Neusa Santos Souza
Neusa Santos Souza (Cachoeira, 1948 ou 1951- Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2008) foi uma psiquiatra, psicanalista e escritora brasileira. Sua obra é referência sobre os aspectos sociológicos e psicanalíticos da negritude, inaugurando o debate contemporâneo e analítico sobre o racismo no Brasil.
Autoria: Érico Andrade[1]
Biografia[editar | editar código-fonte]
Por Érico Andrade, professor associado da Universidade Federal de Pernambuco e Priscilla Santos de Souza, doutoranda em psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Baiana de Cachoeira, no recôncavo baiano, Neusa Santos Souza nasceu em 30 de março de 1951, e não em 1948, como encontramos em diversos lugares que falam da autora. Essa informação foi esclarecida recentemente por sua afilhada, Luíza Nasciutti, que é também pesquisadora e faz, atualmente, seu doutorado em ciências sociais, sob o título “Tornar-se NEUSA: Raça, subjetividade e memória a partir da trajetória e obra de Neusa Santos Souza”, isso para dizer dos enigmas e transmissões da mulher e intelectual que continua a inspirar a dizer sobre sua obra, sua vida. Ela viveu em uma família fortemente marcada pela religião de matriz africana, o Candomblé, e pela cultura afro-brasileira. De uma família simples, pobre, ela sai do recôncavo e, ainda muito jovem, entra na Faculdade de Medicina em Salvador e escolhe, fruto de suas afetações com o tema, a área da psiquiatria, tendo se formado em 1070. Sabemos pouco a respeito de sua vida antes de ingressar na faculdade, bem como temos poucas informações sobre sua família.
Faleceu em 20 de dezembro de 2008, no Rio de Janeiro. A constrangedora cena do seu enterro, onde um funcionário do cemitério perguntou se tinha alguém da família para guardar o número da lápide e teve como resposta o silêncio, transmite uma solidão, palavra tão marcada na vida de mulheres negras e que pouco representa as descrições dos amigos de Neusa Santos Souza ao relatarem sua receptividade e alegria em partilhar sua casa e vida com os mais próximos. O que podemos e desejamos dizer, é sobre a sua trajetória clínica, política e intelectual que se desenvolve agudamente com a sua ida ao Rio de Janeiro, que é a cidade na qual ela foi enterrada aos 57 anos de idade.
Neusa Santos Souza decide ir ao Rio de Janeiro continuar os seus estudos. De forma surpreendente, sem ter passado pelo curso de especialização, trajetória quase obrigatória para conseguir entrar no mestrado, ela adentra a pós-graduação e, com um tema que trouxe grandes debates dentro dos circulos psicanaliticos e do movimento negro no período, defende sua dissertação em 1981, que virá a se tornar o livro que, 42 anos depois, é retomado como leitura imprescindível para pensar a psicanálise e as relações raciais no Brasil. Na belíssima dissertação de William Pereira Penna, “Escrevivências sobre a memória de Neusa Santos Souza”, de 2019, encontramos notícias da trajetória da vida da psiquiatra entusiasmada, recém chegada no Rio de janeiro, que se envolve em uma série de atividades relacionadas à psicanálise. Vinculou-se ao Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI), em que a formação se articulava com sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais com perspectivas de atuação institucional. Também se vinculou ao Núcleo de Atendimento Terapêutico, o NAT, ao lado de Jurandir Freire. O núcleo era coordenado por Katarina Kemper e Hélio Pellegrino. De lá, seguiu para o Centro Psiquiátrico Pedro II — atual IMAS Nise da Silveira — que foi local de aglutinação de muitos psiquiatras militantes que começavam a construir uma das primeiras experiências da reforma psiquiátrica no Brasil. Nesse meio tempo, ela passou pelo Hospital do Engenho de Dentro, de que saiu após grandes divergências quanto ao tratamento ali aplicado, num momento importante na reforma psiquiátrica.
Última entrevista concedida por Neusa Santos Souza e a problematização das suas obras[editar | editar código-fonte]
Meu nome é Neusa Santos Souza. Sou psiquiatra, psicanalista. Vivo aqui no Rio e faço clínica psicanalítica e também tenho uma atividade de ensino, de transmissão. Eu trabalho dando seminários clínicos num hospital chamado Casa Verde, que é um hospital para pacientes graves, e a referência, assim, fundamental, talvez, na minha trajetória seja o fato de eu ter escrito Tornar-se Negro, que foi a rigor uma dissertação de mestrado e que virou um livro e que parece que hoje ainda é uma referência. As pessoas continuam me procurando muito em função desse livro e enfim, foi um livro que escrevi, portanto, há 25 anos (Souza, Programa espelho, 2008).
