Sujeito Periférico
Entrevista concedida pelo cientista social e pesquisador Tiaraju Pablo D’andrea para a BBC News Brasil, em 29/01/2023. O tema da entrevista é o "sujeito periférico", conceito que formulou em seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), em 2013, a partir de uma análise da atuação de coletivos sociais e culturais de bairros populares da capital paulista.
Autoria: Tiaraju D’andrea (entrevistado) Leandro Machado / BBC Brasil (entrevistador)
Fonte: Informações do verbete reproduzidas, pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a partir do Blog Outras Palavras[1] e BBC News[2] Brasil.
Entrevista[editar | editar código-fonte]
Para o cientista social e pesquisador Tiaraju Pablo D’andrea, melhorias nas condições de vida e um maior acesso de moradores das periferias das grandes cidades à educação proporcionaram o surgimento de uma geração de jovens com um consciência de pertencimento e de ação política: o sujeito periférico.
Em entrevista à BBC News Brasil, D’andrea explicou que a atuação política desses jovens acontece em vários setores da sociedade, como a academia, cultura, imprensa e mercado de trabalho. Eles atuam para visibilizar, reivindicar e reconhecer as periferias como local de origem e de potência criativa, e não apenas de precariedades, diz.
“As melhores soluções para a consolidação da democracia no Brasil saem das periferias”, afirma D’andrea, de 42 anos.
Ele formulou o conceito de “sujeito periférico” em seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), em 2013, a partir de uma análise da atuação de coletivos sociais e culturais de bairros populares da capital paulista.
No final do ano passado, o estudo foi atualizado e relançado no livro A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos (Editora Dandara).
D’andrea explica que a “sujeita e o sujeito periférico são aqueles que se deram conta dessa condição e compreendem que a vivência no território os constituem como seres humanos. Essa consciência de pertencimento leva a uma ação política de reivindicação e afirmação da periferia.”
O cientista social aponta que o “sujeito periférico” emergiu na década de 1990 durante uma onda de assassinatos que vitimou milhares de jovens negros e pobres, mas também após o fortalecimento de coletivos culturais que tentavam mostrar outras características desses locais para além do estigma da violência e da pobreza.
Nascido na Vila União, periferia da zona leste de São Paulo, Tiaraju Pablo D’andrea hoje dá aulas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, e também é professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o Centro de Estudos Periféricos.
Na entrevista à BBC, ele também falou sobre o papel do homem branco e pobre na luta antirracista, a participação da periferia nas eleições de 2022 e como o “sujeito periférico” ainda encontra barreiras e resistências para ocupar posições de liderança nas universidade e no mercado de trabalho.
Confira a entrevista abaixo.
Quem são os ‘sujeitos periféricos’?[editar | editar código-fonte]
Antes, é preciso explicar o conceito das subjetividades periféricas. São formas simbólicas de caráter e de enxergar o mundo que se dão a partir de relações sociais nas periferias, diferentes de outras experiências urbanas e de classe.
Uma pessoa que nasce e cresce em Guaianases (extremo leste de SP) vive em um território com precariedades: a educação é de menor qualidade, o transporte público é ruim, a polícia age de determinada maneira.
Por outro lado, Guaianases é um local heterogêneo: tem uma presença negra e nordestina muito expressiva, inúmeras igrejas evangélicas, terreiros de candomblé, rodas de samba, bailes funk, futebol de várzea… Todas essas relações múltiplas formam o que chamo de subjetividade periférica. No limite, todo morador da periferia tem essas subjetividades, e elas não são exatamente iguais.
Já a sujeita e o sujeito periférico são aqueles que se deram conta dessa condição e compreendem que as vivências no território os constituem como seres humanos. Essa consciência de pertencimento leva a uma ação política de reivindicação e afirmação da periferia. Essa pessoa pensa: ‘sou nascido e criado em um bairro popular e isso potencializa minha vida, mas também me traz limitações. Por isso, vou agir politicamente a partir da minha visão de mundo’.
