Plantando saúde e reparação: o uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeiro

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Movimentos_[1]

Apresentação[editar | editar código-fonte]

Nós, da Movimentos, uma organização composta por jovens de favela do Rio de Janeiro, acreditamos ser urgente pensar uma nova política de drogas a partir da visão daqueles que mais sofrem com ela. Para isso, temos atuado em diversos eixos, apostando na educação, na comunicação e na redução de danos como ferramenta de mudança em nossos territórios. Mas não queremos apenas compartilhar o que já foi dito; queremos produzir conhecimento. Acreditamos que nós, que vivemos na pele os efeitos de uma política que tenta nos matar todos os dias, precisamos estar no centro do debate. Por isso, nos últimos anos, desenvolvemos pesquisas sobre temas que consideramos urgentes.

Esta pesquisa surgiu da urgência de um desses temas: o uso terapêutico da maconha nas favelas. Observamos, ao nosso redor, que muitas famílias têm encontrado na maconha o alívio de dores e sintomas para diversas doenças. Para famílias ricas, brancas e de classe média, este uso já é uma realidade. Para nós, no entanto, sobra a criminalização e o racismo, que impedem que mais pessoas tenham acesso aos benefícios terapêuticos dessa substância. Sabemos que ainda existe muito preconceito sobre o tema e é por isso que queremos produzir conhecimento. Queremos mudanças na política de drogas, mas não apenas assisti-las como espectadoras; queremos participar da formulação de políticas públicas que impactam diretamente nossa vida. As favelas também querem e de- vem falar sobre drogas e ter acesso a tudo o que o Estado nos nega somente pela cor da nossa pele e o lugar em que vivemos. Esta pesquisa é, além de um retrato sobre os desafios enfrentados por nós, faveladas e favelados, no acesso à saúde como um direito, uma chamada para pensarmos políticas que reparem os impactos da guerra às drogas em nossas vidas. As favelas não podem ficar com a guerra enquanto as classes média e altas, brancas, têm acesso aos potenciais terapêuticos das substâncias psicoativas.

"Nada sobre nós sem nós"!

A pesquisa[editar | editar código-fonte]

Nos últimos anos, o uso terapêutico da maconha tem se popularizado. Antes restrito a um grupo pequeno de pessoas com condições de arcar com os custos necessários para importar com- postos derivados da planta, atualmente esse uso tem alcançado pessoas de baixa renda e moradores de favelas. Esse alcance, porém, ainda é pequeno e cheio de obstáculos. Enquanto pessoas das classes média e alta, moradoras de zonas nobres da cidade, têm acesso a substâncias de qualidade, a médicos especialistas, a amparo jurídico e a informações confiáveis, moradoras e moradores de favelas e periferias têm outras preocupações. Mesmo conseguindo usar a maconha para fins terapêuticos, há dificuldade em achar médicos que aceitem prescrever a substância - dado o altíssimo custo das consultas; insegurança de guardá-la em casa em contextos nos quais as operações policiais são constantes; e desamparo jurídico quando optam por tentar autorização judicial nos casos de importação de compostos derivados da planta.

É nesse contexto que lideranças e moradores de favelas têm atuado para compartilhar informações e facilitar o acesso aos benefícios terapêuticos da maconha. Algumas associações e organizações não governamentais de base popular dão assistência e orientações para pessoas e famílias que buscam alívio na cannabis para questões de saúde. São formadas redes de amparo que viabilizam consultas, acompanhamento, acesso a óleos e in- formações sobre o tema. A pesquisa surgiu com o intuito de compreender este cenário. Considerando que o uso terapêutico tem sido uma opção promissora para diversas famílias faveladas e periféricas, é funda- mental entender como esse uso está acontecendo e quais são os principais obstáculos enfrentados por essas pessoas. Somente a partir de um diagnóstico é possível pensar caminhos para garantir que o uso terapêutico da maconha seja ampliado e que mais pessoas consigam fazê-lo de forma segura e gratuita.

Inicialmente, a pesquisa contactou e entrevistou atores que atuam ou já atuaram em favelas do Rio de Janeiro para entender como essas iniciativas funcionam. Foram entrevistados Rafaela França, do Núcleo de Estimulação Estrela de Maria; Francislaine Assis, do Coletivo Reparação Social-Histórica e Acesso; e Ricardo Nemer, ativista e advogado da causa canábica. O material coletado nas entrevistas foi usado para elaborar as perguntas da segunda etapa da pesquisa: um questionário que foi aplicado a moradoras e moradores de favelas do estado do Rio de Janeiro. Estes moradores foram alcançados a partir dos atores anterior- mente mencionados.

Objetivos[editar | editar código-fonte]

O objetivo desta pesquisa é entender de que forma moradoras e moradores de favela do Rio de Janeiro acessam a maconha e derivados dela para uso terapêutico. Como objetivos específicos, temos:

  • Traçar o perfil geral de moradoras e moradores de favelas que fazem uso terapêutico da maconha;
  • Identificar as principais questões de saúde tratadas com a substância;
  • Identificar as formas de uso;
  • Compreender os principais caminhos percorridos por moradoras e moradores para obter a substância;
  • Compreender as principais dificuldades no acesso à maconha para uso terapêutico por parte desses indivíduos.

Metodologia[editar | editar código-fonte]

A pesquisa tem caráter quantitativo e foi realizada através da aplicação de um questionário anônimo online semi-estruturado - através da ferramenta Google Forms - destinado a moradores de favela que fazem ou querem fazer uso terapêutico da maconha. A técnica de amostragem utilizada foi a bola de neve, que consistiu no contato com pessoas selecionadas que convidaram outras pessoas para responder as perguntas.

Apesar de se tratar de uma pesquisa quantitativa, algumas perguntas abertas foram inseridas ao final do questionário. O intuito foi compreender um pouco mais da visão de moradoras e moradores de favelas sobre a maconha e as principais dificuldades relacionadas ao uso terapêutico. As respostas destas questões foram usadas ao longo do relatório para ilustrar situações vividas por pessoas e famílias que fazem o uso terapêutico.