Apesar de nessa entrevista o sorriso acompanhar as suas palavras, Neusa Santos Souza parecia guardar certa distância de sua obra seminal Tornar-se Negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, quando destacava que o seu livro já tinha 25 anos naquela que seria a sua última entrevista, dada ao programa Espelho. Neusa Santos Souza:
Eu acho que é porque eu me detive, depois disso, no estudo de uma questão também muito marginal que é a questão dos loucos. Eu me detive em estudar e trabalhar e me desenvolver nessa direção. Então eu mergulhei fundo na questão da psicose, inclusive escrevi um livro também sobre a psicose e me detive nisso. Quer dizer, a questão racial está aí, está presente na minha vida ela é cotidiana, então eu estou confrontada com essa questão. Mas eu me recusei — e hoje é realmente uma exceção — a falar nessa questão por que eu não estou na militância cotidiana, aquela militância organizada. Então tem muita gente, muitas pessoas que estão nessa militância e eu acho que é hora de elas falarem, mesmo porque de direito elas têm muito mais razão de falar do que eu (Souza, 2008).
A recusa sistemática em falar do texto parecia se apresentar como uma forma de datar as ideias que ele continha ou pelo menos parecia mostrar um abandono da pretensão de que a psicanálise poderia contribuir para uma discussão sobre o sofrimento racial. Ela destaca que faz tempo que publicou o texto com aparente intuito de dizer: passou. Foi outro momento. “Não me atenho mais a esse tema”, insistiria ela ao longo da entrevista e na sua própria atitude de se recusar a dar entrevistas sobre o livro Tornar-se Negro.
Assim, escrever sobre Neusa Santos Souza, como Maria Lucia da Silva fala em seu prefácio da nova edição de Torna-se negro, “é uma honra e um grande desafio” (Souza, 2021, p.05). Uma honra em poder recuperar sua memória, escritos, e destacar sua contribuição intelectual depois de anos de silêncio sobre temas e textos que lhe foram importantes e permanecem, ainda hoje, insistindo em repetir. Um desafio pois, diante de sua morte prematura e inesperada, marcada pelo suicídio, de alguém que é descrita pela marca do sorriso, da amizade e generosidade em seus encontros. Mas também por suas declarações em entrevista ao programa Espelho, que tinha como foco principal seu livro de um “passado” onde ela se reconhecia como militante e que, apesar de “bem feito”, não era mais objeto de suas inquietações e dedicação. Definitivamente não é uma tarefa fácil. Diante disso nos restam algumas apostas, uma delas é insistir em pensar a obra de Souza com foco no seu único livro escrito sobre o tema do racismo sem desconsiderar os seus artigos posteriores que têm outras temáticas como fio condutor, nem muito menos o seu livro introdutório sobre psicose a partir da obra de Lacan. O nosso desafio é apresentar a obra da autora com foco no livro que ela não retomou, e, ao mesmo tempo, mostrar que seus artigos e sua breve introdução à psicose tanto carregam questões novas como não deixam de dialogar, ainda que indiretamente, com Tornar-se Negro.
A recusa sistemática em falar do tema central do seu livro, Tornar-se Negro, não parecia ser apenas um acerto de contas com a ideia, imposta pela branquitude, de que as pessoas negras só poderiam falar sobre o racismo. Sem dúvida nós, pessoas negras, estamos acostumadas a sermos convocadas para falar das marcas do racismo em nossa subjetividade como se não tivéssemos questões, contradições, conflitos, dilemas e sofrimentos que não se reduzem à esfera do racismo. É impossível não acolher essa reinvindicação porque ela compõe, entre outras coisas, a luta antirracista. Souza não precisaria mais falar do racismo. Certo.
No entanto, a sua fala na última entrevista se revelará mais contundente. Ela diz que “não republicaria o livro”. A pergunta que um texto sobre a obra dessa pensadora tem que enfrentar é: Por que Neusa Santos Souza não faria uma nova reedição do seu livro? Lembrando contudo que, paradoxalmente e a despeito de sua vontade, Tornar-se Negro foi republicado em 2021 pela editora Zahar. Por que ela não desejava voltar para as questões raciais por meio da psicanálise?
