UPP: a falência de um programa para mudar a polícia

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


As Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas na cidade do Rio de Janeiro a partir de dezembro de 2008, não foram um programa de segurança detalhadamente planejado e nem avaliado na medida em que foi se desenvolvendo. As Unidades foram se constituindo com boa dose de experimentação e improvisação e a estrutura normativa, composta por apenas três decretos governamentais durante seus primeiros anos, indicava a baixa institucionalidade que predominou no programa. Ainda assim, desde as primeiras experiências, algumas características do projeto o tornaram um ponto de inflexão em diversas experiências policiais anteriores em favelas.

Autoria: Silvia Ramos

Além de seus objetivos principais declarados, que eram recuperação por parte do estado de territórios dominados por grupos criminosos e o fim dos confrontos armados, alguns aspectos fundamentais do programa foram:

  1. Manter uma tropa fixa, inspirada na estratégia de policiamento comunitário, ou policiamento de proximidade, em territórios de favelas anteriormente dominado por grupos armados;
  2. Aplicar a lógica de policiamento de saturação, em que a razão do número de policiais pelo número de moradores era, em média, quatro vezes maior do que a proporção da cidade do Rio de Janeiro;
  3. Assegurar a presença física em campo de um oficial comandando a tropa com autonomia e que também servisse de ponto de contato com a população;
  4. Compor a tropa com policiais predominantemente recém-formados e não viciados em práticas antigas da PM nas favelas;
  5. Valorizar o policial de UPP por meio de pagamento de gratificação;
  6. Incentivar forte apoio de mídia nos primeiros anos, insistindo na ideia de que se tratava de um programa de governo e não apenas de um programa de polícia.

Após os primeiros seis anos, isto é, em 2014, 39 unidades haviam sido instaladas, abrangendo aproximadamente 250 favelas e envolvendo mais de 9.000 policiais. A redução das mortes nas favelas com UPP e nas áreas adjacentes foi substantiva nos primeiros cinco anos, tendo atingido seu ponto mais positivo em 2012. No estado do Rio de Janeiro, os homicídios, que estiveram na casa das 60 mortes por 100.000 habitantes nos anos 1990 e estavam na faixa de 40 por 100.000 nos anos 2000, chegaram à casa das 20 por 100.000, sendo a menor de uma série histórica de trinta anos. E principalmente, as mortes provocadas pela própria polícia – considerando que o uso da força letal é uma das características mais marcantes e persistentes das polícias fluminenses – caíram de mais de 1300 em 2007 para 426 em 2012. Mas a despeito da importância e da magnitude do projeto, problemas estruturais e conjunturais ameaçaram sua sustentabilidade. Um dos aspectos mais problemáticos foi a relação entre polícia e comunidade. Não houve um esforço de institucionalizar dinâmicas de escuta e consulta às comunidades por parte da polícia. Em muitas UPP, especialmente após o sucesso das primeiras unidades pequenas em favelas da Zona Sul, o projeto não passou do estágio inicial de mera ocupação militar. Especialmente com os jovens, as tensões e as hostilidades foram grandes em toda parte. Não houve programas voltados para os jovens que anteriormente participavam dos grupos armados (integração social, busca de emprego, retomada dos estudos etc.) como ocorreu na Colômbia e em outras experiências de desarmamento. Após a primeira grande crise que abalou o conjunto do projeto decorrente do desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013, na Rocinha, torturado e morto por policiais, nos anos subsequentes houve várias crises, sem respostas convincentes da área da segurança. Um segundo aspecto crucial da falência do projeto foi a ausência de trabalho policial de inteligência e investigação. Em 2015 a PMERJ tinha avaliado com bandeira “vermelha” (onde havia número elevado de tiroteios) um terço das Unidades. Pela mesma razão, o aparecimento de quadrilhas criminais baseadas no uso ostensivo de armas longas passou a ser verificado em bairros da região metropolitana, onde não existiam anteriormente. Em 2017, como nenhuma política de inteligência foi adotada para a impedir o fluxo ilegal de fuzis e munições, todas as 39 Unidades eram consideradas problemáticas, ao mesmo tempo em que o número de tiroteios em diversas áreas da cidade e RM chegavam a números inéditos. Em todo o processo de implantação das Unidades surgiram críticas consistentes feitas por moradores e movimentos sociais com relação à militarização do cotidiano e os efeitos de gentrificação de algumas áreas, sem preocupação com a implementação de políticas compensatórias. Também sempre foram questionáveis os critérios de escolha das áreas que seriam ocupadas, gerando dúvidas sobre os interesses políticos da expansão das UPP, mais relacionada à agenda dos megaeventos do que à segurança dos moradores da cidade e da região metropolitana. Problemas relacionados ao modelo de polícia foram verificados em todo o processo. A formação dos policiais não mudou e o modelo de guerra às drogas inspirado no BOPE continuou forte na polícia fluminense, contaminando os policiais das UPP e derrotando a metodologia do policiamento de proximidade. Corrupção nas bases e comandos das Unidades, com diversos casos rumorosos, acabaram por retirar a legitimidade ao menos parcial que tinha sido conquistada nas primeiras experiências bem-sucedidas. Um aspecto frequentemente identificado com a falência das UPP diz respeito à fragilidade das intervenções sociais que supostamente se seguiriam à retomada das favelas das gangues armadas. O desenho de UPP Social baseado em coordenação e articulação de políticas nos territórios ocupados efetivamente foi esvaziado antes que completasse seis meses. Mas o fato é que as principais razões da derrota do programa das UPP se localizam antes de mais nada em fatores internos às polícias e às políticas de segurança. Na medida em que limitavam a violência armada, as UPP eram sobretudo um programa para mudar as políticas de segurança, contendo confrontos, brutalidade e corrupção exatamente ali onde elas tinham se institucionalizado, dentro das polícias na sua atuação orientada para a guerra ao varejo das drogas desde os anos 1980. Talvez a principal lição do colapso do projeto é que sem mudar estruturalmente as forças de segurança não será possível desenvolver programas sustentáveis de redução da violência armada no Rio de Janeiro.

Referência bibliográfica[editar | editar código-fonte]

Burgos, Marcelo Baumann; Pereira, Luiz Fernando Almeida; Cavalcanti, Mariana; Brum, Mario; Amoroso, Mauro. O Efeito UPP na Percepção dos Moradores das Favelas. Desigualdade & Diversidade – Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, nº 11, ago/dez, 2011, pp. 49-98.

Cano, Ignacio (coord). Os donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Rio de Janeiro. Fórum Brasileiro de Segurança Pública / LAV-UERJ, 2012.

Musumeci, Leonarda. “Eles nos detestam”: Tropeços do policiamento de proximidade em favelas. Boletim Segurança e Cidadania, n. 19, novembro de 2015.

Rodrigues, André e Siqueira, Raíza. As Unidades de Polícia Pacificadora e a segurança pública no Rio de Janeiro. In Rodrigues, André; Siqueira, Raíza e Lissovsky, Mauricio (coords.). Unidades de Polícia Pacificadora: Debates e reflexões. Comunicações do Iser, ano 31, n. 67, 2012, pp. 9-52.

Rodrigues, Robson. The Dilemmas of Pacification: News of War and Peace in the “Marvelous City”. Stability: International Journal of Security and Development, [S.l.], v. 3, n. 1, p. Art. 22, may 2014.

Veja também[editar | editar código-fonte]