Maconha medicinal não sobe o morro (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Procurado para falar sobre os resultados da pesquisa e sobre possíveis medidas estaduais para democratizar o acesso à maconha medicinal nas favelas cariocas, o governo do estado do Rio de Janeiro não respondeu aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.
Procurado para falar sobre os resultados da pesquisa e sobre possíveis medidas estaduais para democratizar o acesso à maconha medicinal nas favelas cariocas, o governo do estado do Rio de Janeiro não respondeu aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.
== Ver também ==
* [[Proibir a importação de flores de maconha é estupidez (artigo)]]
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Edição atual tal como às 11h07min de 15 de fevereiro de 2024


A maconha medicinal não sobe o morro? é um artigo que aborda a dificuldade dos moradores das favelas cariocas em fazer uso da cannabis para uso medicinal.

Autoria: Beatriz Drague Ramos, Ponte Jornalismo[1].

Sobre[editar | editar código-fonte]

Cultivo de cannabis.

Há dois anos Gisela Lopes, 62 anos, faz o uso terapêutico da maconha para tratar fibromialgia, doença que afeta a musculatura, causando dores difusas pelo corpo. Moradora do bairro Cidade de Deus, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, a auxiliar de cabeleireiro inicialmente não acreditava que o óleo composto de derivados da maconha aliviaria seus sintomas, porque o preconceito em torno da planta era grande, inclusive dentro de sua casa. “Sofri preconceito, sim, das pessoas que eu normalmente tinha um contato maior, dentro da minha casa mesmo. Sempre falavam: ‘isso aí é um caminho sem volta’, como se fosse algo ruim”, disse à Ponte.

O caso de Gisela não é exceção. 42% dos moradores de favelas do Rio de Janeiro que fazem uso de maconha medicinal relatam já ter sofrido preconceito, segundo os dados da pesquisa “Plantando saúde e reparação: o uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeiro”, lançado nesta segunda-feira (26/6) pela Movimentos, uma ONG (organização não governamental) formada por jovens de favelas do Rio que busca “pensar uma nova política de drogas a partir da visão daqueles que mais sofrem com ela”.

A pesquisa revela que a intensidade do preconceito varia conforme o tipo de uso de maconha para fins medicinais: 31,7% dos que fazem uso da substância em forma da óleo contam terem sido alvo de preconceito, mas a porcentagem sobe para 78,9% para os que usam o cigarro de maconha com objetivos para cuidar da saúde.

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Além disso, 38,1% dos moradores contaram que não se sentem seguros para guardar a maconha medicinal em casa. “É perigoso para mim. Por ser preto, jovem, de periferia, me sinto inseguro em dia de operação [policial] tendo cannabis em casa”, disse um usuário terapêutico de maconha, ouvido pelo estudo na condição de anonimato.

O levantamento foi realizado em dezembro de 2022 com moradores de favelas cariocas — especialmente Cidade de Deus e os Complexos da Maré e do Alemão, ambos localizados na zona norte do Rio — e traz o perfil de quem faz uso terapêutico da maconha e de quem deseja acessar os benefícios terapêuticos da substância. Também foram mapeadas as dificuldades para ter acesso à maconha e derivados.

A cientista social Paula Napolião, coordenadora da pesquisa, disse à Ponte que um dos achados mais importantes da pesquisa foi identificar que moradoras e moradores de favelas necessitam de doações e da ajuda de ONGs e associações para conseguir os derivados da substância e tratar suas questões de saúde, por causa dos altos custos das substâncias. “É algo que deveria ser garantido pelo Estado através de políticas públicas. Fora isso, quem consegue acessar a maconha para uso terapêutico ainda precisa conviver com o medo da criminalização”, disse.

Com relação especificamente aos óleos, o trabalho indica que 52% dos que fazem uso do composto no contexto das favelas do Rio de Janeiro conseguiram o produto através de doações. Outros 20,6% adquiriram o óleo por meio de associações de pacientes de maconha; de um amigo, parente ou vizinho, 6,3%; outros 3%, através de uma liminar judicial; e 3% por importação. Os dados mostram que há “desamparo jurídico quando optam por tentar autorização judicial nos casos de importação de compostos derivados da planta”, diz o relatório.

Em relação ao dinheiro gasto com esses medicamentos, 68% relataram ter algum gasto mensal — os outros 32% não têm gastos porque recebem doações de ONGs.

