Monica Cunha - Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País
Reprodução da fala de Monica Cunha, vereadora (PSOL) pela cidade do Rio de Janeiro, durante o evento em homenagem a Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018.
Autoria: Monica Cunha.
Fala de Monica Cunha na íntegra[editar | editar código-fonte]
Ainda é “bom dia” a todos e todas. Estou eu aqui, de cara para cima, tentando segurar mas fica muito difícil. Muito difícil. É… quero iniciar agradecendo o Dicionário de Favelas Marielle Franco, na pessoa da Sonia Fleury pelo convite. Agradecer pela primeira mesa, que eu também vejo como uma aula de representatividade nessa construção. E iniciar dizendo que eu estou vereadora da cidade do Rio pelo Psol, mas venho da representatividade que minha xará, Mônica Francisco, citou algumas vezes é que tem alguns pares meus por aqui, que é a representação de ser uma mãe, dessa violência, desse Estado, desse país, dessa cidade.
E aqui também tem Dalva, que é minha irmã, minha parceira na luta. A gente tem quase o mesmo tempo, né? De estar na luta, Dalva? Temos aqui também o Deley, de Acari. Dalva do Borel e Deley de Acari, que são os meus pares desde o início dessa jornada. E eles… junto comigo, tristemente, representamos uma enorme parcela dessa sociedade que vivem isso todos os dias. Semana passada tivemos aí, mais mães que nasceram dessa dor horrível. Porque todo dia, toda semana temos.
E hoje estar aqui, né… falando de Marielle é desse tema “da favela ao parlamento. Eu não vim da favela e acho que não posso me apropriar desse lugar. Mas me aproprio, sim, da violência que nesse lugar é cometida todos os dias. Porque, dessa representatividade que faço parte, a maioria dessas mulheres moram na favela. Por ser moradora de favela e negra, essa sociedade hipócrita e racista acha que tem que nos matar e nos encarcerar todos os dias. Então eu tive que aprender, pedir licença, pra que hoje eu possa estar falando desse lugar. Que é um lugar que tem alegria, que tem potência, sim. Estão aí Mônica Francisco, Renata Souza, Marielle e outras, mas que tem muita dor e que traz outras. Traz Dalva, traz Deley e outras… Ana Paula de Manguinhos e outras aí.
Então, por mais que a sociedade, tristemente, só quer enxergar e só quer fazer com que ela tenha mais dor, o empoderamento, ela faz questão de esconder… de negar que lá tem. e aí necessita com que nós façamos isso todos os dias. Botamos nossa cara, nos colocamos para dizer que queremos ficar vivos. Então estar aqui nessa mesa hoje como, não só Renata e Mônica falaram, na maioria somos mulheres negras, mas com um jovem negro, que pra mim… isso é fundamental. É a gente saber que tem um vivo, que tem um na luta, que tem um, de fato, que vai levar essa militância. Isso é de uma importância, porque a gente vê todos os dias, nos presídios da vida aí… desse país, e no cemitério aos montes. Aos montes. Com a desculpa de ser infrator, com a desculpa de estar no lugar errado na hora errada, mas que a gente sabe muito bem que só tem um problema que faz isso acontecer: que é o racismo. É o racismo que leva toda essa acometida por nós.
E o racismo é um problema nosso? Não, não é um problema nosso. O racismo é um problema do branco e é mesmo. E os brancos tem saber disso. Todos os dias. E não é só os brancos aliados que estão conosco, é todos. Que o empoderamento deles, o poder que eles ocupam, é que nos mata, é que nos encarcera e é que nos tira do lugar que é nosso como poder, como direito. Então o assassinato de Marielle Franco foi isso. A gente acaba ficando repetitivo, a Renata, Mônica Francisco, eu… porque é isso. Aquela mulher era um farol. Era uma luz. Chegava chegando. E isso incomoda. Incomodou. Porque ela não era só, ela era todas nós.
Quando nós fomos apoiar a candidatura, e muito falando do meu lugar, eu falei… eu lembro que eu falei com ela quando ela me chamou: “E aí? O que que a gente pode fazer juntas?” Ela: “As medidas de meio aberto são responsabilidade da prefeitura, do município.” Eu falei: “Tá aí! Tamo junto!” E a gente foi. Então, o que eu quero dizer com isso? Por isso que ela nos representava. Porque ela estava ali por uma luta de cada uma de nós. Eu iniciei porque as medidas em meio aberto tinha uma representatividade no município, então eu via necessidade de apoiá-la. E apoiei porque ela era uma mulher negra. Porque ela ia falar da minha dor com propriedade. Não precisava eu sentar com ela e dizer como tinha que ser a cara que tinha que fazer, porque ela já tinha. Ela podia não ter tido essa dor de ter tido um filho num sistema socioeducativo, de ter um filho assassinado, mas conviveu, enquanto moradora da Maré, com diversas outras - como o caso de Mônica e de Renata.
