Produção de dados em favelas e periferias em busca de memória, verdade e justiça (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

A intenção da IDMJRacial é estimular a produção de distintos conhecimentos e diagnósticos baseados em um arcabouço crítico, com centralidade nas questões de classe, raça, território e gênero. A produção de dados e contranarrativas que estamos nos propondo a realizar é exclusivamente para orientar nossa atuação política na defesa do direito à vida da população preta.

Autoria: Giselle Florentino e Fransérgio Goulart[1][2]

Sobre o artigo[editar | editar código-fonte]

Este artigo é fruto do trabalho e da militância incansável da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial) na defesa do direito à vida e na luta por memória, verdade e justiça. Somos uma organização que atua com ações de enfrentamento à violência de Estado, a partir da centralidade do racismo e o combate ao privilégio da branquitude.

Nossa ação territorial se desenvolve na Baixada Fluminense/RJ e atuamos para garantir o direito à memória das vítimas e familiares da violência do Estado. Temos como missão institucional promover um sentimento coletivo de reprovação a qualquer tipo de violação cometida pelo Estado e entendemos a justiça racial como instrumento de reparação histórica. Acreditamos na importância da construção de contra - narrativas negras, periféricas e faveladas sobre segurança pública para combater o racismo estrutural e a reprodução de narrativas racistas na mídia hegemônica, que colaboram para a criminalização de corpos negros. Defendemos a necessidade de movimentos e organizações sociais promoverem a produção e sistematização de indicadores sociais, principalmente sobre violência policial e letalidade.

Perfil do Estado[editar | editar código-fonte]

Temos um Estado racista, genocida, elitista, patriarcal, cristão e heteronormativo que incentiva um discurso de militarização fundado em um racismo estrutural no qual matar pobres, pretos e favelados é sinônimo de “eficiência” nas políticas de segurança pública. As estatísticas sobre violência produzidas pelo Estado fundamentam o arcabouço ideológico racista, punitivista e encarcerador das políticas de segurança pública e do sistema prisional. Tais dados são construídos a partir das versões de agentes de segurança pública, que legitimam uma atuação militarizada e genocida dos órgãos de segurança pública, orientados por métricas de apreensão de drogas, armas e privação de liberdade em áreas faveladas e periféricas sob o argumento de enfrentamento a dita “guerra às drogas”.

Os dados estatais são limitados e incompletos. A ausência de informações sobre violência urbana e as subnotificações de crimes formam um cenário de precarização na produção de dados. A política pública da ausência, da falta de informações e dos dados não contabilizados constitui um dispositivo político de morte. Por isso é importante a produção de contranarrativas para expor as cotidianas violações de direitos humanos provocadas pelo Estado. Os movimentos sociais e as organizações sociais têm sido protagonistas na construção de metodologias criativas para produção de dados e diagnósticos sobre violência nas favelas e periferias.

Dados sobre operações policiais[editar | editar código-fonte]

A IDMJRacial é pioneira na criação de dados sobre operações policiais[3] realizadas na Baixada Fluminense e no mapeamento de cemitérios clandestinos[4], assim como na sistematização da letalidade policial e de indicadores de violência urbana[5], apreensão de armas e drogas[6] e de violência contra as mulheres[7]. Nossa intenção é estimular a produção de distintos conhecimentos e diagnósticos baseados em um arcabouço crítico, com centralidade nas questões de classe, raça, território e gênero. A produção de dados e contranarrativas que estamos nos propondo a realizar é exclusivamente para orientar nossa atuação política na defesa do direito à vida da população preta.

Nossos dados são prioritariamente produzidos para e com a população preta e/ou pobre para gerar denúncias, visibilidade, indignação e revolta. Sobretudo, para estimular movimentos insurgentes que sejam capazes de enfrentar quem nos executa e encarcera. Inclusive, por questão de proteção, optamos por não divulgar uma série de arbitrariedades que ocorrem nos territórios favelados e periféricos. Utilizamos essas informações para promover o controle social. Afinal, nosso comprometimento é com a luta social, com favelas e periferias. Nossa produção e conhecimento sempre estarão a serviço de um projeto político coletivo, autônomo, periférico e preto. Nossa legitimidade, expertise e validação vem do chão das favelas, dos becos das periferias, do barro do campo e da indignação daqueles que estão do lado de fora dos jantares da elite econômica deste país. A sociedade já compreendeu que é cada vez mais importante a realização de incidência política popular como instrumento estratégico para a proteção da vida, da memória, e para a promoção de justiça racial para o povo negro.