Dos usuários de maconha medicinal ouvidos pela pesquisa, 73,3% se declaram negros, e as mulheres são mais da metade. A maioria dos respondentes é composta por pais e mães de pessoas que fazem ou desejam fazer uso. Ao todo, 65,7%, são pessoas que têm ou buscam acesso à substância para manter o tratamento de saúde de seus filhos ou familiares, aponta o estudo.

As condições de saúde mais mencionadas na pesquisa foram o transtorno do espectro autista, com 52,2%, seguido pela epilepsia (12,39%), sintomas de ansiedade (12,39%), sintomas de depressão (7%) e dores (5%).

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Formas de acesso[editar | editar código-fonte]

Sobre a forma com que as pessoas moradoras das favelas da cidade do Rio de Janeiro conheceram o uso terapêutico da maconha, 40% afirmou ter tomado conhecimento através de parentes, amigos ou vizinhos, demonstrando, de acordo com o levantamento, que o tema tem se tornado cada vez mais popular. Em seguida, as respostas foram através da internet, com 32%, por indicação médica, apenas 13%, através de organização não-governamental, 8%, e através da televisão, 3%.

O acesso à maconha por meio de médicos foi um obstáculo para Gisela. Ela conta que os profissionais da rede de saúde pública nunca receitaram óleos à base de maconha. Por outro lado, o valor da consulta de um profissional que trabalha com esse tipo de tratamento era muito alto, impedindo-a de se consultar com um profissional. Diante disso, ela só conseguiu se consultar com um médico que recomendava esses medicamentos quando conheceu a ONG Movimentos.

“Não encontrei médico nenhum que tratasse com a maconha, muitos médicos até têm vontade de prescrever, mas não podem, eu não sei o porquê. O único que eu encontrei me foi indicado por um médico, só que a consulta dele era muito cara e para mim sinceramente não dava”, explicou. De acordo com o estudo, 35,24% dos respondentes não receberam suporte profissional e 40,95% não possui receita médica.

Hoje, com receita e acesso a um médico de forma gratuita, a auxiliar de cabeleireiro sonha um dia poder cultivar a planta dentro de sua própria casa de forma legal. “Seria um sonho se eu tivesse a facilidade de cultivar e se eu pudesse aprender a extrair o óleo. É gritante a diferença da minha maneira de viver hoje com a minha maneira de alguns anos atrás. Eu já não tinha mais prazer em fazer nada por conta das minhas dores”, celebra.

Óleo utilizado por Gisela rico em Canabigerol, um dos mais de 120 compostos canabinóides encontrados na maconha. | Foto: Arquivo Pessoal / Gisela Lopes.


Quando se trata do autocultivo, o preconceito e a possibilidade de repressão policial ficam ainda mais latentes, pontua Paula. “A questão fica ainda mais complexa porque as violações de direitos são rotineiras durante as operações policiais e a regra é sempre a criminalização de qualquer coisa que venha das favelas. As pessoas acabam impedidas de ter acesso a um direito fundamental que é a saúde”, afirma a pesquisadora.

Nesse sentido, as associações e organizações não governamentais têm papel fundamental especialmente nas favelas. Segundo a coordenadora da pesquisa, essas organizações não só fornecem óleos derivados da maconha, mas dão assistência jurídica, ampliam o acesso à informação e servem até como espaço de acolhida para pessoas em sofrimento. “No Brasil há dificuldade de o associativismo não ser regulamentado, o que coloca essas instituições em situação de insegurança. Não são raros os casos de profissionais criminalizados por trabalharem nessas associações.”

O auto cultivo da maconha não é permitido no Brasil, para poder plantar é necessário ter uma autorização da justiça | Foto: Abrace.


Para ter acesso aos medicamentos à base de maconha, é necessário apresentar receita e laudo médico. Para importar por conta própria, é preciso uma autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), entretanto o processo de obtenção do importado pode levar meses, salienta o estudo.

Atualmente há alguns produtos autorizados pela Anvisa para serem comercializados nas farmácias. Para comprá-los, é preciso ter a prescrição de uma substância. O custo desses medicamentos pode variar de R$ 250 a R$ 2.500.