Duas indicações parecem estar presentes na fala dela. Com essas indicações iremos apresentar a sua obra no presente verbete. Por um lado, Souza faz uma defesa de um limite da psicanálise no que diz respeito às “generalizações” de caráter social, mais precisamente no que concerne à explicação do racismo. A psicanálise teria, nesse caso, um limite de natureza epistemológica. Por outro, ela entende que a psicanálise é radicalmente uma prática do singular e, nesse caso, ela só faria sentido como uma atividade eminentemente clínica. Aqui, temos uma compreensão da psicanálise circunscrita ao cuidado com a saúde mental. Esses dois pontos estão correlacionados e serão desenvolvidos ao longo do presente texto, mas vamos primeiro mostrar como Neusa Santos Souza pensou inicialmente a psicanálise como uma teoria crítica da ideologia, a exemplo de outros pensadores e pensadoras que em geral faziam uma aproximação entre psicanálise e marxismo.
Em Tornar-se Negro, Souza envereda pela análise da ideologia e da sua relação com o processo de subjetivação das pessoas negras. A obra se divide em seis capítulos. Os três primeiros capítulos são dedicados à relação entre ideologia e racismo, ao passo que os dois seguintes são dedicados ao relato e análise das entrevistas feitas com as pessoas negras em ascensão social. No último capítulo é apresentada a metodologia do trabalho — presente por se tratar de uma dissertação de mestrado.
Quando decide tratar do conceito de ideologia numa obra de psicanálise, Neusa Santos Souza se filia a uma leitura corrente na época, qual seja, a leitura da obra de Louis Althusser. É com base no conceito de ideologia daquele pensador que Neusa Santos Souza irá promover uma importante reorientação tanto no debate no interior da própria psicanálise quanto no debate sobre o próprio conceito de ideologia. Ela oferece uma fina definição de ideologia que articula as questões de classe com as questões de raça. É nessa perspectiva que é possível notar que não se trata de reproduzir o conceito de ideologia, tal como formulado por Althusser, mas de orientá-lo para a questão da raça, uma vez que, no contexto brasileiro, raça informa a própria compreensão de classe. Ou seja, a compreensão de Althusser de que a ideologia se inscreve sobretudo na economia libidinal, ou poderíamos dizer nas formas pelas quais se organiza a circulação dos afetos, é ampliada por Souza quando põe em cena a raça como aquilo que enquadra a circulação dos afetos ou daquilo que ela chama de emocionalidade no seio da sociedade brasileira.
Para Neusa Santos Souza a “emocionalidade” das pessoas negras no modo como elas traçam as suas próprias narrativas de si e dos seus processos de subjetivação é marcada pela ideologia da branquitude. As suas palavras precisam ser citadas:
Convém explicar que raça aqui é entendida como noção ideológica, engendrada como critério social de distribuição e posição na classe e na cultura. Apesar de estar fundamentada em qualidades biológicas, principalmente a cor de pele, raça sempre foi definida no Brasil em termos sociais de atributo social compartilhado por um determinado grupo social, tendo em comum uma mesma gradação social, um mesmo contingente de prestígio e mesma bagagem e valores culturais (Souza, 2021, p.48).
A ideologia se refere, nesse contexto, aos valores que orientam a vida social.
O ponto principal da autora é que a pessoa negra introjeta a inferioridade atribuída ao negro na mesma proporção que o ideal da branquitude determina, de modo impositivo, a única forma de se conferir identidade humana a uma pessoa. Isto é, a ideologia que a branquitude impõe é que a única forma de reconhecimento de si é por meio da assimilação dos valores da branquitude. Neusa Souza mostra que não tem como passar por gente sem se passar por branco: vestir, portanto, a “máscara branca”, para recuperar aqui a expressão que dá título a obra de Fanon e que aponta para o embranquecimento como uma estratégia de sobrevivência das pessoas negras numa sociedade de hegemonia branca.
Para desfazer a ideia de que o racismo é apenas uma questão de classe, conforme certa compreensão do marxismo poderia levar a acreditar, a autora argumenta que o racismo informa os modos de subjetivação das pessoas no Brasil. Em seu livro Tornar-se negro, ela apresenta dez entrevistados, entre homens e mulheres, que preenchem o requisito de serem negros, brasileiros e em condição de mobilidade social ascendente. A sua ideia consistia em demonstrar que mesmo pessoas negras que conseguiram mudar de classe social continuavam sendo vítimas do racismo. É nesse sentido que ela escreve:
A história social da ascensão do negro brasileiro é, assim, a história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais. É a história da submissão ideológica e um estoque racial em presença de outro que se fez hegemônico. É história de uma identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação (Souza, 2021, p.53).