E onde acontece essa ação política?[editar | editar código-fonte]
Na universidade, no Estado, empresas, meios de comunicação, coletivos feministas, movimento negro, nos coletivos de arte, na cultura, partidos… É bom pontuar que há uma questão temporal.
A periferia sempre reivindicou melhorias das condições de vida. Nos anos 1970 e 1980, havia movimentos populares que lutavam por moradia, saneamento, saúde pública e creches. Eram movimentos da classe trabalhadora.
Mas essa nova forma de agir politicamente e de se enxergar como periférico começou nos anos 1990 por uma série de características e movimentos, como o fortalecimento dos coletivos de cultura e um maior acesso da população pobre ao ensino superior.
Qual a diferença para a geração anterior?[editar | editar código-fonte]
Antes dos anos 1990, a classe trabalhadora não reivindicava os termos ‘periferia’ e ‘favela’ de maneira política. Eram movimentos populares e de trabalhadores que lutavam por melhorias das condições de vida.
Já a geração dos anos 1990 foi marcada por um genocídio nos bairros pobres, principalmente da população negra. Nessa época, ocorreu um movimento de pacificação, que vai encontrar na arte e na cultura, fundamentalmente no rap, sua melhor maneira de fazer política.
Os Racionais MCs são o maior expoente desse período, denunciando para a sociedade o massacre que estava acontecendo, mas também reivindicando o território e suas características.
A partir daí acontece uma ‘primavera cultural periférica’, com a proliferação de coletivos que vão atuar no hip-hop, no audiovisual, universidades, teatro, jornalismo, música e outras linguagens. A gente vive esse momento até hoje.
Nesses ambientes, o que esse ‘sujeito periférico’ pode fazer para não se ver na posição em que só consegue falar sobre periferia?[editar | editar código-fonte]
Essa é uma armadilha criada por nós mesmos, quase uma armadilha da identidade.
Faço parte de uma geração que reafirma a periferia. E é fundamental reafirmar, visibilizar, colocar na pauta pública quais são os dilemas de se morar em um bairro periférico com precariedades.
Mas é fundamental que isso leve a uma luta concreta de reivindicações, como melhorias na saúde, na educação, no transporte público.
Isso não exclui que possamos falar sobre outros temas universais a partir desse lugar de sujeito periférico. Não é negar as origens, as marcas e os traumas. E, sim, como essas experiências nos constituem e nos dão a possibilidade de falar de qualquer coisa.
Como fazer isso?[editar | editar código-fonte]
No final do livro eu proponho formar uma tríade. Uma parte é nossa vivência e experiências acumuladas. O que só a gente sabe sobre o território e sobre andar pela cidade? Qual é a nossa leitura do mundo?
Mas é preciso formar uma teoria que explique essa vivência. O que quero dizer com isso?
Por exemplo, moro em um bairro popular, e tenho de entender como ele foi formado, por que a distância entre minha casa e o centro me traz tantos problemas no trabalho, por que meu bairro tem esgoto a céu aberto, por que existe maior precariedade em relação a outros locais.
A partir dessa teoria, o terceiro ponto é formar um projeto político de reivindicação da periferia, com uma proposta de sociedade e de transformações, superando os traumas e ressentimentos, senão a gente só fica escorregando e caindo.
Você acredita que essa geração conseguiu ocupar postos de poder?[editar | editar código-fonte]
Sim, parte dessa geração começou a ter acesso à universidade e a pleitear postos de poder. Mas é importante fazer uma ressalva: a maior parte dos moradores das periferias continua vivendo em situações precárias e subordinadas economicamente. Não podemos tratar de maneira binária.
A gente tem que assumir que uma parcela de jovens periféricos melhoraram de vida e estão na universidade, nas empresas, nos meios de comunicação colocando sua pauta, mas não podemos cair em falácias como a frase ‘a favela venceu’.