O questionário ficou disponível durante três semanas em dezembro de 2022 e sua divulgação foi feita pelos perfis das redes sociais da Movimentos e de seus membros e através de grupos de WhatsApp. Ao todo, 108 respostas foram recebidas; três delas foram descartadas por estarem fora do recorte da pesquisa. As respostas obtidas com os questionários foram reunidas em um banco de dados. Após a sistematização dos dados, foram geradas tabelas e gráficos com os números encontrados e uma planilha com as respostas das perguntas abertas.

Observação: Ao longo deste relatório, usaremos a palavra “maconha” ao invés de “cannabis”. Esta escolha se justifica por entendermos que o uso terapêutico pode ocorrer de diversas formas - e, no caso dos óleos, a partir da mistura de diferentes canabinoides -, mas a substância que origina os mesmos é uma só: a maconha. Acre- ditamos que usar esse termo ajuda a combater o preconceito e racismo relacionados à proibição dessa substância. Pessoas não devem ser criminalizadas por fazerem uso de drogas.

Introdução[editar | editar código-fonte]

6 da manhã. O clima no Parque União, no Complexo da Maré, na zona norte do Rio, é de tensão. As ruas e vielas estão com pouco movimento; moradores estão apreensivos aguardando o início de mais uma operação policial justificada pelo combate ao tráfico de drogas. Em uma casa cravejada com marcas de projéteis de arma de fogo, Luciene vive com seus três filhos e sua mãe, já idosa. Uma das crianças, Maria, de 5 anos, é autista e toma, todos os dias, algumas gotinhas do óleo de maconha1. Luciene conheceu o óleo através de uma amiga e, depois de muito pesquisar, conseguiu a substância através da doação de uma ONG. Luciene está com medo de ter sua casa invadida por policiais durante a operação e ter seu óleo apreendido.

Do outro lado da cidade, no Leblon, zona sul da capital fluminense, Joana acorda às 06:15 da manhã para iniciar seu dia. Em seu apartamento, vive com a filha Giulia, de seis anos, e o marido. Após preparar seu café da manhã, Joana acorda Giulia para tomar as gotinhas do óleo de maconha que controla as crises convulsivas da criança, que tem epilepsia. Em três meses de uso, Giulia reduziu de dez convulsões ao dia para duas por semana. Joana conheceu o óleo através da indicação de seu médico, que receitou a substância após diversas tentativas frustradas de tratamento com medicamentos controlados. Ela possui autorização judicial para usar o óleo, que foi importado através de uma associação de pacientes de cannabis.

Assim como as filhas de Luciene e Joana, milhares de pessoas encontram na maconha o alívio para sua condição de saúde. Os efeitos terapêuticos da cannabis - nome científico da planta - têm sido cada vez mais estudados, e novos usos são descobertos todos os dias. Apesar dos avanços, o debate sobre a maconha ainda enfrenta muito preconceito. A desinformação e a chamada “guerra às drogas” impedem que muitas pessoas que poderiam ser beneficiadas pelos efeitos terapêuticos da erva tenham acesso a ela.

A “guerra às drogas” é uma estratégia que visa combater a produção, o consumo e a venda de drogas através da repressão. Esta “guerra” é baseada na noção de que todas as substâncias psicoativas ilícitas são extremamente perigosas. Por meio de uma narrativa que considera as drogas como um mal que precisa ser combatido, o poder público escolhe investir bilhões de reais em ações de repressão a essas substâncias - especialmente através de operações poli- ciais quase diárias nas favelas.

Nos últimos anos, dados e pesquisas têm sido publicados demonstrando a ineficácia desta estratégia. O consumo e o comércio de drogas não diminuiu, pelo contrário. O que é com- batido diariamente em periferias e favelas é apenas o pequeno varejo de drogas, sem qualquer dano a organizações criminosas e a quem de fato lucra com este comércio.

Os prejuízos para favelas e periferias são incontáveis. Durante operações policiais, escolas são fechadas, serviços públicos essenciais como unidades de atendimento de saúde deixam de funcionar, a circulação de transporte é interrompida e morado- res sofrem com prejuízos materiais em seus comércios e casas2. Além disso, as operações policiais violam direitos, geram mortes e causam imensuráveis danos psicológicos aos moradores de favelas e periferias. Com a justificativa de reprimir o varejo de drogas nesses locais, o futuro da juventude negra é um só: cadeia ou morte.

Essa escolha política, além de gerar mortes e sofrimento, também impede que o potencial terapêutico das substâncias psicoativas seja explorado. É o caso da maconha; inúmeros usos da cannabis para questões de saúde foram descobertos nos últimos anos. Muitas pessoas com epilepsia, autismo e dores crônicas encontraram na maconha o alívio para seus sintomas. Apesar disso, o preconceito gerado pela guerra às drogas impede que novas pesquisas sejam feitas e impede que aqueles que mais sofrem os efeitos desta política tenham acesso a estes usos.

Apesar de as histórias de Luciene e Joana serem fictícias, elas ilustram casos reais e demonstram que, apesar de ambas darem a suas filhas substâncias derivadas da maconha, os caminhos que per- correram e as dificuldades que enfrentaram para conseguir usar o óleo são muito diferentes. No primeiro caso, famílias com boas condições financeiras conseguem com mais facilidade a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e podem arcar com os custos para importar a substância. Já para famílias pobres e moradoras de favelas, a obtenção da substância envolve intensa mobilização de familiares, amigos, lideranças e organizações não-governamentais.

Assim, as favelas ficam com a repressão e a violência gerada pela guerra às drogas. O “asfalto”, por outro lado, tem acesso a tratamentos e substâncias com controle de qualidade. O que separa os dois cenários é o racismo, motor da “guerra às drogas” e ferramenta de controle e extermínio da população negra.

Na raiz da proibição da maconha, o racismo[editar | editar código-fonte]

Racismo, o motor da “guerra às drogas”[editar | editar código-fonte]

A história da proibição das drogas é carregada de racismo. Em diferentes países, algumas substâncias psicoativas foram duramente criminalizadas; o que determinou essa repressão, em grande medida, foi o vínculo criado pelos Estados entre as drogas e grupos da sociedade marginalizados. Nos Estados Unidos, por exemplo, a maconha foi associada aos imigrantes hispânicos; o ópio, aos chineses; a cocaína, aos negros; e o álcool foi relacionado a imigrantes irlandeses e italianos.

