Vamos falar de Pacificação (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O artigo questiona se a "pacificação" das áreas urbanas, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, é realmente uma solução para os problemas ou se é, em si, um problema. O autor destaca as violações de direitos que ocorrem nas áreas pacificadas, a falta de participação popular genuína, o aumento do custo de vida para os moradores, a especulação imobiliária e a militarização da abordagem, argumentando que a pacificação não é a melhor maneira de alcançar resultados efetivos na melhoria da qualidade de vida da população. Em vez disso, ele propõe uma abordagem mais democrática e centrada nos direitos dos cidadãos.

Autoria: Guilherme Pimentel
Texto publicado em 2013 no blog Medium. Para ler o texto original, clique aqui.

Será que os problemas vistos nas áreas pacificadas são apenas efeitos colaterais indesejáveis de um remédio amargo, ou são sintomas de um projeto que é, em si, o próprio problema?

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Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2013

Quando recebi o convite para escrever novamente sobre pacificação, aceitei prontamente. Longe da pretensão de lançar uma tese sobre as UPP`s, escrevo este texto para organizar meus pensamentos e o publico para compartilhar reflexões e informações.

A pacificação me atinge (principalmente meu bolso, com o encarecimento artificial do custo de vida), atinge meus amigos (principalmente os que vivem em favelas pacificadas), atinge minha rotina de trabalho com direitos humanos (as violações não cessaram em áreas com UPP) e atinge também a militância cultural com a qual contribuo junto aos meus parceiros da Apafunk (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk).

O Caveirão, como é conhecido popularmente, também é chamado de Pacificador..jpg

Eu poderia falar aqui sobre as violações de direitos que continuam ocorrendo nas áreas pacificadas. Poderia falar sobre como os abusos cometidos pela PM acabam registrados como casos de desacato à autoridade, gerando a criminalização do cidadão e a imunização das ações policiais. Se eu optasse em falar sobre fatos, resgataria nomes de civis assassinados pela polícia; lembraria das inúmeras invasões de domicílio e infinitos tapas na cara; recordaria dos desaparecidos, como Amarildo; falaria sobre a corrupção policial, que, ao contrário do que diz a propaganda oficial, não ficou de fora dessas áreas (vide escândalos do São Carlos). Poderia falar sobre as inúmeras e enormes placas nas entradas de favelas pacificadas e a aposta pelo marketing, em detrimento da participação popular verdadeira. Abordaria as propagandas governamentais e diria o quanto elas são falsas quando falamos de cidadania nesses locais. Impossível não mencionar a primeira publicidade da UPP na televisão, que usou o clássico Rap da Felicidade como tema musical da propaganda de uma política que proíbe bailes funk.

Poderíamos analisar o exemplo do Santa Marta, uma favela pequena que já está em seu quinto ano de UPP (a mais antiga unidade pacificadora), mas ainda convive com esgoto a céu aberto; casas prestes a cair; a falta de urbanização do pico do morro; a ausência de iluminação pública em pontos da comunidade (apesar das contas de luz cobrarem taxa de iluminação pública para todas as famílias); ausência de entrega de correspondência nas casas das pessoas (apesar das cobranças da Light chegarem em cada casa); a política de remoção de famílias pobres e demolição de suas casas; os apartamentos feitos pelo governo somente para alguns, coloridos por fora e minúsculos por dentro, nos quais algumas famílias não conseguem estar todas juntas ao mesmo tempo; as intervenções de maquiagem urbana feitas sem a participação da população local… Poderia lembrar também do “Viva Cred” (programa de crédito popular), que entrou no morro logo depois da polícia, já para oferecer crédito a “juros baixos” para quem quisesse tentar resistir às altas contas que estariam por vir. Lembraria do pequeno comércio que deu lugar a uma filial da “Casa & Vídeo” no pé do morro, próximo à Praça do Cantão, mais ou menos na mesma época em que o governo apagou os grafites dessa praça com tintas Suvinil de várias cores, que não dizem nada (ou que dizem até demais…). Poderia falar também na censura às festas populares, que deram lugar a festas caras na quadra da escola de samba local. Não esqueceria de citar ainda as pessoas que se mudaram de lá, por causa do encarecimento do custo de vida, dando lugar a gringos e jovens de classe média. Muitos que ali residiam foram parar na Zona Oeste e Baixada Fluminense, onde as taxas de violência são maiores — o que já nos leva a uma primeira pergunta: Pacificação para quem?