A afirmação da branquitude como universal e parâmetro para o humano implica, por um lado, a construção da raça negra e, por outro, a sua própria renúncia. É sobre essa ambivalência que a obra se envereda.
O ponto central é que, mesmo ascendendo socialmente, a pessoa negra é negra, ou seja, permanece racializada. Nisso, Neusa Santos Souza segue a posição de Fanon que diz que a pessoa negra é sempre identificada como negra numa sociedade marcada pela hegemonia branca, independentemente de sua classe social. Mesmo com capital, decorrente da ascensão social, a epiderme — para usar outra expressão de Fanon — mantém-se como critério de demarcação racial e, claro, de exclusão social. A alternativa para a sociabilização é a negação da origem. Nessa negação da história em que, segundo Souza, ele se afasta “dos seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de tornar-se ‘gente’” (Souza, 2021, p.46). A afirmação de algo requer a negação de outra coisa. Afirma-se, neste caso, a identidade entre ser branco e a humanidade para obrigar as pessoas negras a viverem os parâmetros da branquitude.
De algum modo o mito do negro é, segundo Souza, a criação do negro e a sua renúncia. Ela é precisa quando diz que o mito é “uma convergência de determinações econômica-político-ideológicas e psíquicas” (Souza, 2021, p.54), graças às quais se cria o negro como contraponto ao branco.
Para Souza, a “descoberta” de ser negra é mais que a constatação do óbvio (descortinar os véus):
Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades (Souza, 2021, p.54)
O reconhecimento da especificidade da condição da pessoa negra leva Neusa Souza a posicionar racialmente alguns conceitos da psicanálise. Ela sublinha dois: o narcisismo e o ideal do ego. Primeiramente, o ideal do ego para o negro é branco (Souza, 2021, p.65) porque ele concentra em si todos os predicados por meio das quais o reconhecimento se dá em termos positivos, dado estarem diretamente ligados aos estamentos com destaque social. Há uma indissociabilidade entre o fator econômico e ideológico, independentemente da ascensão econômica a pessoa negra permanece no estigma de inferioridade cujo lugar, a psicanálise neste ponto tem razão, se inicia no seio das relações familiares (Souza, 2021, p.69).
A tendência das pessoas negras é, portanto, de se negarem, por meio de uma adaptação à branquitude ou por um processo de autodepreciação. Nesse sentido, a punição superegóica incide sobre as pessoas negras, especialmente num ambiente de classe alta. Ao ser humilhada por um grupo de pessoas brancas, uma das entrevistadas de Neusa Souza se declara impotente diante dessa estrutura de imposição e o caminho para a melancolia é aberto. O ponto é que mesmo num ambiente de classe alta os afetos são crivados pela raça, de sorte que relações são rompidas por pressão familiar que é, na verdade, pressão racial. No entanto, persiste o desejo, não raramente frustrado, como norma de conduta superegóica em virtude da qual a autodepreciação é sintonizada com a manutenção do ideal do ego, em que as referências do bom, do belo, os símbolos de bem e mal, do que devemos ser ou não ser em uma sociedade, estão diretamente relacionados às características de que pessoas brancas têm o valor do bom e idealizado e as pessoas negras do que é ruim e, portanto, indesejado. Em outras palavras, as normas de conduta social constrangem as pessoas negras a se auto desvalorizarem por não corresponderem aos ideais da branquitude.
Não se trata de um fenômeno isolado e isso condena muitas vezes a pessoa negra a assumir as fantasias ou máscaras brancas que lhe são impostas pela branquitude. Com essa chave de leitura podemos entender porque Luísa (entrevistada por Neusa Souza) incorpora o fetiche da mulher negra sedutora. O recurso de sobrevivência das pessoas negras muitas vezes é vestir a máscara branca ou estar de acordo com a expectativa que a branquitude deposita sobre elas. E quando as pessoas negras, sobretudo as mulheres, não vestem a fantasia de sedutora, no âmbito intelectual toda sociedade parece estar à espreita para apontar uma falha. Isso fomenta nas pessoas negras uma forma de angústia, como se não pudesse falhar quando sabemos que falhar é uma das características do humano, para recuperar um conceito que Neusa Santos Souza trabalha no artigo “A Angústia na experiência analítica”, de 2005. Angústia que atravessa analista e analisante e é com ela que nos deparamos no trabalho analítico. Uma condição paradoxal, desafios que o sujeito tem diante do encontro com a “opacidade do desejo do outro” (Souza, 2005, p. 15).
