Mônica Francisco - Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a partir do evento Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País, 2023.
Leia a fala de Mônica Francisco na íntegra, aqui.[editar | editar código-fonte]
Bom dia a todos, todas e todes.
Quero agradecer imensamente ao Dicionário de Favelas pelo convite. É uma honra a gente estar aqui mais uma vez, numa mesa tão singular como essa e após uma mesa tão importante que ouvimos aqui.
Sônia, você começa falando do desafio que a gente tem no governo Lula. E é tão importante que a gente tenha uma mesa majoritariamente de pessoas negras, para discutir esses desafios, dialogando com a produção que é feita pelo Dicionário, o sentido que é disputado na construção das narrativas dos verbetes, na disputa que a gente faz desse espaço material concreto. Muito simbólico e muito concreto, que é a Fiocruz.
Fiocruz que é esse espaço de produção de ciência, mas que é espaço em disputa é um enclave dentro de um conglomerado de favelas. É um espaço cheio de contradições; é um espaço disputado pela população que vive no seu entorno; é um espaço também de disputa por aqueles que ainda não conseguiram entender a importância do protagonismo dessas pessoas que são alvo das pesquisas, das ações nesse lugar e o quanto isso importa. E aí aquela boa máxima da representatividade, a representatividade é um desafio nesse governo Lula.
A representatividade é um desafio agora e no Pós Lula, porque a gente está discutindo como a gente garante nas bases democráticas (as que a gente tem, né?) porque não dá nem para a gente discutir que democracia a gente tem. A gente perdeu, em quatro anos, o processo mais caro que a gente tinha depois dos 21 anos de ditadura.
O desejo de reconstrução, pós Constituição de 88, de uma democracia que fosse radicalmente acessada pelos de baixo. Esse é o grande desafio: como que a gente alia representatividade, a presença concreta e a ação concreta das políticas públicas via governo Lula hoje? Depois de uma disputa acirrada nós ganhamos, mas ganhamos muito apertado. A gente sabe que o Brasil hoje é um país que flerta muito de perto com fascismo. Onde o racismo vem se demonstrando cada vez mais exacerbado, por um lado isso é muito bom pois a gente consegue também ver quem são os nossos inimigos e isso é muito importante.
Mas a gente tem muitos desafios: garantir a representatividade de fato, garantir que as políticas públicas cheguem num país destroçado pela covid-19, pelas políticas econômicas que jogaram 33 milhões de pessoas na fome, pelo desemprego porque são 17 milhões de pessoas desempregadas.
A gente tem um estado do Rio de Janeiro com uma população em situação de rua e é interessante, segundo o site Escola Brasil, a gente tem 17 milhões de pessoas vivendo e favelas no Brasil (8% da população brasileira), mas majoritariamente as pessoas são negras, pretas e pardas, e sua maioria mulheres. A própria Fiocruz, em uma pesquisa muito recente, diz que mais 50% dos lares do Estado do Rio de Janeiro são chefiados por mulheres e sua maioria mulheres pretas e pardas. Então o desafio que a gente tem, está muito bem representado nessa mesa. A gente precisa que o governo Lula a despeito da representatividade que tem tido mulheres, tendo mulheres assumindo posições importantes, ministérios... que a gente tenha políticas reais para as mulheres.
Eu não tenho dúvida que a construção do Brasil passa pela mão das mulheres e das mulheres negras. As mulheres negras são atravessadas por um processo histórico de uma existência em tragédia. O racismo, o sexismo, a desumanização extrema... tudo isso culminou com a execução de Marielle.
Eu não tenho dúvida que quando a Renata fala que Marielle desafiou os poderosos, não é que no mandato da Marielle ela desafiava as pessoas, o desafio maior é a própria ocupação de um espaço não destinado principalmente às mulheres.
As mulheres negras são uma ameaça. A existência das mulheres negras é uma ameaça numa sociedade racista, onde secularmente as mulheres negras sempre representaram uma ameaça.
As mulheres negras são a resiliência.
As mulheres negras são a reconstrução de possibilidade.
As mulheres negras são a possibilidade de liberdade concreta.