Por que você não concorda com essa frase?[editar | editar código-fonte]
Na verdade, a favela perdeu. Essa frase mistifica alguns casos de pessoas bem-sucedidas, usa um discurso triunfalista.
Mas a verdade é que a maioria ainda vive de maneira precária. Temos 33 milhões de brasileiros passando fome. Todos os dados mostram que as condições de vida dos mais pobres pioraram muito nos últimos anos.
Você acredita que o jovem periférico, mesmo inserido nas empresas e na academia, tem mais dificuldades de crescer profissionalmente e assumir essas posições de poder?[editar | editar código-fonte]
Com certeza. Em minha própria trajetória acadêmica encontrei muitas barreiras e boicotes. Tenho plena consciência que minha condição de homem branco me facilitou alguns acessos. Mas a condição de classe fechou outras portas. A burguesia brasileira estipula um teto, como se dissesse: ‘daqui você não pode passar’.
O Brasil é um país com mentalidade escravocrata. A elite econômica é muito pequena, mas é organizada e tem estruturas para manter o poder e beneficiar ela própria, formando ‘panelinhas’. Poucas pessoas negras e de origem pobre conseguem furar essa estrutura. Quando conseguem, causam um terremoto.
Embora o acesso à universidade tenha aumentado, ele é muito pequeno em relação ao tamanho da população negra e periférica do Brasil.
Como você disse, a periferia é heterogênea e, em grande parte, formada pela população negra. Mas há uma parcela importante de pessoas brancas e pobres, também. Qual é a reflexão que o branco e periférico pode fazer sobre sua condição e o lugar onde vive?
O Brasil é um país racista. Então, o homem branco e periférico já tem privilégios em comparação ao homem negro, e principalmente à mulher negra. Ele tem mais facilidade de circular pela cidade e acessar determinados espaços, porque a sociedade se estrutura por raça e classe.
Isso não quer dizer que a vida dele está resolvida. Ele não pode acreditar na ilusão de que sua condição racial vai salvá-lo. Ele não será incorporado pela burguesia branca, porque as amarras de classe são muito bem estruturadas.
Acho que ele precisa ter consciência dessa opressão e de que a periferia é o local ideal para uma aliança interracial e de luta antirracista. Também existe racismo na periferia, mas nos bairros populares, até pela conformação urbanísticas e geográfica, existe uma convivência maior entre brancos e negros do que em em regiões mais ricas.
Qual a contribuição das periferias urbanas para o Brasil?[editar | editar código-fonte]
As melhores soluções para a consolidação da democracia no Brasil saem e saíram das periferias, como a formação do Partido dos Trabalhadores (PT).
O próprio Sistema Único de Saúde (SUS) surgiu depois de uma mobilização de mulheres trabalhadoras do Jardim Nordeste (zona leste de SP) e que se espalhou pela cidade e acabou entrando na Constituição de 1988.
Da periferia vêm os Racionais MCs e todo o movimento hip-hop, as rodas de samba, o funk, a literatura, coletivos de arte. Temos que ter muito orgulho desse legado. Muito disso depois é incorporado pela intelectualidade, às vezes com outro nome.
No livro, você explica que o recepção ao termo ‘periferia’ mudou ao longo do tempo. Como isso aconteceu?[editar | editar código-fonte]
Ela era usada em debates econômicos nas décadas de 50 e 60 sobre a inserção do Brasil no capitalismo do mundo. O Brasil era um país da ‘periferia do capitalismo’, conforme estudos de Caio Prado Jr. e do próprio Fernando Henrique Cardoso.
A partir da década de 60, grandes cidades latino-americanas incharam muito, com a industrialização e a migração da zona rural. Essas pessoas passaram a viver em áreas muito empobrecidas.
O termo periferia começou a ser usado por pesquisadores para designar esses locais. A própria Igreja Católica tinha um projeto de atuação nos bairros chamado ‘Operação Periferia’. Mas, naquela época, a palavra ainda tinha um caráter de estigmatização.