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Muitos são os fatos passíveis de denúncia e análise. No entanto, vários parceiros das favelas e das universidades estão vivendo e se debruçando sobre esse diagnóstico mais detalhado. Inclusive, muita coisa boa já está sendo publicada nesse sentido. O governo, por sua vez, sempre que se manifesta, trata as violências da pacificação como casos isolados, que fazem parte de um “processo de transição”. Já ouvi até a horrível comparação com os efeitos colaterais de uma quimioterapia. Mas será que os problemas vistos nas áreas com UPP são apenas efeitos colaterais indesejáveis de um “remédio amargo”, ou são sintomas de um projeto que é, em si, o próprio problema?

Por essas e outras, optei por falar de Pacificação, pura e simplesmente.

Histórias de pacificação[editar | editar código-fonte]

Certo dia, assistindo pela milésima vez o filme “De volta para o futuro 3”, revi uma cena que me chamou a atenção. No velho oeste americano, um sujeito se aproxima de Marty McFly (personagem principal) e lhe oferece o “novo” lançamento da indústria bélica de 1885: a “Colt Pacificadora”. Era a sensação do momento dentre as tecnologias feitas para matar — talvez útil para o duelo de vida ou morte em que Marty estava se metendo.

O filme seguiu, mas eu viajei. Lembrei de outros duelos em que é possível ouvir o uso da palavra “pacificar”. Entre juristas, costumamos dizer que um assunto está “pacificado” quando ele não é mais passível de divergência interpretativa. Ou seja, no ramo do Direito, algo está “pacificado” quando o duelo de interpretações sobre o tema já tem um vencedor absoluto. Notem: isso não significa que não existam outras opiniões, significa apenas que elas não são levadas em conta. Quando a doutrina e a jurisprudência estão “pacificadas” sobre algo, quer dizer que é praticamente impossível que uma argumentação fora dessa ordem possa prosperar.

Isso me trouxe à cabeça o militarismo e eu lembrei das unidades militares brasileiras no Haiti, chamadas de “Unidades Pacificadoras”. Também me veio à mente o Caveirão, blindado chamado por alguns de “Pacificador”.

Eu, que moro de aluguel numa Tijuca cercada por morros pacificados, lembrei do Banco Imobiliário da Prefeitura do Rio. No brinquedo criado pelo governo, pacificação rima com especulação: os jogadores ganham com a valorização imobiliária de áreas pacificadas. Na verdade, “valorização imobiliária” é apenas um termo leve para se referir à inflação. É um incrível caso onde a inflação é propagandeada como coisa boa. Os Bancos Imobiliários, os jogos da Prefeitura e a política de Pacificação têm muitas coisas em comum, a começar que nenhuma delas é feita sob o ponto de vista de quem paga aluguel, como eu.

Larguei o filme de lado e fui para a internet pesquisar a palavra “Pacificação” em português e em inglês. Descobri que Pacificação não é uma invenção brasileira e muito menos uma novidade, muito pelo contrário: em todo o mundo há casos muito antigos de Pacificação. Compartilho neste texto alguns achados:

Na Wikipedia, li sobre a Pacificação da Araucanía (1861–1883), que “foi uma série de campanhas militares, acordos e penetrações pelo exército chileno e colonos em território mapuche que levou à incorporação de Araucanía em território nacional chileno (…) Os habitantes indígenas da Araucanía, os mapuches, resistiram por mais de 300 anos de tentativas espanholas de conquista. Araucanía não foi totalmente pacificada. Após o encerramento das campanhas militares, e manteve-se insegura, apesar dos esforços do governo central. Mesmo agora, alguns pequenos grupos de mapuches radicais sob a organização da Coordenação Arauco-Malleco continuam a saquear fazendas no que eles consideram ser parte do território mapuche ancestral.”

