Trabalhadores e bandidos: identidade e discriminação (resenha)
No capítulo "Trabalhadores e bandidos: identidade e discriminação," Alba Zaluar analisa as representações identitárias em torno dos bandidos, desconstruindo noções simplistas e destacando nuances nas relações entre bandidos e trabalhadores na favela Cidade de Deus. A autora explora as diferenciações morais, como a relação com o trabalho, o porte de arma e a influência do ethos masculino, enquanto aborda as respostas dos trabalhadores sobre a transformação dos jovens em bandidos. Além disso, discute o aspecto de classe, descontruindo a dicotomia entre movimento social e crime organizado, e destaca a representação estigmatizada da classe popular como "pobre, criminoso, perigoso".
Autoria: Brauner Cruz
Referência[editar | editar código-fonte]
ZALUAR, Alba. Trabalhadores e bandidos: identidade e discriminação. In: Alba Zaluar. A Máquina e a Revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 132-172.
Contextualização[editar | editar código-fonte]
Alba Zaluar foi uma antropóloga, professora titular de Antropologia do Instituto de Medicina Social e professora de antropologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), ambos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seu Mestrado, no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estudou festas de santo do catolicismo popular e seu Doutorado, defendido na Universidade de São Paulo (USP), estudou as organizações recreativas e políticas dos trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro, dando origem ao livro 'A Máquina e a Revolta'. Alba também foi professora na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e, na UERJ, fundou o Núcleo de Pesquisas das Violências (Nupevi), importante centro produtor de estudos sobre a violência urbana e lotado no Instituto de Medicina Social.
Principais argumentos[editar | editar código-fonte]
O capítulo 'Trabalhadores e bandidos: identidade e discriminação', que faz parte do livro 'A Máquina e a Revolta', de Alba Zaluar, visa discutir as representações identitárias em torno da figura do bandido, mobilizando, para isso, e em aparente oposição, a ideia do trabalhador. Para esta discussão, a autora parte da desconstrução de uma noção reducionista que tenderia a creditar ao bandido uma categoria que abrigasse a "plebe não proletarizada" que se oporia ao proletário tradicional, visto como alguém que se adequou às instituições do capitalismo, enquanto o primeiro estaria posto como uma "espécie de herói-vítima da resistência ao capitalismo" (p. 133). Para Alba, essa seria uma simplificação que não daria conta da complexidade envolvida nas relações entre bandidos e trabalhadores, cenário esse exemplificado por relatos etnográficos da favela Cidade de Deus, campo importante da autora em seus estudos sobre violência.
Ao tratar das representações em torno de Manoel Galinha e seus rivais na Cidade de Deus, como Zé Pequeno e Timbó, a autora passa a fornecer nuances e conceder flexibilidade na leitura da população daquela favela sobre o que seria considerado um bandido, ou, ainda, quais categorias morais qualificariam esse bandido em relação ao público que o representa. Por exemplo, essa valoração impacta de acordo com a relação estabelecida entre bandido e trabalhador, ou mesmo entre territórios e os tipos de práticas de cada bandido em relação ao seu entorno e a localidades de facções rivais. As nuances seguem nas diferenças entre bandidos adultos e jovens, tidos como mais irresponsáveis e propensos a quebrar certo código de conduta com relação à população local, sendo assim considerados "pivetes". Da mesma maneira, os "chefes de família" tendem a ser mais respeitados pelos bandidos do que seus filhos. Também há um ethos masculino que influencia fortemente o comportamento dos bandidos e as moralidades que o cercam, já que a defesa da honra passa a ser justificada em detrimento de ações sem uma causa nesse sentido, lidas como sanguinárias ou perversas.