No Brasil, é impossível falar do caráter racista da “guerra às drogas” sem mencionar a proibição da maconha. No século XIX, mais precisamente em 1830, a venda e o uso da substância foram proibidos. Na legislação3, havia uma referência explícita aos negros escravizados, que seriam punidos com três dias de prisão caso fizessem uso da planta. A maconha era diretamente asso- ciada às classes baixas, aos negros e aos criminosos4.

Em 1888, apesar da abolição da escravatura no papel, o racismo e a discriminação contra pessoas negras que haviam sido escravizadas seguiu a todo vapor. As práticas e costumes negros eram considerados pela elite política e intelectual um obstáculo para o crescimento do país. Assim como o candomblé e a capoeira, a maconha era associada aos africanos e seus descendentes, ameaçando a moral e os bons costumes da elite brasileira branca5.

O discurso público era dominado pela noção de que a maconha levava as pessoas a cometerem crimes e de que seu uso era altamente perigoso. A erva era ainda associada à loucura. As pessoas negras, por sua vez, eram caracterizadas como animalescas, agressivas e loucas. A associação entre ambos criava o contexto perfeito para que o poder público intensificasse a criminalização da planta e assim controlasse essa parcela da população.

Quase 150 anos depois, poucas coisas mudaram. Atualmente, diversas pesquisas demonstram que a maconha, além de não “matar neurônios” e não levar pessoas a cometer crimes, possui inúmeros potenciais terapêuticos. O uso e a venda da substância, porém, seguem sendo criminalizados.

De acordo com a atual Lei de Drogas (11.343/06), o uso de drogas não é punido com pena de prisão, apesar de ainda ser crime. Já o tráfico é punido com pena de 5 a 15 anos de reclusão. A legislação, no entanto, não tem critérios que diferenciem as duas condutas; na prática, quem decide é o policial. Não é difícil concluir que a maioria das pes- soas presas por tráfico de drogas é negra, réu primária e estava com pequenas quantidades de drogas no momento de sua prisão6. Cabe lembrar que a venda de drogas que é reprimida nas favelas é o pequeno varejo, ou seja, não gera prejuízos significativos às grandes organizações criminosas. Além disso, apesar de toda a sociedade consumir drogas, as apreensões se concentram somente nas favelas7.

Assim, apesar das mudanças, a pele negra segue sendo alvo prioritário da “guerra às drogas”. Mas, como se matar e prender jovens negras e negros já não fosse grave o bastante, a atual política de drogas também impede que milhares de famílias - sobretudo famílias negras periféricas - tenham acesso aos usos terapêuticos de substâncias psicoativas.

O uso terapêutico da maconha[editar | editar código-fonte]

A proibição das drogas, ao contrário do que se possa pensar, teve motivações políticas e nada científicas. O moralismo e o racismo na forma que enxergamos as substâncias consideradas ilícitas impediram que pesquisas sérias e confiáveis fossem feitas para entender melhor seus efeitos no organismo humano8. Aos poucos, trabalhos científicos em diversas áreas de conhecimento têm sido realizados, e, hoje, mesmo com muito a avançar, temos uma pequena noção dos potenciais terapêuticos de algumas substâncias.

Muitos estudos sobre a maconha foram realizados nos últimos anos, especialmente na área médica. Já se sabe que a cannabis possui centenas de compostos químicos (fitocanabinoides) com diferentes atuações no organismo humano, mas nem todos foram identificados e estudados em profundidade. Os mais conhecidos são o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC). Enquanto escrevemos o relatório dessa pesquisa, diversos outros canabinóides estão sendo descobertos e seus potenciais terapêuticos, pesquisados.

Esta pesquisa não tem a intenção de explorar as evidências científicas na medicina canábica9. Para além do que é descoberto nos laboratórios de pesquisa, importa compreender a visão de moradoras e moradores de favelas que fazem uso terapêutico dessa substância, o impacto desse uso no dia a dia de suas famílias e as diferentes formas de acesso a ela. Como mencionado, queremos entender de que forma o uso terapêutico da maconha está acontecendo dentro das favelas.

Nos primeiros debates sobre o uso terapêutico da maconha, houve uma tentativa de desassociar o canabidiol da cannabis como forma de construir um olhar positivo sobre a substância. Pelo mesmo motivo, muitas pessoas evitam falar em “maconha” ao se referirem ao uso terapêutico. Esta distinção, no entanto, não rompe com o preconceito e racismo que estão na base da proibição da maconha. Pelo contrário: reforça uma narrativa que criminaliza tudo o que vem das favelas e periferias, além de estimular o estigma com pessoas que fazem uso adulto dessa substância.

Esta visão também estimula a criminalização de pessoas que fazem uso por outras vias que não sejam dentro da legalidade. Como já mencionamos, a maconha representa, na vida de muitas pessoas, alívio de dor e sofrimento. Em contextos de vulnerabilidade, nos quais direitos a serviços básicos de saúde são negados diariamente pelo Estado, não restam alternativas. Pessoas não devem ser consideradas criminosas por fazerem uso de substâncias psicoativas.

É importante lembrar que alguns padrões de uso não são isentos de riscos à saúde. A criminalização também impede que informações corretas sobre drogas sejam divulgadas pelo poder público. É comum que pacientes busquem conhecimento por conta própria e se tornem quase “experts” no tema devido. Estes pontos só demonstram como a proibição das drogas prejudica a saúde das pessoas e impede o desenvolvimento de pesquisas e políticas públicas sobre o tema.

Plantando saúde: o uso terapêutico da maconha nas favelas[editar | editar código-fonte]

O acesso ao uso terapêutico no Brasil[editar | editar código-fonte]

Atualmente, existem quatro principais formas de acesso ao uso terapêutico da maconha no Brasil:

1) Importação de óleos com substâncias derivadas da cannabis;

2) Através das associações de pacientes;

3) Através da obtenção do direito de cultivar a cannabis;

4) Através das farmácias.

