Preconceito enquanto conceito

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Autoria: Platini Boniek Sardou[1]

Palavras-chave:  Preconceito. Vida Cotidiana. Pragmatismo. Ultrageneralização. Lutas de Classe.

Abordado nos telejornais, nas novelas, nas conversas do dia a dia, não é incomum ouvirmos e lermos sobre preconceito. Afinal, o que é preconceito? No minidicionário Houaiss da língua portuguesa[2], preconceito é definido como “opinião ou sentimento preconcebido, formado sem suficiente conhecimento”. Podemos partir dessa definição para responder nossa pergunta. Isso porque se o preconceito é uma opinião preconcebida com base em pouco conhecimento, então como se forma esse “pouco conhecimento” que dá existência ao preconceito? Em que processo ele se origina?

Como podemos notar, a tentativa de definição da palavra pode implicar em novas questões e perguntas no sentido de ampliar, reduzir ou complementar seu sentido. A busca por definição de um conceito, deste modo, no nosso caso sobre preconceito, tende a depender de uma série de fatores, sobretudo quanto ao referencial teórico, a metodologia empregada e os interesses sociais, econômicos, políticos e culturais que se pretende efetivar na estrutura, dinâmica e no movimento da sociedade. Isso implica dizer que nossa proposta não é estabelecer uma conceituação acabada, absoluta ou fechada sobre preconceito, mas trazer alguns elementos para pensarmos esse termo para além de sua definição inicial acima apresentada. Buscaremos, assim, uma aproximação conceitual presente na bibliografia de pesquisadores e entidades comprometidas com os direitos humanos.

Como ponto de partida vimos que preconceito diz respeito à opinião ou sentimento preconcebido, ou seja, previamente formado e caracterizado por insuficiência de conhecimento. Dois elementos são apresentados nesta formulação, um relacionado ao pensamento e outro ao sentimento. A forma de manifestação do pensamento preconceituoso, conforme a formulação inicial, tende a ser limitada do ponto de vista do conhecimento.

Também para Marilena Chauí[3], o preconceito é “uma ideia anterior à formação de um conceito”, é uma ideia preconcebida, “anterior portanto, ao trabalho de concepção ou conceitualização realizado pelo pensamento”. Para ela, dentre as características mais significativas, o preconceito exige familiaridade, proximidade, transparência, compreensão imediata e que não deixa dúvidas. Nesse sentido, ele não tolera o complexo, aquilo que ainda não é compreendido.

Outra marca do preconceito é que ele mobiliza sentimentos de medo, de angústia e de insegurança diante do desconhecido. Estes sentimentos se apresentam na forma de determinadas ideias “sobre as coisas, os fatos e as pessoas, criando os estereótipos, isto é, modelos gerais de coisas, fatos e pessoas por meio dos quais julga tudo quanto ainda não havia visto”.

Assim posto, o preconceito tende a reduzir o desconhecido ao já conhecido, ou seja, busca situar o que não é familiar ou próximo a elementos já conhecidos pela pessoa, o que provoca dificuldades no processo de apreensão do conhecimento. A forma de manifestação do preconceito tende a ser conservadora, portanto contrária à transformação, ao novo e ao diferente. Embora se apresente de forma conservadora, o preconceito, ainda conforme Marilena Chauí, também é contraditório, pois ele “ama o velho e deseja o novo, confia nas aparências mas teme que tudo o que reluz não seja ouro, elogia a honestidade mas inveja a riqueza, teme a sexualidade mas deseja a pornografia, afirma a igualdade entre os humanos mas é racista e sexista, desconfia das artes mas não cessa de consumi-las, desconfia da política mas não cessa de repeti-la”.

Esses traços do preconceito ainda deixam uma importante questão: como se formam as ideias preconcebidas que dão base e sustentação para as formas de preconceito? Porque, embora em parte o preconceito careça de conhecimentos mais ampliados, isso não significa que haja ausência absoluta de determinados níveis do saber. As distintas formas em que o preconceito se mostra na sociedade, seja nas relações interpessoais, na família, na escola, nas diversificadas manifestações religiosas, nas instituições do estado ou nas empresas privadas, ele pressupõe certo nível de enraizamento que o estrutura e o dinamiza em distintas dimensões da sociedade, como na política, na economia, na cultura, na moral, no direito etc. Em face de sua capilaridade e entroncamento, nota-se que o preconceito exerce significado específico, funções socioculturais, econômicas e políticas, e que tende ao espraiamento, tornando-o duradouro. O preconceito, assim considerado, tende a ser mais amplo, mais profundo e perene. Com estas características, o preconceito tem a potência necessária para aparecer no cotidiano em suas distintas maneiras, o que o torna mais complexo do que sua expressão no senso comum.

