Fundação Leão XIII: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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*[[Participação Comunitária em projetos Habitacionais]]
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*[[Cadastramento e a produção da demanda social por apartamentos, no Programa Minha Casa Minha Vida (artigo)]]
*[[Cadastramento e a produção da demanda social por apartamentos, no Programa Minha Casa Minha Vida (artigo)]]
*[[Favelas e Comunidade Política - A partir dos anos 1960]]
*[[Favelas e Comunidade Política A partir dos anos 1960]]
*[[Favelas e Comunidade Política - Até os anos 1960]]
*[[Favelas e Comunidade Política Até os anos 1960]]
*[[Urbanização de Favelas: Duas Experiências em Construção (livro)]]
*[[Urbanização de Favelas: Duas Experiências em Construção (livro)]]
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Edição das 11h19min de 1 de agosto de 2022

Autor: Reginaldo Costa.

Sobre

A Fundação Leão XIII surgiu, em 22 de janeiro de 1947 (Decreto Presidencial nº 22.498), na condição de autarquia, sendo uma entidade católica subsidiada pelo governo federal e do Distrito Federal, além de outras entidades públicas; assim como recebia doações do setor privado (forças armadas, paróquias, clubes esportivos, Serviço de Alimentação da Previdência, Fundação Casa Popular, Institutos de Assistência e Pensões entre outras entidades). Sua direção, no período inicial, era composta por um representante da Ação Social Arquidiocesana, um do Abrigo Cristo Redentor e um membro da prefeitura do Distrito Federal (Valla, 1986).

A entidade surgiu basicamente com a incumbência de desenvolver políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. Ser uma vitrine para todo Brasil de um modelo de urbanização, educação, saúde e assistência social aos favelados. A entidade mudou ao longo do tempo e se espalhou para outros estados, assim como perdeu a sua relevância nas políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. Apresento, portanto, uma síntese que foca principalmente no seu período de maior apogeu entre os anos 1940 até os 1970, quando é a principal entidade civil, ou uma das principais, a desenvolver políticas públicas nas favelas, no Rio de Janeiro. A Fundação Leão XIII é periodizada aqui em três fases: a primeira, que vai do seu surgimento até meados dos anos 1950; a segunda, dos anos 1950 até os 1970 e a terceira, que vem até os dias atuais.

O objetivo da Fundação de desenvolver políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro respondia ao crescimento populacional e a centralidade política, cultural e econômica que esses territórios ganhavam. Essa tendência, no que se refere ao aumento de moradias populares, já é esboçada a partir do crescimento dos cortiços em meados do século XIX. Já o adensamento populacional e proliferação de favelas pela cidade podem ser observados no final do século XIX, mediante o desenvolvimento industrial e comercial. Entre 1870 e 1890, o Rio de Janeiro havia saltado de 235.381 habitantes para 518.292, enquanto o número de residências havia aumentado apenas de 41.200 para 71.807. Há de se considerar também que, além do crescimento insuficiente de imóveis, o processo de favelização foi aprofundado pela Reforma Pereira Passos (1903), que foi responsável pela destruição de 1.800 prédios, deixando 20.000 desabrigados (Carvalho, 2011).

O fluxo migratório e as políticas urbanísticas assinalaram uma tendência de ampliação da urbanização imbricada ao crescimento da favelização. Essa situação se aprofundou nos anos 1940, quando havia cerca de 60.000 barracos nas favelas do Rio de Janeiro, face a um ritmo de crescimento populacional da cidade do Rio de Janeiro que era de 170.000 pessoas há mais a cada cinco anos. Já nos anos 1950 a população das favelas do Rio de Janeiro saltava de 169.305 habitantes, para 358.000, em 1960 (SAGMACS, 1960). 