Conforme simplificado acima, a primeira forma de acesso ao uso terapêutico da maconha no Brasil é a importação de óleos com substâncias derivadas da cannabis, popularizada por volta dos anos 2010 a partir da luta de mães de crianças com epilepsia. A importação, inicialmente, acontecia mesmo sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mães e familiares de pessoas com epilepsia chegaram a ser considerados “traficantes internacionais” por desafiarem a lei10. Em 2015, após extensa luta de movimentos de pacientes e familiares, a Anvisa passou a autorizar a importação de medicamentos à base de canabidiol11. Quatro anos depois, foi autorizado o registro, a fabricação e a venda.

De lá pra cá, a luta pelo direito de utilizar os remédios à base de canabinoides ganhou força, e os pedidos para importação dessas substâncias cresceram. Para ter acesso a esses medica- mentos, é necessário apresentar receita e laudo médico. Caso a pessoa queira importar por conta própria, é preciso autorização emitida pela Anvisa, mas o processo de obtenção do importado pode levar meses.

A segunda forma de acesso a medicamentos à base de cannabis no Brasil é através das associações de pacientes. Essas instituições conseguiram na Justiça Federal o direito ao plantio e, em alguns casos, a produção dessas substâncias para pacientes que fazem tratamento. Além disso, as associações também facilitam o processo de importação. Para isso, é necessário que o paciente seja associado, o que geralmente implica o pagamento de uma taxa para a instituição.

Além das associações, os pacientes também podem obter o direito de cultivar a cannabis. Neste caso há um longo processo burocrático, e é necessário comprovar a necessidade de uso com documentos como receitas e laudos médicos que com- provem que outros tipos de tratamento já foram tentados e não apresentaram bons resultados. Em junho de 2022, três pacientes obtiveram, junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o direito de plantar a cannabis para extrair o canabidiol.

A quarta forma de acesso é através das farmácias. Atualmente há alguns produtos autorizados pela Anvisa para serem comercializados nestes locais. Para comprá-los, é preciso que um médico prescreva a substância. O custo desses medicamentos costuma variar de 250 a 2.500 reais.

Observação: Além das farmácias tradicionais, há ainda as Farmácias Vivas, um programa do governo federal - presente no Sistema Único de Saúde (SUS) - que inclui todas as etapas de produção de medicamentos fitoterápicos e plantas medicinais. Produtos derivados da maconha ainda não estão disponíveis nas Farmácias Vivas, mas movimentos sociais têm pressionado para que isso se torne realidade.

Estas são as formas legais de acesso ao uso terapêutico da maconha. Como demonstrado, dependendo do caminho escolhido, os custos podem ser altos, e o processo, demorado e burocrático. Muitas pessoas e famílias não têm condições financeiras e o conhecimento jurídico necessário para conseguir as substâncias. Além disso, as dores e o sofrimento causados por diversas condições de saúde tornam a espera por uma nova possibilidade de tratamento impossível. Assim, muitos optam por conseguir a substância por outros meios.

Debater a inserção de substâncias derivadas da maconha no sistema público de saúde é urgente. Diversos estados brasileiros já têm legislações que garantem o acesso ao canabidiol via SUS, mas ainda é preciso ampliar tal acesso a outros canabinoides, criar ferramentas para que as leis sejam cumpridas e regulamentar o associativismo para que as associações consigam produzir e fornecer com segurança essas substâncias. Este é o pano de fundo da atual pesquisa.

Raio-X do uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]

Perfil socioeconômico[editar | editar código-fonte]

Os dados gerados por esta pesquisa surgiram de um questionário que visou traçar o perfil das pessoas moradoras de favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro que fazem uso ou estão tentando ter acesso ao uso terapêutico da maconha. Ao todo, 105 pessoas responderam o formulário. Sublinhamos que o perfil encontrado não reflete a totalidade de pessoas que fazem uso terapêutico nas favelas, mas, sim, daquelas alcançadas pela pesquisa. O documento circulou principalmente entre redes de pacientes próximas da Movimentos e de outras ativistas e lideranças de movimentos sociais, grupos de mães cujas filhas e cujos filhos fazem uso dessa substância e ativistas canábicos.

Em relação ao grau de escolaridade das pessoas que responderam o questionário, a maioria possui ensino médio completo (53,3%). Aqueles com ensino superior completo aparecem em segundo lugar (22,86%), seguido de ensino fundamental completo (14,29%). Ainda que tenham acesso à informação, isto não necessariamente se reflete na renda: a maioria (60%) dos respondentes ganha menos de um salário mínimo12. Ainda que não seja a maioria, chama a atenção a quantidade de pessoas que afirmaram receber, em um mês, entre 261 e 780 reais (16%). Além disso, 58% afirmaram receber algum tipo de benefício social do governo.

Sobre a identificação religiosa, a maioria dos respondentes afirmou não ter religião, mas não ser ateu (35,24%). Em seguida, as pessoas se identificaram como evangélicos (27,62%), católicos (23,81%) e de religiões afro-brasileiras (10,48%). O número expressivo de respondentes evangélicos e católicos chama a atenção, uma vez que o debate sobre o uso e a regulamentação da maconha é guiado por uma visão moralista e preconceituosa, em muito associada à forma como o uso de drogas é entendido por estas religiões como um “mal” que precisa ser combatido. Muitas pessoas que fazem uso terapêutico da cannabis e responderam a esta pesquisa usaram termos como “santo remédio” ou “gotas da esperança” para descrever a substância, sinalizando uma possível mudança na visão de pessoas religiosas sobre o tema.

Acesso e formas de uso[editar | editar código-fonte]

Ao longo dos últimos anos, o uso terapêutico da maconha tem se popularizado. Para além dos processos físicos, químicos e biológicos relacionados a doenças, é preciso considerar as aflições e vivências nesse processo. É por isso que, ao falarmos nos usos terapêuticos desta substância, não basta apenas olhar para o que existe de evidência científica no campo biomédico. Da mesma forma que não é possível considerar como uso terapêutico somente aquele que se dá por vias legais.

É necessário considerar que, para muitos, a maconha foi obtida em situações de extrema necessidade e representou o alívio de sintomas para diferentes condições de saú- de, muitas das quais ainda não estão documentadas na literatura médica e que não podem aguardar o lento ritmo da justiça para serem cuidadas. Nas palavras de uma pessoa que faz o uso terapêutico em seu filho com autismo, “cannabis é vida! Eu ouvi a voz do meu filho com 4 anos pela primeira vez [depois de usar a maconha]”.

