Entre remoção urbanização e lutas nas favelas: mudanças entre as edições
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*Valladares, Lícia do Prado. A invenção da favela. Rio de Janeiro: FGV, 2005. | *Valladares, Lícia do Prado. A invenção da favela. Rio de Janeiro: FGV, 2005. |
Edição das 12h52min de 20 de junho de 2024
Estudo relacionado ao trabalho: Clássicos e contemporâneos sobre favelas: Curso IESP-UERJ.
Resumo: Memorando da aula-debate “Entre remoção, urbanização e luta nas favelas” promovida pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia do IESP-UERJ, inserida no programa da disciplina “Clássicos contemporâneos sobre favelas”, oportunidade em que com base em uma bibliografia clássica os discentes puderam dialogar sobre o panorama da história da favela, as propostas apresentadas pelo Estado para urbanização desses espaços e como os favelados se organizaram na luta contra as remoções a partir da análise dos movimentos sociais traçando um paralelo com as formas de mobilização percebidas atualmente.
Para estabelecer um panorama acerca da história da favela e iniciar o debate sobre o conceito de favela, foi utilizado o livro “A invenção da favela”, de autoria da Licia de Prado Valladares, importante socióloga pioneira no estudo sobre favelas e idealizadora do URBANDATA – banco de dados bibliográficos sobre o Brasil urbano criado no final dos anos 1980. O livro em referência foi lançado no ano de 2005 e apresentado por Gilberto Velho como sendo o trabalho mais amplo e sistemático sobre o fenômeno favela. Conforme explicação da própria autora, através deste estudo ela se propõe a realizar uma “sociologia da sociologia da favela” (Valladares, 2005, p. 23), revisitando as principais análises e interpretações do fenômeno ao longo do tempo.
Sendo assim, inicia o desenvolvimento do seu pensamento questionando o “mito de origem” que atribui a gênese da favela a Canudos, ignorando as raízes complexas e multifacetadas do processo de favelização no Brasil. Deste modo, chama atenção para o fato de que os cortiços seriam a “semente da favela”. Neste ponto, foi possível estabelecer uma relação com a obra “Cidade Febril, cortiços e epidemias na corte imperial” de autoria de Sidney Chalhoub, historiador brasileiro cujos estudos são fundamentais para a compreensão da formação da sociedade brasileira, lançando luz sobre as raízes das desigualdades sociais e raciais.
No capítulo inicial do seu livro, Chalhoub apresenta alguns pontos importantes para reflexão como a organização do trabalho e manutenção da ordem; classes pobres como sinônimo de classes perigosas; o debate sobre a “ideologia da higiene” para justificar os despejos que as populações que residiam nos cortiços foram submetidas tal como aconteceu com a população de favela algum tempo depois através das remoções.
Retornando a periodização proposta por Valladares, é possível constatar que a autora acompanha e analisa a construção da categoria favela enquanto problema social, oferecendo uma análise crítica e instigante do processo de favelização no Brasil, chamando a atenção para visões simplistas e estereotipadas do tema, contribuindo desta forma para a desconstrução de dogmas. Através desta obra é possível estabelecer a relação entre pobreza, urbanização e exclusão social no Brasil, o que justifica sua escolha para iniciar o debate proposto.
Destarte, tendo como referência o texto “O movimento favelado no Rio de Janeiro: política do Estado e lutas sociais (1954 – 1973)” de autoria de Nisia Trindade Lima, cientista social e socióloga que pesquisou sobre o movimento de favelados no Rio de Janeiro foi proposta a reflexão a respeito da história dos movimentos favelados, revelando como situações de exclusão – luta por moradia, políticas urbanas – podem favorecer processos de organização política.
O texto versa sobre as lutas sociais nas favelas do Rio de Janeiro em 02 períodos: 1954 – Criação da União de Trabalhadores Favelados e 1962/ 1973 – mobilizações organizadas pela Federação de Associações de Moradores de Favelas (FAFEG) contra as políticas de remoções adotadas pelo Estado. O objetivo era compreender as relações existentes entre a articulação de mobilizações coletivas pela população favelada e as políticas governamentais relativas à habitação popular.
Assim, no capítulo 4 apresenta a proposta do Estado para a urbanização de favelas como um projeto se basearia em uma articulação entre o Estado e as Associações de Moradores de localidades consideradas favelizadas, com o enfoque em um programa visando “desfavelizar” e construir conjuntos habitacionais para os residentes destas áreas.