Eu estava pensando nessa manhã e você falou em Mutirão. Eu estava pensando nessa manhã, que ano que vem a gente completa 30 anos do programa favela bairro. Primeira grande intervenção em favelas aqui na cidade do Rio de Janeiro, fruto principalmente da organização dos mutirões das mulheres negras mobilizando. Porque veja, as mulheres negras que são propulsoras, são as que mobilizam. E hoje temos aqui mulheres negras e mães. Temos aqui nesta mesa uma mãe de um menino negro, vítima de violência letal desse estado. (fala com falhas)
Nós temos um patrimônio, as mulheres negras são uma Instituição neste país e são elas que tem seus próprios espaços e quando conseguem chegar aos espaços de poder, e é só olhar a nossa produção, e quando eu falo a nossa produção eu não tô falando da produção de Mônica, Renata e Mônica Francisco.
Avalie a produção das mulheres negras que ocuparam o Parlamento, avalie a produção das mulheres negras que chegam nos espaços de poder, na academia por exemplo a duras penas porque a gente sabe também que são espaços extremamente violentos.
Quando nós olhamos, e a Renata lembrou bem dessa mobilização na ALERJ, eu tenho certeza de que nesse período que nós vivemos de extremo... risco uma situação de extremo risco, violência. Vivemos uma situação extrema em pandemia, medo, insegurança, incerteza... Para uma população que vive em favelas e periferias que já experimenta medo, insegurança, falta de perspectiva, ausência de perspectiva de futuro, isso é o cotidiano de quem vive em favela.
A gente vai ressignificando isso, essa existência trágica. A gente vai ressignificando e ressignifica com cultura, ressignifica com organização popular, com solidariedade, a gente vai ressignificando com resiliência, a gente vai ressignificando com mutirão. Se não chega água, e é bem interessante porque logo aqui na capa tem as caixas d'água, a gente vai ressignificando. Se não tem água a gente dá um jeito de chegar. Se não tem casa a gente dá um jeito de fazer, se não tem laje a gente dá um jeito de bater. E com certeza as mulheres estão sempre na dianteira dessa organização, no enfrentamento as violências de estado.
A violência é letal é a que mais grita, é a que mais chama atenção. Então as mulheres negras, elas são uma instituição nesse país e Marielle ela torna-se esse símbolo do desafio histórico das mulheres negras aos poderes constituintes.
A ressignificação da nossa existência, porque num país em que objetivamente havia uma data pro final da presença da população negra nesse país. Havia uma data, havia um deadline, havia um projeto. Um projeto institucional de extermínio e ele continua. Ele tá em curso... Três, quatro, cinco, dez, vinte mulheres negras ocupando espaços de poder não vão transformar. Não serão quatro anos de governo Lula que vão transformar essa realidade, mas a gente pode diminuir o impacto que a gente viveu de desmonte nesses últimos quatro anos. Quatro ou cinco anos, mas é preciso que a gente organize uma resistência à quem ocupa espaços de poder neste mesmo governo, que todos e todas e todes que estão aqui lutaram para que ele se efetivasse. Porque nós sabemos que a amplitude desse governo também depõe contra nós. Não somos inocentes... também é um governo em disputa. E nós precisamos disputá-lo, disputá-lo e disputar os pós governo Lula. Talvez você possa dizer que é muito cedo pensar nisso, eu não acho.
Quatro anos passam muito rápido e a gente precisa pensar nos pós Lula, a gente precisa pensar em quem ocupou, nas bases que ocupou os últimos anos o Brasil. O governo do Brasil que fez sair dos esgotos o que é o pior, o pior dentro das nossas instituições, inclusive nos nossos territórios: o bolsonarismo não morreu. O projeto racista de extermínio não morreu. A resistência contra a presença das mulheres negras nos espaços de poder, produzindo. Eu chamo atenção: pesquisem a produção das mulheres negras no Parlamento nesse último período, não só no estado, mas nacionalmente, pesquisem.
Porque quando nós trazemos a nossa experiência da favela para dentro do Parlamento, e foi isso que nós fizemos, trouxemos para dentro da favela a nossa... eu chamo de essência favelada. A capacidade de lidar com tudo, a gente lida com o pior e com o melhor. É um papo reto, é o ficar vivo. É isso!
Quando a gente tá falando da disputa de linguagem, é isso. É o papo reto, e o Dicionário de Favelas ele dá sentido.
O dialeto que a gente constrói é o sentido das experiências vividas por nós, nos territórios hostis em que nós vivemos. A gente ressignifica dizendo que é espaço de potência, que é lugar de vida também, mas são territórios hostis para nós, são territórios extremamente violentos para nós e que também está em disputa por quem vive lá com os grupos armados, com violência extrema, um ano sem água. Como é que se pensa uma pessoa ficar um ano sem água? Eu fiquei um ano sem água.