As condições de saúde mais mencionadas pelos respondentes desta pesquisa foram o transtorno do espectro autista (52,2%), segui- do pela epilepsia (12,39%) e por sintomas de ansiedade (12,39%), sintomas de depressão (7%) e dores (5%). Como mencionado na descrição do perfil das pessoas que fazem uso de maconha para fins terapêuticos, a maioria dos respondentes é composta por pais e mães de filhas e filhos que fazem ou desejam fazer o uso (65,7%). O restante, 32,4%, é com- posto por pessoas que fazem ou querem fazer, elas mesmas, o uso dessa substância.

Quanto a formas de uso, é possível constatar que a maioria faz uso através do óleo13 (60%) e do cigarro ou “baseado” (18%). Outros, porém, ainda não fazem o uso, mas querem fazer (19%). A produção de documentários, matérias jornalísticas e diversos outros materiais sobre o uso terapêutico da maconha tem contribuído para a popularização do tema e rompido com uma série de preconceitos. Apesar disso, uma parte considerável dos respondentes (42%) afirmou já ter sofrido preconceito por fazer uso ou por tentar acessar a maconha para fins terapêuticos.

Chama a atenção, ainda, que 78,9% das pessoas que usam a maconha de forma terapêutica através do cigarro já tenham sofrido preconceito. Por outro lado, pessoas que usam a substância na forma de óleos sofreram menos preconceito: apenas 31,7%. Apesar do preconceito, de maneira geral os respondentes da pesquisa afirmaram não ter vergonha de falar que fazem uso terapêutico da maconha. Muitos acreditam que, ao tocarem no assunto, ajudam a compartilhar informações e combater o estigma relacionado à substância. Além disso, devido às dificuldades enfrentadas para conseguir acesso a algumas formas de uso, como os óleos, pessoas relataram falar abertamente sobre e sentir orgulho de usarem. Para algumas dessas pessoas, no entanto, ainda há receio em tocar no assunto em certos ambientes.

"Sim e não [tenho vergonha de falar que faço uso terapêutico da cannabis]. Depende do espaço. Por exemplo, no trabalho isso é impensável". (Usuária terapêutica de maconha)

Essa diferença de postura também está relacionada à forma de uso; no caso do óleo, é comum identificar nos discursos a diferenciação do óleo como um medicamento, e não como maconha. Pesquisas no campo das Ciências Sociais apontaram que essa distinção foi feita por movimentos de pacientes ao longo do processo de luta pelo acesso ao canabidiol e teve como objetivo desassociá-lo da maconha e da visão negativa historicamente associada a ela14. Apesar dessa diferenciação ser comum entre parte dos pacientes, muitos defendem que a maconha deve ser encarada como uma planta com múltiplas possibilidades de uso terapêutico; assim, a separação entre canabidiol e maconha só reforça o preconceito e impede que debates honestos sobre sua regulamentação sejam feitos.

É comum conhecer alguém próximo que teve melhora em alguma condição de saúde com a maconha. Não à toa, 40% dos respondentes da pesquisa conheceram o uso terapêutico através de parentes, amigos ou vizinhos; 32%, através da internet; 13%, por indicação médica; 8%, através de organização não-governamental e; 3%, através da televisão.

A maioria dos respondentes afirmou ter recebido suporte profissional para fazer o uso terapêutico (64,7%). Além disso, 59% afirmou possuir receita médica para obter a substância. Em relação ao gasto mensal15 com o uso terapêutico da maconha, 68% afirmou ter algum gasto com a substância. Dentre aqueles que têm alguma despesa, 22% afirmou gastar de 201 a 300 reais por mês; 17%, de 101 a 200; 12%, até 100 reais; 8%, de 301 a 400 reais; 4% afirmou gastar 1000 reais ou mais. O restante, 5%, afirmou gastar de 401 a 800 reais. Por outro lado, 32% afirmou não ter gasto. Este dado pode ser explicado porque muitos respondentes são assistidos por organizações não governamentais e conseguem substâncias derivadas da maconha através de do- ações.

As “gotinhas da esperança”: o óleo de maconha nas favelas[editar | editar código-fonte]

"Meus filhos são gêmeos e ambos são autistas e desde a primeira semana eles tiveram uma melhora significativa. Eu vejo um futuro lindo pros meus filhos com o canabidiol". (Mãe de criança que faz uso do óleo) "A cannabis trouxe esperança. Meu filho tem autismo moderado, tinha atraso significativo na fala, hoje em dia meu filho se comunica melhor, consegue se expressar melhor, tem uma atenção sus- tentada, consegue fazer as coisas com mais autonomia e flexibilidade cognitiva". (Mãe de criança que faz uso do óleo)

Além das perguntas gerais sobre o uso terapêutico da maconha, foram feitas perguntas específicas para aqueles que afirmaram fazer uso do óleo. Como mencionado, o óleo pode apresentar diversas composições; existem fórmulas que juntam diferentes canabinóides para tratar condições de saúde específicas.

Assim, algumas “misturas” necessitam de mais tecnologia para serem preparadas; outras, nem tanto. Há diferentes formas de acesso a esses compostos: algumas pessoas optam por produtos importados para garantir a qualidade e pureza das substâncias, outras têm lutado pelo direito de plantar e extrair o óleo em sua própria casa devido ao alto custo de importação. O óleo que mais se popularizou foi o de canabidiol, amplamente usado para o tratamento de epilepsia e, mais recentemente, usado por pacientes com transtorno do espectro autista.

É bastante comum que as pessoas testem diferentes tipos de óleos para sua condição de saúde: óleos que podem variar em relação aos canabinoides da composição, a pureza dos mesmos e a concentração. Dentre os respondentes desta pesquisa que usam o óleo, a maioria, 84%, só experimentou um tipo do com- posto. O canabinoide mais mencionado foi o canabidiol (69%), seguido pelo THC (15%). Cerca de 11% dos respondentes afirmaram não saber exatamente a composição do óleo usado. Três pessoas afirmaram fazer uso de outros canabinoides.

A maioria das pessoas afirmou ter conseguido o óleo através da doação de uma instituição/ONG (66,7%). Os demais conseguiram através de associações de pacientes de cannabis (20,6%), de um amigo, parente ou vizinho (6,3%), através de uma liminar judicial (3%) ou por importação direta (3%).

