entre os servidores públicos são de acordo com as relações de confiança, por nomeações pessoais. O
governador nomeia o secretário; o secretário nomeia coordenadores regionais; os coordenadores regionais nomeiam os diretores gerais das unidades; os diretores gerais
nomeiam diretores de segurança. A diretoria coordena o trabalho dos Agentes de Segurança Penitenciária (ASPs), dos Agentes de Escolta e Vigilância Penitenciária
(AEVPs) e dos funcionários técnicos e administrativos, divididos em diversos setores e funções, além dos presos que fazem a limpeza e manutenção cotidiana do espaço prisional. O quadro técnico demonstra insuficiência para atender a população carcerária de todo o estado, de modo que os serviços de saúde são complementados em instituições públicas do lado de fora das muralhas. São os psicólogos e assistentes sociais, dentre outras funções que desempenham, os responsáveis pela realização dos Exames Criminológicos, demandados por alguns juízes de execução, antes de decidirem sobre a concessão de um benefício.
Outro corpo de agentes estatais que se constitui como uma elite do funcionalismo penitenciário é o Grupo de Intervenção Rápida (GIR), criado no começo dos anos 2000
como “tropa de choque” dos agentes penitenciários.
Um outro corpo de agentes informais que o autor também aponta são as facções prisionais, que atuam dentro e fora do ambiente institucional. Estabelecem a “ética do proceder” tanto em relação ao condicionamento das práticas e políticas da administração penitenciária, quanto em relação à experiência que se desenvolve ao redor e através das prisões de São Paulo, demonstrando desta maneira que a prisão aparece não como fonte, mas como um dos componentes principais do circuito.
Apreciação crítica[editar | editar código-fonte]
A resenha sobre “Fluxos em Cadeia” buscou apresentar ,resumidamente, o “circuito” punitivo descritivo e analítico presente na pesquisa de Rafael Godoi relacionado ao
funcionamento cotidiano das prisões, tanto pelo lado de dentro como pelo lado de fora, lugar onde ocorrem a múltiplas relações fora do muro prisional, desde a dinâmica da
execução penal e o particular regime de processamento que organiza o fluxo de condenados pelos espaços de reclusão no estado de São Paulo. Fluxos em Cadeia demonstra como o sistema processual promove uma sequência de desdobramentos, conceituado pelo o autor como “deslocamentos” ,sobre o encarceramento em massa ,que envolvem a mobilização e articulação de uma variedade de agentes situados tanto dentro como fora da instituição, revelando assim, uma tessitura de relações conflituosas, além disso a obra denuncia um sistema falho que ,devido incapacidade diversas, impactam nas camadas populacionais marginalizadas.
Referências[editar | editar código-fonte]
Mapa do sistema prisional, Penitenciárias (sap.sp.gov.br) , Secretaria da Administração Penitenciária (sap.sp.gov.br). Disponíveis em: Secretaria da Administração Penitenciária (sap.sp.gov.br).
- ↑ GODOI, R. (2015). Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. 2015,243 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.