A gente, preto, não precisa ter que viver. A gente se olha e se sente e se reconhece. Por isso que a nossa luta não é nossa, é pra todo mundo. A gente, quando vai pra militância, não vai… o início pode ser alguma coisa, como foi no meu caso… muito particular, mas a gente logo se encontra e vê que a gente está fazendo uma luta em comum para todos. Todos os dias. E estar nesse lugar, que é na Câmara de Vereadores… e eu passei né, quando entrou o segundo momento, que Marielle passou o primeiro, e ter me tornado uma defensora dos direitos humanos. Foi ter coordenado a Comissão de Direitos Humanos, onde ela também fez por dez anos. E hoje eu estou na Câmara de Vereadores onde também ela esteve, por um momento muito curto e onde ela passou. Então eu estou vivendo… vivenciando dois momentos no qual ela viveu. E, enquanto defensora, cabe… nos dá um prazer enorme, porque a gente chega nos lugares e somos reconhecidas, de fato, por quem precisa. É maravilhoso olhar alguém dizer pra nós: “É. É isso mesmo. É sobre isso aí.” E hoje está dentro daquela casa. Que quando eu fui empossada no dia 2, agora, de fevereiro, eu fiz questão absoluta da posse ser do jeito que foi. De entrar ali de bonde.
Por que o bonde? Quando Renata fala na concessão que deram à gente que dão a nós para estarmos nesses lugares sendo uma por cada vez, foi isso que eu entendi quando Marielle falou isso numa vez… que mulheres negras, antes dela, porque ela não foi a primeira e nós sabemos disso. Tiveram outras antes de Marielle. Só que não em bonde. Era de dez em dez anos, de quinze em quinze anos. E quando Marielle entra, ela falou: “Não. Não dá mais pra ser assim. Não tem como ter uma mulher preta por vez.” Então quando eu vou sair candidata em 2020, automaticamente eu lembro dessa fala. Porque foi ela também que disse a mim, em 2018, antes do seu assassinato, que eu poderia estar nesse lugar. E naquele primeiro momento eu achei que ela estava louca, porque com o temperamento que eu tinha e tenho, eu falei: “Não. Não vai dar certo eu aqui.” Ela: “Dá, sim. Você tá há vinte anos na rua. Você tá há vinte anos reconstruindo a tua dor e a das outras. Como é que você não pode tá aqui? Você pode.”
Então, quando foi 2020, eu me coloquei como um dever, como um chamado dela pra poder lutar já que ela não tava mais ali. Enfim, quando eu boto o slogan da campanha “Vamos chegar de bonde!”, é exatamente isso: eu não tava chegando sozinha. Não era a Mônica Cunha. E sim, todas as mulheres negras. E sim, todas as mães de vítimas, mulheres negras desse país que tava entrando naquela câmara. Então quando eu fui pro encontro, já empossada… não, ainda empossada não, mas que eu acho que em outubro, que as mães… tavam as mães de alguns estados e de dois países diferentes me chamaram de vereadora do Brasil. E é isso: eu faço muita questão e fico muito orgulhosa.
Porque quando eu subi aquelas escadarias… eu, porque nesse mesmo dia também, uma outra colega, Luciana Boatê, do Psol, também assumiu junto comigo, e nós olhamos pra trás e enxergamos aquela multidão de pessoas… e em sua maioria pessoas, mulheres negras, todas nós numa corrente de braços. E quando entramos naquela casa, eles ficaram apavorados. Hoje, quando nós precisamos aprovar algum projeto de lei ali dentro, você necessita de 17 assinaturas dos vereadores. E quando eu vou pedir a eles, ou alguém da assessoria vai, eles falam: “Não, para a Mônica Cunha a gente já sabe quem é.” Eu acho ótimo. O objetivo era esse mesmo: é eles saberem quem é que tava entrando ali. Era mulher preta que a vida inteira ele viram aqui (aponta para a testa) “Mãe de bandido”, mas que foi votada pelo povo e tá lá por esse motivo.
