Polícia e ladrão: uma abordagem etnográfica em pesquisa multimétodos (Resenha)
Resenha sobre o artigo de Gabriel Feltran e Luana Motta[1], utilizar metodologias variadas, ou seja, além da pesquisa etnográfica se fez uso de dados qualitativos, quantitativos e georreferenciados para sustentar a hipótese, qual seja, que a letalidade policial não está fora do controle, nem em níveis caóticos e tampouco representa um desvio, mas sim que segue uma seletividade e recorrência específica, além de legitimação social.
Autoria: Utanaan Reis Barbosa Filho.
Sobre[editar | editar código-fonte]
Gabriel Feltran é Etnógrafo urbano, professor do Departamento de Sociologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Concentra suas pesquisas nos seguintes temas: 1) mecanismos de reprodução de desigualdades e violências urbanas, a partir das dinâmicas sociais, políticas e de mercado transnacionais com periferias urbanas; 2) a dinâmica dos homicídios no Brasil e América Latina; e 3) estética, política e marginalidade, principalmente a partir de músicas marginais. Autor dos livros "The Entangled City: crime as urban fabric" (Manchester University Press, 2020); "Irmãos: uma história do PCC (Cia das Letras, 2018)" e de "Fronteiras de Tensão: política e violência nas periferias de São Paulo (UNESP/CEM, 2011)".
Já Luana Motta é professora adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Autora do livro “Fazer estado, produzir ordem: gestão do conflito urbano em projetos sociais para a juventude vulnerável (EduFSCar, 2021). Concentra seus estudos em favelas de grandes cidades brasileiras com foco nos seguintes temas: gestão da pobreza, juventude, conflito urbano, presenças estatais em favelas e periferias.
O artigo é parte da pesquisa coletiva financiada pela FAPESP que teve o intuito de investigar as atividades informais, ilegais e criminais relacionadas às economias de carros de segunda mão (mecânica de rua, comércio e roubo de peças, roubo e tráfico de carros, revenda de veículos em segunda mão) entre a América Latina, a Europa e a África, mas, para além de uma pesquisa comparativa, buscou-se desenvolver um estudo empírico multissituado, na intersecção entre as escalas urbanas e transnacional, de forma a realçar as desigualdades sócio-espaciais, conflitos, violências e diferentes gestões (ilegais) e atores nas cidades.
Principais argumentos[editar | editar código-fonte]
O ponto de partida do texto é a análise da letalidade policial e, mais especificamente, a reação policial e repressiva aos roubos de carro em São Paulo. Para tanto, buscou-se utilizar metodologias variadas, ou seja, além da pesquisa etnográfica se fez uso de dados qualitativos, quantitativos e georreferenciados para sustentar a hipótese, qual seja, que a letalidade policial não está fora do controle, nem em níveis caóticos e tampouco representa um desvio, mas sim que segue uma seletividade e recorrência específica, além de legitimação social. Busca-se, portanto, através de multimétodos compreender os padrões de homicídios policiais em roubos e furtos de carros em São Paulo.
A partir da premissa que o método não é um fim em si mesmo, mas visto como meio para se atingir o objetivo, várias análises se entrecruzaram. Através de trajetórias típicas dos veículos roubados, com respaldo dos dados do governo e seguradoras, tentou-se construir um quadro explicativo do funcionamento da economia informal e ilegal de veículos, e seus agentes envolvidos espacialmente: hierarquias de poder, disputas pelo mercado, o rastro do dinheiro (quanto custa, quem compra, quem vende, quanto custa para legalizar, etc., isto é, a rede complexa do crime organizado) e formas de atuação. Desse modo, cinco veículos que seguiam trajetórias típicas (local do roubo, destinação, formas de recuperação do veículo, etc.) foram analisados a fim de demonstrar características do conflito urbano e suas manifestações violentas. Quando os dados disponíveis eram confiáveis os pesquisadores tomava-os como principal elemento de construção das jornadas.
A elaboração das trajetórias típicas não foi em vão, dado que posteriormente os autores anexaram tal metodologia com o caso realçado inicialmente, quando um jovem pardo (Wellington), pobre e favelado foi morto pela polícia após roubar um veículo, tendo sido o local do crime forjado e apenas uma versão validada; no caso, a versão policial. Assim, foi possível vislumbrar que muitos casos seguiam o mesmo padrão, algo que os dados também demonstravam: a porcentagem de homicídios atrelados a roubos e furtos de veículos, o perfil socioeconômico, racial e a faixa etária, por exemplo. Interessante notar, segundo o texto, que apesar dos principais homicídios, assim como em todo o Brasil, ocorrerem em corpos negros e periféricos, o local dessas mortes por furto de veículos não ocorrem na periferia ou nas áreas ricas de São Paulo, mas sim na fronteira do conflito urbano entre ricos e pobres.