Atualmente estamos construindo, com outras organizações, movimentos sociais e partidos políticos a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 6351, que foi ajuizada em novembro de 2019 no Supremo Tribunal Federal (STF). A iniciativa questiona a política de segurança pública genocida realizada pelo estado do Rio de Janeiro. Esta ADPF foi elaborada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e hoje conta como amicus curiae: a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Justiça Global, Conectas, Educafro e Redes da Maré, e como peticionários o Coletivo Fala Akari, Movimento Mães de Manguinhos, Coletivo Papo Reto, Movimento Negro Unificado/MNU, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência e IDMJRacial. A ADPF 635 propõe que o estado do Rio de Janeiro elabore e encaminhe ao STF um plano de redução da letalidade policial e de controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses, com medidas objetivas, cronogramas e previsão dos recursos para sua implementação.

A ADPF 635 inclui o fim do uso dos blindados aéreos (caveirões aéreos) em operações policiais, a proteção a escolas, garantia do direito de participação e controle social nas políticas de segurança pública, acesso à justiça e construção de perícias e provas que incluam a participação da sociedade e movimentos sociais nas investigações de casos de homicídios e desaparecimentos forçados. Em relação ao primeiro julgamento no STF tivemos algumas vitórias, como voto favorável à restrição do uso do blindado aéreo (caveirão voador), proteção das comunidades escolares no momento de operações e investimento na construção de provas e perícias para elucidação de investigações. Alguns pontos foram negados, como o parecer sobre ações que envolviam a responsabilidade do Ministério Público do Rio de Janeiro na falta de controle das polícias. Em relação aos mandados coletivos de busca e apreensão, houve parecer contrário porque a jurisprudência do STF sobre o assunto já proíbe tais ações e teria necessidade desta decisão na ADPF.

A ADPF das Favelas tem por objetivo transformar a política de morte dos aparatos policiais no Estado do Rio de Janeiro. Em 6 de junho de 2020, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, através de uma liminar, decretou a proibição de operações policiais durante a pandemia de Covid-19 no Rio de Janeiro, porém essa não foi a realidade. No primeiro quadrimestre após a expedição da liminar houve grande diminuição do número de operações policiais na Baixada Fluminense, com queda da letalidade policial. Isso foi confirmado por registros de autos de resistências e de homicídios em favelas e periferias. Entretanto, após o período inicial, verificamos amplo desrespeito à liminar com aumento dos índices de violência.

Os movimentos sociais, coletivos e organizações sociais que integram a ADPF das Favelas seguem enfrentando a máquina do Estado, que continua a tombar corpos negros em favelas e periferias. Os indicadores de letalidade e a quantidade de operações realizadas pela Polícia Civil e Militar não são fornecidos pelos órgãos oficiais. Por que esta informação é sigilosa? A dor, os assassinatos e chacinas são visíveis durante as operações policiais com caveirões, camburões, drones e helicópteros. A execução de corpos pretos é uma escolha política do Estado. Mesmo com dispositivos de controle de operações policiais, o governo do Rio de Janeiro continua sua rotina de terror e violência policial nas áreas periféricas e de favelas. A história da resistência negra nos possibilita pensar maneiras de reorganizar o enfrentamento à violência de Estado. Atos antirracistas eclodiram por todo o mundo, com o debate sobre racismo estrutural e formas de sociabilidade pautadas na emancipação e liberdade do povo negro.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Chacinas no Rio de Janeiro

Movimento Negro Unificado

Mapa Covid

  1. Giselle Nunes Florentino é graduada em Ciências Econômicas na UFRRJ/IM, mestranda em Sociologia no Iesp-Uerj e coordenadora executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – IDMJRacial. | Fransérgio Goulart é graduado em História na Uerj e coordenador executivo da Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial - IDMJRacial.
  2. Artigo publicado originalmente no relatório "Direitos humanos no Brasil 2023: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos". Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.social.org.br/images/pdf/2023/relatorio_2023.pdf.
  3. Guerra aos Pretos - Relatório sobre Drogas e Armas na Baixada Fluminense. Disponível em: https://dmjracial.com/2022/09/22/lancamento-guerra-aos-pretos-relatorio-sobre-drogas-e-armas--na-baixada-fluminense/.
  4. Boletim Desaparecimentos Forçados 2023 - Violações, Genocídio e Torturas. Disponível em: https://dmjracial.com/2023/08/30/lancamento-boletim-desaparecimentos-forcados-violacoes-genocidio-e-tortura/.
  5. Boletim Segurança Pública em tempos de Covid-19 na Baixada Fluminense. Disponível em: https://dmjracial.com/wp-content/uploads/2022/02/Boletim-de-Seguranca-Publica-2022-1.pdf. .  
  6. Guerra aos Pretos - Relatório sobre Drogas e Armas na Baixada Fluminense, op. cit.
  7. Boletim Feminicídios e Segurança Pública na Baixada Fluminense. Disponível em: https://dmjracial.com/wp-content/uploads/2023/03/Boletim-Feminicidios-2023-3-1.pdf.