Prestar conta com todo mundo que tá aqui não é muito difícil, tá todo mundo vivo. Eu tenho que prestar conta com o Rafael da Silva Cunha que é o meu filho que foi assassinado. Eu tenho que prestar conta com Marielle e tenho que prestar conta com cada filho de Dalva e com cada filho… outros, das minhas companheiras. Porque é essa representação que eu faço naquele lugar. É disso que eu falo todas as vezes que eu vou lá no púlpito, onde tá escrito “Marielle Franco”. É pedindo licença, pedindo respeito, para estar falando ali em nome dela e de todos os outros. Porque nós sabemos o que é juntar a dor com o parlamento, do luto à luta, a favela com a academia. Nós sabemos fazer isso muito bem. Nós sabemos o valor que isso é. Nós não somos vazias. Quando exigimos troca de nomes de rua, porque sabemos o valor que é pra nós ter essa representação.
E, por mais que tenhamos hoje muito a caminhar, não tenho a menor dúvida disso, mas a gente já avançou. Quando eu vejo no dia 13 março, a Fiocruz, essa institucionalidade, que é mundial… a Fiocruz fala para o mundo, com Manguinhos e Maré coladas, fazer uma homenagem dessas com um Dicionário chamado “Marielle Franco”, onde quando Renata fala da linguagem do Pretuguês, isso me deixou feliz. Porque é isso quando essas mães vão falar, nesses lugares que estamos aqui hoje… porque estar de microfone na mão é poder. Aí elas falam pra mim, que eu falo: “Vamo falar!”. E ela: “Mônica, eu não sei falar.” Eu falo: “Sabe, sim. Você sabe falar com o seu coração. Você sabe falar o que esse sistema racista faz conosco.”
Então é isso. A gente não precisa tá falando da intelectualidade. Não precisamos. É por isso que eles não nos querem. Porque nós somos muito mais. Muito. E hoje, dia 13 de março de 2023, a gente tá provando isso aqui dentro. Representando outras mulheres que também estão no poder. Mulheres trans. Porque é assim que a gente vai mudar. A gente já tá a caminho. Quando eu vejo o Saulo, esse menino - que pra mim é um menino - nesse lugar, junto conosco… isso é uma mudança. Isso tá dizendo… tá mostrando um diferente lá na frente que eu posso não ver, mas a gente tá construindo para isso. Amanhã, quando eu não estiver no livro do meu neto, no livro do filho dele, eu vou estar lá. Porque eu ajudei a construir. Eu ajudei a mudar. Como hoje eu tenho Angela Davis como referência, amanhã um neto meu vai ter a minha. Essa é a diferença de nos ter no poder. Essa é a diferença que fazemos para uma sociedade, para um país: ela não pára só na gente, ela é para todo o povo, sendo preto ou branco. Nós fazemos isso. Nós queremos isso.
Então, a Marielle foi assassinada. Mas a Marielle vive. Ela vive em nós. Ela vive em quem vai vir. Porque para fazer a memória é falar da verdade. Eu, quando falo do meu filho, eu não deixo que… não é só eu que tenho que lembrar dele: todo mundo tem que lembrar. Porque ele viveu. Ele existiu. Ele estudou. Eu gerei. Eu não tô maluca. Quando falamos da Marielle é a mesma coisa. Ela existiu. Então a gente não pode deixar esquecer ela. Então essa é a nossa função. E não só nós que estamos aqui, de vocês todos: é não deixar a nossa memória ficar esquecida. É não deixar a nossa história ficar esquecida. Porque nós construímos esse mundo. Então agora nós temos que contá-lo. Mas da nossa forma. Do nosso jeito. Com as nossas características. É isso. Muito obrigada.
Gravação do evento na íntegra[editar | editar código-fonte]
Biografia de Monica Cunha[editar | editar código-fonte]
Monica Cunha, mulher negra e mãe, é uma defensora de direitos humanos que trabalha na defesa dos direitos de adolescentes e jovens. Em 2003, após seu filho Rafael da Silva Cunha ter sido apreendido e colocado sob medidas socioeducativas no DEGASE e ela testemunhar as péssimas condições no centro correcional, Monica começou a denunciar abusos cometidos por agentes de segurança, violência policial e discriminação contra jovens afro-brasileiros. Assim, ela fundou o “Movimento Moleque”, uma organização de mães de jovens que tiveram seus direitos violados pelo Estado. Em 2006, seu filho foi assassinado por policiais no bairro Riachuelo. Monica também foi coordenadora da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e em 2019, coordenou a Comissão de Direitos Humanos da Alerj. Foi eleita como suplente pelo PSOL em 2020 e em 2023 assumiu o mandato como vereadora. Propôs a instalação da primeira Comissão Especial de Combate ao Racismo numa casa legislativa no Brasil, a qual preside desde abril de 2023. Desde então, tem pautado sua atuação na promoção de uma sociedade antirracista.[1]
Ver também[editar | editar código-fonte]
Chacinas em favelas no Rio de Janeiro
- ↑ CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Biografia de Monica Cunha.