Os autores então buscaram analisar duas zonas – uma rica (Zona A) e um pobre (Zona B) - no intuito de compreender como ocorriam os assaltos, como se dava a atuação policial, o índice de letalidade e, assim, compará-las entre si. A partir disso, chega-se a algumas questões interessantes: primeiro, que a atuação policial ocorre de modo diferente entre ambas às áreas – o que não é novidade -, dado que na Zona A, a letalidade tem um efeito demonstração para realçar quem manda; segundo, que na Zona A há predominância de furto, enquanto que na Zona B de roubos, o que para os pesquisadores envolve toda uma questão simbólica de área vigiada e segura no tocante a Zona A, onde os métodos de ação criminosa devem ser mais elaborados e sutis e à ação policial mais técnica e pontual, mas, obviamente, quando necessário com alta letalidade. Além disso, perceberam que o roubo de veículos é um elemento fundamental para justificar a letalidade policial – geralmente, ações contra bens privados tem esse papel –, principalmente na Zona B, onde trabalhadores não dispõem de seguros automotivos.
Quando se olha os dados de letalidade policial de furto e roubo em ambas as zonas, mostra-se que a Zona A, em números relativos, é mais letal, enquanto que a Zona B o é em números absolutos. Porém, como destacado pelos autores, as vezes dados brutos não evidenciam a realidade. Por exemplo, a letalidade policial na zona A não advém diretamente após o roubo do veículo, mas sim em ações posteriores, no qual o veículo roubado foi utilizado para outras ações como assaltos a residências, fábricas ou sequestro-relâmpago; desse ponto, percebe-se a importância de combinar dados estatísticos com a pesquisa etnográfica, posto que sem as entrevistas apenas a perspectiva quantitativa seria validada.
O conflito armado se instala nas regiões de fronteira pois, como investigado pelos autores, muitos assaltantes desconhecem as áreas ricas, bem como possuem a percepção que são áreas vigiadas e com controle policial mais estrito. Destarte, buscam áreas de fronteira, mais próximas as favelas, onde se instala a classe média baixa. Por esse motivo, talvez, os crimes violentos não sejam mais frequentes nas áreas Ricas, onde as quadrilhas optam pelos furtos.
As bravatas bolsonaristas de restituição da ordem potencializam a legitimação do encarceramento e das mortes pelos moradores das periferias que tiveram seus carros roubados. Como demonstra o caso de Wellington, a legitimação social e política permite que nada ocorra aos policiais, que nenhum inquérito seja instaurado, dado que apenas uma versão é válida e não há qualquer confrontação. Para além da legitimação social, também pode-se pensar no corporativismo e nas justificativas de auto de resistência e legítima defesa. Como caso público e notório recente, vimos a tentativa de mudança no aparato jurídico, com o pacote anticrime enviado ao congresso nacional, que enquadrava tais atos automaticamente no excludente de ilicitude, revogando todo o processo jurídico.
Por fim, Feltran e Motta (2021) sublinham como a resposta oficial se divide em duas frentes para os roubos de carros: numa frente policiais perseguem e prendem, como uma força do bem reconstituindo a moral; e na outra frente, as seguradoras buscam recuperar os veículos de seus clientes, pensando muito mais no mercado, em seus ganhos, especificamente.
Apreciação crítica[editar | editar código-fonte]
O ponto alto do texto, para além de todas as informações trazidas, é a fortuna metodológica utilizada em conjunto para apreensão do objeto. Portanto, pela associação de métodos, que partindo de um caso particular como de Wellington, pode-se chegar a uma dinâmica marcada pela recorrência, além de informações relevantes sobre a fronteira do conflito armado e os mecanismos de operação da violência estatal em São Paulo.
Ver também[editar | editar código-fonte]
Violência urbana no Brasil ontem e hoje (disciplina acadêmica)
Referências[editar | editar código-fonte]
Feltran, G. (Org.). Stolen cars -a journey through São Paulo’s urban conflict. New Jersey: John Wiley & Sons. No prelo.
Feltran, G. (2010). Crime e Castigo Na Cidade: Os Repertórios Da Justiça e a Questão Do Homicídio Nas Periferias de São Paulo. Caderno CRH, 23(58), 59-73. doi: https://doi. org/10.1590/s0103-49792010000100005
Feltran, G. (2011). Fronteiras de Tensão: Política e Violência Nas Periferias de São Paulo. São Paulo: Editora UNESP/CEM.
- ↑ FELTRAN, Gabriel; MOTTA, Luana. Polícia e ladrão: Uma abordagem etnográfica em pesquisa multimétodos. RUNA, archivo para las ciencias del hombre, v. 42, p. 43-64, 2021.