Os motins urbanos cresciam nesse contexto, em que moradores pobres exigiam melhores condições de trabalho, infraestrutura urbana e direitos civis. A Revolta do Vintém (1880), a Revolta da Vacina, diversos motins sobre as condições dos bondes e lampiões, resistência contra as remoções em cortiços e favelas são alguns exemplos dessa instabilidade social (Mattos, 2008).

No bojo do ascenso de lutas sociais, o governo Vargas, a partir de 1930, inscreve as demandas populares dos setores urbanos nas políticas públicas de forma inédita, ainda que trazendo em si um caráter autoritário. Após a queda de Vargas e a abertura democrática, ocorrida em 1945, as mobilizações nas favelas do Rio de Janeiro ganham uma proporção ainda maior, expressas na ampliação do número de associações de moradores e no crescimento do Partido Comunista (PCB), a partir dos seus Comitês Populares Democráticos. As favelas, portanto, entravam na agenda de políticas públicas como expressão da luta dos subalternos por cidadania, mas também como alvo de ações de Estado que buscavam controlar essas populações, a fim de garantir maior estabilidade ao projeto de desenvolvimento capitalista, urbano e industrial (Costa, 2015). A permissão do voto apenas aos alfabetizados tornavam as favelas territórios com abundante contingente de potenciais eleitores. Assim, as ações educacionais de alfabetização chegavam às favelas disputando o voto dos favelados e o seu apoio político.

Esse processo de incorporação dos favelados à agenda de cidadania no Brasil, entre outros fatores, tem relação com a influência católica. A orientação teológica e política da Fundação Leão XIII trazia uma concepção social a respeito da pobreza, que tinha origem na Encíclica Rerum Novarum (1891). Essa base teológica originou a Doutrina Social Eclesiástica, que sistematizada pelo bispo Dom Jaime de Barros Câmara, foi lançada no Brasil sob o nome de Manifesto do Episcopado (1945). Afirmava a necessidade da Igreja Católica se reaproximar dos trabalhadores, tendo em vista o que consideravam os descaminhos da industrialização, de uma “corrupção de costumes” e a ameaça comunista. Localizava, assim, o liberalismo e o comunismo como responsáveis pela ampliação da miséria nos centros urbanos, propondo um capitalismo que concebesse o progresso industrial e urbano, de acordo com os dogmas católicos. Apesar dessa orientação exaltar o combate ao liberalismo e ao comunismo, importante destacar que o peso recaía muito mais sobre o comunismo, sendo expressão do contexto de Guerra Fria (Carvalho & Iamamoto, 2014; Valla, 1986). Tal doutrina era, portanto, uma resposta ao ascenso das lutas sindicais e populares e um esforço institucional da Igreja Católica de “recatolizar”, ou seja, combater o sincretismo religioso e a categoria de católicos “não praticantes” (Carvalho & Iamamoto, 2014).

A Fundação Leão XIII surge em 1947, justamente no ano em que o Partido Comunista do Brasil (PCB) era colocado novamente na ilegalidade. Os comunistas eram os grandes rivais na disputa por influência política nas favelas. O resultado das eleições de 1945 mostrou uma força eleitoral muito significativa, principalmente no Rio de Janeiro, onde o PCB elegeu a maior bancada e Prestes como o senador mais bem votado do Brasil, pelo Distrito Federal (Almeida, 2003). Os Comitês Populares Democráticos, movimentos de trabalhadores organizados por local de moradia ou trabalho, dirigidos pelo PCB, desenvolviam trabalhos de mobilização e educação popular nas favelas (Costa, 2015). Tal crescimento dos comunistas se deu durante o desenvolvimento das associações de moradores, nos anos 1940 e 1950, em que foram criadas cerca de 75 associações de moradores (SAGMACS, 1960). Essas associações eram disputadas pela Fundação Leão XIII e os Comitês Populares Democráticos.