Da mesma maneira, ainda no século XIX, “a Pacificação de Tonkin (1886–1896) foi uma campanha política e militar lenta e finalmente bem-sucedida, empreendida pelo Império Francês na porção norte de Tonkin (atual norte do Vietnã) para re-estabelecer a ordem na sequência da guerra Sino-Francesa (agosto 1884 — abril de 1885). Tinha como missão a consolidação de um protetorado francês em Tonkin, além de suprimir a oposição vietnamita para o domínio francês.”

Na transição do século XIX para o século XX, o continente asiático viveu a Pacificação de Lombok e Karangasem. “Ocorreu em 1894, e fez parte da série de intervenções holandesas em torno de Bali, Índias Orientais Holandesas (atual: Indonésia), para completar a colonização de Bali e Lombok no início do século 20.”

No mesmo período histórico, “as Campanhas de Conquista e Pacificação foram um conjunto vasto de operações militares, de envergadura muito desigual, conduzidas nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX pelas forças armadas portuguesas nas colónias de Portugal na África e em Timor. A maioria destas campanhas concentrou-se no período que medeia entre a Conferência de Berlim (1884) e o fim da Primeira Guerra Mundial (1918), correspondendo ao esforço de ocupação efetiva do interior dos territórios onde Portugal mantinha uma presença histórica na zona costeira e nos principais eixos comerciais. Foi nestas campanhas que se travaram os combates de Môngua, em Angola, e Chaimite, em Moçambique, onde Mouzinho de Albuquerque capturou o rei vátua Gungunhana.”

Enquanto isso, na Argélia “a pacificação foi uma série de operações militares para pôr fim a várias rebeliões tribais e massacres de colonos franceses, que foram esporadicamente realizadas no campo da Argélia. A pacificação da Argélia é um exemplo precoce de guerra não convencional.”

Nos primeiros anos do século XX, “a Pacificação de Cuba foi uma grande operação militar dos Estados Unidos, que começou em setembro de 1906. Após o colapso do regime do presidente Tomás Estrada Palma, o presidente Theodore Roosevelt ordenou a invasão de Cuba e estabeleceu uma ocupação militar que iria continuar por quase quatro anos. O objetivo da operação era evitar confrontos entre os cubanos, proteger interesses econômicos norte-americanos e realizar eleições livres. Após a eleição de José Miguel Gómez, em novembro de 1908, Cuba foi considerada estável o suficiente para permitir uma retirada das tropas americanas, que foi concluída em fevereiro de 1909”.

Ainda no começo do século XX, “a Pacificação dos ucranianos (polonês: Pacyfikacja Małopolski Wschodniej) foi a ação punitiva pela polícia e militares da Segunda República polaca contra a minoria ucraniana na Polónia, em Setembro e Novembro de 1930, em resposta a uma onda de mais de 2.200 atos de sabotagem contra a propriedade polonesa na região. Aconteceu em 16 municípios das províncias do sudeste do país, ou Galícia Oriental. A política de Punição coletiva a milhares de camponeses, na sua maioria inocentes, resultaram na exacerbação de animosidade entre o Estado polonês e a minoria ucraniana.”

Os nazistas também foram pacificadores: “As ‘Operações de Pacificação na Polônia ocupada pela Alemanha Nazista’ foram o uso da força militar e medidas punitivas realizadas durante a Segunda Guerra Mundial pela Alemanha com o objetivo de suprimir qualquer resistência polonesa.”

Já na década de 80, também na Polônia, “A Pacificação de Wujek foi uma ação fura-greve da polícia e do exército polonês na mina de carvão Wujek em Katowice, Polônia, culminando no massacre de nove mineiros em greve em 16 de dezembro de 1981. Era parte de uma ação de grande escala destinada a quebrar a solidariedade sindical livre após a introdução da lei marcial na Polónia em 1981.”

E, por fim, compartilho aqui também a definição de Pacificação que consta na Wikipédia: na parte de “Invasões Militares” a pacificação é a etapa posterior à entrada militar por ar, mar ou terra em um território. “Uma vez que as fronteiras políticas e militares tenham sido quebradas, a pacificação de uma região é o objetivo final. Após a derrota do exército regular, a oposição contínua às forças invasoras parte dos civis, ou de movimentos paramilitares de resistência. Realizar a completa pacificação de um território ocupado pode ser difícil, devido a isso o apoio popular é vital para o sucesso de qualquer invasão seguida de pacificação.”