No artigo mencionado acima, Neusa Santos Souza descreve por uma ótica lacaniana os principais vetores da angústia e como esse afeto pode ser manejado na clínica respeitando a singularidade de cada processo psicanalítico. Se com Souza é possível entender a angústia como “a experiência do sujeito lançado aí, entregue às feras e ao desejo do Outro” (Souza, 2005, p.21), é importante notar que a angústia das pessoas negras está diretamente ligada ao fato de que elas não podem realizar o desejo da branquitude. Ou seja, ainda que a angústia seja abordada no artigo de 2005 por uma dimensão da singularidade e não por um enquadramento mais generalista, esse afeto pode ajudar a compreender a posição das pessoas negras numa sociedade racista que exige delas que sejam o que nunca poderão ser, a saber: infalíveis. Ou seja, é possível encontrar no artigo sua relação direta com o trabalho com psicóticos — tema sobre o qual a obra de Neusa Santos Souza se volta após a publicação de Tornar-se negro —, como uma discussão mais geral sobre a relação íntima entre angústia e psicose sem que isso nos impeça de reconhecer que o modo pelo qual a autora pensa as questões da psicose pode se aplicar para a explicação da angústia das pessoas negras quando tentam, em vão, corresponder ao imperativo infalibilidade.
Inúmeros ditados populares e expressões racistas, as quais nos recusamos citar, tentam aterrorizar as pessoas negras as constrangendo a agirem como se não pudessem falhar porque a expectativa da branquitude é na verdade uma certeza quanto à vulnerabilidade e à falhabilidade das pessoas negras. Ou seja, a pessoa negra está condenada a falhar e lidar com isso lhe gera uma angústia muito forte. Não que o ser humano não seja vulnerável, mas é que a vulnerabilidade é atribuída apenas às pessoas negras e especialmente às mulheres negras.
O texto de Neusa Souza é uma investigação sobre, por um lado, a negação da pessoa negra de sua própria identidade, com uma incidência mais forte sobre as mulheres negras. Por outro, é uma investigação sobre como a branquitude se impõe como modelo projetivo para a identificação da pessoa como pessoa. É uma obra de psicanálise, mas cujo foco é uma forma de sofrimento que está ligado à condição de ser racializado como inferior. Esse sofrimento tem claramente uma base material anunciada por Neusa Souza logo no início de sua obra (Souza, 2021, p.48). Essa base material no Brasil está marcada pela história escravista que organizou a produção, distribuição e acúmulo de propriedades de acordo com o critério racial. As suas palavras são certeiras: “A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e institui o paralelismo entre cor negra e a posição social inferior” (Souza, 2021, p.48). Quando o caminho de ascensão social está condicionado aos padrões da branquitude, esta é tomada “como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social” (Souza, 2021, p.48).
O ponto é que não se pode discutir racismo sem reconhecer a base material que lhe amparou no Brasil e é por isso que obras marcadas pelo materialismo histórico como método de abordagem da sociedade brasileira figuram em abundância em seus escritos. Será que essa consciência das questões materiais e sociais teria feito Neusa Souza desistir de retomar esse texto por não se acreditar mais capaz de tecer essa análise por meio da psicanálise? Será que ela acreditava que outras áreas seriam mais promissoras para o estudo do racismo do que a psicanálise? Será que ela compreendeu que a psicanálise não explica de modo geral a condição do negro e que por isso o seu livro já recorria a obras de pensadores ligados a outros domínios do conhecimento?
Neusa Souza nos oferta algumas pistas na sua última entrevista. As questões materiais e os seus impactos na vida das pessoas negras foram centrais no processo de subjetivação das pessoas negras, mas Souza acredita que tais questões se referem a um fato que é, de algum modo, contingente, que é a raça. Afinal, se trata de uma criação cujo propósito era a exploração das pessoas negras. Essas questões efetivamente concorriam para a compreensão da “neurose” brasileira, como diria Lélia Gonzalez (1984), e estavam presentes nas entrevistas que figuram no livro da Souza como uma espécie de prova de como a subjetivação das pessoas negras é atravessada pelo racismo. Com efeito, outros domínios da psicanálise ajudam a compreender outras formas de sofrimento que não estão ligadas substancialmente e quase exclusivamente às variáveis sociais, mas indicam outro campo de atuação. Estamos falando das psicoses amplamente estudadas pela autora. Assim, a passagem das questões da neurose, da neurose negra, para as questões da psicose provavelmente impulsionou a obra de Souza a tomar outro rumo. Ela parecia querer descortinar novos horizontes nos quais a individualidade, como ela costumava frisar, é completamente central para a compreensão e tratamento clínico.