Esse contexto de disputa de influência sobre as favelas tornou a Fundação Leão XIII um gigantesco aparato público-privado de políticas públicas. Os setores dominantes urbanos pactuavam, ainda que com algumas resistências dos setores mais conservadores, o amplo apoio para que a entidade tivesse o monopólio das intervenções nas favelas no Rio de Janeiro, pelo menos até meados da década de 1950. Essa aposta se fundamentava na concepção de política pública, que teve como grande diferencial, a intervenção no seio das favelas, utilizando a Educação, o Serviço Social e a relação com as lideranças locais. Se antes as intervenções nas favelas eram externas, muitas vezes reduzidas a ações de violência nos processos de remoção, a Fundação, pautava as favelas como uma “questão social” (Carvalho & Iamamoto, 2014). Os Centros de Ação Social (CAS), localizados nas favelas, realizavam as políticas públicas e tornavam-se uma referência entre os moradores, pois, muitas vezes, eram os únicos espaços na favela a apresentar alguns direitos sociais (Carvalho & Iamamoto, 2014; Valla, 1986; Valladares, 2005).

Os Centros de Ação Social, apesar de oferecer uma série de direitos sociais, ao mesmo tempo, demonstravam a situação de provisoriedade dos favelados, pois, uma de suas tarefas era organizar a remoção de moradores. Esse foi o caso do Morro Santo Antônio, que durante a década de 1950 chegou a ter 500 famílias removidas pela Fundação Leão XIII; nos anos 1960 ocorreu a extinção da Favela do Pinto, do Esqueleto entre outras (Valla, 1986). As remoções de moradores favelas nas décadas de 1950 e 1960 ocorriam de acordo com o projeto de urbanização do Departamento de Engenharia da Fundação Leão XIII, alinhado aos interesses do mercado imobiliário, que ansiavam pela extinção das favelas na Zona Sul, Norte e Centro (Gonçalves, 2013).

Essa relação entre urbanização das favelas e remoção era definida também pela correlação de forças nas favelas. A Barreira do Vasco, por exemplo, era uma favela onde o PCB possuía grande influência. Lá, a Fundação estabeleceu um conjunto de moradias populares, sob regime de mutirão, que foi a grande vitrine para disputar influência contra os comunistas. Tais moradias eram inspiradas nas vilas operárias, que estabeleciam uma série de formas de controle sobre a vida dos favelados por meio da arquitetura e do acompanhamento da Fundação sobre a vida cotidiana dos moradores. Em outros locais em que a mobilização era menor e menos organizada a remoção era o elemento predominante (Costa, 2015).

A conquista de direitos sociais era propagandeada pela Fundação como uma conquista da entidade, a partir dessa ação de colaboração junto aos moradores. Os Centros de Ação Social, portanto, eram um espaço de oferecimento de políticas públicas, de convencimento sobre as populações das favelas a respeito de um projeto de cidade que deveria redistribuir os trabalhadores no plano urbano, de acordo com um em severo controle educacional, político, religioso e moral. A entidade possuía o monopólio sobre a concessão de luz, de acordo com a Portaria nº 1 (1948) (Valla, 1986; Gonçalves, 2013). O Serviço Associativo do Departamento de Serviço Social utilizava tal poder como barganha no controle cotidiano sobre a vida dos moradores, assim, como a possibilidade permanente de remoção. Tais ações de controle se articulavam as suas ações educacionais.  

O Serviço Social e a Educação eram dois setores chaves da Fundação Leão XIII dedicados a construir o que consideravam ser a cidadania aos favelados. A “educação social” deveria ser o meio essencial de estabelecer o salvamento em relação a práticas consideradas resultado de uma “miséria material e moral”. O diferencial em relação às políticas públicas anteriores ocorridas nas favelas era que a cidadania poderia ser concedida aos favelados pela educação (Carvalho & Iamamoto, 2014; Valla, 1986; Valladares, 2005).