Dentre as pessoas que usam o óleo, apenas seis afirmaram possuir autorização judicial para tal. Cinco afirmaram ter tentado obter autorização, mas não conseguiram. Este é um cenário bastante comum, já que o processo de obtenção da autorização para o uso junto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é burocrático e demorado. Muitas pessoas começam a usar o óleo enquanto dão entrada no pedido de autorização.

Como visto, o custo com o “óleo de maconha” pode ser alto de- pendendo da forma de acesso e tipo do composto. No contexto das favelas do Rio de Janeiro, a maioria das pessoas que responderam a pesquisa conseguiu o óleo através de doações (52%)16. 32% declarou gastar de 100 a 299 reais com o óleo; 6%, de 300 a 499; 6% menos de 100 reais e; 3% afirmou gastar mais de 1.100 reais com o óleo. Apesar da maioria dos respondentes não possuir autorização judicial para o uso terapêutico, dentre as 63 pessoas que fazem uso do óleo, 60 afirmaram que a substância foi receitada por um médico. No entanto, apenas nove delas afirmaram ter pagado pela consulta.

Quando questionados sobre haver dificuldade para conseguir o óleo, apenas oito pessoas responderam ter enfrentado algum obstáculo. Dentre elas, 5 citaram o preço alto do óleo; 2 mencionaram a dificuldade de conseguir um médico prescritor e houve 2 menções a demora e burocracia judicial. Este número pode parecer baixo, mas ele reflete a atuação ativa de ONGs para viabilizar a doação dos produtos e facilitar todo o processo burocrático. Logo, o acesso ao uso terapêutico nas favelas depende do trabalho de organizações sem fins lucrativos. Este trabalho, cabe lembrar, só existe porque o poder público além de falhar em garantir o direito à saúde para essa população, também criminaliza pessoas que fazem uso da substância.

Os desafios e a insegurança do uso terapêutico da maconha nas favelas[editar | editar código-fonte]

Pessoas brancas moradoras de zonas nobres da cidade podem arcar com os altos custos de consultas com especialistas, óleos importados com controle de qualidade adequado e segurança de saber que não serão criminalizados por seu uso. Favelados e periféricos, por outro lado, enfrentam uma realidade muito diferente.

Muitas famílias recorrem à importação em busca de mais segurança. Nesse caso, é preciso encontrar um médico que prescreva a cannabis. Este perfil profissional ainda é escasso, e as consultas pela rede particular costumam ser caras, podendo chegar a mais de 500 reais. Para auxiliar pacientes no processo de importação, algumas organizações não governamentais dão suporte jurídico e viabilizam atendimentos voluntários com médicos prescrito- res de cannabis. A alta demanda por esse tipo de acompanha- mento torna essencial o trabalho dessas organizações.

Além das dificuldades relacionadas a burocracia, preconceito e alto custo dos produtos, favelados e periféricos ainda lidam com a violência do Estado. As operações policiais justificadas pelo “combate às drogas” são rotineiras e as violações de direitos ocorridas nesse contexto são a regra, não a exceção.

É comum, por exemplo, ter a casa invadida por agentes de segurança, o que gera riscos para pessoas que fazem o uso terapêutico da cannabis e têm alguma substância em casa. No caso do óleo de derivados de maconha, a prescrição médica e autorização judicial para o uso são formas de tentar assegurar algum nível de segurança para esses casos, mas os documentos não impedem que apreensões sejam feitas e pessoas sejam criminalizadas.

Quando questionados sobre sentirem-se seguros para guardar a maconha ou substância derivada em casa, 55,2% respondeu que se sente seguro; 38,1% respondeu que não se sente seguro; e 6,7% não respondeu ou ainda não faz uso. Alguns participantes da pesquisa afirmaram que a segurança sentida ocorre por fazerem uso do óleo e terem prescrição médica e autorização judicial. Outros, no entanto, afirmaram ter medo mesmo em posse dos documentos. Organizações não governamentais que auxiliam pessoas que fazem uso terapêutico da cannabis frequentemente orientam os pacientes que possuem autorização judicial a emoldurar o ofício para comprovar que se encontram dentro da legalidade.

"O canabidiol mudou a vida da minha filha. Ela tem epilepsia, fazia uso de muitos remédios e ainda fazia de 6 a 8 crises por hora. (...) Tenho medo de os policiais não terem o conhecimento do óleo para tratar doenças". (Mãe de criança com epilepsia e usuária terapêutica da maconha)

"(…) tem poucos meses que minha filha usa e desde que ela começou graças a deus não teve nenhuma operação e se tiver eu estou com os papéis para comprovar então talvez não me sinta tão intimidada". (Mãe de criança com epilepsia e usuária terapêutica da maconha)

"Tenho medo [de guardar o óleo em casa], mas pelo meu filho enfrento o medo". (Mãe de criança autista e usuária terapêutica da maconha)

Por outro lado, as pessoas que usam a maconha de outras for- mas sentem-se mais inseguras e vulneráveis. Dentre as justificativas para a insegurança, moradores mencionam a truculência policial, racismo e a desinformação sobre o tema. Muitos evitam ter a substância em casa para não serem criminalizados.

"Da maneira como lidam com tal substância, é perigoso para mim, em dia de operação, por ser preto, jovem de periferia, me sinto inseguro em dia de operação tendo Cannabis em casa". (Usuário terapêutico da maconha)

"Não tenho medo, mas não me sinto segura pela repressão e caça que existe dentro da favela (no fim essa caça não é pelas drogas, mas sim pelas pessoas que moram aqui)". (Usuária terapêutica da maconha)

"Tenho medo de ser presa e considerada uma criminosa". (Usuária terapêutica da maconha)

"Não me sinto segura. Para os policiais, morador de comunidade é tudo envolvido". (Usuária terapêutica da maconha)

Se, por um lado, a posse desses documentos pode significar segurança para alguns usuários, por outro, a ausência dela pode colocar aqueles que não a possuem ou fazem outros tipos de uso na posição de “ilegalidade”. Assim, mesmo que para fins terapêuticos, pacientes que fazem uso da maconha podem ser considerados criminosos, especialmente em contextos de operação policial.