O cotidiano, conforme Agnes Heller[4], filósofa húngara que também se dedicou ao estudo do preconceito, possui uma estrutura específica que o torna propício ao aparecimento do preconceito. Isso porque as características da vida que se desenrola no cotidiano favorecem que neste espaço as formas de expressão do preconceito aconteçam. Dentre as características da vida cotidiana abordada pela filósofa e que possibilitam a manifestação do preconceito estão a ultrageneralização e o pragmatismo.

Para ela, as pessoas nascem inseridas na vida cotidiana de um certo tempo histórico e que o amadurecimento das pessoas implica aquisição de habilidades imprescindíveis que as possibilitem viver na sociedade em que nasceram. Esse processo de assimilação de habilidades ocorre por meio dos grupos que a pessoa está inicialmente inserida, seja na família, na escola, na comunidade. É deste modo que tais habilidades adquiridas pelas pessoas são também expressões das relações sociais. Trata-se da assimilação de comportamentos costumeiros, do ritmo da vida, das formas de explicação e justificação das ações em sociedade, que se dá em um processo repetitivo e regular, e que habilita as pessoas a exercerem na vida cotidiana diferentes atividades, seja no trabalho, em casa, na escola, no lazer etc.

Na vida cotidiana, as pessoas atuam, conforme nossa autora, sob a base da probabilidade entre as distintas atividades e as consequências delas. Para ela, “jamais é possível, na vida cotidiana, calcular com segurança científica a consequência possível de uma ação. Nem tampouco haveria tempo para fazê-lo na múltipla riqueza das atividades cotidianas”. Sendo assim, no caso médio, “a ação pode ser determinada por avaliações probabilísticas suficientes para que se alcance o objetivo visado”. O que significa que o pensamento na vida cotidiana está orientado para realização das distintas atividades, tornando possível o encontro imediato na unidade entre pensamento e ação. Deste modo, na cotidianidade o correto é também verdadeiro, o que possibilita a configuração de uma atitude pragmática. Neste caso, o correto da ação é verdadeiro quando viabiliza as pessoas a prosseguirem na vida cotidiana com os menores atritos possíveis. Não se trata exclusivamente do conteúdo verdadeiro do pensamento ou do juízo em questão, mas da verdade na correta atitude das pessoas em razão dos interesses e das exigências cotidianas da classe ou camada que elas pertencem.

A atitude pragmática, característica da vida cotidiana, também condiz a uma forma específica de pensamento próprio da vida cotidiana: trata-se do pensamento ultrageneralizador, que para Agnes Heller, também implica em comportamento. Na cotidianidade, as pessoas em suas distintas atividades estão postas diante de uma série de questões a serem respondidas ou resolvidas. Estamos, assim, diante de situações, de estímulos e problemas singulares a serem resolvidos. Para nossa autora húngara, temos de situar o aspecto singular das questões, do modo mais rápido possível, sob alguma universalidade ou, digamos, alguma generalização. O problema específico que surge em nossas atividades requer que o organizemos no conjunto de nossas ações no sentido de ser resolvido. Ocorre que nem sempre temos o tempo adequado para examinar todos os aspectos do caso singular, nem mesmo os decisivos. Neste quadro, temos de situar os problemas em sua singularidade o mais rapidamente possível sob o ponto de vista da tarefa colocada. E, para nossa autora, isso só é possível pela ajuda da ultrageneralização.

O pensamento e comportamento ultrageneralizador são juízos provisórios que a atividade das pessoas confirma ou que não refuta no tempo em que, baseados neles, possibilita-nos atuar e de nos orientar. De duas maneiras as pessoas acessam os juízos provisórios: ao assumir estereótipos, analogias e esquemas já elaborados; e quando eles são transmitidos pelo meio em que crescemos. O provisório dos juízos diz respeito ao fato de que eles se antecipam à atividade possível, mas que nem sempre encontram confirmação ou correção no processo da prática. Para Agnes Heller, os juízos provisórios, que se enraízam nas pessoas e que se baseiam na fé, são os que conformam os pré-juízos ou preconceitos. O que significa dizer que o preconceito é uma forma específica de juízo provisório.