A orientação político-pedagógica seguia os preceitos de divisão de gênero para o trabalho de acordo com os preceitos católicos de família tradicional. A formação educacional dos homens deveria ser voltada para o trabalho manual industrial (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial - SENAC) e comercial (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI), enquanto às mulheres a educação deveria atender a demanda por trabalhos domésticos e/ou trabalhos assalariados associados à maternidade, tal como culinária, corte e costura, economia do lar, enfermagem. A Educação Profissional, denominada de Ensino Artesanal, acontecia nas oficinas de estofamento, carpintaria, produção de calçados, encadernação entre outras. A educação infantil era muito priorizada: Maternal (2 a 4 anos); Jardim de Infância (4 a 7 anos) e Ensino Primário (7 a 14 anos), pois, as crianças eram consideradas o setor favela mais promissor a conquistar a cidadania, pois não estariam ainda dominadas pelas práticas culturais consideradas bárbaras (Valla, 1986).

A educação possuía a importância de formar quadros femininos para atuarem como donas de casa, e, mais que isso, propagar nas favelas esse ideal de família tradicional católica, enquanto fiéis católicas praticantes. Os cursos de Orientação de Mães eram parte desse projeto educacional, que sedimentariam as famílias tradicionais, garantindo assim, casas higienizadas, criação católica aos seus filhos e submissão aos seus maridos. Aos homens havia também cursos sobre alcoolismo e outros vícios, mostrando o quanto a família deveria ser o coração da transformação da vida dos favelados para a conquista da cidadania.

Se a Educação era o eixo formador para a formação cidadã, técnica e política para o trabalho familiar, comercial e fabril; o setor de Serviço Social era a articulação e mediação de todas as ações da entidade junto aos trabalhadores das favelas. Eram as assistentes sociais as responsáveis pelo acompanhamento cotidiano sobre as famílias, exercendo uma relação de controle e convencimento sobre as possíveis benesses de se incorporar à concepção de família, trabalho e política da Fundação Leão XIII.  

Inicialmente as assistentes sociais desenvolviam amplas pesquisas sobre o cotidiano dos favelados e a situação social mais geral. O levantamento de dados era realizado a partir do cadastramento dos moradores, mediante visitações que realizavam aos seus domicílios. Assim, no Rio de Janeiro, no final dos anos 1940, se realizou um censo nas seguintes favelas: Barreira do Vasco, São Carlos, Jacarezinho, Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, Praia do Pinto e Areinha. Sendo, inclusive, utilizado pelo Censo do IBGE, de 1950 (SAGMACS, 1960). Informações como renda, origem da família, idade, sexo, saúde, educação e os relatos das assistentes sociais formavam o diagnóstico que nortearia as ações da entidade. Esses dados permitiam entender as singularidades de cada território, as formas de organização local, a frequência escolar, a prática do catolicismo, a situação da saúde, as inclinações políticas, a constituição familiar, a estrutura urbana e outras demandas sociais mais urgentes.

O setor da Fundação Leão XIII, Serviço de Casos Individuais, cadastrava moradoras e moradores, visitava as famílias e fornecia todas as informações necessárias para que as famílias fossem encaminhadas para políticas sociais de saúde, educação, moradia, encaminhamento para emprego, obtenção de certidão de nascimento e casamento etc. Já o setor Serviço Social de Grupo deveria monitorar as associações de moradores, realizar eleições, indicar as lideranças para cursos de moralidade e política. As assistentes sociais, portanto, seguiam o seguinte protocolo: 1. Levantar dados estatísticos e qualitativos sobre cada favela; 2. Desenvolver as políticas sociais; 3. Auxiliar a execução de um plano de urbanismo, ou na própria favela, ou removendo os moradores (uma parte ou a totalidade) para conjuntos habitacionais na periferia (Carvalho & Iamamoto, 2014).