Colhendo reparação: caminhos para avanços regulatórios do uso terapêutico da maconha no Brasil[editar | editar código-fonte]

O debate do uso terapêutico da maconha no Brasil[editar | editar código-fonte]

Não existe um modelo ideal para a regulação da maconha e de outras drogas. Cada país pode e deve pensar a melhor forma de garantir que a regulação seja feita considerando suas particularidades. Exemplo disso é os Estados Unidos, que têm diferentes legislações sobre a maconha para diferentes estados17.

Atualmente, no mundo todo, 11 países adotam alguma forma de regulação da maconha. Um levantamento feito sobre o tema, que considera todos os estados dos Estados Unidos e dez países, demonstrou que em 42% desses territórios o uso medicinal é legalizado; em 37%, o uso medicinal e adultos são legalizados; em 18%, o uso medicinal é restrito a poucos medicamentos e condições específicas de saúde; e, em 3%, não há qualquer tipo de legalização18.

No Brasil, o debate sobre a regulação do uso da maconha tem crescido, sobretudo em relação ao uso terapêutico. A mobilização de ativistas canábicos e pacientes da substância tem impulsionado o tema e chamado atenção para a urgência de pensar a democratização do acesso à cannabis e seus derivados. Do ponto de vista legislativo, muitos projetos de lei apresentados no Congresso Nacional refletem o racismo e preconceito sobre o tema compartilhado por boa parte da sociedade brasileira. Estas proposições apostam na criminalização e na repressão do uso e comércio da maconha. Por outro lado, há projetos que propõem a regulação da maconha de diferentes formas - desde a regulação do uso medicinal e terapêutica até a regulação da produção, do uso adulto e da comercialização da substância.

Em nível federal, destacam-se duas proposições que têm sido discutidas no Congresso. Na Câmara dos Deputados, o PL 399/2015 propõe viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua formulação. No Senado Federal, o PL 5295/2019 submete à vigilância sanitária a produção, a distribuição e a comercialização da maconha medicinal e determina sua regulamentação.

No âmbito do poder judiciário, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) o Recurso Extraordinário 635.659, no qual se discute a descriminalização da posse de drogas para uso pessoal. Este recurso começou a ser votado em 2015 e, até agora, três votos favoráveis a descriminalização foram dados pelos ministros20. Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), algumas decisões garantiram que o cultivo de cannabis para fins terapêuticos não seja considerado crime.

Nas Assembleias Legislativas estaduais, 24 estados brasileiros têm leis ou projetos de leis em tramitação para acesso à cannabis pelo SUS. São Paulo foi o estado mais recente a instituir uma política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol.

Sem reparação não há regulação[editar | editar código-fonte]

Seja por meio de legislações ou decisões judiciais, o debate sobre o uso terapêutico da cannabis tem ganhado cada vez mais atenção no Brasil. Apesar disso, grande parte das discussões sobre o tema não incluem um ponto central quando falamos em novos modelos de política de drogas: a reparação racial.

A reparação racial pode ser definida como uma tentativa de reparar os danos históricos das violações de direitos a populações marginalizadas por sua raça, cor ou etnia. Essa medida seria uma forma de compensar as pessoas prejudicadas por discriminações e violências a que foram estruturalmente submetidas no passado. Um exemplo desse tipo de medida são as cotas em universidades públicas.

No contexto da política de drogas, diversos países têm discutido e aplicado políticas reparatórias para as parcelas da população mais afetadas pela guerra às drogas. Alguns estados dos Estados Unidos, por exemplo, têm responsabilizado o poder público pelo encarceramento em massa de negros e latinos: em Illinóis, centenas de pessoas foram anistiadas por condenações por porte/ venda de maconha; já em Washington D.C, houve a regulamentação de licenças para comercializar maconha legalmente como forma de aumentar a participação nos lucros gerados pela indústria de maconha por grupos afetados pelo proibicionismo21.

Além dos Estados Unidos, outros países têm refletido sobre a aplicação de políticas de reparação racial no contexto da guerra às drogas. Gustavo Petro, presidente da Colômbia eleito em 2022, criticou abertamente a guerra às drogas em discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas no mesmo ano. Em seu discurso de posse, ele também convocou os demais países latinoamericanos para acabar com a fracassada política global de combate às drogas.

As falas de Petro baseiam-se nas conclusões de um relatório que investigou os efeitos de seis décadas de conflitos entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. No documento, há recomendações para que a Colômbia abandone completamente a repressão como foco de sua política de drogas21. Uma das orientações é para que o governo cesse a prática de pulverização aérea para combater plantações de folha de coca devido ao impacto negativo na saúde e na segurança alimentar do povo andinos e no meio ambiente. Além disso, a folha de coca é uma planta ancestral milenar usada por povos indígenas colombianos; sua erradicação significa criminalizar práticas culturais que constituem a identidade destes povos.

Estes exemplos demonstram que não dá para pensar uma nova política de drogas sem pensar em políticas de reparação racial. Se a guerra às drogas tem como palco as favelas e periferias, é a elas que devem ser direcionadas medidas de garantias de direitos e compensação por todos os danos provocados por essa ferramenta de extermínio da população negra. Nenhuma política reparatória é capaz de trazer de volta as milhares de vidas perdidas todos os anos em nome de um suposto combate às drogas, mas é urgente que o Estado brasileiro seja responsabilizado por toda dor e sofrimento provocados por esta guerra. Assim, pensar em políticas de reparação é pensar em políticas que tenham como foco a juventude favelada. É fundamental levar em consideração que jovens negros periféricos estão inseridos em um contexto no qual o acesso a educação e a capa- citações profissionais é escasso. É fundamental considerar, por exemplo, os efeitos do encarceramento na trajetória de pessoas presas por tráfico de drogas. Nesse sentido, a capacitação profissional de pessoas egressas do sistema prisional e a destinação de vagas a essa parcela da população é imprescindível.