Depois, já nos anos 80 e 90, a periferia foi tratada nos grandes jornais e na televisão como o lugar da pobreza e da violência, o local onde os criminosos moravam. Em minha pesquisa, entrevistei moradores dessa época, que disseram que não usavam a palavra periferia, porque era um termo que carregava um estigma e as pessoas tinham vergonha de falar.
Mas a partir da violência dos anos 90, houve uma reversão desse discurso e outros sentidos foram criados para a periferia. É aí que o termo ganha potência e um significado de orgulho e de valorização do território. Embora ainda existam muitas mazelas, as pessoas começam a se sentir pertencentes, a ver beleza no lugar onde elas nasceram e cresceram. E dizem: ‘a periferia não é isso que vocês falam, a periferia é isso aqui que estou dizendo.’
Como você enxerga a migração do jovem da periferia para regiões mais centrais? Como ele lida com o estranhamento dentro da própria cidade?[editar | editar código-fonte]
Existe sensação de desterro, de limbo permanente. Esse jovem tem uma infância pobre em um bairro da periferia e, por circunstâncias da vida, consegue acessar espaços da classe média, como a universidade ou ambientes de trabalho.
Nesses locais, ele vive outros tipos de relações profissionais, sociais e de amizade. Mas São Paulo é uma cidade muito segregada e muito marcada por divisões sociais e raciais. Essas questões têm um peso muito grande.
Para chegar na Pompeia e em Perdizes (zona oeste de SP), não é apenas um deslocamento geográfico, mas também simbólico. A paisagem e as pessoas mudam. Chega uma hora em que ele pode não se sentir como parte de nada, porque o círculo de classe média não tem as referências de sociabilidade da periferia… O futebol de várzea, a roda de samba, a conversa no boteco e na calçada.
Mas também há um momento em que a própria relação com as pessoas da quebrada e da infância não se completa mais, porque nossa cabeça também muda. No fim das contas, fica a dúvida sobre a qual mundo ele realmente pertence. A quais as relações e círculos sociais ele pertence? Muita gente passa por esse dilema.
Como você avalia a participação da periferia de São Paulo nas eleições do ano passado?[editar | editar código-fonte]
Normalmente, a análise que se faz é pintar os distritos da cidade de uma cor e dizer: ‘esse distrito aqui deu vitória a Bolsonaro, logo, é um bairro bolsonarista’.
É mais complexo que isso: se um candidato teve 51% e outro 49%, não significa que aquele distrito é azul ou vermelho, mas que há divisões internas e diferentes maneiras de pensar. Em São Paulo, há bairros mais periféricos, principalmente nos extremos da zona leste e zona sul, onde normalmente a esquerda tem uma votação maior.
Nessas regiões o PT teve uma atuação importante, com políticas que melhoraram a vida dos pobres, como mutirões de moradia popular, Bilhete Único, Bolsa Família, os CEUs (Centro Educacional Unificado)… Mas esses locais também votaram em Bolsonaro em 2018, como a maior parte da sociedade.
A grande questão são os bairros tradicionais que ficam no meio, como Penha, Sapopemba, Freguesia do Ó, Mandaqui… Nesses locais há uma pequena burguesia que reverbera o discurso do medo, principalmente o medo do pobre que está ascendendo.
Então as pessoas podem votar na direita, mas isso vai depender se existe um discurso mais conservador na sociedade. Por outro lado, essas regiões também podem votar na esquerda. Depende muito das circunstâncias.
Já em outros bairros, como Anália Franco, Mooca e Tatuapé (todos na zona leste), formados principalmente por uma população que ascendeu economicamente, há uma tendência de incorporar o discurso conservador de maneira mais radical. O Tatuapé foi o distrito onde Bolsonaro teve sua maior votação percentual em São Paulo.