Desta forma, o projeto visava uma forma de impor uma espécie de organização política das populações em forma de Associações que fariam a ligação das populações com o Estado. Essa organização serviu para definir os locais que teriam as intervenções do Estado, logo se definindo como um programa “apenas em favelas ‘organizadas’” (LIMA, 1989).
Destacando a atuação de José Arthur Rios a frente da Coordenação de Serviços Sociais, o texto aborda seus movimentos intervenção através dessas organizações como forma de quebrar dependências de benefícios governamentais através de organização e mão de obra para os programas estatais.
Ao abordar o tratamento do Estado e das organizações criadas pela igreja, pode ser percebida formas que podem ser consideradas “repressivas” e “paternalistas”. Ao mesmo tempo que obrigam moradores a se adaptarem a formas de docilizar os corpos, em forma de “aburguesamento”, e não dar acesso à educação aos diretamente afetados.
Para Rios, a urbanização de favelas se dava em forma de duas etapas principais que focariam no período de experimentação, onde seria os entendimentos entre Estado e Associações e posteriormente transformar as associações em cooperativas habitacionais.
Rios entendia a favela como “problema” de Governo, dessa forma suas intervenções e controle aconteciam através das associações localizadas nas áreas de atuação do Estado, além de uso dos espaços de organização como forma de cooptar apoio político. O Governo aproveitando a tamanha dimensão do programa pode se aproveitar de formas de atuar dentro destes espaços através de dirigentes e cabos eleitorais.
Por fim, podemos observar as formas de tratamento do Estado em diferentes espaços favelizados, inclusive, modificando as formas de atuação do Governo em cada espaço. Seja pela sua forma de atuação ou intervenção, a “desfavelização” dessas áreas aconteciam de forma que além de influenciar nas organizações espaciais ou sociais, tinha um grande foco em cooptar apoios e bases políticas em áreas de interesse do Governo.
Por sua vez, o capítulo 5 destaca as lutas sociais que acompanharam o período de 1962 a 1973, no qual a política de remoções caracterizou a forma predominante do Estado lidar com as favelas do Rio de Janeiro. Uma das questões centrais abordadas diz respeito aos fatores que podem explicar a resistência às formas de intervenção estatal sobre as condições de vida dos setores populares, num contexto marcado pelo autoritarismo político.
Trindade examina a criação da COHAB (Cooperativa de Habitação Popular), que complementa a Reforma Administrativa realizada entre agosto e dezembro de 1962, marcando o início de uma nova fase onde um dos focos principais da intervenção estatal passa a ser a erradicação das favelas e o deslocamento dos moradores em conjuntos habitacionais nas áreas periféricas do Rio de Janeiro. Naquele período, o governo do Estado da Guanabara se destacava como uma "administração-modelo", objetivando ser um exemplo a ser seguido em nível nacional. Nesse cenário, a COHAB defendia que a erradicação das favelas era a única solução viável para resolver a questão. Uma das primeiras remoções ocorreu no Morro do Pasmado, onde estava planejada a construção de um centro turístico pela iniciativa privada. O critério que passou a orientar as ações da COHAB era a remoção de favelas situadas em áreas de alto valor, cuja venda geraria recursos para a continuidade do programa. Apesar de não ser possível atribuir um tratamento uniforme às favelas neste período, visto que houve projetos de urbanização parcial em algumas favelas, as remoções ainda assumiram um papel central na política de estado.
Percebe-se que desde 1966, época das enchentes que ocorreram no Rio de Janeiro, começa a se fortalecer na opinião pública uma corrente favorável à remoção dos favelados. Conectado a um viés educacional, no qual era defendido pelo governo que seria benéfico para a população ser removida, pois teriam maior acesso a serviços básicos, como escolas, havia um discurso veiculado pela mídia que responsabilizava os favelados pelos problemas vivenciados no território, e criava uma opinião pública favorável à proposta de remoção. Frases como “Favela – antônimo de urbanização” tornaram-se slogans em eventos acadêmicos, por exemplo. Ainda que com variações conjunturais, o período que se estende de 1962 a 1973, caracterizou-se, no que se refere às políticas dirigidas às favelas, pela contraposição entre urbanizar e remover, predominando a última alternativa. Para o movimento de favelados, “Urbanização – Sim x Remoção – Nunca” passa a ser a palavra de ordem central.