As “generalizações” que, segunda Neusa Santos Souza, estavam presentes em Tornar-se Negro perdem espaço para uma análise do individual, poderíamos dizer talvez uma análise do singular, para a qual se voltam os seus estudos posteriores ligados especialmente à psicose. Uma obra agora focada sobretudo na teoria e clínica psicanalítica, mas que, quando mergulha na singularidade, não hesita em destacar também as questões de gênero ligadas às experiências de ser uma mulher negra. Apesar de se afastar do tema das relações raciais, a autora mantém a pujança e originalidade do seu pensamento na mesma medida em que não exclui de seu enquadramento reflexivo as questões raciais. Longe de simplesmente desviar a rota das ponderações sobre a racialidade, Souza parece deslocá-las para um terreno mais preciso ou menos generalista e que indica uma forma mais específica de subjetivação: a da mulher negra.
Em A ciência e a verdade: um comentário, Neusa Souza, junto aos colegas Ana Beatriz Freire e Francisco Leonel Fernandes, investiga minuciosamente o texto “Ciência e verdade” de Jacques Lacan, um diálogo com a filosofia, o campo científico, a religião e a magia. A autora assina 8 textos dos 17 artigos do livro. Três pontos chamam a atenção no livro. O primeiro é a importância que Souza expressa em apontar certa continuidade do pensamento de Lacan da obra Freudiana, apontando suas diferenças e viradas teóricas, sobretudo no que se refere ao campo do sujeito e sua constituição. Se em um primeiro tempo ela aponta para um retorno à Freud de Lacan, que demonstra que a divisão do sujeito, ou seja, um sujeito dividido, não completo, faltante, que não sabe tudo de si; o segundo ponto é a dedicação em apontar a característica ética da psicanálise e sua teoria do sujeito, a partir da relação com as noções de desejo, saber, verdade e ciência, marcando sua diferença com o Cógito Cartesiano e o sujeito da ciência. O conceito de causa em Lacan se refere à inscrição do inconsciente, como linguagem, que se dá a partir da relação e existência com o outro. Esse aspecto se encontra em todo o trabalho de Souza, em sua leitura clínica da relação do sujeito com a realidade e os efeitos que promovem o fenômeno da psicose. O terceiro aspecto que se destaca é o exercício filosófico e de articulação clínica de Souza com os desdobramentos da causalidade, compreendendo que, apesar de ser atravessado pelo desejo enigmático de um Outro, o sujeito deve assumir sua própria causalidade.
A autora se atém a outro fator que concorre de modo diferenciado para o sofrimento das pessoas negras, que é a questão de gênero. Ao lado das questões raciais e sendo enquadradas por elas, as questões de gênero não apenas não serão sonegadas na análise de Neusa Santos como serão um dos seus vetores principais. É o que podemos constatar no seu artigo publicado originalmente em 1998 e reeditado na nova edição de Tornar-se Negro, cujo título é “O estrangeiro: nossa condição”. Num texto que se propõe a discutir a relação entre a psicanalista e aquela pessoa submetida ao processo de psicanálise, ela, mesmo sem mobilizar o conceito de ideologia, recorre a uma compreensão da norma social para mostrar as opressões de gênero. Afinal, afirma ela “a norma é sempre o masculino, o fálico, o adulto, o europeu” (Souza, 2021, p.126). Ela faz as questões de raça serem atravessadas pelas questões de gênero. E é nesse sentido que um clássico termo do pensamento de Freud será mobilizado neste mesmo artigo para pensar as questões de gênero por uma ótica racial e mostrar como o feminino pode se apresentar como aquilo que é estranho ao enquadramento psicanalítico, visto que ele expressa “o excedente, a desmensura, o que não se deixa reduzir, o que com a norma, não tem medida comum” (Souza, 2021, p.126).
Das Unheimliche ou na sua tradução para o português o Infamiliar/Estranho, um importante texto de Freud de 1910, que nos convida para pensar o incômodo/infamiliar remeteria a algo que é assustador, ao mesmo tempo que bastante familiar, velho conhecido, sendo o processo de recalque o responsável por essa aproximação, o que ficaria expresso pelo sufixo un presente nessa palavra. O estranho familiar nos é apresentado por Neusa Souza na sua relação com o estrangeiro, em um texto que alia o rigor teórico com uma escrita extremamente poética. Ao falar do estrangeiro que desde sempre vive em nossa casa, aponta: “sendo o mais opaco, o mais escondido, é ao mesmo tempo, o mais estranho e o mais interior […] por estar tão em nós, tão escondido em nós, se perde aí — tal qual um bem precioso que, de tão bem guardado se perde” (Souza, 1998, p. 156).