Eu mesmo às vezes penso, eu conversando com a minha família, a gente pensa... caramba, a gente ficou um ano sem água. Você já pensou: um ano sem água? Um ano, um ano sem água com aquela solidariedade dos vizinhos, um puxa a borracha e bota um pouco na caixa... um ano. Isso não é violência? Né?
Então a gente vai, através do nosso dialeto, a gente vai dando um sentido. A gente tá falando do Papo Reto, a gente tá falando que é braço, que é sangue. A gente vai criando laços ali, né? A gente vai aprendendo com a nossa essência favelada a conviver com o que presta e o que não presta e a gente leva isso para o Parlamento. A gente traz as nossas experiências, atravessamentos históricos e seculares nos quais as mulheres vivem de desumanização, objetificação, de violência extrema num país que criou um projeto institucional de extermínio, anulação e aniquilação da sua população negra.
Como diz Leonardo Bofe, né? Que tem ódio dos pobres e vergonha dos negros que tem... Essa disputa que a gente tem que fazer. Esse é o nosso desafio para os próximos períodos: lidar com o racismo institucional, ampliar a presença das pessoas negras no poder, nós temos essa responsabilidade! Todos e todas e todes nós, temos responsabilidade de cravejar os Parlamentos do Brasil de mulheres negras, homens também, mas de mulheres negras.
Nós trazemos as experiências vividas ao longo da nossa existência de organização, de incidência concreta na realidade, os nossos projetos denotam isso. Eu poderia falar de milhares de projetos que nós fizemos, a gente poderia ficar aqui todo o período do evento falando dos projetos que fizemos e das ações que fizemos. Nós conseguimos feitos históricos, mas eu quero provocar vocês a irem pesquisar e fazerem um cotejo com a produção dos homens brancos que ali estão. Das ações que nós nos empenhamos concretamente, coletivamente, porque mulheres negras são corpo coletivo, são heterogêneas muito bem-dito por Renata Souza, são na sua individualidade um universo, mas como corpo coletivo em diáspora, nós temos uma responsabilidade e essa responsabilidade nós levamos para o Parlamento. Temos o desafio nesse governo Lula de garantir para as mulheres negras a possibilidade de uma existência menos dolorosa, menos angustiante. Temos a responsabilidade de discutir a vida das mulheres na cidade, é na cidade que tudo acontece. Mônica tá aqui.
É o acesso ao básico da saúde, é o acesso às mulheres idosas que não fazem preventivo, é... as mulheres estarem de fato no orçamento, no orçamento Federal, no orçamento Estadual, no orçamento Municipal. É preciso que as mulheres negras... as mulheres negras não estavam no orçamento do Estado! Isso é um crime, não ter orçamento para mulheres negras.
Esse foi o desafio de Marielle.
Marielle desafia os poderosos quanto se torna um luminar. Se torna representação e representatividade. Se torna paradigma quando dá a voz aos invisíveis.
Nós sabemos, são cinco anos. Cinco anos e muitas Marielles ainda vão, infelizmente... Infelizmente! Seja cassação, seja a construção de subterfúgios para garantir que não acessemos espaços. Todos os dias eles produzem Marielles na saúde, todos os dias eles produzem a nossa inexistência. Então, estarmos aqui nessa mesa (emoção) com um jovem negro de Nilópolis, com duas mulheres negras e uma mulher vítima de violência desse estado. Com duas mulheres negras que acessaram a universidade...
Eu entrei aos 38 anos e vi agora as meninas ridicularizando as mulheres de 40 que chegaram à universidade. Porque a gente vai buscar a resistência ao projeto de morte cotidiana. Tem a Dalva aqui, do Borel, minha líder e minha referência. Quantas mulheres negras aqui, vocês sabem bem. Porque nós como corpo coletivo sabemos quais são os atravessamentos e quais são as respostas.
Então disputar as narrativas, disputar os espaços de poder, disputar a nossa existência, disputar a possibilidade de sonhar. Eu ouvi de uma mulher negra aqui de Manguinhos, uma coisa que me marcou.
Ela falou: A gente só quer sonhar e até isso eles tiram da gente? Eu só quero sonhar, eu nem quero alcançar. Eu só quero sonhar que posso!