O Serviço Social, assim como a Educação, era responsável pela formação de lideranças locais alinhadas à Fundação. O seu setor de Serviço de Comunidade realizava toda a mediação junto às associações de moradores, selecionando lideres locais para cursos e palestras que os capacitassem para a realização de mutirões sob a gerência da entidade. Era, nesse sentido, um processo educacional, para adequar os moradores ao projeto de cidade da Fundação. Essa mobilização local era acionada, inclusive, para organizar a transferência para conjuntos habitacionais ou mesmo remoções sumárias. Essa mobilização local tinha como orientação institucional as definições das assistentes sociais, de acordo com a sua noção de família tradicional católica. Assim, eram elas que definiam quem deveria ser removido e quem poderia ficar em determinada favela, ou mesmo ser atendido por alguma política social. Eram considerados aspectos morais, políticos, de criminalidade dos membros da família, situação legal das moradias e habitabilidade do território (esse quesito muitas vezes tinha como elemento fundamental a valorização fundiária e não apenas a preocupação com a qualidade das habitações nas favelas).

É a partir de meados dos anos 1950 que a Fundação passa a desempenhar um papel cada vez mais remocionista e mais estatal, iniciando uma inflexão nas suas ações. É a segunda fase da entidade. A partir desse momento se tornam hegemônicas as intervenções que buscavam remover os favelados para a periferia da cidade, os realocando para conjuntos habitacionais financiados em regime de parceria com entidades como a Fundação Casa ou Institutos de Assistência e Pensões (Valla, 1986).

É nesse segundo período também que, a Fundação perde o monopólio de ação sobre as favelas, pois acumulava desgaste tanto de setores conservadores que se contrapunham a qualquer tipo de urbanização aos favelados, quanto da esquerda que se opunha ao seu duro controle ideológico-político e ao seu remocionismo. O Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA) e a entidade católica Cruzada São Sebastião passaram a complementar as ações da Fundação Leão XIII. A SERFHA surgiu em 28 de agosto de 1956, mediante o decreto nº 13.304, executado pelo prefeito do Distrito Federal, Francisco Negrão de Lima. Era um esforço institucional de amenizar a ampliação dos conflitos que ocorriam nas favelas, na medida em que os favelados, cada vez mais não aceitavam a ingerência da Fundação Leão XVIII. A SERFHA seria uma entidade governamental dedicada a mediar a relação entre as associações de moradores e as entidades civis que atuavam nas favelas, a Fundação e a Cruzada. A sua extinção em 1962, de acordo com o Decreto 1.162, do governo estadual, é um marco dessa segunda fase, em que se aprofundava a lógica remocionistas e autoritária nas favelas. A ascensão da deputada da UDN, Sandra Cavalcanti, à Chefia da Coordenação de Serviços Sociais, implicou no recrudescimento conservador e autoritário da Fundação Leão XIII e de todas as políticas orientadas aos favelados.

Essa lógica remocionista se aprofunda ainda mais no início dos anos 1960, de modo que a Fundação sofre uma mudança institucional e passa a ser instância de Estado de fato, e não mais uma autarquia. O Decreto nº 1.041, de 07 de julho, de 1962, mantinha atribuições urbanísticas à Fundação, no entanto, tinha como referência fundamental o remocionismo. A construção de moradias populares na periferia era destinada prioritariamente às famílias de favelas erradicadas, ainda que mantivesse como tarefa da entidade o controle sobre serviços de água, luz, arruamento e esgoto.

13 secretarias deveriam organizar as políticas públicas no primeiro escalão, sendo as entidades aquelas que deveriam executar os planos governamentais (Valla, 1986). A partir daí, a Fundação Leão XIII passou a executar as ações organizadas pela Companhia de Habitação Popular (COHAB), financiadas pelo governo do Estado da Guanabara e a parceria com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Como ocorreu na construção da Vila Aliança (1963) com 2.187 moradias; Vila Kennedy (1963), 5.509 moradias e Vila Esperança (1963), 464 moradias (Valla, 1986). O Governo do Estado da Guanabara apontava a orientação de que a Fundação Leão XIII deveria ainda realizar a urbanização do bairro da Vila da Penha e de Bangu; realização de melhorias em 35 favelas do Rio de Janeiro; construção de uma unidade médico-sanitária em Madureira (Valla, 1986; Valladares, 2005). No entanto, ao mesmo tempo, a entidade deveria responder, prioritariamente, a agenda de reforma urbana do governo Carlos Lacerda, erguida sobre um gigantesco número de remoções nas favelas do Rio de Janeiro. O Decreto nº 25, de 15 de julho de 1963 aprofunda ainda mais esse caráter à Fundação Leão XIII de executora de políticas remocionistas do Estado. A Secretaria de Serviços Sociais teria mais agilidade em aplicar suas políticas, sem o que a secretária da pasta, Sandra Cavalcanti, considerava como entraves burocráticos.