Na esteira de Freud, a autora lembra que existem algumas formas, figuras do estranho, sendo que o que nos concerne particularmente em seu texto é a sua referência ao estranho como feminino, aquilo que escapa à norma: “O feminino pensado como diferença, alteridade – o feminino como Outro. Outro sexo, Outra sexualidade, outro modo de gozo, outra raça, outro país, outra língua. O feminino é o Outro que se opõe ao mesmo, resiste ao um da norma” (Souza, 1998, p. 159). A norma à qual Neusa Souza se refere inclui não só o masculino e o fálico, mas o adulto e o europeu. O que isso contribui para nosso tema? A mulher negra poderia encarnar a estrangeira por ser mulher: o estrangeiro sendo aqui articulado ao feminino, e a norma ao masculino e fálico.
Notadamente, este feminino não se refere ao corpo anatômico, uma vez que não é exclusividade delas e não é impedido a eles. A mulher negra pode encarnar a estrangeira, ainda mais, por ser negra, estrangeira em relação aos brancos, na medida em que a norma, apontada por Neusa Souza de maneira um tanto genérica, mas reconhecível por nós, seria constituída pelo europeu. Podemos dizer que aqui o negro é o estrangeiro do branco! Parece-nos possível afirmar que a mulher negra representaria uma das figuras do estrangeiro, tanto para os homens — brancos e negros — como para as próprias mulheres brancas. De tal modo que, no tocante ao estrangeiro, ela se tornaria reincidente: mulher e negra. A tal ponto que não podemos julgar ser um simples acaso a coincidência dessa face duplamente estrangeira que a mulher negra representa, com a dupla discriminação: tanto racial quanto de gênero.
No rastro de sua apresentação, chama atenção como ela nomeia, ainda na entrevista do programa Espelho, a continuidade de seus interesses nos estudos psicanalíticos, “uma questão também muito marginal que é a questão dos loucos” os quais talvez pudessem ser compreendidos com aqueles que são estrangeiros no mundo por estarem imersos nas suas fantasias; como irá explicar Neusa Santos Souza (Souza, 2008). Assim, ela assinalou o tema que se dedicou ao longo de sua vida em diferentes espaços.
Neusa Santos Souza escreveu em 1991 um livro, republicado recentemente, A psicose: um estudo lacaniano. Um texto elementar, apesar de introdutório ao tema diante da perspectiva lacaniana. Considerando que uma de suas atividades tratava-se em dar seminários clínicos na Casa Verde, uma maneira generosa de dividir seus estudos, transmissões e experiências clínicas. Penna (2019) relata que em 1994 inicia o núcleo de assistência em saúde mental na Casa Verde, um hospital situado em Botafogo, no Rio de Janeiro. Esse núcleo oferece uma série de dispositivos de tratamento no campo da saúde mental, tratamento caracterizado pelos cuidados singulares. Neusa Santos Souza atuou durante os 10 últimos anos de sua vida nessa instituição, desenvolvendo atividades de transmissão da psicanálise e coordenando seminários regulares. Ainda hoje o núcleo funciona e mantém atividades semelhantes às realizadas por ela, mantendo viva sua memória e suas transmissões.
Ainda sobre seu livro, A psicose, cotejando com vinhetas clínicas, ilustrativas de como a psicose se apresenta em seus pacientes, seus quadros clínicos, Neusa Souza organiza de forma objetiva e didática, em diálogo com Freud e Lacan, as relações da psicose com os três registros, simbólico, imaginário e o real, três unidades interligadas e essenciais para realidade humana, segundo Lacan. O simbólico é a dimensão da nossa experiência humana que é organizada a partir da linguagem e que permite a troca nas relações sociais; o imaginário é pensado a partir da relação dúbia que o humano tem com a imagem do outro e seu próprio corpo; e o real como aquilo que não pode ser simbolizado, algo da ordem do desconhecido. Esses registros auxiliam na compreensão de como as pessoas se relacionam e se organizam com os acontecimentos e a realidade.
Para Neusa Santos Souza a psicose era resultado de uma catástrofe do encontro do sujeito com a linguagem, de onde emerge um sujeito à deriva, “sem arrimo do significante”. Esse “acidente silencioso” terá consequências sempre ruidosas.