O texto com a definição de Pacificação segue, informando os pontos-chave e desafios da coisa: “O uso de propaganda, como panfletos, livros e programas de radio, pode ser usado para encorajar a resistência a se render ou ainda dissuadir a população a se juntar à resistência. Um método em particular de pacificação, chamado informalmente de `a conquista dos corações e das mentes` (the winning of hearts and minds) é o de reduzir o desejo dos civis de unir-se a movimentos de resistência. Isso pode ser alcançado através de reeducação, permitindo que os cidadãos conquistados participem ativamente do governo, ou, especialmente em áreas pobres ou sitiadas, participem do fornecimento de alimento, água e abrigo. Algumas vezes a exibições do poderio militar pode ser usado; forças invasoras podem realizar paradas pelo território invadido, na tentativa de demonstrar a futilidade de futuros conflitos. Essas exibições podem também incluir execuções públicas de soldados inimigos, integrantes de grupos de resistência, e conspiradores em geral. Particularmente na antiguidade, a morte ou o aprisionamento de um líder popular era algumas vezes suficiente para gerar uma rápida rendição. Entretanto, isso normalmente tem o efeito intencional de criar mártires sobre os quais uma resistência pode se apoiar e prosperar. Um exemplo, é o de Sir William Wallace, que, mesmo séculos após a sua execução na mão dos ingleses, ainda é um símbolo do nacionalismo escocês.”

Apaziguar, sim. Pacificar, não.[editar | editar código-fonte]

Enfim, confesso que sempre estranhei o uso da palavra Pacificação. Mas ela é tão parecida com a palavra Paz, que nos engana. Parando pra pensar, no popular, sempre que queremos dizer “trazer a paz”, usamos o verbo apaziguar, e não pacificar. Pacificar é um termo militar e não está dissociado do confronto, da dominação e da morte. O militarismo, com suas fardas, armas, ordens, hierarquia, silêncios e força bruta, certamente não é uma proposta adequada para a construção da paz — pelo simples fato de se organizar totalmente em torno da idéia de guerra.

A Pacificação está sempre em busca de um inimigo, e costuma procurar isso nas “resistências internas”, o que inviabiliza a construção de uma relação de escuta real da população, marginalizando e criminalizando os cidadãos mais críticos e os que entram em conflito com a nova institucionalidade vigente. Independente de números estatísticos, a pacificação como solução para qualquer coisa é antagônica à democracia e não é o melhor caminho para atingir resultados efetivos na melhoria da qualidade de vida da população (motivação maior de qualquer política democrática).

Não sou contrário ao policiamento dos bairros. Pelo contrário, parto do princípio de que a polícia pode ter um papel positivo na democracia, se sua relação com a sociedade for refundada. A política de pacificação não é a única forma de policiamento existente, assim como a polícia militar não é a única forma de polícia ostensiva possível.

Cada vez fica mais pertinente o lema do movimento de direitos humanos: “Segurança Pública é garantir direitos” (em vez de basear o conceito de segurança no “combate à criminalidade”). Na democracia, o cidadão é alguém a ser protegido, mas na lógica da pacificação, todos são potenciais suspeitos, especialmente os que divergem ou desobedecem. Nesse sentido, se queremos segurança e democracia, é preciso exigir das autoridades civis que se façam presentes nos lugares para quitar a dívida histórica do Estado brasileiro com os mais pobres, promovendo políticas públicas de distribuição de renda efetiva, com garantia de saúde, educação, esporte, trabalho, transporte, habitação, liberdade cultural, urbanização, democracia participativa e cidadania em geral. Em tempos de debate sobre a desmilitarização da polícia, é muito importante debater também a desmilitarização da política e sobretudo a desmilitarização da gestão das cidades.

Plagiando o professor Gustav Radbruch, creio que seja cabível dizer: “Não precisamos de uma Pacificação melhor, mas sim de algo melhor do que a Pacificação”.