Reparação e regulação[editar | editar código-fonte]

O diagnóstico destaca duas proposições em discussão no Congresso que podem contribuir para o avanço da pauta da regulação no país: o projeto de lei (PL) 399/2015, do ex-deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-SE), em tramitação na Câmara dos Deputados, que propõe viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua formulação, e o PL 5295/2019, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, que submete à vigilância sanitária a produção, a distribuição e a comercialização da maconha medicinal e determina sua regulamentação. Ele também retira a maconha medicinal e o cânhamo do âmbito de incidência da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06).

Há ainda a tramitação do Recurso Extraordinário 635.659 no Supremo Tribunal Federal (STF), que, depois de oito anos parado, voltou à pauta na corte. O documento discute a descriminalização da posse de drogas para uso pessoal.

Paula avalia que a regulação da maconha é urgente no Brasil, o que deve ser acompanhado por medidas reparatórias para moradores de favelas, especialmente para a juventude negra. “É fundamental levar em consideração que jovens negros periféricos estão inseridos em um contexto no qual o acesso à educação e a capacitação profissional é escasso”, diz.

Jovens no Complexo da Maré em 2023, as mortes em operações policiais no local, aumentam em 145% em 2022, segundo Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. | Foto: Pedro Padro


Diante disso, é fundamental considerar por exemplo os efeitos do encarceramento na trajetória de pessoas presas por tráfico de drogas, complementa Paula. “Nesse sentido, a capacitação profissional de pessoas egressas do sistema prisional e a destinação de vagas a essa parcela da população é imprescindível. Em um cenário de regulação da maconha também é fundamental criar ferramentas para inserir jovens no mercado legal se assim desejarem.”

Além disso, a cientista social defende que “os recursos públicos obtidos a partir dos impostos coletados para a venda da substância devem ser destinados à reparação material das favelas e periferias mais afetadas pela guerra às drogas”.

A pesquisa traz cinco recomendações para avançar no debate sobre a regulação da maconha, com foco na reparação dos danos provocados por décadas de proibicionismo contra os mais pobres. Entre as sugestões estão a regulamentação das associações que produzem substâncias derivadas da maconha, para que não sejam criminalizadas, especialmente em favelas e periferias. O estudo propõe ainda o fortalecimento dessas organizações, a fim de que possam, por exemplo, fornecer as substâncias ao SUS (Sistema Único de Saúde) através de parcerias com o poder público.  

Também é indicada a criação de uma legislação federal que garanta a distribuição de substâncias derivadas da maconha pelo SUS e o fomento a iniciativas canábicas faveladas e periféricas. A proposta é que, em parceria com o Estado, essas iniciativas, que já possuem expertise e legitimidade nos territórios, possam ter suporte financeiro e estrutura para o atendimento psicossocial, jurídico, orientação e acompanhamento de pacientes.

Por fim, os pesquisadores requerem a atualização da Resolução 327/2019 da Anvisa, que estabelece os critérios para a concessão de autorização sanitária para importação, fabricação, comercialização, entre outros, de produtos derivados de maconha para fins terapêuticos. “É necessário flexibilizar as regras sobre a concentração permitida de THC em óleos, ampliar a via de administração de produtos à base de maconha e aumentar a gama de produtos autorizados”, diz o relatório.

“Maconha” X “Cannabis”[editar | editar código-fonte]

O relatório destaca que optou por utilizar a palavra maconha ao invés de cannabis por entender que a planta que origina os diversos tipos de uso terapêutico, seja a partir dos óleos até a mistura de diferentes canabinóides, ou outras formas é uma só: a maconha. “Acreditamos que usar esse termo ajuda a combater o preconceito e racismo relacionados à proibição dessa substância. Pessoas não devem ser criminalizadas por fazerem uso de drogas”, salienta o diagnóstico.

A pesquisa de caráter quantitativo foi realizada através da aplicação de um questionário anônimo online semiestruturado, pela ferramenta Google Forms. As perguntas foram destinadas a moradores de favela que fazem ou querem fazer uso terapêutico da maconha. O período em que o questionário ficou disponível foi de três semanas, em dezembro de 2022. Ao todo, 108 respostas foram consideradas.

Procurado para falar sobre os resultados da pesquisa e sobre possíveis medidas estaduais para democratizar o acesso à maconha medicinal nas favelas cariocas, o governo do estado do Rio de Janeiro não respondeu aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. Publicado originalmente em Ponte Jornalismo.