A autora se coloca à altura do desafio em sua incursão pelos estudos da Psicose: ela nunca recua e sempre se reposiciona no trabalho clínico diante das contradições que surgem. Em seu artigo, O sujeito suposto saber: uma objeção à transferência na psicose? (1999), ela comenta o caso de Marcos, um paciente que propôs uma nova oficina:
Havia muitas e variadas oficinas na Casa Verde, mas para Marcos faltava uma: uma Oficina de Vozes. Não, não se tratava de organizar um coral, mas sim de criar um espaço e um tempo reservados em que se pudesse falar do estranho — um estranho que se ouve, que se impõe como voz, “as vozes” — para se fazer alguma coisa com isso. E o que fazer com isso, em suas mais diversas possibilidades, concerne ao campo da significação, campo onde se encontra todo sujeito — neurótico ou psicótico — que se dirige ao analista (Souza, 1999, p. 114, apud Penna, 2019).
Os residentes e trabalhadores da Casa Verde relatam que a oficina de ouvidores de vozes tomou corpo e foi levada também para o Instituto de Psiquiatria (IPUB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde um grupo de ouvidores se estabilizou e acontece até os dias de hoje.
Autora de diversos artigos em diálogo com o campo psicanalítico, Neusa Santos Souza insiste em pesquisar, relatar e transmitir seu estudo sobre a Psicose. Apesar de não estar associada formalmente à academia, nem ter vínculo com escolas psicanalíticas, sua produção independente é vasta e possibilita acompanhar a envergadura de quem amou, mergulhou e se dedicou intensamente à paixão pelo tema tão marginalizado da loucura. Em 2005, com Maria Silvia Hanna, organiza um livro, O objeto da angústia, no qual escreve um artigo, “A angústia da experiência analítica”. Livro este que apresenta e conceitua a angústia por diversos autores, tema principal no Seminário X de Jacques Lacan. A psiquiatra escolhe dizer sobre “A angústia da experiência analítica”, onde o analista se familiariza com o paciente. Diante da precipitação da angústia, que transborda a experiência como ato, ela nos convida a continuar! “Continuar, continuar a trabalhar… continuar a caminhar…continuar a levar as coisas adiante… para além do limite da angústia… continuar no sentido de fazer a cada análise uma aventura única… para que ela possa se chamar experiência analítica.” (Souza, 2005, pp. 27 e 28).
Ao final da entrevista do programa Espelho, Lázaro Ramos pergunta: “Por que a senhora escolheu a psicanálise?” Souza responde:
Pois é, por que é que eu escolhi a psicanálise? É difícil a gente dizer aquilo que é a causa do nosso desejo, né? …A gente é sempre movida a priori por suas razões, por suas questões. Então a questão da transferência que se estuda desde o terceiro ano de medicina, nessa matéria, relação médico-paciente. A transferência é a questão central da psicanálise. A transferência e o manejo dessa transferência. Como trabalhar com isso. Então isso é a psicanálise. Desde sempre, talvez, eu tenha sido fisgada por ela (Souza, 2008).
O que aprendemos com Neusa Santos Souza[editar | editar código-fonte]
Com Neusa Santos Souza somos convocadas a compreender o ponto forte da psicanálise, o mais radical: entender os seus limites. Isto é, a psicanálise é pensada ao longo de sua obra como um saber humano atravessado por questões de classe, raça e gênero na mesma medida em que contém um grande potencial de cuidado das singularidades.
Nessa perspectiva, Neusa Santos Souza nunca negociou a importância da psicanálise na saúde mental, mas apontou para vários dos seus limites que estão inscritos nas questões acima mencionadas. Para Neusa Santos Souza a psicanálise é definitivamente entendida como uma tarefa inacabada e daí seu compromisso com a compreensão de temas marginais como a psicose, a loucura, o sofrimento com o racismo que ainda permanecem como feridas do nosso tempo.
Afinal, como diz Neusa Santos Souza no seu último escrito que versa sobre a questão do racismo e que foi produzido na data simbólica de 13 de maio, dias antes de sua morte.
“A escravidão acabou, mas a nossa luta continua” (Souza, 2021, p.163).
Em suma, com a nossa pensadora aprendemos a importância de um devir ético e radical para a psicanálise. A dúpé, Neusa Santos Souza.
Ver também[editar | editar código-fonte]
- ↑ Conteúdo reproduzido pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco. Publicação original: Neusa Santos Souza – Mulheres na Filosofia. Disponível em: <https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/filosofas/neusa-santos-souza/>. Enciclopédia Mulheres na Filosofia