Em um cenário de regulação da maconha, também é fundamental criar ferramentas para inserir jovens no mercado legal, se as- sim desejarem. Além disso, os recursos públicos obtidos a partir dos impostos coletados com a venda da substância devem ser destinados à reparação material das favelas e periferias mais afetadas pela “guerra às drogas”. Afinal, os prejuízos financeiros causados pelas operações policiais nos comércios locais são bastante expressivos, além dos prejuízos na interrupção de serviços essenciais como de saúde e educação. Portanto, a arrecadação feita a partir do mercado legal da maconha deve ter como objetivo a melhoria da infraestrutura urbana nas favelas, programas de geração de renda voltados para a juventude e o apoio a políticas culturais nos territórios.

Conclusão[editar | editar código-fonte]

Além de fornecer um panorama sobre o uso terapêutico da maconha nas favelas, os dados trazidos por esta pesquisa objetivaram demonstrar que, apesar de ser o centro da guerra às drogas, a favela não usufrui dos potenciais terapêuticos da maconha. Pessoas com condições de saúde diversas lutam para conseguir acesso a compostos derivados da cannabis e assim terem alívio para seus sintomas. Este acesso é, como vimos, insuficiente e depende de organizações não governamentais e lideranças dos territórios.

Mais uma vez, o Estado nega a pessoas negras e pobres direitos básicos, como o direito à saúde. E, mais uma vez, as favelas se reinventam para garantir a sobrevivência de seus moradores. Longe de romantizar a atuação de organizações e coletivos, o que queremos é mostrar que não podemos ficar apenas com a “guerra”.

Queremos que todas as pessoas tenham acesso gratuito e de qualidade à maconha. A distribuição via SUS é apenas um passo que precisa ser acompanhado de políticas que garantam a produção e distribuição desses produtos, a formação de médicos prescritores de cannabis e o incentivo a pesquisas sobre o tema. Para nós, da Movimentos, o debate sobre o uso terapêutico da maconha precisa incluir o combate ao racismo, pilar da proibição da planta no Brasil. Tendo isso em mente, apresentamos abaixo recomendações que julgamos necessárias para avançar no debate sobre a regulação da maconha, com foco em reparar os danos provocados por décadas de proibicionismo contra aqueles que mais sofrem com a guerra às drogas.

  • Regulamentação do associativismo.

Atualmente, as associações que produzem substâncias derivadas da maconha necessitam de uma autorização judicial para funcionarem. Este processo é burocrático e pode ser revertido a qualquer momento, o que significa que tais autorizações podem ser suspensas, deixando milhares de pessoas que dependem da maconha para seus tratamentos desassistidas. É fundamental que essas organizações sejam regulamentadas para garantir que não sejam criminalizadas, especialmente em favelas e periferias. A regulamentação, além de garantir segurança para organizações e pacientes, também garante mais controle de qualidade de óleos e outros derivados.

  • Legislação federal que garanta a distribuição de substâncias derivadas da maconha pelo Sistema Único de Saúde.

A distribuição do canabidiol através do SUS já é realidade em alguns estados e municípios, mas não abrange o país todo. Na prática, cada localidade tem lidado de maneira diferente com o uso terapêutico da maconha. Esta indefinição dá brechas para políticas proibicionistas. Além disso, as leis muitas vezes se restringem ao fornecimento de canabidiol, deixando de lado outros canabinóides com robustas evidências científicas para o tratamento de diversas questões de saúde.

  • Fortalecimento de associações canábicas.

Apesar de alguns estados terem legislações que garantem a distribuição de óleos derivados de maconha (especialmente o canabidiol) via SUS, ainda há inúmeras barreiras que impedem que esse fornecimento seja colocado em prática. Na maioria dos casos, o óleo que é garantido pelo sistema público de saúde é importado, o que acaba custando muito caro ao Estado e enfraquecendo associações canábicas nacionais. É fundamental, além de regulamentar as associações, garantir que essas organizações forneçam as substâncias ao SUS através de parcerias com o poder público.

  • Fomento a iniciativas canábicas faveladas e periféricas.

Muitas organizações que atuam dando suporte jurídico, psicossocial, de orientação e acompanhamento para pacientes que fazem uso terapêutico da maconha nas favelas e periferias atuam de maneira autônoma e sem qualquer suporte financeiro. Essas instituições dependem de doações e profissionais voluntários para manterem seu funcionamento. É necessário que o poder público atue em parceria com essas iniciativas, que já possuem expertise e legitimidade nos territórios.

  • Revisão da RDC 327/2019.

A Resolução da Diretoria Colegiada 327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária é a resolução responsável por estabelecer os critérios para a concessão de autorização sanitária para importação, fabricação, comercialização, prescrição e dispensação de produtos derivados de maconha para fins terapêuticos. A norma, no entanto, está desatualizada pois não acompanha as evidências científicas mais recentes sobre os usos da substância. Dentre as mudanças necessárias, está a necessidade de flexibilização de regras sobre a concentração permitida de THC em óleos (atualmente, óleos com THC superior a 2% exigem receita médica amarela do tipo A); a ampliação da via de administração de produtos a base de maconha (atualmente, somente óleos são permitidos) e; ampliação dos produtos autorizados.

A regulação da maconha já é realidade em diversos lugares do mundo. É urgente que o Brasil avance neste debate e que ele seja acompanhado por medidas reparatórias para moradores de favelas, especialmente para a juventude negra e favelada, mais afetada pela guerra às drogas. Favelas e periferias se reinventam todos os dias para sobreviver, mas o dever de garantir a saúde da população é do Estado. Sem políticas públicas que garantam o acesso às substâncias derivadas da maconha e que fomentem iniciativas faveladas sobre o tema, somente as populações ricas e brancas terão acesso seguro e garantido aos efeitos terapêuticos da planta. Se as favelas sofrem com os efeitos diretos e indiretos da guerra às drogas, é responsabilidade do Estado reparar estes danos.

Relatório completo[editar | editar código-fonte]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Drogas e religião nas favelas

História do mercado ilegal de drogas no Rio de Janeiro

  1. Coordenação de Pesquisa Jéssica Souto Paula Napolião Pesquisa Aristênio Gomes André Galdino Karina Donaria Thaynara Santos Ricardo Fernandes Sabrina Martina Parceiros territoriais Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM) Coletivo Reparação Social Histórica e Acesso (RSHA) Estatística Jonas Pacheco Texto Paula Napolião Ilustração e design Sophia Andreazza Apoio Open Society Fundations