Segundo nossa autora, preconceito é uma forma específica de manifestação de juízos provisórios que uma vez refutados pela ciência e por uma experiência cuidadosamente analisada, conserva-se inabalado contra todos os argumentos da razão. Para ela, há uma relação de fé (não necessariamente religiosa), enquanto afeto, com o preconceito, tratando-se não meramente do que se acredita, mas da relação e da necessidade satisfeita com o objeto da fé. A forma específica de afeto do preconceito, a fé, está em contradição com o saber, pois resiste ao pensamento e a experiência que a controlam, ou, digamos, que a refuta. Essa forma de afeto, aparece no par de sentimentos amor-ódio. E o ódio é orientado contra aquilo em que não se tem fé e também contra as pessoas que não crêem no mesmo que a pessoa preconceituosa. Uma consequência dessa forma de afeto é a intolerância emocional. A crença no preconceito, diz ela, é cômoda porque protege a pessoa preconceituosa de conflitos, na medida em que confirma as ações anteriores da própria pessoa.

O preconceito pode ser individual ou social. O primeiro se apresenta nas formas de expressão do preconceito que a pessoa tem em relação a alguém ou a uma determinada instituição sem que a fonte social do conteúdo do preconceito lhe faça falta. Por outro lado, Agnes Heller considera que a maioria das expressões de preconceito tem um caráter direto ou indiretamente social. O preconceito é assimilado de nosso ambiente, para depois ser aplicado espontaneamente a casos concretos através de mediações. Para ela, é na vida cotidiana, em sua dimensão social, que o preconceito é produzido. Esta produção está relacionada ao sistema de preconceitos estereotipados e aos estereótipos de comportamentos provocados pelas integrações sociais, e no seu interior pelas classes sociais, nas quais as pessoas estão inseridas. Nesta perspectiva, o preconceito tem origem na própria integração social, sobretudo nas classes sociais.

A função do preconceito, nesta linha de pensamento, serve para conciliar e manter a estabilidade e a coesão da integração social determinada historicamente. Mas tal função do preconceito não é necessariamente imprescindível à coesão da integração social enquanto tal, mas apenas àquelas que internamente se encontram ameaçadas. Para a autora, a maioria dos preconceitos são produtos das classes dominantes. Isso porque estas visam manter a ordem social, política e econômica vigentes e a coesão da estrutura social que lhes beneficia, mobilizando ainda as pessoas (ou classes e camadas antagônicas) que representam interesses diversos da classe dominante. Através do preconceito e das características que o possibilitam, como o conservadorismo, o pragmatismo e a ultrageneralização, a classe dominante consegue mobilizar setores da sociedade, inclusive segmentos da classe antagônica com vistas a efetivação dos interesses contrários a esta própria classe social. Neste ponto, ela cita como exemplo de manipulação, pela via do preconceito, do operário alemão, que nos termos dela, entregou-se “de corpo e alma” a Hitler, na Alemanha nazista.

Por fim, para nosso percurso pela perspectiva de Agnes Heller, chegamos ao ponto em que a autora considera que a classe burguesa é a que produz em maior medida as distintas expressões de preconceito. Isso porque, não somente em razão de suas maiores possibilidades técnicas, mas também em virtude de seus esforços ideológicos, pois, por um lado, a pretensão da classe burguesa é universalizar seus valores e sua ideologia, já por outro lado, o processo de coesão da sociedade burguesa, desde o início, foi mais instável que as da Antiguidade ou do Feudalismo Clássico. Por esta razão, para ela, “os chamados preconceitos de grupo (os preconceitos nacionais, raciais, étnicos) só aparecem no plano histórico, em seu sentido próprio, com a sociedade burguesa”.

Por certo, trouxemos aqui apenas parte do pensamento de Agnes Heller, cujo texto é certamente muito mais rico do que as simplificações aqui apresentadas. No entanto, para a nossa pergunta norteadora, podemos derivar dessa perspectiva, sem atribuir nossa derivação ao pensamento da autora, que o preconceito em algum grau tem vinculação com os interesses das classes que se confrontam na sociabilidade.