Os mutirões ainda eram mantidos como uma prática da entidade, mas passavam a ser, cada vez mais, parte importante da atuação dos próprios moradores na ação de remover seus próprios vizinhos. Essa postura mais remocionista respondia também ao fortalecimento das organizações de favelados que resistiam ao projeto urbanístico da Fundação Leão XIII, em particular, mediante a proliferação de associações de moradores independentes, a influência dos comunistas, trabalhistas e da União dos Trabalhadores Favelados (UTF).

Várias favelas surgem no Rio de Janeiro a partir desse aprofundamento do remocionismo no final dos anos 1950 e início dos 1960. O Centro de Habitação Provisória (CHP), inspirado nos Parques Proletários, atuou de 1962 a 1971, e reunia três Centros, que receberam grande contingente de moradores de favelas das regiões Sul, Norte e Centro: Praia do Pinto, Formiga, Querosene, Macedo Sobrinho, Favela do Esqueleto e favela da Rua Teixeira de Castro. A favela Nova Holanda, por exemplo, localizada na maré, próxima a Avenida Brasil, surge no período do governo Carlos Lacerda, quando moradores da favela do Esqueleto para lá foram removidos (região onde hoje se localiza a Universidade do Estado do Rio de Janeiro) (Junior & Diniz, 2012). Todas essas iniciativas de remoção tiveram alguma participação da Fundação Leão XIII no processo de cadastramento, mobilização local e remoção.

A escalada autoritária da Fundação Leão XIII também está ligada ao crescimento dos ânimos conservadores dos setores políticos que defendiam o golpe empresarial-militar. A lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, tornava a capitação de recursos para moradias populares exclusividade do Banco Nacional de Habitação (BNH), concentrando o poder de financiamento na esfera federal, aprofundando o caráter restritivamente remocionista da Fundação Leão XIII.

Outro lado desse processo é o aprofundamento da abertura da entidade aos interesses internacionais, em particular dos Estados Unidos da América (EUA), que passaram a financiar, formular e realizar políticas públicas em parceria com a entidade. No final dos anos 1940, algumas assistentes sociais, em particular a diretora do setor de Serviço Social da Fundação Leão XIII, Maria Luiza Moniz de Aragão, representaram o Brasil num curso nos EUA, promovida pelo Departamento de Estado Norte-Americano e pelo Bureau Feminino do Departamento do Trabalho. O curso garantiu a visita a treze estados estadunidenses, de modo a conhecer o método de organização das políticas públicas voltadas para as mulheres (Costa, 2015). Outro exemplo dessa relação foi o Fundo do Trigo, de 1955, organizado pelo Eximbank, que garantia recursos da compra de trigo fossem revertidos para ações de desenvolvimento (Valla, 1986). 

 Mas, no ano de 1964, essa aproximação toma contornos cada vez mais diretos, quando é instaurado o Programa Brasil Estados Unidos - Movimento para o Desenvolvimento e Organização de Comunidade (BEMDOC), responsável por políticas sociais desenvolvidas nas favelas do Borel, Nova Brasília e Morro da Liberdade. Assim como as remoções já citadas, realizadas desde 1961, que faziam parte do Programa Aliança para o Progresso, chegando a 37 favelas. Criaram-se os bairros populares Vila Nova Holanda (Maré), Vila da Reforma (Botafogo), urbanização da Vila Vintém, Conjunto Santo Amaro, Jardim América, Jacarepaguá e Vila Aliança (Valla, 1986).