Essa diferenciação segue importante para caracterizar o que separa o trabalhador do bandido e o bandido do malandro. Para a primeira relação, surge como essencial a questão do trabalho. Se o trabalhador optou pelos caminhos mais tortuosos, evitando o "dinheiro fácil", o bandido é aquele que foge de ser o "otário" que trabalha cada vez mais para ganhar cada vez menos. Alba mostra que, no caso da Cidade de Deus, o que mais influencia nessa relação é, na verdade, a posição de sustentar uma família que o trabalhador ostenta, se colocando moralmente superior ao bandido. Mas, apesar disso, há um apelo pelo respeito dessa figura por parte dos bandidos adultos, ou "formados". Enquanto isso, o bandido porco, ou o próprio pivete, é aquele que desrespeita essa relação. Outro aspecto que diferencia trabalhador de bandido é o porte de arma, um marcador forte que estabelece essa representação de modo mais nítido. E é um marcador que se observa também na diferenciação entre bandido e malandro. Essa figura, embora seja objeto de atenção da autora, é tida como relativamente ultrapassada historicamente, tendo em vista a crescente facilidade na compra de armas de fogo e o crescimento de pessoas que a portavam. O malandro é, assim, uma maneira nostálgica de representar de forma positiva aquele que não queria trabalhar, mas não se enquadrava na categoria bandido, distanciando-se da produção de violência. Neste momento, a autora chega a introduzir duas figuras importantes para o funcionamento do tráfico: o vapor, que é o braço de confiança do traficante e intermedia a venda da droga, e o avião, que avisa o vapor sobre a chegada da clientela e da polícia.
Alba Zaluar segue a discussão sobre as diferenciações entre bandido e trabalhador ao colocar em xeque algumas assunções sobre a recorrente pergunta: "Por que os jovens viram bandidos?" Para além de responder diretamente a esta questão, interessa analisar as respostas dadas pelos trabalhadores da Cidade de Deus, respostas essas que por vezes implicam num determinismo (reunido em torno do mote "ninguém é bandido porque quer") ou então numa explicação individualizada sobre o caráter daquela pessoa. Essas respostas servem para unir os trabalhadores em oposição àqueles que não escolheram a mesma trajetória, mas por vezes também os aproximam uns aos outros, no momento em que se dá a oposição ao preconceito e discriminação aos pobres e moradores de favela. Nessa situação, os bandidos se tornam pessoas do mesmo nível moral que os trabalhadores. No entanto, essas figuras voltam a se separar quando se discute os rumos tomados pelos jovens dessa localidade. Segundo Alba, há disputa entre bandidos e trabalhadores em torno da socialização desses jovens, e o discurso vigente confere sucesso do primeiro grupo, geralmente quando o segundo apresenta alguma falha formativa, como a ausência da mãe na família ou a necessidade de fazer biscates na rua para ajudar na renda familiar. Como um pêndulo, bandidos pobres e trabalhadores se aproximam novamente quando o assunto é a polícia, tida como alguém que "faz o ladrão" e que se concentra nos pobres em detrimento de uma baixa atenção aos traficantes ricos, por exemplo, estes tidos como os reais produtores da violência pelos mais pobres. A autora termina essa parte concluindo que segue sendo o trabalho o principal marcador de diferenças entre bandidos e trabalhadores, a despeito das recorrentes aproximações circunstanciais, isso porque o trabalho incute maior perspectiva de liberdade individual de escolha, entre ter uma vida dura e decidir viver roubando.
O final deste capítulo segue uma discussão voltada ao aspecto de classe, que no contexto de estudo da autora, fazia ainda mais sentido para a realidade econômica e social vivenciada. A ideia de roubo enquanto uma expressão de revolta ou reação diante das desigualdades econômicas surge com latência, e mais uma vez tende a aproximar bandidos de trabalhadores em suas representações. Essa discussão é inclusive levada a outro patamar, quando Alba problematiza certo questionamento se essas pessoas comporiam um movimento social ou um crime organizado. Tal dicotomia aparece para ser desconstruída. Primeiramente porque, segundo ela não seria possível idealizar a figura romantizada do bandido-herói, líder de um movimento, muito também porque nem sempre os códigos de conduta e honra são seguidos por estes na relação com os trabalhadores. E segundo porque a ideia de crime não é mobilizada para retratar aos bandidos. Como forma de concluir essa discussão representativa, Alba Zaluar define que "o espelho que se constrói agora no Brasil é este: pobre, criminoso, perigoso" (p.168). Ou seja, em meio as diferenças de representação nos discursos e práticas das classes populares, sobressai a representação feita sobre o dominado pelo dominador, creditando a bandidos e trabalhadores como todos pertencentes a uma classe perigosa para a cidade. O processo de desvencilhamento se daria por uma autonomia moral desse grupo, libertando-se da "inevitabilidade do fenômeno da violência e da sua própria inferioridade diante das classes abastadas, rompendo esse círculo vicioso diabólico"(p. 169).
Notas e referências[editar | editar código-fonte]
FELTRAN, Gabriel. Trabalhadores e bandidos: categorias de nomeação, significados políticos. Temáticas (UNICAMP), v. ano15, p. 11-50, 2007.
MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010.
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