Território e ocupação: afinal, de que regime se trata? (artigo)
O artigo aborda o tema da segurança pública no Rio de Janeiro e, mais especificamente, trata de violências praticadas por policiais da Unidades de Polícia Pacificadora em uma favela situada no bairro da Tijuca, o Morro do Borel, e movimentos de moradores locais em busca de seus direitos.
Autoria: Márcia Pereira Leite[1]
Texto publicado no Le Monde Diplomatique, em fevereiro de 2013.
Artigo[editar | editar código-fonte]
Ainda estão vivas na memória dos moradores do Rio de Janeiro cenas de traficantes de drogas empunhando suas armas e obrigando os moradores de favela a cerrar as portas de seus bares e lojas, diretores a fechar suas escolas, todos a permanecer em casa, em silêncio e medo, porque assim queria o dono do morro como luto por algum comparsa morto pela polícia. Tirania do tráfico, sem dúvida. Mas e quando o Estado, por meio de seus funcionários, reproduz esse procedimento?
Na quarta-feira, 28 de novembro, às 21 horas, no Morro do Borel, Tijuca, os policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local também percorreram as ruas da favela, de armas em punho, exigindo que os moradores fechassem seus comércios, saíssem das ruas, ficassem dentro de casa. Não havia dúvidas de que a ordem tinha de ser obedecida. Senão – nas palavras de um morador –,“o couro come”, pois “eles” voltam para controlar.
Não foi a primeira vez no Borel, nem esta a primeira localidade a ser atingida pela violência e arbitrariedade que vem marcando o Programa Estadual de Pacificação de Favelas por meio da introdução de UPPs. Apresentado como retomada desses territórios pelo Estado para proporcionar a seus moradores segurança e cidadania (o fim do fuzil e as pequenas revoluções de que nos fala o secretário José Mariano Beltrame no site das UPPs), esse programa continua, no entanto, a operar com as favelas como espaços de exceção. Quando dominadas por bandos de traficantes armados, a exceção era justificada pela presença dos fuzis, da necessidade de guerra ao tráfico de drogas e de enfrentar a suposta conivência dos moradores com este. Atualmente, nas mais de vinte favelas onde as UPPs foram instaladas, a exceção continua a ser, se não explicitamente justificada, ao menos considerada e tolerada, na admissão da violência e brutalidade policial contra os moradores, da discricionariedade policial na administração da sociabilidade e vida cotidianas, da intromissão na (e eventualmente usurpação da) representação política local.
Não é que não se saiba que isso acontece. Nem tampouco que as autoridades de segurança pública não afastem aqueles que designam maus policiais (muitas vezes deslocando-os para outras UPPs) nem prometam apuração rigorosa e punição exemplar. Entretanto, com quatro anos de existência do programa desde a primeira UPP introduzida no Santa Marta em dezembro de 2008, as mesmas questões continuam a se repetir. Revelam, pois, que, para além de tal ou qual funcionário do Estado (policial), que “toca o terror em seu plantão”, como reiteradamente dizem os moradores de várias favelas com UPPs, o cerne do problema é a modalidade de presença do Estado nos territórios de favela.
Com efeito, ao ocupar as favelas com as UPPs, operando com uma lógica de controle social repressivo e civilização dos moradores como pré-requisito para a integração urbana, social, desses territórios e de seus moradores à cidade e à sociedade, o Estado passa ao largo das exigências da cidadania. Atua nas favelas considerando-as, na prática, espaços de exceção, ou seja, no novo regime territorial aplicado por meio das UPPs combinam-se, dependendo da discricionariedade dos agentes policiais nelas lotados, legalidade e ilegalidade, práticas legítimas e ilegítimas, normas e procedimentos legíveis e ilegíveis. Nesse sentido, pouco se diferencia do regime territorial imposto pelo tráfico de drogas.
Os moradores de favela sabem perfeitamente disso. E é contra isso que se rebelam em seus fóruns, organizações de base, movimentos. Foi contra isso que organizaram o Ocupa Borel às Nove (acompanhado pelo Ocupa Alemão às Nove),uma semana depois dos incidentes que relatamos no início deste artigo.
O nome do movimento, divulgado sobretudo por redes sociais e com apoio de entidades de direitos humanos, ONGs, universidades e algumas instituições estatais, fazia uma referência clara à ocupação militar, mas certamente também evocava em seu formato o Ocupar Wall Street e convocava para uma espécie de desobediência civil. A proposta foi ocupar as ruas das localidades, recuperar o espaço público pelos e para os moradores, exercer livremente sua sociabilidade e praticar sua cultura, desafiar a disciplinarização pretendida pelas UPPs e protestar contra o controle social repressivo a que os moradores estão submetidos. E, durante cerca de três horas, os moradores do Borel foram, pela primeira vez em muitos anos, os donos do morro. Cantaram, discursaram, protestaram, dançaram funk, sambaram, versaram. Saíram afinal da Rua São Miguel até o Terreirão, subindo a Estrada da Independência em uma caminhada festiva, que celebrava o território reconquistado ainda que apenas por breves momentos.
A polícia militar não interveio. As autoridades de segurança pública prometeram apurar os fatos do toque de recolher decretado pela UPP, mas, pelo menos até agora, não vieram amplamente a público com os resultados. Conversas no sentido de um entendimento entre a UPP local e o Fórum de Entidades do Borel foram feitas. Os moradores aventaram a possibilidade de planejar com as organizações de base de outras localidades um Ocupa Favela às Nove, nas semanas seguintes. Todas essas gestões, como se sabe, apresentam dificuldades que não podemos desenvolver neste texto. Mas o que eu gostaria de destacar é que o Ocupa Borel às Nove revelou, nos discursos de seus militantes, em sua Carta Aberta às Autoridades Públicas, na busca de possíveis aliados dos moradores e, sobretudo, na forma de ocupação do espaço público, uma crítica incisiva ao regime territorial introduzido pelo Programa de Pacificação nas favelas e uma disposição de enfrentá-lo com as armas possíveis. Oxalá aqueles que lutam por uma cidade mais democrática e integrada os ouçam e apoiem.
Notas[editar | editar código-fonte]
- ↑ Márcia Pereira Leite é Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Cevis/Uerj) e integrante do Círculo Palmarino.