Então lembrar a memória de Marielle, que foi representação, representatividade, foi luminar... Não porque ela morreu, Marielle era de fato uma representatividade importante naquele espaço. Muita gente não conhecia, não sabia o que a gente estava produzindo ali, porque é assim e a gente vai vivendo a nossa vida. A gente elege as pessoas e confia que elas estarão de fato nos representando ali, e de fato, havia essa representação ali, esse respeito. Eu não sei se meu tempo acabou, mas só pra finalizar. Tinha uma coisa que, Renata vai lembrar, que me chamava muita atenção na Marielle. E eu lembro que eu estava disputando uma agenda da Mariele, porque eu apresentava um programa da Rede de mulheres, chamado: palavras de mulher. Ele existe ainda hoje. E o palavras de mulher estava sempre entrevistando mulheres que fazem a diferença na sociedade. Principalmente mulheres negras, mulheres de periferia. E eu estava disputando uma agenda da Marielle para fazer uma entrevista com ela. E eu falando com a pessoa que cuidava da agenda dela... falei: Poxa vida! A agenda da Marielle é tão apertada, caramba! Eu falava... caramba! E eu não consegui, tá? (risos). Não consegui, porque ela não teve agenda para a gente. E eu lembro que a gente estava no auge da intervenção federal na segurança pública aqui do estado e a gente coordenava o grupo. Marielle, vocês vão lembrar, foi eleita relatora da comissão que iria acompanhar a intervenção no âmbito Municipal. Pelo histórico da Marielle, pela sua defesa incondicional dos direitos humanos... E a gente fazia parte e coordenava ali aquele grupo que ia construir, começar a construir, o relatório.
A gente estava acompanhando a correria, o processo de intervenção. E eu lembro que nós tivemos uma reunião muito grande na FAFERJ, uma das maiores reuniões para discutir as estratégias relacionadas a intervenção federal. E eu lembro que eu fui para essa reunião e tal e falei, Mari, não precisa e tal. E ela: Se der eu dou uma passada. A famosa passada, né Renata? E aí... ela estava exausta. Eu falei: caramba! Não, Mari, pode ir para casa que eu fico aqui até o final e tal. E aí eu ficava pensando. E aí hoje depois de ser parlamentar e eu não sei se Renata ou Dani, ou as outras parlamentares experimentam essa sensação de estar em todas as agendas. Estar em todo lugar. E aí eu fiquei pensando, elaborando sobre... Eu falei, caramba! Hoje eu entendo... é a responsabilidade de reconhecer quem confiou, até quem não. Em que a gente pudesse ser essa representação no parlamento. Então cada agenda, não é só ir. Não é só passar, não é só estar. É o reconhecimento incondicional de que a gente tá ali representando um corpo coletivo e isso é um sentimento que só atravessa as mulheres negras. Eu tenho certeza disso! Esse senso de coletivo, esse senso de responsabilidade!
(aplausos)
Assista à gravação de Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País, aqui:[editar | editar código-fonte]
Biografia de Mônica Francisco[editar | editar código-fonte]
Mônica Francisco é uma mulher preta, periférica, evangélica progressista que sabe seu lugar de fala e o usará para fazer ecoar as vozes periféricas, feministas, LGBTQIs, faveladas e de todas e todos que vivem no Rio de Janeiro.
Nascida no morro do Borel, na Zona Norte do Rio, Mônica Francisco, 48 anos, é também pastora evangélica, formada em Ciências Sociais, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Militante dos direitos humanos, Mônica Francisco foi assessora da vereadora Marielle Franco.
A atuação da deputada Mônica Francisco é pautada por sua luta de 30 anos em defesa dos direitos humanos, na defesa da economia solidária, da agroecologia, no combate à violência contra mulheres, na promoção da igualdade de gêneros e contra o racismo.
Com uma vida forjada na luta e na fé, a deputada nascida e criada no Morro do Borel, na Zona Norte do Rio, chega aos 50 anos com uma trajetória construída no sobe e desce dos becos da favela, entre o trabalho como doméstica ou operária, os estudos, a família, a militância e a igreja, onde vive uma fé que se manifesta em defesa dos mais pobres e vulneráveis.
Na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, a deputada eleita com mais de 40 mil votos, é reconhecida pela capacidade de dialogar, a firmeza nas posições, a coerência na defesa do que acredita.
Formação e Entrada à Política Institucional
Ingressou em 2008 na UERJ para cursar Ciências Sociais. Foi por intermédio do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) que conheceu Marcelo Freixo, então pesquisador da ONG Justiça Global. Durante o mandato, acompanhou o trabalho de Marielle, então assessora de Freixo. A capacidade de dialogar, a firmeza, a coerência e a disposição em acolher todas as pessoas são traços marcantes da personalidade de Mônica Francisco, que conduzirá seu mandato centrado nos eixos: negritude, favelas, periferias, gêneros e direitos humanos.