Ao estudar o movimento de favelados, Trindade distingue duas fases durante o período das remoções. A primeira caracterizou-se pela atuação mais moderada da FAFEG e mais voltada à discussão de temas específicos. A segunda teve início com a eleição da diretoria presidida por Vicente Mariano, em 1967, quando se definiu atitude clara de oposição às políticas do governo e uma concepção do movimento de favelados enquanto “movimento de classe”.
No primeiro momento, para o movimento de favelados, não se tratava da resistência às ações de despejo,, eixo central das intervenções. O que se colocava como prioridade era a possibilidade de obter “melhorias”, em proporções mais significativas. Para compreender tal posicionamento, é importante observar que a FAFEG, em seu surgimento, possuía articulação com o Rearmamento Moral, movimento que desempenhou papel de destaque na campanha anti-comunista desenvolvida nos anos 60 nos Estados Unidos como tentativa de neutralizar os efeitos da Revolução Cubana, o que possibilitava maior alcance e espaço na mídia. Nesse sentido, deve-se levar em consideração a ofensiva ideológica desenvolvida no Brasil contra o governo João Goulart, no contexto.
Por volta de 1967, teve início o segundo momento da FAFEG, alinhado com o movimento que propunha o redirecionamento da linha política adotada pela entidade, com a defesa de uma postura mais combativa fundamentada na compreensão de serem os problemas vividos pela população favelada de natureza essencialmente política. A resposta do governo a essa transformação foi uma intensa perseguição e repressão às atividades da entidade e aos dirigentes de associações mais comprometidos. Já a gestão que se seguiu a de Vicente Mariano pautou-se pelo diálogo com o governo, comportamento que passou a orientar a atuação dos dirigentes da FAFEG até 1979, quando a partir de articulações de dirigentes de associações, favorecidas pela organização da Pastoral de Favelas, desenvolveu-se um movimento que resultou na eleição de uma nova diretoria para a entidade.
Dessa forma, no quinto capítulo de sua dissertação, Trindade oferece uma contribuição significativa ao examinar as lutas sociais que acompanharam o período mais intenso de remoções das favelas. Ao analisar a resistência dos moradores de favelas às políticas habitacionais e urbanas, a autora destaca formas de organização e mobilização coletiva nas favelas como pilar fundamental para o enfrentamento às intervenções estatais. Além disso, ao discutir os fatores que explicam a resistência das comunidades às remoções em um contexto de autoritarismo político, Trindade contribui para uma reflexão mais ampla sobre as relações de poder e as dinâmicas sociais envolvidas nas políticas urbanas.
Cumpre registrar que em ambos os textos a metodologia adotada foi a observação participante, que envolveu a realização de acompanhamento dos comitês eleitorais, de entrevistas com cabos eleitorais, diretores das associações, padre e outros atores nas localidades estudadas, além de entrevistas com moradores sem vínculos institucionais. As entrevistas foram conduzidas pela autora batendo à porta das casas, com o objetivo de obter informações aprofundadas e compreender as percepções e experiências dos moradores. A abordagem permitiu uma compreensão mais ampla das relações entre as associações de moradores, as bases comunitárias e os aparelhos de Estado, contribuindo para questionamentos importantes sobre as práticas políticas e as representações dos moradores.
Por fim, por meio de elementos mencionados nos textos indicados como água, moradia; organização do trabalho, movimentos sociais entre outros é possível estabelecer um paralelo para pensar as favelas no cenário atual, em especial durante a pandemia da covid-19, refletindo como os moradores de favelas se organizaram e sobre a importância de redes articuladas entre as organizações de favelas, sem deixar de considerar e pensar que se trata também de uma organização pela falta, pela ausência de atuação do Estado junto a esta população.
Análises e propostas sobre a realidade do coronavírus nas favelas
Autoria: Mariana Vieira, Isabela Maia e Eduardo Soares
Bibliografia:
- Valladares, Lícia do Prado. A invenção da favela. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
- Chalhoub, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Editora Companhia das Letras, 2018.
- Lima, Nísia Trindade. O Movimento de favelados do Rio de Janeiro: políticas do Estado e lutas sociais (1954-1973). Tese de Doutorado. IUPERJ, 1989.
- Denaldi, Rosana, Ferrara, Luciana. A dimensão ambiental da urbanização em favelas. Ambiente e Sociedade, 21. 2018.
Bibliografia complementar:
- Valladares, Lícia do Prado. Passa-se uma casa. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
- Freire-Medeiros, Bianca. Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009.
Debatedoras/es: Ana, Mariana, José Eduardo, Isabela, Rebeka, Everton