Projetos e pesquisas de ação comunitária, que tinham os mutirões como base de mobilização local, eram incentivados pela Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID), que também contribuía para o financiamento de casas populares em parceria com a Companhia de Habitação do Estado da Guanabara (COHAB-GB). Doações de alimentos vinham do Projeto Estados Unidos-Brasil (EUBRA) e eram administradas pela Fundação Leão XIII (Valla, 1986). Outra iniciativa foi o programa dos Peace Corps, que chegou a organizar 94.023 voluntários, que atuaram em 46 países, sob a orientação humanitária dos Estados Unidos da América, entre 1961 e 1979. Parte desses voluntários vinha atuar nas favelas do Rio de Janeiro sob a supervisão da Fundação Leão XIII: Morro do Borel, Tuiuti, Salgueiro, Morro Azul, Ruth Ferreira, Vigário Geral, Roquete Pinto, Morro do Estado, Rocinha e Jacarezinho (Valladares, 2005).

O saldo da reforma urbana encampada pelo governo de Carlos Lacerda teve, portanto, considerável participação da Fundação Leão XIII: cerca de 42 mil pessoas removidas de suas casas, 8.078 casas demolidas e 27 favelas diminuídas ou completamente retiradas (Gonçalves, 2013). Ensejando assim o término da segunda fase da entidade.

Posteriormente em meados dos anos 1970 a Fundação Leão XIII perde ainda mais o seu protagonismo, quando as remoções começam a diminuir, principalmente a partir do início dos anos 1980. A entidade passa a realizar trabalhos sociais em algumas favelas e assistência social aos moradores de rua, mas algo residual se considerado a proporção da entidade nas suas primeiras duas fases.

Considerando as duas fases iniciais da Fundação Leão XIII, pode-se afirmar que cumpriu um papel central na reforma urbana da cidade do Rio de Janeiro; no controle político sobre associações de moradores; no desenvolvimento de políticas públicas de educação e saúde nas favelas do Rio de Janeiro, mediante a relação com lideranças locais das favelas. Foi, portanto, uma entidade público-privada católica pioneira na construção de uma metodologia de políticas públicas baseadas não apenas na repressão aos favelados, mas também na produção de consenso através da Educação e Serviço Social. Responsável pela incorporação dos favelados à cidadania, ainda que pelo controle político, ideológico e religioso. Produziram uma proposta pedagógica de cidadania urbano-industrial subalterna aos favelados.

 

Bibliografia

ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Insistente Desencontro: o PCB e a revolução burguesa no período 1945-64 in Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. Antonio Carlos Mazzeo e Maria Izabel Lagoa (orgs). São Paulo, Cortez, 2003.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011.

COSTA, Reginaldo. A Fundação Leão XIII Educando os Favelados (1947-1964) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação, Programa de Pós Graduação em Educação, Rio de Janeiro, 2015.  

IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo, Cortez, 2014.

MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e Livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio e Janeiro. Bom Texto, 2008.

GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. Rio de Janeiro. Editora PUC-Rio, 2013.

PESTANA, Marco M. A União dos Trabalhadores Favelados e a luta contra o controle negociado das favelas cariocas (1954-1964). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013.

SAGMACS – Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais. Aspectos humanos da favela carioca. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 e 15 abr.1960. Suplemento especial.

VALLA, Vicent.  Educação e Favela. Rio de Janeiro, Vozes, 1986.

VALLADARES, Licia.  A Invenção da Favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005.

Jornal do Brasil, 1962–Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro sob a identificação: cx. n. 241.1, artigo 375 apud JUNIOR & DINIZ, 2012, P. 84). 

Veja também