João Ubaldo Ribeiro[5] ao analisar o conceito de política, informa que este, em qualquer de seus usos, refere-se ao exercício de alguma forma de poder. Esta referência ainda inicial apresentada pelo autor, é desdobrada com a perspectiva de que a política está relacionada com “quem manda, por que manda, como manda”. E mandar é decidir, conseguir apoio ou até submissão. Esta noção encontra-se com o preconceito pelo fato de que, para o autor, nesta perspectiva inicial apresentada, a pessoa preconceituosa está submetida a alguma forma de poder. Para ele, o preconceito não é natural, mas é operado através da aprendizagem, que é socialmente determinada, portanto, trata-se de processos de intercâmbio e de influências sociais. Assim para ele, por exemplo, “o preconceito racial, (...), tem origem e funcionalidade políticas, ou seja, tem servido para justificar formas de exploração e dominação, assumindo muitas facetas, de acordo com as circunstâncias”.

Para concluir nosso percurso, pensemos em como Michael Löwy[6], em seu livro Ideologia e Ciência social, aborda, também nas páginas iniciais, o movimento que o conceito de preconceito faz na transição das formas assumidas historicamente pela corrente de pensamento do Positivismo (enquanto ciência da sociedade que surge no século XVIII). Neste período da história, conforme Löwy, momento em que se desenvolve a chamada filosofia das luzes (Iluminismo), a classe dominante e sua respectiva forma de pensamento, representada pelo Clero, pelos senhores feudais, pelo absolutismo, é confrontada pelos enciclopedistas, que neste momento apresentam uma visão de mundo de certo modo revolucionária. Os pensadores enciclopedistas cunharam de preconceito toda a forma de dogma irracional, dogma político e religioso, no sentido de libertar o pensamento e o conhecimento social. Esta posição dos pensadores das luzes voltava-se contra a classe dominante do período, abrindo caminho para o então desenvolvimento e expansão da classe burguesa para os domínios da política e da cultura. Após a ascensão da burguesia ao poder, no interior da própria corrente positivista o conceito de preconceito desloca-se para uma função conservadora. No período da Revolução Francesa, era preconceito as formas de expressão das classes dominantes, preconceito clerical e absolutista. Neste momento, o positivismo apresenta-se com uma visão de certo modo revolucionária. Passada a fase revolucionária, da luta utópica, crítica, adentra-se ao período da luta conservadora, tornando-se preconceito as manifestações políticas de cunho revolucionário.

Sem conduzir nosso percurso sobre o conceito de preconceito a uma definição acabada e fechada, podemos constatar que o conceito, embora possa se apresentar como uma manifestação de pensamento, sentimento e comportamento baseado em estereótipos formados a partir de pré-noções ou juízos prévios, fundados em insuficiência de conhecimento, as raízes que sustentam as distintas formas de expressão do preconceito que se manifestam na vida cotidiana não implicam insuficiência de conhecimentos. O preconceito, assim posto, requer formas de sociabilidade que o possibilita exercer sua função política (de domínio), função de exploração (econômico) e função cultural (privilégio social). O preconceito vale-se do recurso da hierarquização social, de modo que o possibilita classificar e estereotipar pessoas, coisas, instituições e comportamentos. Também o preconceito apresenta-se como técnica política no âmbito das lutas sociais, informando interesses políticos, econômicos e culturais antagônicos. Preconceito, portanto, é muito mais que um conceito. É movimento sociocultural. Está em constante transformação e adensa definições mais ou menos precisas no interior das lutas sociais das classes e suas frações.

  1. Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista pela Instituto Nacional de Câncer (INCA). Graduando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
  2. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
  3. CHAUI. M. Senso comum e transparência. In: J. Lerner (Org.). O preconceito. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1996/1997. Disponível em: <https://www.dhnet.org.br/direitos/sos/discrim/preconceito/sensocomum.html>. Acesso em: 14 de abril de 2024.
  4. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. (Tradução: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder).
  5. RIBEIRO, João Ubaldo. Política: quem manda, por que manda, como manda. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
  6. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 20ª ed. São Paulo: Cortez, 2015 (capítulo 2: Positivismo, pp.46-86).